Sousa Dias, Lógica do Acontecimento (introdução à filosofia de Deleuze) - excerto

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Sousa Dias nasceu no Porto em 1956. Professor. Publicou, entre outros livros, Questão de estilo (colectânea de textos de teoria da literatura e da arte), O que é poesia? (ensaios de teoria crítica) e Grandeza de Marx — Para uma política do impossível.

LÓGICA DO ACONTECIMENTO

Resistir, resistir, problema não só da arte mas ainda da filosofia, tarefa filosófica fundamental, função do conceito na era da comunicação e da cultura mediática, e que Deleuze enuncia como tarefa de uma crença ou de uma fé a restabelecer pelo pensamento. «Necessitamos de uma ética ou de uma fé, o que faz rir os idiotas; não é uma necessidade de acreditar noutra coisa, mas uma necessidade de acreditar neste mundo, de que os idiotas fazem parte». «É possível que acreditar neste mundo, nesta vida, se tenha tornado a nossa tarefa mais difícil, ou a tarefa de um modo de existência a descobrir sobre o nosso plano de imanência hoje». E não admira que esse problema se apresente como o do pensamento e da arte, ou que sejam artistas e filósofos que mais profundamente o sintam e ponham. É que, diz Deleuze, longe de constituir uma finalidade em si mesmo o acto criador representa sempre uma tentativa de libertar a vida do que a prende, um esforço para fazer passar uma corrente de vida, para afirmar a vida como força supra-pessoal. Haverá assim um estreito laço entre criação e vida, um vitalismo intrínseco de toda a criação tanto filosófica como estética.

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Sousa Dias LÓGICA DO ACONTECIMENTO Introdução à filosofia de Deleuze nova edição aumentada

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obras do autor Mil experimentações – o pensamento e o mundo, Livraria Civilização Editora, Porto, 1980 Razão e Império, Livraria Civilização Editora, Porto, 1981 Arte, verdade, sensação, Livraria Civilização Editora, Porto, 1983 Lógica do acontecimento – introdução à filosofia de Deleuze, Edições Afrontamento, Porto, 1995, 2.ª ed. aumentada Documenta, Lisboa, 2012 Estética do conceito, Pé de Página Editores, Coimbra, 1998 Questão de estilo – arte e filosofia, Pé de Página Editores, Coimbra, 2004, 2.ª ed. (e-book) Grácio Editor, Coimbra, 2012 E Ítaca eras tu (poesia), Pé de Página Editores, Coimbra, 2005 Vocação vegetal (poesia), Pé de Página Editores, Coimbra, 2006 O que é poesia?, Pé de Página Editores, Coimbra, 2008 2.ª ed. (e-book) Grácio Editor, Coimbra, 2011 Grandeza de Marx – por uma política do impossível, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011


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nota à presente edição (2012) Para esta reedição procedeu-se a várias modificações pontuais do texto, algumas delas substanciais, e incluíram-se dois novos capítulos, o 7.º e o 8.º.

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LISTA

alfabeticamente ordenada das siglas das obras de Gilles Deleuze (GD) mais citadas no presente estudo nos termos da respectiva primeira edição original (sendo as siglas acompanhadas da indicação numérica das páginas em cada citação ou referência) CC

= CRITIQUE ET CLINIQUE, Ed. de Minuit, Paris, 1993

D

= DIALOGUES, Flammarion, Paris, 1977 (co-assinado por Claire Parnet)

DR

= DIFFÉRENCE ET RÉPÉTITION, P.U.F., Paris, 1968

DRF

= DEUX RÉGIMES DE FOUS, Ed. de Minuit, 2003

IT

= L’IMAGE-TEMPS, Ed. de Minuit, 1985

LS

= LOGIQUE DU SENS, Ed. de Minuit, 1969

MP

= MILLE PLATEAUX, Ed. de Minuit, 1980 (co-assinado por Félix Guattari)

NP

= NIETZSCHE ET LA PHILOSOPHIE, P.U.F., 1962

P

= POURPARLERS, Ed. de Minuit, 1990

PLB

= LE PLI, LEIBNIZ ET LE BAROQUE, Ed. de Minuit, 1988

QP

= QU’EST-CE QUE LA PHILOSOPHIE?, Ed. de Minuit, 1991 (co-assinado por F. Guattari)


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Capítulo 1 Introdução O ROMANCE DOS CONCEITOS

1) Destituir o ser em favor do acontecimento como entidade filosófica, despromover a ontologia em proveito de um acontecimentalismo. 2) Conceder títulos de nobreza a uma orientação «pática» do pensamento, estabelecer de direito um pensamento-pathos capaz de elevar a faculdade de pensar à sua superior competência intrínseca, de criação ou inovação. Pode circunscrever-se assim, na estreita correlação destes dois enunciados, o programa de Gilles Deleuze em filosofia. A realização deste programa envolve uma exigência crítica fundamental, uma vertente «negativa». Ela exige emancipar o exercício pensante do modelo lógico da verdade, denunciar a matriz doxológica desse modelo, quer dizer, denunciar o decalque da forma limitativa do senso comum pelo pensamento determinado como «razão». Exige, por outras palavras, desarticular a concepção tradicional predominante do pensamento e evidenciar o seu funcionamento repressivo sobre a operação prática «pensar» decorrente dos compromissos contraídos por essa concepção desde os pressupostos. Só o cumprimento desse quesito crítico permite a Deleuze fundar no próprio pensamento o carácter paradoxal da filosofia como acontecimentalismo, dar um estatuto propriamente de jure à actividade do pensamento como paradoxo. A inteligibilidade desse programa, da sua motivação e pertinência, resolve-se na intersecção explícita, estruturada de dentro, de toda a obra do filósofo com a nossa época. Tanto mais que, segundo DeLógica do Acontecimento

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leuze, é nessa intersecção, nessa relação produtiva com o contexto extrafilosófico epocal, que uma filosofia decide sempre da sua eficácia e sentido. De facto, nenhuma outra filosofia do nosso tempo se constituiu e se desenvolveu, ou elaborou a coerência da sua inventividade «anárquica», em tão ostensiva sintonia, por contiguidade ou à distância, com elementos da política, da ciência e da arte. Também nenhuma soube como ela, e nas condições particularmente desfavoráveis do pensamento hoje, ou dos imperativos da «cultura democrática» e da sua organização (produção de «ideias» como mercadorias de rápidas circulação e renovação, sujeitas aos critérios de «sensibilidade» do mercado e de «interesse» dos media), salvar de maneira tão exemplar a filosofia da falsa alternativa: função cultural mediadora ou «edificante» (promoção do debate público dos «grandes problemas» contemporâneos) ou então o autismo do conceito (especulações visionárias avessas a procedimentos de validação, ou estéril encerramento na exegese da própria tradição filosófica); e simultaneamente salvar o filósofo da pseudo-opção: protagonismo intelectual público ou solidão sem ecos, luzes da ribalta mediática ou gueto meditativo privado. Na verdade, longe de representar uma adaptação a essas condições presentes sufocantes, a filosofia acontecimentalista de Deleuze perfila-se como uma reacção a elas e às suas trágicas implicações sobre o pensamento. São outras as correntes filosofantes que se propõem como a ideologia da era da comunicação e do capitalismo demo-liberal e que, sob designações como racionalidade comunicacional, racionalidade retórica, filosofia conversacional, etc., se atribuem como finalidade, sempre sob a ideia reguladora de um senso comum crítico, suscitar consensos como opinião razoável da maioria. A filosofia deleuziana, pelo contrário, assume-se como um esforço para introduzir ou estimular hipóteses teóricas e práticas de resistência e, como veremos, é inseparável daquilo a que o filósofo chama um «devir-minoritá-

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rio». Por isso ela reivindica-se de um poder positivo de «inactualidade» ou de «intempestividade», termos colhidos de Nietzsche, e que este definia do modo seguinte: «agir contra o tempo, e assim sobre o tempo, em favor (espero) de um tempo por vir»1. Com efeito. Os acontecimentos como objectos da filosofia, os acontecimentos propriamente filosóficos, nada têm a ver com os ruidosos eventos socio-culturais dos media, com as actualidades dos meios de informação. Estes meios são mesmo inaptos por natureza para captar esses acontecimentos, para captá-los no seu tempo não coincidente com o dos acontecimentos mediáticos. É que os acontecimentos como entidades da filosofia não são os factos, os eventos históricos ou vividos. A substituição pelo acontecimentalismo da ontologia, da questão «o que é…?» (essência) pelas questões «o que é que aconteceu?» ou «o que é que vai acontecer?» (e: onde e quando?, em que casos e circunstâncias?), não significa uma reconversão filosófica ao aqui-e-agora, uma permuta do essencial pelo acidental. Os acontecimentos de que se ocupa a filosofia deleuziana não são os acidentes, colectivos ou individuais, mas antes «devires», dinamismos criadores, perfeitamente imperceptíveis pelos canais da comunicação. Tais canais só percepcionam esses dinamismos ou devires uma vez efectuados, exprimidos em factos ou em processos factuais, só retêm pois dos acontecimentos a sua parte de actualidade. Mas não a parte inefectuada e inefectuável, a face inactual ou intempestiva, os acontecimentos na sua subactualidade ou virtualidade. Os meios de comunicação dão conta de acontecimentos actuais ou existentes, mas o acontecimento filosófico não é actual nem existe, é virtual e como tal subexiste, subsiste. É auto-subsistente. Ele não é o que aconteceu 1

Nietzsche, Considerações inactuais, II 3-4.

