Bruno Schulz, As lojas de canela - excerto

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desenhos de

Bruno Schulz tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes

O sangue do mistério… perdido na noite circundante o seu fluido obscuro.

Bruno Schulz AS LOJAS DE CANELA

Bruno Schulz AS LOJAS DE CANELA

Bruno Schulz AS LOJAS DE CANELA



AS LOJAS DE CANELA


Bruno Schulz, auto-retrato


Bruno Schulz AS LOJAS DE CANELA

desenhos de

Bruno Schulz tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes


TÍTULO DO ORIGINAL: SKLEPY CYNAMONOWE

© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES 1.ª EDIÇÃO, DEZEMBRO 2012 ISBN 978-989-8566-18-8 NA CAPA: BRUNO SCHULZ, DEDICAÇÃO (PORMENOR) REVISÃO DE ANTÓNIO LAMPREIA / ANDRÉ BAPTISTA DEPÓSITO LEGAL 350399/12 IMPRESSÃO E ACABAMENTO DE GUIDE – ARTES GRÁFICAS, LDA RUA HERÓIS DE CHAIMITE, 14 2675-374 ODIVELAS


J. (simplificação de um nome feminino que a discrição mantém reduzida a uma inicial) recorda Bruno Schulz como um homem que «parecia muito jovem, mais jovem do que eu (nessa altura com vinte e sete anos). Fiquei estupefacta quando me declarou que tinha quarenta e um anos. Pura e simplesmente eu não podia acreditar…» E mais adiante nesse mesmo esforço de memória: «Confessou com timidez que era autor de um livro.» E ainda: «Trazia consigo Rilke, lia alguns dos seus poemas com uma voz inesquecível, impressionante, misteriosamente alheia à declamação, como se estivesse a criá-los.» Também disse que todo o ser humano lhe lembrava um animal: — «Eu, o que lhe pareço? — perguntou ela. — «Parece um antílope. — «E você, a si próprio? — «Um cão.» Zofia Nalkowka primeiro editor de As Lojas de Canela, essa, viu-o «delicado e silencioso como se pesasse muito pouco sobre a vida…» E Arthur Sandauer, o amigo que um dia apareceu na sua casa «através de uma cozinha com mulheres despenteadas e numa grande azáfama»: — «Penetrei num quarto amplo e de paredes forradas com livros. Uma espécie de gnomo franzino, com olhar febril, esperava-me sentado no canapé… Ocupava os ócios a desenhar: numa paisagem de província, para lá da praça do Município um fiacre a trote levava mulheres nuas com meias e chapéus de


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palha; machos franzinos de cabeça imensa e olhos febris arrastavam-se aos pés de raparigas sentadas com indolência numa poltrona. Já esses esboços revelavam o que iria dominar toda a obra de Schulz: a obsessão dupla pela província e a mulher de chicote.» Estranho ser, o Bruno Schulz destas memórias que o fixam numa imagem física de timidez e humilhação, de grande tristeza de vida; não separável de Drohobycz, cidade dos confins da Galícia — 45 000 habitantes nessa época, duas refinarias de petróleo, florestas e colinas com polacos, ucranianos e judeus lado a lado ou misturados, ou talvez nem uma coisa nem outra — onde os seus restos foram mais tarde moídos pelo calor de um alto-forno e para abrir espaço a um bairro residencial de russos soviéticos. Nestes e noutros sucessos a Galícia surge com o seu carácter susceptível: incomodada pelo destino que lhe ofereceu a instabilidade política e, já na Idade Média, lhe acrescentou à dança das fronteiras grandes caudais de sangue e muitos golpes de espada, que em época mais recente a incluiu no domínio austro-húngaro (a situação de 1893, o ano em que Bruno Schulz nasceu) e depois da Grande Guerra fê-la pertencer à Polónia mas com momentos alternados de poder hitleriano e soviético até ao rescaldo da Segunda Guerra Mundial, que a encaixou nas áreas do alastramento russo. Nesta oscilação de fronteiras se encontrará uma razão para o sobrenome austríaco Schulz e para a má-vontade que em anos de forte determinismo cultural o classificou como «excrescência da sociedade burguesa». (Mas já anos antes, numa época em que Drohobycz deixava de ser alemã para ficar momentaneamente russa, Bruno Schulz tinha oferecido a sua colaboração literária à revista cultural Novos Horizontes, e a esta pretensão fora respondido: — «Não precisamos cá de Prousts»).


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Sim, a Polónia de meados so século XX viu-o num apogeu de realismo socialista apenas como escritor morto e de imprestável talento, inventou-lhe rótulos que nessa época bastavam para vetar uma obra. (O principal mentor da conjura foi Jan Kott; o mesmo, quem iria dizê-lo, que muito justamente pode ser admirado com o seu Shakespeare, Nosso Contemporâneo). Reabilitá-lo exigiu anos de paciência, o vento tímido mas persistente que fez a recuperação checoslovaca de Kafka e acabou por restituir Witkiewicz aos teatros de Varsóvia. Esta Polónia mais tranquila perante os nomes literários e artísticos do seu passado conseguiu entusiasmar-se com génios esquecidos e fazê-lo em voz alta: a Alemanha, a França e a Inglaterra ouviram-na. Começava a ter razão o vizinho de Marie Craipeau recordado na edição francesa das Cartas Perdidas e Reencontradas de Schulz: — «É um génio, e vê-lo-ás conhecido no mundo inteiro. — «Homem excepcional bem vejo que sim, mas… génio? Por que afirmas isso? — «Ele escrevia, não sei se sabes… — «Aquele pintor escrevia?» Bruno Schulz, aquele pintor, escrevia. Palavras e desenho surgiam como face dupla de um mesmo compêndio de mitos, de um universo de mulheres dominadoras e homens submissos fortemente impregnado pela volúpia do fracasso. Em 1939, já autor publicado de As Lojas de Canela e de O Sanatório do Gato-Pingado, com O Messias quase pronto (um romance que não escapou à devastação nazi), com um projecto de texto ilustrado, O Livro Idólatra, do qual restam apenas os desenhos, Bruno Schulz dirigiu a S.I. Witkiewicz (outro artista plástico-escritor ou vice-versa) uma longa carta onde explica o seu acto criador enquanto estação de transbordo do