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nem o que está na iminência de acontecer, ele está entre ambos, é as duas coisas ao mesmo tempo, o inactual entre-dois, em simultâneo o que vai ocorrer e o que ocorreu já num tempo próprio, sem presente, num tempo infinitivo não-cronológico. Certo que acontecimentalizar o pensamento como o intenta Deleuze, exercê-lo como produção de acontecimentos e ele próprio, de cada vez, como Acontecimento, é uma prática que acaba por encontrar, tacitamente pelo menos, uma ideia de Michel Foucault num elucidativo estudo sobre Kant: a ideia da filosofia, não como abstracta ontologia metafísica de essências intemporais, mas como «ontologia do presente». Mas há que entender com rigor o sentido desta expressão. Porque, nesta troca ontológica do eterno pelo presente, não está em causa para Foucault capturar conceptualmente o «ser» do presente, fosse na forma de uma simples fenomenologia da actualidade, ou na de uma compreensão «sintética» da realidade histórica dada. A «ontologia do presente» tem em vista para o seu autor detectar no presente, não a parte do ser, mas justamente a do devir, a parte «inactual» da realidade actual, a parte propriamente importante. Visa-se, concretamente, fornecer uma conceptualização às tendências decisivas que nos mais diversos domínios, e para o melhor ou para o pior, desde já traçam no presente, ou na face actual do presente, uma nova configuração, configurações não actuais. O pensamento como cartografia dos movimentos intempestivos de heterogénese, como geografia de devires, ou seja, dos verdadeiros acontecimentos, e esses acontecimentos inactuais e por isso mesmo interessantes como os «seres» sem identidade da filosofia: tal é o sentido profundo da ontologia foucaldiana do presente, a maneira de Foucault ser, também ele, um filósofo acontecimentalista. E não é objecção que, ao arrepio aparente do que se disse e segundo os termos do próprio Foucault, este distinga o presente e o actual, procure com a sua concepção «ontológica»

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separar no presente a parte do actual e vincule ao actual o pensamento. É tudo uma questão de palavras, porque o Actual, para Foucault, é o Novo, o outro lado virtual do presente, o devir-outro do presente: o presente é o que somos, mas o actual, nesse sentido, é o que no presente estamos já a deixar de ser. Pelo que, em Foucault como em Deleuze, a distinção axial não é entre o presente e o passado (a história), mas entre duas co-dimensões ou partes do presente, a parte histórica ou do «ser» desse presente e a sua parte virtual ou não-histórica de devir2. Os acontecimentos como entidades da filosofia não são por conseguinte dados, nunca se confundem com o dado: são a produzir, a construir na sua consistência específica, e só a filosofia está apta para essa construção ou composição, porque só ela detém o necessário poder do conceito. Acontecimentalismo significa: tratamento dos conceitos como acontecimentos e não como noções gerais, como singularidades e não como «universais». Tratamento que conduz Deleuze a aproximar a escrita filosófica e a arte romanesca e a conceber a filosofia como romance especulativo, por conceitos. «Em filosofia é como num romance: deve-se perguntar “o que é que vai acontecer?”, “o que é que se passou?”. Só que as personagens são os conceitos, e os meios, as paisagens, são “espaços-tempos”». «Os conceitos têm vários aspectos possíveis. Durante muito tempo foram utilizados para determinar o que uma coisa é (essência). Pelo contrário, nós interessamo-nos pelas circunstâncias de uma coisa: em que casos, onde e quando, como, etc.? Para nós, o conceito deve dizer o acontecimento e já não a essência. Daí a possibilidade de introduzir procedimentos romanescos muito simples em filosofia»3. De facto Deleuze imagina um livro filosófico como uma forma 2 3

QP 107. P 192, 39-40.

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especial de ficção científica (futurismo, virtude antecipativa dos conceitos: pensa-se do fundo do não-saber, sobre o que se não sabe nem se pode saber) e de romance policial: os conceitos, personagens do livro, devem intervir, com esferas de influência particulares, para resolver «dramas» noéticos, quer dizer, situações problemáticas locais, e mudar com os próprios problemas4. O que pressupõe uma orientação imediatamente prática, e não representacionista, do pensamento filosófico. E, com efeito, para Deleuze, a filosofia não é teoria, ela não teoriza, elabora conceitos para os problemas que se propõe, caracteriza-se por essa actividade inventiva de conceitos. Orientação que era já, segundo o filósofo, o verdadeiro ensinamento empirista, o «segredo» do empirismo. Por isso reafirmou Deleuze sucessivas vezes, desde a sua primeira obra (monografia sobre David Hume), uma inspiração empirista. Revisitado por Deleuze, o empirismo revela-se como um comportamento já romanesco em filosofia, a reformulação da filosofia como romance dos conceitos. Como é evidente, «não se trata de fazer um romance filosófico, nem de pôr filosofia num romance. Trata-se de fazer filosofia como romancista, de ser romancista em filosofia»5. É que o empirismo, na versão deleuziana, nunca foi simplesmente a doutrina de acordo com a qual o conhecimento deriva todo da experiência, o inteligível do sensível. A marca de água do empirista, em Hume como por exemplo em Whitehead, antes será a restituição do pensamento à sua faculdade superior endémica de livre criação através da libertação do conceito da sua vinculação à substância e ao atributo. O empirismo será a afirmação, contra o ser, dos acontecimentos, de um mundo não de seres mas «entre» os seres, das 4 5

DR 3. D 68 (a passagem é acerca do empirismo).

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relações, e a afirmação da sua exterioridade aos próprios seres, da sua irredutibilidade à ontologia. É uma reviravolta noológica, uma revolução no modo de pensar: em vez do ser das coisas e dos estados de coisas, da interioridade da essência e do atributo, o extra-ser das relaçõe e a sua autonomia, a experiência das relações, do E, como multiplicidades de natureza diferente dos elementos e dos conjuntos por si relacionados, ou como exteriores aos seus termos e independentes do respectivo número. Toda uma violência do pensamento sobre si próprio, contra a sua apetência ontológica, a sua fixação no É: pensar as coisas e os seres em função das relações, não o inverso, pensar as relações como entre-seres que afectam os seres de um coeficiente de devir, de variação co-relativa, e as circunstâncias, as acções e paixões, como factores de variações das próprias relações. O pensamento torna-se assim, estruturalmente, uma experimentação ou, como diz Hume, uma ficção, uma prática experimentalista e pluralista6: de cada vez, experimentar novas relações entre os seres, construir novas composições, uma geografia inédita, o pensamento como plano de composição onde as relações, os acontecimentos, se tecem e se destecem, acontecimentalismo. Não há para o empirismo primeiros princípios, representações privilegiadas ou regras apriorísticas e normativas do pensamento, uma orientação natural do acto cogitativo. A lógica, na concepção empirista, não como forma originária contendo os princípios fundamentais mas como qualquer coisa a inventar de cada vez, ou então a abandonar7. Pluralismo (e a sua identidade com o construtivismo). O empirista sabe-se desamparado desses princípios imutáveis, de um conhecimento formal da 6 GD, Prefácio à tr. ingl. de D, Columbia U.P., New York, 1987, p. VII: «Sempre me senti um empirista, quer dizer, um pluralista» (reproduzido em DRF 284). 7 D 70.

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verdade, de referenciais sobre «como orientar-se no pensamento», desprovido a priori de critérios, de coordenadas e directrizes, de uma regulação prévia que fornecesse à acção pensante a garantia de um «senso comum» como instância auto-legitimadora. Sabe-se votado por isso ao incerto e ao obscuro, à problematicidade, e a pensar aí, a partir daí, a exercer o pensamento como operação inventiva na ordem dos problemas, das regras e dos conceitos: o pensamento como criação, e não como reflexão. Ou, se se preferir: a questão, para o empirista, como sendo já, não a da verdade, mas a do sentido (a da produção de sentido, ou o sentido como produção). Resumindo: o empirismo configura, segundo Deleuze, o levantamento do conceito contra a ontologia, do conceito-acontecimento como única forma de destronar a ontologia, a insurreição do E contra o É, das conjunções contra o seu enfeudamento na filosofia tradicional ao verbo ser. Porque o E não é uma conjunção entre outras mas o poder comum de todas as conjunções, a sua força destituinte do primado do É. «Pensar com E, em vez de pensar É, de pensar por É: o empirismo nunca teve outro segredo»8. «Tal é o segredo do empirismo. O empirismo não é de modo nenhum uma reacção contra os conceitos, nem um simples apelo à experiência vivida. Ele empreende pelo contrário a mais louca criação de conceitos jamais vista ou ouvida. O empirismo é o misticismo do conceito, e o seu matematismo. Mas precisamente ele trata o conceito como objecto de um encontro, como um aqui-e-agora, 8 id. 71. MP 124: «Sempre houve uma luta na linguagem entre o verbo “ser” e a conjunção “e”, entre é e e. Estes dois termos só aparentemente se entendem e se combinam, porque um actua na linguagem como uma constante e forma a escala diatónica da língua, ao passo que o outro põe tudo em variação, constituindo as linhas de um cromatismo generalizado. De um ao outro, tudo oscila». E, ibid., em nota: «Não bastará analisar o “e” como uma conjunção; é antes uma forma muito especial de toda a conjunção possível, e que põe em jogo uma lógica da língua». Cf. também P 64-66.

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ou antes, como um Erewhon de onde saem, inesgotáveis, os “aqui” e “agora” sempre novos, diferentemente distribuídos. Só o empirista pode dizer: os conceitos são as próprias coisas, mas as coisas no estado livre e selvagem, para lá dos “predicados antropológicos”. Faço, refaço e desfaço os meus conceitos a partir de um horizonte móvel, de um centro sempre deslocado que os repete e diferencia»9. O pensamento americano prosseguirá esta revolta anti-ontologia dos conceitos, este combate do empirismo inglês à pregnância filosófica do verbo ser. O movimento prova-se fazendo-o. Fazer filosofia de maneira fecunda foi a melhor prova deleuziana da permanência de uma tarefa filosófica inalienável. Serenidade do filósofo: a progressiva construção do seu sistema, sem dramatismos sobre um pretenso destino do pensamento, no completo alheamento dos temas apocalípticos acerca da ultrapassagem da metafísica ou do fim da filosofia. Toda a obra de Deleuze é por si mesma a evidência prática do carácter de pseudoproblemas dessas tematizações. «Nunca tivemos qualquer problema a respeito da morte da metafísica ou da superação da filosofia: são disparates inúteis, penosos. Hoje fala-se na falência dos sistemas, quando foi só o conceito de sistema que mudou. Se houver razões e tempo para criar conceitos, a operação que proceder a isso chamar-se-á filosofia, ou nem sequer se distinguiria dela se lhe fosse dado outro nome»10. A inerência à filosofia de um conteúdo exclusivo, de uma função produtiva autónoma e insubstituível, é pois em Deleuze um dado aproblemá9 DR 3. E QP 49, 101: a filosofia britânica (empirismo) e americana (pragmatismo) como «uma livre e selvagem criação de conceitos». Erewhon, termo extraído do escritor inglês Samuel Butler e anagrama tanto de nowhere como de now here, é, para GD, o carácter próprio do conceito como acontecimento virtual (nowhere) de onde saem ilimitadas especificações, ou «repetições diferenciantes», actuais (now here). 10 QP 14. Cf. P 122, 186.

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tico que torna irrisória a tese de um esgotamento da filosofia ou de uma nova condição, «pós-filosófica», do pensamento. Certo, a filosofia sempre conheceu os seus rivais, reivindicadores de uma superior competência para o desempenho da mesma função, e a presente era da comunicação fez surgir uma casta ainda mais insolente de sofistas. «Hoje, é a informática, a comunicação, a promoção comercial que se apropriam das palavras “conceito” e “criativo”, e estes “conceptores” formam uma raça descarada que exprime o acto de vender como supremo pensamento capitalista, o cogito da mercadoria. A filosofia sente-se pequena e só diante de tais poderes, mas, se lhe acontecer morrer, ao menos será de riso»11. A filosofia é o poder do conceito, e esse poder é inapropriável, só ela o possui, ou, se se preferir, filosofia é o nome próprio do exercício desse poder, sempre que e onde ele se manifestar. Mas, qual a natureza desse poder? Afinal, a filosofia o que é? Deleuze destaca primeiro o que, segundo ele, ela não é. Ela não é contemplação, nem reflexão, nem comunicação. Tais são as três funestas auto-opiniões, a tripla ilusão segregada pela filosofia acerca de si mesma. Ela não é contemplação porque os conceitos não preexistem como entidades incriadas, não há céu inteligível para os conceitos. As contemplações não são os actos conceptivos da filosofia, mas as próprias coisas enquanto vistas na criação dos seus conceitos: a face «passiva» do filosofar. E se Platão definia a filosofia como atitude contemplativa de Ideias, foi-lhe precisa a prévia criação do conceito de Ideia. A filosofia também não é, conforme a determinação de Kant, reflexão, porque ninguém precisa da filosofia para reflectir. A atitude reflexiva, quer fundacionalista quer epistemológica, corresponde a uma ilusão de carência, por parte das outras disciplinas e práticas, de uma meta-consciência que, todavia, só 11

P 186. Cf. QP 15-16.

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essas práticas e disciplinas podem adequadamente dar-se a si mesmas. Como diz Deleuze, a filosofia sofre de dois complexos, um de superioridade, de inferioridade o outro, e que são como o verso e o reverso de uma mesma sua «imagem» tradicional: complexo de um pseudo-primado de reflexão e de uma menoridade de criação. Supõe-se com isso dar-lhe muito, um privilégio especulativo, um poder reflexivo único que lhe daria o direito de pensar «sobre», de dar às outras actividades criativas, ciência, arte, literatura, uma consciência que sem a filosofia não possuiriam. De facto, com essa «imagem», tira-se tudo à filosofia, todo o interesse, porque se lhe nega, precisamente, uma especificidade, uma criatividade específica. «Uma disciplina que se desse por missão seguir um movimento criativo vindo de algures abandonaria em si mesma todo o papel criador. O importante nunca foi acompanhar o movimento do vizinho, mas fazer o seu próprio movimento»12. Com que direito, pergunta Deleuze, estaria o filósofo mais apto a pensar, por exemplo, o cinema do que os cineastas, os cinéfilos, os críticos de cinema? Que necessidade têm essas pessoas da filosofia para pensar o cinema? De onde retira o filósofo uma suposta capacidade prioritária sobre os cientistas para constituir uma consciência epistemológica? Nunca os artistas esperaram pelos filósofos para reflectirem sobre a pintura ou a música, nem os matemáticos sobre a matemática, e seria ridículo ver nisso um seu devir-filósofos, tanto essa reflexão é interior à sua criação respectiva. «A ideia de que os matemáticos precisariam da filosofia para reflectir sobre a matemática é uma ideia cómica. Se a filosofia devesse servir para reflectir sobre qualquer coisa, ela não teria nenhuma razão de existir. Se a filosofia existe, é porque tem o seu próprio conteúdo»13. 12 13

P 170-171. DRF 292.

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Mas esse conteúdo também não é comunicação, a promoção por discussão de consensos «razoáveis», de uma Doxa «racional», de acordo com uma mais recente vocação. As opiniões são a matéria da comunicação, o seu único poder, inassimilável ao poder próprio da filosofia, o paradoxo. A comunicação é um sistema de formação de novos «universais», e os universais de comunicação não são melhores, apesar do seu aspecto dialógico, do que os universais de reflexão ou de contemplação. Os conceitos filosóficos não são noções universais mas singularidades, filosofar é singularizar, o primeiro princípio prático da filosofia é mesmo, nas palavras de Deleuze, que os universais não só nada explicam como têm que ser eles próprios explicados pela filosofia: esta não contempla, não reflecte, não comunica, mas deve formular os conceitos adequados a estas acções ou paixões14. Nenhuma das três atitudes, sublinha Deleuze, jamais elaborou, jamais foi capaz de elaborar, um só conceito, e se filósofos «contemplativos» ou «reflexivos», por exemplo, souberam produzir os conceitos de que precisavam, é porque contemplação, reflexão, etc., são apenas auto-imagens inexpressivas dessa atitude produtiva15. Inventar conceitos. Tal é a persistente tarefa filosófica, a resposta deleuziana, surpreendente na sua aparente simplicidade, à questão: o que é a filosofia? Fazer filosofia é um trabalho inventivo, o pensamento filosófico é a arte do conceito, tanto a estética como a lógica do conceito16. De facto, a filosofia nada tem a perder, antes tudo a ganhar, toda uma inconfundível faculdade de criação, se reconhecer não ter nenhum direito reflexivo nem nenhuma eficiência comunicativa. Quanto mais ela insiste nessas imaginárias virtudes, menos ela faz valer o seu legítimo QP 12, 51. Cf. GD, Périclès et Verdi, Éd. de Minuit, 1988, p. 19, e P 199. Sobre as três atitudes: QP 11-12. 16 id. 10-11: «Não se pode objectar que a criação se diz mais do sensível e das artes, tanto a arte faz existir entidades espirituais, e tanto os conceitos filosóficos são também “sensibilia”». 14 15

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poder criativo. «A filosofia tem uma função que permanece perfeitamente actual, criar conceitos. Ninguém o pode fazer por ela (…) ela é criadora ou até revolucionária, por natureza, na medida em que não pára de criar novos conceitos. A única condição é que eles tenham uma necessidade, mas também uma estranheza, e têm-nas na medida em que respondam a verdadeiros problemas. O conceito é o que impede o pensamento de ser uma simples opinião, um parecer, uma discussão, uma tagarelice. Todo o conceito é um paradoxo, forçosamente»17. Justamente, o filósofo não tem opiniões, por isso também nada a discutir, nada a argumentar, é mesmo contra o anti-pensamento opinativo que ele maneja o poder do conceito. O conceito não é uma opinião, não é nem a opinião «verdadeira» dialecticamente formada nem a arqui-opinião de uma subjectividade universal constituinte: nem Doxa racional nem Ur-doxa transcendental. Antes é um operador muito preciso, muito específico, em si mesmo indiscutível, válido apenas pela fecundidade eventual dos seus efeitos paradoxais, ou seja, por aquilo que, em domínios heterogéneos, ele faz pensar, ver e até sentir e que sem ele continuaria impensado, invisível, insensível, precisamente porque o que ele revela, o que só ele pode revelar, é por natureza incaptável no horizonte real-vivido das opiniões. Pragmatismo intrínseco da noção filosófica, do conceito-paradoxo. O conceito intervém pois reagindo sobre as opiniões, sobre os fluxos ordinários de ideias, criando «pregnâncias» inéditas, novas singularidades ou um novo sistema de pontos singulares, propondo uma redistribuição inesperada dos dados, uma reclassificação insólita e todavia iluminadora das coisas e dos seres, aproximando coisas que se supunha afastadas, afastando outras que se supunha próximas. Só a filosofia detém esta capacidade, esta força selvagem do con17

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ceito, mesmo se o exclusivo dessa função criativa não lhe outorga nenhum privilégio ou preeminência, visto haver outros modos de idear e de criar, como a ciência e a arte, que não passam pelo conceito. Os capítulos seguintes abordarão de maneira mais rigorosa a questão: o que é um conceito?, e completarão a insuficiente caracterização da filosofia pela criação de conceitos. Porque, como observaremos, essa criação exige condições tanto internas como externas, requisitos interiores e exteriores ao pensamento. Vejamos para já dois exemplos, fornecidos pela própria obra de Deleuze, dessa criatividade filosófica e da sua dupla razão de ser: há que criar os conceitos porque eles não preexistem, prontos a aplicar a não importa o quê; e ainda porque a cada passo novas situações concretas, movimentos inovadores vindos de outros domínios, relançam a função filosófica, pedem conceitos originais, ou então cruzam-se com conceitos já fabricados, solicitando-lhes uma recomposição, reinjectando-lhes motivação, uma necessidade, uma actualidade, e deles extraindo, por seu lado, uma força suplementar, uma hipótese de desenvolvimento. O caso de Leibniz, do livro de Deleuze sobre Leibniz, como primeiro exemplo. O que faz Deleuze nesse livro? «Recentra» o sistema leibniziano no conceiro de Dobra. Revela a operação de Leibniz: dar à dobra um poder inédito, uma força de elevação ao infinito, nos corpos como nas almas, na matéria e no espírito. Em tudo Leibniz vê dobras, desdobramentos e redobramentos, mesmo o mundo está todo dobrado nas mónadas, cada uma das quais lhe desdobra um «departamento», faz luz sobre uma pequena porção da dobra mundial, de acordo com uma «harmonia», com uma ordem espacio-temporal preestabelecida. Ora, a cartada sublime de Deleuze consiste em evidenciar que, na mesma época, a arte barroca realiza a mesma operação que Leibniz em filosofia,

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libertando na arquitectura, na escultura (Bernini), na pintura (o Greco), na música, as dobras das inibições impostas pelos estilos tradicionais. Assim se perfila a filosofia leibniziana como uma compreensão filosófica, por conceitos, do Barroco, mas também a arte barroca como uma «compreensão não filosófica, por perceptos e afectos»18, de Leibniz. E Deleuze persegue até ao presente os poderes de autodiferenciação da Dobra «livre», mostra que há na arte, na ciência e na filosofia modernas aventuras que Leibniz e o Barroco não entreviram mas possibilitaram. Não que Proust, Mallarmé, Michaux, Klee, Dubuffet, Hantaï, Boulez, René Thom ou o próprio Deleuze, todos os que, cada um no seu campo, se confrontam com novas dobras, sejam leibnizianos ou barrocos. Mas as suas experiências não só decerto teriam sido impossíveis sem a emancipação da Dobra pelo barroco e por Leibniz como exprimem, por outro lado, outras tantas metamorfoses ou formas de actualidade das teses de Leibniz: todo um moderno neo-barroco19. Em Leibniz descobre, pois, Deleuze uma visão comum da filosofia, prática conceptual, elaboração de conceitos em relação essencial e positiva com situações extra-filosóficas. Sem essa relacionação, sem essa articulação com o não-filosófico que a motiva, a filosofia leibniziana abstractiza18 P 211. «Leibniz E o Barroco». Imagina-se, no mesmo espírito, na mesma função prática (produtiva e não simplesmente hermenêutica ou de comentário de textos) da história da filosofia, outros estudos, por exemplo Kant (sobretudo o da Crítica do juízo) E a arte romântica, criticismo E romantismo. Cf. alusões nesse sentido em GD, «Sur quatre formules poétiques qui pourraient résumer la philosophie kantienne», Philosophie n.º 9, Éd. de Minuit, 1986, p. 32-34, CC 40-49 (p. 33, CC 48: «a Crítica do juízo como fundação do romantismo»), e em MP 418, 422 («Enquanto a filosofia romântica invocava ainda uma identidade sintética formal assegurando uma inteligibilidade contínua da matéria (síntese a priori), a filosofia moderna tende a elaborar um material de pensamento para capturar forças não pensáveis em si mesmas»). O que sugere de imediato um outro importante estudo a empreender: Deleuze E a arte moderna, deleuzianismo E modernismo. 19 P 216-217. Cf. PLB 20-23, 47, 49-50, 187-189.

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-se, perde a íntima dimensão sensível dos seus conceitos20. Dobra, harmonia preestabelecida, mónada, etc., os conceitos de Leibniz têm uma aparência estranha, mas estão em curto-circuito imediato e interfecundante com movimentos das artes e das ciências do seu tempo (e do nosso) e só nessa contaminação se pode apreender-lhes plenamente o sentido, a inteligibilidade. «Quando Leibniz descreve a alma como uma “mónada” que “não tem portas nem janelas”, “com um fundo sombrio”, temos de o compreender por analogia com o interior de uma capela barroca, de paredes de mármore negro, com uma porta minúscula e janelas quase invisíveis… Também não é possível compreender o que Leibniz entende por “harmonia preestabelecida” a não ser por referência à música barroca, ou seja, ao momento em que a harmonia se liberta da melodia»21. O fundamental, para Deleuze, está sempre aí, nesses cruzamentos, nessas interferências. Nas intersecções entre linhas de experimentação independentes, em que conceitos da filosofia podem encontrar nas funções das ciências e nas combinações sensíveis das artes os seus «intercessores» e servir, por sua vez, de intercessores às composições artísticas e às funções científicas. É uma necessidade de toda a criação filosófica e não filosófica, interceder e ser intercedida, intersectar e ser intersectada, relançar e ser relançada, estabelecer ressonâncias, «capturas». Nunca nenhuma criação constitui em absoluto princípio ou fim, nenhuma se pode erigir em modelo, está-se sempre no meio, sempre «entre», em 20 GD, «A filosofia é criação», entrevista, tr. port. Jornal de letras, artes e ideias, n.º 330, 31.10.1988, p. 6: «os grandes comentadores de Leibniz analisaram, com profundidade, os seus conceitos, mas parece-me que ignoraram quase sempre as bases concretas, as condições vivenciais desses conceitos». 21 id. Cf. P 214-215: «À primeira vista, [a de Leibniz] é uma concepção bastante bizarra. Mas, como sempre em filosofia, é uma situação concreta. Tento mostrar como é o caso na arquitectura barroca, no “interior” barroco, na luz barroca. Mas é também a nossa situação de homens modernos, tendo em conta as novas maneiras como as coisas se dobram».

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interacção desfasada, retomando nos recursos, ritmos, mutações e história próprios criações vindas de algures, e em troca estimulando desenvolvimentos e transformações noutros campos. Como prática de conceitos a filosofia deve pois ser julgada «em função das outras práticas com as quais interfere. (…) É ao nível da interferência de muitas práticas que as coisas se fazem, os seres, as imagens, os conceitos, todos os géneros de acontecimentos»22. Mas isso sempre por referência a uma criatividade própria, a uma evolução específica. Se a filosofia está em conexão imediata e necessária com outros domínios, não é por se posicionar face a eles em estado de reflexão exterior, por lhes seguir o movimento, mas por deter uma matéria particular. É fazendo o seu próprio movimento criativo que a filosofia se coloca em estado de aliança activa e interior com domínios não filosóficos. Não pensar «sobre» outras coisas, mas pensar «com» elas, e por meios próprios, propriamente conceptuais: o encontro produz-se tacitamente, por criatividade, por interacção criativa, e não reflexivamente, não por mediação reflexiva23. Não há para Deleuze alternativa válida a esta concepção do filosofar e do acto criador em geral: processo autónomo em intersecção a partir de si mesmo com processos inventivos heterogéneos. É desta maneira, sem hierarquias artificiais, sem complexos de superioridade e de inferioriIT 365. DRF 265: «O encontro de duas disciplinas não se faz quando uma se põe a reflectir sobre a outra, mas quando uma se apercebe de que deve resolver pelo seu lado e com os seus meios próprios um problema semelhante àquele que se põe também na outra. Pode conceber-se que problemas semelhantes, em momentos diferentes, em ocasiões e condições diferentes, sacodem diversas ciências, e a pintura, e a música e a filosofia, e a literatura, e o cinema. (…) Não há obra que não tenha a sua continuação ou o seu início noutras artes. Pude escrever sobre o cinema, não por direito de reflexão, mas quando problemas de filosofia me levaram a procurar respostas no cinema, mesmo se estas relançaram outros problemas. Todo o trabalho se insere num sistema de relançamentos». 22 23

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dade criadora ou reflexiva, que a filosofia, a ciência e a arte tecem entre si uma relação positiva. Segundo exemplo. Porquê os dois livros de Deleuze sobre o cinema, porquê o encontro deleuziano cinema-filosofia, imagens cinematográficas-conceitos filosóficos? Não por vontade de qualquer coisa como uma «filosofia do cinema», uma teoria «sobre» o cinema, não por reflexão. Antes por cruzamento das imagens do cinema, ou dos poderes próprios dessas imagens, a partir de problemas estritamente filosóficos (relações pensamento-imagem, pensamento-movimento, movimento-tempo, etc.) e para prosseguir aí, nessas imagens e nesses seus poderes, o estudo de tais problemas, o movimento de certos conceitos filosóficos. Pelo que esses livros são, indiscutivelmente, livros de filosofia. Mas não se trata de aplicar às imagens fílmicas conceitos gerais pré-formados, porque o encontro com as imagens impõe aos conceitos sucessivas «modulações», ou especificações. Só assim tais conceitos, que só a filosofia pode propor, convirão ao cinema e a ele apenas, «e a tal género de filmes, a tal ou tal filme»24, só assim serão os conceitos específicos do cinema, ou seja, os conceitos que, sem estarem dados nos filmes, lhes explicitam as finalidades ou o pensamento supostos pelas noções técnicas do cinema mas inexplicáveis por elas. «A teoria do cinema não recai sobre o cinema, mas sobre os conceitos do cinema, que não são menos práticos, efectivos ou existentes do que o próprio cinema (…) Os conceitos do cinema não são dados no cinema. E porém são os conceitos do cinema, não teorias sobre o cinema. (…) O próprio cinema é uma nova prática das imagens e dos signos, de que a filosofia deve fazer a teoria como prática conceptual. Porque nenhuma determinação téc24

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nica, nem aplicada (psicanálise, linguística) nem reflexiva, basta para constituir os conceitos do próprio cinema»25. Só essa constituição dos conceitos especiais do cinema, como Deleuze a empreendeu (extraordinário romance conceptual do cinema!), possibilita uma taxinomia rigorosa das imagens, dos géneros e das obras cinematográficas, e tirar do vago, refixando com precisão, noções como as de «cinema clássico» e de «cinema moderno», por exemplo. Tal é a tarefa verdadeiramente importante da crítica de cinema (como de pintura, de literatura, etc.), o seu único modo de evitar quer o simples descritivismo quer a aplicação de noções extrínsecas, e também de esquivar a estéril dialéctica das opiniões, das «impressões» e «reflexões»: formar os conceitos singulares, especificamente convenientes, nem dados nem tecnicamente apreensíveis, do objecto da crítica. É uma tarefa filosófica, a tarefa particular da filosofia, o devir-filosofia da crítica. «A questão não é a do universal, mas do singular: quais são as singularidades da imagem? A imagem é uma figura que se define, não porque representa universalmente, mas pelas singularidades internas, pelos pontos singulares que liga: por exemplo, os cortes racionais de que Eisenstein fez a teoria para a imagem-movimento, ou os cortes irracionais para a imagem-tempo»26. De facto, como se disse, em Deleuze os conceitos nunca são generalidades mas «singularidades que reagem sobre os fluxos de pensamento ordinários»27. À primeira vista, portanto, dever-se-ia distinguir IT 365-366. P 92-93. Sobre o devir-filosofia da crítica, cf. 82: «Os críticos cinematográficos, pelo menos os maiores, reconhecem-se filósofos desde que se propõem uma estética do cinema. Não o são por formação, mas devêm-no». Para GD, não há filosofia fora de um devir-filósofo, de uma necessidade de criação na ordem dos conceitos, mas essa necessidade e esse devir, em vez de serem propriedade de profissionais do conceito, especialistas e professores, podem emergir em estado selvagem noutras actividades. 27 id. 48. 25 26

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dois tipos de conceitos. Haveria, por um lado, os «universais», os conceitos gerais, abstractos, determinações de uma essência, do ser de uma coisa, e foi esse tipo que durante uma longa tradição a filosofia privilegiou. E haveria, depois, os conceitos preferidos por Deleuze, os «específicos», conceitos diferenciais, conceitos-acontecimentos em vez de conceitos-essências, noções não de coisas mas de circunstâncias de uma coisa (casos, modos, espaço e tempo, etc.). Exactamente como o conceito de dobra. «Dobras, há-as por toda a parte: nas rochas, nos rios e nas madeiras, nos organismos, na cabeça ou no cérebro, nas almas ou no pensamento, nas obras ditas plásticas… mas nem por isso a dobra é um universal. (…) As linhas rectas assemelham-se, mas as dobras variam, e cada dobra vai diferindo. Não há duas coisas plissadas da mesma maneira, dois rochedos, e não há dobra regular para uma mesma coisa. Neste sentido, há dobras por toda a parte, mas a dobra não é um universal. É um “diferenciante”, um “diferencial”»28. O conceito é por conseguinte ideal (A dobra) sem ser um universal, é a noção ideal de uma variação contínua, a noção da inseparabilidade de certos elementos em estado de variação contínua, toda a constante sendo suprimida. Idealidade não universal, tal é para Deleuze a característica do conceito como construção filosófica. Por isso ele recusa a dualidade dos tipos de conceitos, em proveito apenas do último tipo, das noções singulares. «Não há universais, só singularidades. Um conceito não é um universal, mas um conjunto de singularidades cada uma das quais se prolonga até à vizinhança de outra»29. Os universais aparecem então como singularidades com funções especiais segundo processos não coincidentes de um para outro regime (ou «imagem») do pensamento: controlar, disciplinar a mobilidade imanente do pensamento; capturar 28 29

id. 213-214. id. 200.

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Capítulo 3 OS CONVIVAS BÊBEDOS E O PÁSSARO SOLÍLOQUO

O que é um conceito? É a ideia filosófica, a Ideia própria da filosofia, como a função é a Ideia da ciência e a sensação a Ideia estética. As Ideias são essas entidades eminentemente problemáticas, essas idealidades nem abstractas nem preexistentes, sempre objecto de criações especiais, em cada domínio suspensivas das opiniões e das significações estabelecidas. E se há uma problematicidade das Ideias, dos três tipos de Ideias, não é só, como adiante se explicará, por suporem problemas de que elas seriam os casos de solução, mas por serem esses mesmos problemas exprimidos, desenvolvidos, reformulados na sua posição: em cada caso as Ideias dão aos respectivos problemas a sua máxima determinação possível como estrutura objectiva, não anulada por elas, mas insistente através delas. O conceito como Ideia filosófica não é uma noção geral, uma generalidade no ar do tempo, um ser por abstracção. Nem, como se disse, uma realidade já dada e por isso não a criar mas a descobrir, exterior ao movimento da filosofia. Já Hegel soube mostrar a concretude do conceito como Ideia filosófica, e o seu poder autoposicional, mesmo se para lhe atribuir uma extensão enciclopédica e assim suprimir o movimento autónomo da arte e da ciência, a sua irredutibilidade à filosofia1. Nada há de abstracto no pensamento por conceitos, porque, como vimos já, os conceitos têm que ser construídos numa in1

QP 16-17.

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tuição específica, sobre um plano intuitivamente talhado como sobre um solo que os contém em germe. O conceito muito menos é um universal: vimos também que o universal nada explica, ele é que tem que ser explicado, e explicado como uma ilusão. Pelo contrário, sublinha Deleuze, o conceito é um singular, uma singularidade produzida sobre o plano de imanência, um ponto de composição e de ressonância de movimentos absolutos do plano. A ciência recai sempre sobre realidades actualizadas ou pelo menos em processo de actualização, elabora funções sobre um plano de referência, quer dizer, correlações regulares entre termos (coisas e estados de coisas) tomados como variáveis independentes. Mas a filosofia trabalha num plano não actual, estritamente virtual (mesmo quando parte de seres em acto é para deles extrair a sua pura virtualidade), constituído apenas por uma mobilidade sem limites. Cabe-lhe por isso acontecimentalizar esse plano intuitivo, destacar nele acontecimentos, ou seja, conceitos como «condensados», pontos de condensação de velocidades infinitas do plano, pontos de fusão de movimentos heterogéneos assim tornados inseparáveis: o conceito particulariza-se pelas suas variações interdependentes. A singularidade conceptual possui pois uma multiplicidade intrínseca. Todo o conceito é múltiplo, composto, define-se pela inseparabilidade, ou como zona de condensação ou de indiscernibilidade, das suas componentes heterogéneas como variações ou modulações do conceito. Nos termos de Deleuze, todo o conceito tem, não um número (porque as suas componentes não existem separadas, ou separáveis) mas uma cifra decorrente da sua composição. Seja o conceito heideggeriano de Ser. Trata-se de um conceito original, porque Heidegger dotou-o de uma composição inédita, por articulação de duas componentes, velamento e desvelamento, e como inseparabilidade das duas: conceito de cifra 2. E o cogito, o conceito revolucio-

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nário do Eu em Descartes, exemplarmente analisado por Deleuze, formado pela indiscernibilidade de três componentes — duvidar, pensar, ser —, com duas distintas zonas de indiscerníveis — duvidar/pensar e pensar/ser —, conceito de cifra 3. E se esse conceito é revolucionário, ou inassimilável a um pretenso cogito prévio agustiniano, é por apresentar uma composição novíssima, pedida por uma mutação do problema ou do próprio plano do problema (o plano cartesiano caracteriza-se pela recusa de todos os pressupostos objectivos explícitos). E, por seu lado, o cogito kantiano será também um conceito novo, por acréscimo no conceito do Eu de uma componente rejeitada por Descartes (o tempo) como condição de determinação da existência do Eu, que permanecia indeterminada no cogito cartesiano. E ainda nesse caso a novidade do conceito foi exigida por um novo plano e por um novo problema ditos «transcendentais» criados por Kant, que tornavam por sua vez inútil a componente dúvida. E Kant não pode fazer do tempo uma componente de um novo cogito sem criar novos conceitos de tempo e de espaço (o tempo como forma de interioridade, auto-afecção do Eu, e já não como mera ordem de sucessividade, e correlativamente o espaço não como simultaneidade mas como forma de exterioridade) cada um dos quais com articulações inéditas: um plano diferente solicita conceitos diferentes e os conceitos co-solicitam-se no plano. E há um cogito fenomenológico tecido por Husserl e irredutível tanto ao cogito kantiano como ao cartesiano, etc.2. Não há, em suma, conceitos simples, inanalisáveis, nem sequer os princípios pelos quais uma filosofia «começa», por isso os «começos» filosóficos nunca coincidem. «Não há conceito com uma só componente: mesmo o primeiro conceito, aquele pelo 2

Para tudo isto: id. 29-31. Cf. 33-34, análise deleuziana do conceito platónico de Ideia.

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qual uma filosofia “começa”, tem várias componentes, porque não é evidente que a filosofia deva ter um começo, e porque, se ela determina um, deve acrescentar-lhe um ponto de vista ou uma razão. (…) Todo o conceito é pelo menos duplo, ou triplo, etc. (…). Todo o conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra das suas componentes. É por isso que, de Platão a Bergson, encontramos a ideia de que o conceito é questão de articulação, de corte e de recorte»3. Criar conceitos é sempre, por outras palavras, compor, condensar, acrescentar ou retirar componentes, «polir» a consistência interna e externa (relativa a outros conceitos) de um acontecimento puro, virtual, sobre o plano. E o atrás citado exemplo do cogito mostra que um conceito, além de um devir (desenhado pelas suas conexões presentes com outros conceitos), possui uma história, uma historicidade própria, embora «em ziguezague», traçada pelos seus saltos sempre metamórficos de um para outro problema, de um para outro plano. Porque um novo plano ou um novo problema pode passar pela reactivação de um antigo conceito, mas nunca sem modificá-lo, recompô-lo, recortá-lo de modo diferente, subtrair-lhe certas componentes, juntar-lhe outras. «Num conceito, há as mais das vezes pedaços ou componentes vindos de outros conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. É forçoso, porque cada conceito opera um novo recorte, toma novos contornos, deve ser reactivado ou retalhado»4. O cristal seria uma boa imagem para dar conta deste entendimento deleuziano do conceito. Um conceito é um cristal, a cristalização das suas componentes, de movimentos virtuais infinitos. Na condição de não compreender cristalização como fixação mas, opostamente, 3 4

id. 21. id. 23.

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como consolidação, consistência desses movimentos, sua fusão consistente: o conceito está «imediatamente presente sem nenhuma distância a todas as suas componentes ou variações, passa e repassa por elas: é um ritornelo»5. Compor um conceito não é pois em caso nenhum globalizar, formar uma noção global, mas, ao invés, obter uma variável, uma noção válida pelo máximo de variações ou modulações que permite. «Não se trata de reunir num mesmo conceito, mas pelo contrário de referir cada conceito a variáveis que lhe determinam as mutações»6, a movimentos internos como suas variações: as componentes como as faces rítmicas do conceito-cristal. Composição, modulação, ritornelo, ritmo: há uma «musicalidade» do pensamento conceptual, aquilo a que Deleuze chama estilo, e que se exprime nas frases filosóficas, na construção literária sempre especial de cada filósofo como Opus, movimentação «intensiva» dos seus conceitos: todo o filósofo é um estilista. E se a criação conceptual pode exigir bizarros neologismos ou loucas etimologias, pode também satisfazer-se com palavras correntes que então se enchem «de harmonias tão afastadas que se arriscam a ser imperceptíveis a um ouvido não filosófico»7. O objecto dos conceitos: nem o universal abstracto, nem as particularidades empíricas, mas as singularidades-acontecimentos, a acontecimentalidade pura, puramente virtual, dos seres e dos seus acidentes, a potencialidade que pode investir uma matéria dada (física, biológica, histórica, ideológica, etc.). «O conceito é um incorporal, embora se incarne ou se efectue nos corpos. Mas justamente, não se confunde com o estado das coisas em que se efectua. Não tem coordenadas espacio-temporais, apenas ordenadas intensivas. Não id. 26. P 47. 7 QP 13. 5 6

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tem energia, apenas intensidades (a energia não é a intensidade, mas a maneira como esta se desdobra e se anula num estado de coisas extensivo). (…) O conceito diz o acontecimento, não a essência ou a coisa»8. Todo o esforço de Deleuze se concentra então em evidenciar a principal implicação desta tese: o conceito não é uma proposição, não é proposicional, a filosofia não é discursiva. Na lógica e na ciência, uma proposição define-se pela sua referência a coisas ou estados de coisas, mas o conceito é auto-referente. Nem a ciência e a lógica operam por conceito, nem os conceitos filosóficos são assimiláveis a proposições ou funções proposicionais. As funções científicas supõem uma referência em acto, são coordenações necessárias de estados de coisas ou «objectidades» como termos variáveis independentes, ao passo que as funções propriamente lógicas recaem sobre a referência em si mesma, vazia, ou como possibilidade proposicional, determinam as condições de referência das proposições em geral. Opostamente os conceitos remetem apenas para puros eventos incorporais distintos das suas actualizações em corpos e estados corpóreos e que formam, não a referência, mas a consistência dos conceitos. Por outras palavras, os conceitos remetem unicamente para si (para as suas componentes internas como variações inseparáveis, interdependentes) e para outros conceitos-acontecimentos no plano de imanência: endoconsistência e exoconsistência dos conceitos. Em suma, o conceito não é nem uma função científica nem uma proposição lógica, não tem referência, e como tal é inintegrável em sistemas discursivos. Nenhuma confusão é tão catastrófica para a filosofia, segundo Deleuze, como esta das proposições e dos conceitos, pela qual o plano filosófico de imanência é reduzido a um plano de referência, os con8

id. 26.

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Capítulo 6 O PENSAMENTO E OS POSSÍVEIS

Livro crepuscular, escrito «à meia-noite, quando não há mais nada a perguntar», O que é a filosofia? não se propõe apenas como a explicação enfim da tese deleuziana sobre a prática filosófica como invenção de conceitos, que aparecia já formulada e principalmente implicada na obra inteira do filósofo. Um outro móbil atravessa esse livro, uma necessidade mais decisiva, toda uma urgência, como um grito de alerta e um apelo à guerrilha contra as tendências profundamente recessivas e mesmo impotenciadoras nas condições actuais do pensamento e da criação em geral. Por isso o livro apresenta-se como um tratado pedagógico que era imperativo fazer ou, nos seus próprios termos, como o exercício de uma pedagogia do conceito como única hipótese de contrariar a catástrofe do pensamento na nossa época. «Se as três idades do conceito são a enciclopédia, a pedagogia e a formação profissional comercial, só a segunda pode impedir-nos de cair dos cumes da primeira no desastre absoluto da terceira, desastre absoluto para o pensamento, sejam quais forem, bem entendido, os benefícios sociais do ponto de vista do capitalismo universal»1. Deste desastre, corporizado na mercantilização e na mediatização de toda a criatividade, no movimento geral substitutivo da crítica pela promoção comercial, no casamento contra-natura da criação com a 1

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informação e a comunicação e na triste imagem mediática do pensamento como «troca de ideias» ou discussão de opiniões, não está a filosofia isenta de responsabilidades. Longe disso. Ao assumir uma suposta perda de pertinência da sua vocação inventiva de conceitos em favor de apocalípticas hermenêuticas da sua própria tradição mas mais ainda de novos Universais (os Universais de comunicação, os direitos do homem como Universais demo-liberais), a filosofia acabou por permitir a apropriação pelos seus piores adversários dessa sua vocação: as ciências humanas, a epistemologia, a linguística, a análise lógica, por fim a informática, o marketing, o design, a publicidade. «Todas as disciplinas da comunicação se apropriaram da própria palavra conceito e disseram: isto é connosco, somos nós os criativos, somos nós os conceptores!»2. Explicitamente visados são sobretudo Wittgenstein e a filosofia analítica nele inspirada, a filosofia comunicacional de Habermas, Rorty e a sua filosofia «conversacional», a sua redefinição da tarefa do filósofo, sobre as pretensas ruínas do filosofar sistemático, como «comunicador» cultural «edificante». Mas outros nomes poderíamos acrescentar pelo nosso lado e no mesmo espírito, por exemplo a filosofia dialógica ou «nova retórica» de Perelman. Cada uma destas correntes procedeu à sua maneira a uma reconversão do pensamento, na forma se não na teoria, a ideologia da nova realidade dominante. Vivemos hoje, com efeito, a época da comunicação, dos media e do marketing. E da cultura de massas e do correlativo estabelecimento de um «espaço cultural» (literário, cinematográfico, televisivo, etc.) médio, mediocrático, rigorosamente anti-criativo, como mercado de rotação acelerada. E também da formação tecnico-profissional e do que isso significa: entrega da escola à empresa em todos os ní2

id. 15-16. E 95, sobre a responsabilidade da filosofia nessa apropriação.

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veis do ensino, liquidação do ensino e da investigação teórica em nome da «educação permanente» em «escola aberta», quer dizer, das acções de formação como processo interminável de modulação dos «recursos humanos» pelas exigências do mercado. A época, em contornos mais gerais, da emergência das sociedades de controlo ou de comunicação como regime ultra-sofisticado e por isso tanto mais assustador de dominação, operando por controlo contínuo em meio aberto e comunicação instantânea e universal3. Este o estado de coisas que hoje circunstancializa o pensamento, o contexto cuja parte não histórica, virtual ou «intempestiva» a filosofia deve procurar destacar, acontecimentalizar, elevar à forma do conceito. Mas como, se em volta todas as forças, todos os poderes actuais, nos induzem não a pensar mas a comunicar e nos impedem de pensar na exacta medida em que nos apanham na comunicação como sistema circulatório das informações, ou seja, das significações dominantes? Como pensar ainda, quando a realidade substituiu o pensamento pela informação e por um patético simulacro mediático do acto pensante como prova dialéctica pública das opiniões, fixação de consensos «críticos», racionalidade comunicativa ou conversa produtora de novas significações dominantes e por isso mesmo «edificante»? E que aventuras ainda viáveis para o Conceito, quando o mundo actual cristalizou impossibilidades inéditas, uma terrível impossibilitação, uma crispação dos possíveis, das alternativas, não só no pensamento como sobretudo na vida dos homens, na existência humana, nos modos de vida? A realidade presente estruturou-se como uma objectiva recusa do pensamento e da criação, organizou-se como uma afronta à vida. Todos os criadores, e não só os filósofos, sentem a afronta. Caso do ro3

P 236-247.

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mancista Kundera, que define precisamente a arte do romance pela descoberta de dimensões ou de possibilidades da existência humana, e que escreveu A insustentável leveza do ser para colocar uma questão «terminal», cuja referência não se esgota num povo sob regime socialista. Trata-se de saber no que se tornou essa existência, quando a realidade parece ter erguido um muro contra o desenvolvimento de novas possibilidades e dimensões. De saber, pois, o que acontece quando um sistema universal de controlo, espécie de totalitarismo insensível, se abateu sobre todos os aspectos da vida dos homens, mesmo a sua vida privada e a sua vida mental; quando, reconfigurado pelas tecnologias da comunicação, o mundo se transformou, pelo menos em potência, numa conspiração universal contra o singular, contra todas as singularidades. Esse o grande problema hoje, também comum, por exemplo, a cineastas como Godard, Bertolucci, Wenders: subtrair-se à homogeneização, ao efeito dessingularizante, do mundo comunicacional moderno. Abrir saídas para a vida, novas possibilidades antropológicas, mesmo se pequenas ou frágeis, engendrar linhas criativas de fuga ou de ressingularização, formas existenciais de heterogénese4. Sempre na consciência de que a situação é, de facto, desesperada. Notável resposta de Bertolucci, interrogado sobre porquê O último imperador, porquê a China, porquê filmar a realidade oriental (resposta válida também para o seguinte Um chá no deserto e o seu confronto com a realidade árabe, ou mahgrebina): «porque o presente ocidental já não queria ser filmado por mim». O cinema como acto de resistência. Resistir, resistir, problema não só da arte mas ainda da filosofia, tarefa filosófica fundamental, função do conceito na era da comunica4 Cf. Félix Guattari, Les trois écologies, Galilée, Paris, 1989, p. 46, 72 (os processos de «heterogénese» como «processos contínuos de re-singularização»).

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ção e da cultura mediática, e que Deleuze enuncia como tarefa de uma crença ou de uma fé a restabelecer pelo pensamento. «Necessitamos de uma ética ou de uma fé, o que faz rir os idiotas; não é uma necessidade de acreditar noutra coisa, mas uma necessidade de acreditar neste mundo, de que os idiotas fazem parte». «É possível que acreditar neste mundo, nesta vida, se tenha tornado a nossa tarefa mais difícil, ou a tarefa de um modo de existência a descobrir sobre o nosso plano de imanência hoje»5. E não admira que esse problema se apresente como o do pensamento e da arte, ou que sejam artistas e filósofos que mais profundamente o sintam e ponham. É que, diz Deleuze, longe de constituir uma finalidade em si mesmo o acto criador representa sempre uma tentativa de libertar a vida do que a prende, um esforço para fazer passar uma corrente de vida, para afirmar a vida como força supra-pessoal6. Haverá assim um estreito laço entre criação e vida, um vitalismo intrínseco de toda a criação tanto filosófica como estética. A filosofia não foi portanto esvaziada pela idade comunicacional da sua pertinência ou da sua aptidão inventiva. Pelo contrário, adquiriu uma ineximível sobredeterminação, uma razão de ser suplementar. Se a realidade se reorganiza como um sufocante horizonte de informação e de controlo, a filosofia produz o conceito como contra-poder de resistência, modesto sem dúvida, mas fazendo frente tácita numa comum política da Vida com movimentos exteriores de criação e de inconformismo. Se o mundo se perfila como um imenso dispositivo de comunicação, inédito Leviathan, uma actividade compete à filosofia: descomunicar, introduzir curto-circuitos na comunicação, combater os universais de comunicação e os modelos comunicacio5 6

IT 225, QP 72. Cf. P 239. P 192, 196. Cf. CC 11-17 (sobre «a literatura e a vida»).

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Capítulo 9 Conclusão O EFEITO-DELEUZE

«A história da filosofia não é uma disciplina particularmente reflexiva. Antes é como a arte do retrato na pintura. São retratos mentais, conceptuais. Como na pintura, é preciso fazer parecido, mas por meios que não são parecidos, por meios diferentes: a parecença deve ser produzida, e não meio de reproduzir (o autor limitar-se-ia a repetir o que o filósofo disse) (…) A história da filosofia deve, não repetir o que disse um filósofo, mas dizer o que ele subentendia necessariamente, o que ele não dizia e que está porém presente no que ele dizia»1. Bastam decerto estas palavras do próprio Deleuze para desautorizar este nosso estudo, sem dúvida demasiado escolar, reprodutivo. Mas talvez não completamente frívolo, atentando na escassa bibliografia sobre ele existente, sintomática mas injusta ressonância da coerência exemplar de uma criação avessa a compromissos com as condições da época. Através de um jogo de colagens de textos, de manipulações e de simplificações, de omissões e de ênfases, quisemos extrair da complexa obra deleuziana uma sóbria linha articulatória capaz de se propor como uma auto-apresentação do criador. E de traçar os contornos originais da sistematicidade e, nesse sentido, do ostensivo classicismo de um dos mais estimulantes pensamentos do nosso tempo. 1

P 185-186. Cf. QP 55-56.

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Com efeito. Nada mais incorrecto do que ver, por exemplo, no curto tratado de Deleuze sobre a filosofia uma tentativa de sistematização retrospectiva numa doutrina global de uma obra supostamente elaborada no alheamento de toda a preocupação sistémica. A enorme variedade temática e conceptual do deleuzianismo, longe de significar um tal alheamento, pelo contrário exprime a característica mais inovadora e a necessidade interna de uma prática filosófica concebida como forma alternativa de sistema. Mille plateaux é o texto mais sistemático da filosofia contemporânea, mas é um sistema de tipo novo, um sistema aberto. O que é um sistema filosófico aberto, o que é que o distingue? Não o facto de estar voltado para fora, para domínios extrafilosóficos, porque sempre isso caracterizou a filosofia, estar fora de si mesma, ou renovar-se em função de problemas vindos de algures e não do pensamento puro. O carácter aberto do sistema antes depende do modo dessa relação com o fora, não noo-modelo transcendente mas maquinaria conceptual imanente, não sistema «sobre» mas «com», fazer sistema com. Um sistema filosófico é um dispositivo consistente de conceitos. Se os conceitos são ideados como essências, como noções gerais, ou universais, de particularidades dadas, o seu sistema só pode ser fechado, homogenético: pode desenvolver-se, ou desenvolve-se sempre, integra sempre exterioridades, mas por processos de especificação próprios da lógica da identidade: a semelhança, a analogia, em Hegel a contradição. O sistema é dito fechado porque o seu pseudo-movimento de exteriorização por arborescência não o afecta, antes o confirma, na sua homogeneidade, na sua fundamental invariância face à obstinada variabilidade empírica: esta será sempre vista como um conjunto de oscilações relativamente ao modelo fixo do sistema e só por referência a ele inteligíveis. Em contrapartida o sistema torna-se aberto se os conceitos são formulados como acontecimentos, quer dizer, como singularidades que, ao invés de

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constantes abstractas, representam entidades em variação inerente com os casos e as circunstâncias e portanto excluindo a priori toda a identidade e com ela todo o ponto de vista privilegiado exterior a essa variação. Por outras palavras, o sistema é aberto quando possui uma construção perspectiva intrínseca, o sistema aberto é a organização lógica do perspectivismo bem entendido. Lição já de Leibniz. Mas também de Deleuze, ou neo-leibnizianismo de Deleuze na concepção inédita do sistema filosófico não apenas como sistema capaz de «salvar» o heterogéneo (Leibniz) mas de o produzir, de potencializar um verdadeiro poder heterogenético. E com efeito os conceitos deleuzianos são inseparáveis do seu prolongamento até singularidades de outra ordem, estão virtualmente em correlação imediata e moduladora com pregnâncias perceptuais-afectivas e cognitivas, literárias, estéticas, científicas, prático-existenciais. Rizoma. O sistema de Deleuze, ou a sistematicidade do deleuzianismo, decorre de facto da lógica rizomática da sua composição e do seu desenvolvimento, da sua montagem como multiplicidade subtraída aos «arborizadores», aos operadores de unidade e de totalidade. O próprio filósofo o explica num dos seus últimos textos. «Acredito na filosofia como sistema. É a noção de sistema que me desagrada quando referida às coordenadas do Idêntico, do Semelhante e do Análogo. Foi Leibniz, creio eu, o primeiro a identificar sistema e filosofia. No sentido em que ele o faz, adiro. Por outro lado as questões “ultrapassar a filosofia”, “morte da filosofia”, nunca me tocaram. Sinto-me um filósofo muito clássico. Para mim, o sistema não deve apenas estar em perpétua heterogeneidade, deve ser uma heterogénese, o que, parece-me, nunca foi tentado»2. 2 GD, Carta-prefácio a Jean-Clet Martin, Variations, Payot, Paris, 1993, p. 7 (reproduzido em DRF 338). Cf. P 48: «De facto, os sistemas nada perderam estritamente das

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A neo-sofística constituída pelos filósofos «comunicadores» pretende descativar a filosofia da matriz científica, ou epistemológica, ou das ilusões do intemporal ou do transcendental, para a devolver à cultura como elemento histórico imanente. É o que esses sofistas chamam condição «pós-filosófica» do pensamento. Toda uma capitulação do pensamento perante a organização anti-criativa da época, toda uma desvirtuação doxológica do conceito, uma desastrosa amálgama criação/cultura, pensamento/comunicação. Daí a cólera de Deleuze, nele tão rara, ao denunciar essa nova imagem da filosofia como comunicação. É que ele sabe, como todo o filósofo que se preze, que a filosofia não é cultura, não é de ordem cultural. Sem dúvida, a filosofia suscita-se na cultura da época, esta fornece-lhe uma necessária ambiência espiritual, mas como o elemento que a filosofia deverá contra-efectuar, dele destacando a sua parte de possíveis, a parte de futuro. Como todas as coisas, a filosofia não pode querer ter razão contra a sua época, antes será esta a tê-la sempre contra ela, como força mais forte. Mas a filosofia pode e deve ter razão antes dela, como força intempestiva de criação, de antecipação de novas possibilidades, em coalizão com outros movimentos e criatividades. A cultura é um conjunto histórico efectivo de valores comuns estabelecidos, reconhecidos, objecto de partilha e de discussão, o sistema mesmo contraditório das recognições epocais. Mas a filosofia é uma força não-histórica, o que não significa an-histórica ou exterior à história. Entre a filosofia e a cultura, entre o conceito filosófico e o «espírito do tempo», nunca há propriamente simbolização, nunca conversa mas traição. Criar é trair, toda a criação um acto suas forças vivas. E há hoje, nas ciências ou na lógica, todo o início de uma teoria dos sistemas ditos abertos, fundados nas interacções, e que repudiam unicamente as causalidades lineares e transformam a noção de tempo. (…) Aquilo a que Guattari e eu chamamos rizoma é precisamente um caso de sistema aberto. (…) Um sistema é um conjunto de conceitos. Um sistema aberto é quando os conceitos são reportados a circunstâncias e já não a essências».

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de traição, de descomunicação. É trair a época, a cultura, a tradição, a história. Mesmo se isso passa amiúde por relançamentos sob novas condições, pela revitalização trans-histórica de uma qualquer tradição. É, em suma, trair o presente (a face histórica do presente) em favor de um futuro eventual (de um devir desde o presente, e contra ele). O que se traduz sempre em primeira instância numa traição a si do sujeito pensador, num exercício do pensador sobre si mesmo, dado que todas essas coisas o atravessam, se interiorizam, estão nele eminentemente. A concluir, como caracterizar em termos sumários o efeito único do trabalho de Deleuze sobre a cena filosófica, como dar conta do efeito-Deleuze? Como dizer o deleuzianismo como Acontecimento filosófico? Um vento, uma ventania refrescante, uma atmosfera mais respirável, mais habitável, mais livre. A suscitação do desejo, desejo de pensar, de ver e de ler mais, sem proceder por memória, por consciência cultural, vontade de uma vida mais intensa, um irresistível efeito nómada, segredo de estilo. A filosofia como pathos, uma paixão de pensar motivada não imediatamente por problemas, muito menos pela tradição, mas sempre por circunstâncias práticas, por situações concretas, por estados vividos, e como sua despersonalização. O pensamento como heterogénese, mas em nós, de nós. O conceito como passagem de um concreto a outro concreto, a teoria como passagem de uma prática a outra prática. Vitalismo. Viagem. Ou «devir não humano dos homens», fulgor desta fórmula, prescritiva tanto quanto especulativa, toda uma metafísica e toda uma ética. Toda uma negação do finito como medida humana, do espírito de finitude como infidelidade ao pensamento e à vida, dos limites e impossibilidades que fazem os nossos conformismos, toda uma exposição activa ao que nos excede, e uma afirmação desse excesso, do infinito-impessoal, como a nossa medida, a nossa realidade transcendental. Lógica do Acontecimento

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ÍNDICE DOS AUTORES CITADOS

Adorno, Theodor 152 Agamben, Giorgio 189 Anaximandro 47 Antonioni, Michelangelo 102 Aristóteles 132

Einstein, Albert 66 Eisenstein, Sergei M. 29

Bachelard, Gaston 168 Beckett, Samuel 172 Belo, Ruy 177 Bergson, Henri 41, 61-62 70, 97, 103, 159, 182, 186, 192 Bernini, Gian Lorenzo 25 Bertolucci, Bernardo 150 Boulez, Pierre 25 Brontë, Charlotte 111 Brontë, Emily 170 Butler, Samuel 19 Céline, Louis-Ferdinand 172 Cézanne, Paul 157 Changeux, Jean-Pierre 41 Chomsky, Noam 116 Coelho, Eduardo Prado 91, 179 Debussy, Claude 38 Descartes, René 49, 65, 69, 116, 127, 130 Détienne, Marcel 125 Dickens, Charles 191 Dubuffet, Jean 25

Índice dos Autores Citados

Faria, Daniel 169, 174 Fichte, Johann G. 180 Foucault, Michel 14-15, 31, 33, 50, 55, 134, 154, 161, 195 Frege, Gottlob 103 Freud, Sigmund 195 Ginsberg, Allen 172 Godard, Jean-Luc 150 155 Greco, Domenikos Theotokopoulos dito o 25 Guattari, Félix 9, 134, 150, 200 Guéroult, Martial 57 Habermas, Jürgen 134, 148 Hantaï, Simon 25 Hegel, Georg F. W. 38, 67, 123, 127, 134-135, 138, 198 Heidegger, Martin 35, 49, 51, 63, 68, 82, 123, 130 Heisenberg, Werner 66 Hobbes, Thomas 134 Hume, David 16-17 Husserl, Edmund 56, 66, 69, 73, 180 James, William 179 Júdice, Nuno 177

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Kafka, Franz 145, 165 Kant, Immanuel 14, 20, 25, 49, 51, 54, 65, 69, 86, 88, 137-138, 157, 180-181, 183 Klee, Paul 25, 36, 145, 174 Kojève, Alexandre 132, 139 Kundera, Milan 150, 167 Lapoujade, David 179 Lawrence, Thomas E. 170 Leibniz, Gottfried W. 9, 24-26, 40, 59, 61, 65, 97, 104-106, 118, 157, 159, 164, 199 Levinas, Emanuel 181 Mallarmé, Stéphane 25, 145 Maquiavel, Niccolo 134 Martin, Jean-Clet 199 Marx, Karl 134, 143-144, 179, 195 Maxwell, James C. 66 Melville, Herman 167, 170 Michaux, Henri 25 Musil, Robert 91, 179 Negri, Antonio 133, 134 Nietzsche, Friedrich 9, 13, 34, 37, 49, 59, 63, 111, 134-135, 144-145, 154, 159, 161, 195-196 Ozu, Yasujiro 102 Perelman, Chaïm 148 Pessoa, Fernando 66, 111, 167, 172 Pitágoras 47 Platão 20, 47, 51, 65, 70, 98, 128, 132, 158

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Popper, Karl 134 Pré-Socráticos 98, 126 Proust, Marcel 25, 50, 91, 111-112, 115, 165, 168, 170, 172-173 Rawls, John 134 Rembrandt van Rijn 157 Rilke, Rainer Maria 175 Rimbaud, Arthur 66, 165, 169 Robbe-Grillet, Alain 158 Rorty, Richard 134, 148 Rose, Steve 41 Rossellini, Roberto 102 Rousseau, Jean-Jacques 134 Sacher-Masoch, Leopold 165 Sartre, Jean-Paul 130 Sócrates 65, 79, 132 Sophia de Mello Breyner A. 174 Spinoza, Baruch 36-37, 51, 134, 161, 164, 184-185, 189 Strauss, Leo 130, 132 Thibaudet, Albert 166 Thom, René 25 Velásquez, Diego 157 Vergílio Ferreira 61 Vernant, Jean-Pierre 125, 126 Voegelin, Eric131 Wenders, Wim 150 Whitehead, Alfred N. 16, 166 Wittgenstein, Ludwig 148

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ÍNDICE ANALÍTICO

1. Introdução. O Romance dos Conceitos . . . . . . .

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Acontecimentalismo (vs. ontologia) e pensamento «pático» (vs. racionalismo). Empirismo de GD. Indiferença ao tema do fim da filosofia. O que a filosofia não é: contemplação, reflexão, comunicação. O que ela é: arte dos conceitos. Leibniz e o cinema como exemplos. Esclarecimento preliminar das noções deleuzianas de conceito e de acontecimento.

2. O Que Significa Orientar-se no Pensamento? . .

34

Pensar: cérebro/caos (e não: sujeito/objecto). A filosofia e o movimento infinito do pensamento. Endocondições da filosofia. O problema da «imagem» do pensamento. As imagens clássica e moderna. O «plano de imanência» e o impensado constituinte do pensamento. A dramaturgia intrínseca: as «personagens conceptuais».

3. Os Convivas Bêbedos e o Pássaro Solíloquo . . .

67

O que é um conceito? Filosofia e lógica, proposicionalismo lógico e construtivismo filosófico. Filosofia e opinião: o monólogo do conceito. Conceitos e problemas. Proximidade da filosofia e da arte: os valores decisivos do pensamento.

4. O Que É Um Acontecimento? . . . . . . . . . . . . . . .

93

Virtualidade e acontecimentalidade: o acontecimental e o acidental. Acontecimento e sentido. As individuações por acontecimentos. História e devir. A filosofia-rizoma como lógica das multiplicidades.

5. Noologia, Geofilosofia e Noopolítica . . . . . . . Exocondições da filosofia. As noções deleuzianas de Terra e de Território. Desterritorializações sociopolíticas relativas e noo-desterritorialização Índice Analítico

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absoluta. Reterritorializações. Geografia e contingência histórica da razão filosófica. Distinção ideologia/noologia. O problema noopolítico. Pregnância da «forma-Estado». Como subtrair a filosofia ao modelo do Estado? A política da filosofia deleuziana.

6. O Pensamento e os Possíveis . . . . . . . . . . . . . . .

147

Urgência pedagógica de QP: a filosofia na era da comunicação e do pensamento mediático. Filosofar e resistir, a criação como acto de resistência. O pensamento como invenção de possibilidades existenciais. Vitalismo e pragmatismo de GD. As duas compreensões complementares da filosofia.

7. Partir, Evadir-se, Traçar Uma Linha . . . . . . . . .

165

A literatura: o seu paradoxo constituinte e a sua essência não literária. A operação poética da literatura: o que é um estilo? Romance e poesia: a poesia é anti-metáfora.

8. A Última Fórmula . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

179

Imanência = uma vida. Campo transcendental e plano de imanência. Imanência-a e imanência absoluta. Imanentismo e univocidade do ser: neo-spinozismo de Deleuze.

9. Conclusão. O Efeito-Deleuze . . . . . . . . . . . . . .

197

O deleuzianismo como sistema aberto. Filosofia e cultura.

Índice dos Autores Citados . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Sousa Dias nasceu no Porto em 1956. Professor. Publicou, entre outros livros, Questão de estilo (colectânea de textos de teoria da literatura e da arte), O que é poesia? (ensaios de teoria crítica) e Grandeza de Marx — Para uma política do impossível.

LÓGICA DO ACONTECIMENTO

Resistir, resistir, problema não só da arte mas ainda da filosofia, tarefa filosófica fundamental, função do conceito na era da comunicação e da cultura mediática, e que Deleuze enuncia como tarefa de uma crença ou de uma fé a restabelecer pelo pensamento. «Necessitamos de uma ética ou de uma fé, o que faz rir os idiotas; não é uma necessidade de acreditar noutra coisa, mas uma necessidade de acreditar neste mundo, de que os idiotas fazem parte». «É possível que acreditar neste mundo, nesta vida, se tenha tornado a nossa tarefa mais difícil, ou a tarefa de um modo de existência a descobrir sobre o nosso plano de imanência hoje». E não admira que esse problema se apresente como o do pensamento e da arte, ou que sejam artistas e filósofos que mais profundamente o sintam e ponham. É que, diz Deleuze, longe de constituir uma finalidade em si mesmo o acto criador representa sempre uma tentativa de libertar a vida do que a prende, um esforço para fazer passar uma corrente de vida, para afirmar a vida como força supra-pessoal. Haverá assim um estreito laço entre criação e vida, um vitalismo intrínseco de toda a criação tanto filosófica como estética.

Sousa Dias

Sousa Dias LÓGICA DO ACONTECIMENTO

Sousa Dias LÓGICA DO ACONTECIMENTO Introdução à filosofia de Deleuze nova edição aumentada

LINHAS DE FUGA 1

D O C U M E N TA


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