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homem — como ele próprio tinha dito no seu conto «O Cometa» — nó efémero das correntes magnéticas que se arrastam na matéria eterna. Publicada a 4 de Abril de 1935 no Hebdomadário Ilustrado de Varsóvia, esta carta escapou à agitação nazi: «Quando comecei a desenhar? — repete Bruno Schulz preparando-se para responder à pergunta de Witkiewicz. — O início desse hábito esfuma-se em neblina mitológica. Eu não sabia falar, já enchia quantos papéis encontrava e as margens dos jornais com garatujas que despertavam a atenção dos que viviam comigo. Comecei por fazer apenas carros atrelados. O percurso de uma viagem de fiacre parecia-me cheio de importância e simbologia oculta. Tinha eu seis, sete anos, aparecia sempre nos meus desenhos a imagem de um fiacre com a capota abaixada e lanternas acesas a sair de uma floresta nocturna. É imagem do inabalável capital da minha fantasia e reúnem-se nela, para divergir em profundidade, variadas séries. Até hoje não consegui esgotar todo o seu valor metafísico. Para mim, ver um cavalo atrelado a um fiacre não perdeu fascinação nem perturbadora força. Uma anatomia xistóide espeta em todas as suas pontas ângulos, nós e saliências, o seu desenvolvimento como que foi paralisado no instante em que ainda tendia a crescer e a ramificar-se. Ora, o fiacre também é uma criação xistóide, resultado do mesmo princípio anatómico — multípode, fantástico, feito de latas torcidas como barbatanas, couro de cavalo e de enormes rodas-matracas. «Não sei de onde chegam à nossa infância certas imagens que vão ter uma significação decisiva para nós. Desempenham o papel dos fios postos nas soluções químicas, e à sua volta crista-


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liza-se o que é nosso sentido do mundo. Para mim, a imagens destas também pertence o filho levado pelo pai no espaço de uma noite enorme, e que conversa com a escuridão. O pai aperta-o contra si, rodeia-o com os braços, defende-o do elemento que fala, fala sem parar, mas para a criança os braços dele são transparentes, é atingida pela noite, e através das carícias do pai ouve sem tréguas a terrível persuasão. Responde à pergunta da noite esgotada e fatalista, tragicamente permissível, por inteiro devotada ao elemento sem fim de que não pode fugir. «Segundo me parece há temas que desde sempre nos estão destinados, que logo à entrada da vida nos esperam. E aos oito anos de idade foi-me assim legada, com toda a sua metafísica, a balada de Goethe1. Através da língua alemã meio compreendida captei o seu sentido, pressenti-o, e emocionado ao máximo chorava quando a minha mãe resolvia fazer-me a sua leitura. «Essas imagens têm grande força, criam o capital sólido da alma que bem cedo nos é fornecido com pressentimentos e sensações de que só temos uma vaga consciência. Penso que o resto da vida é passado a interpretar estas intuições, a dominar todo um conteúdo seu que devemos conquistar, a filtrá-las ao longo de toda uma dimensão intelectual que podemos atingir. Estas imagens precoces indicam aos artistas os limites da sua criatividade; criatividade que mais não será do que o resultado de dados já existentes. Não descobrem nada de novo, só ensinam a compreender de vez e melhor o segredo que lhes foi oferecido. Aliás, a arte nunca chega a encontrar o sentido oculto 1 Goethe escreveu várias baladas. Atendendo ao contexto, é provável que Schulz queira referir-se à Noiva de Corinto. (N. do T.)


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de um tal segredo. Que vai permanecer obscuro. O nó à volta da alma não é frouxo, não é dos que cedem quando se puxa a ponta da corda. Pelo contrário, é cada vez mais apertado. E então manipulamos esse nó, acompanhamos as suas voltas, procuramos-lhe o fim, e com essas manipulações é que a arte nasce. «À pergunta: nos meus desenhos descobre-se uma trama idêntica à da minha prosa?, eu responderia pela afirmativa. A realidade é a mesma, só o recorte se altera. O material e a técnica actuam como princípio de selecção. Por ser material, o desenho impõe limites mais estreitos do que a prosa. E por isto julgo que mais plenamente me exprimi na prosa. «À pergunta: poderia eu interpretar, sob o ponto de vista filosófico, a realidade de As Lojas de Canela?, preferiria não responder. «Penso que racionalizar a visão das coisas, partindo de uma obra de arte, equivale ao gesto de tirar aos actores a máscara; ou seja, que é fim de um jogo, que é o empobrecimento da problemática da obra. Não se trata de a arte ser logrógafo de chave oculta e a filosofia ser o mesmo logrógafo — resolvido. A diferença é mais profunda. Numa obra de arte ainda não se cortou o cordão umbilical que a une ao conjunto da nossa problemática. Nela circula ainda o sangue do mistério, e os terminais dos vasos perdem-se na noite circundante, de lá voltando cheios de um fluido obscuro. Nas interpretações filosóficas só uma preparação anatómica extraímos ao conjunto da problemática. Sinto ainda assim curiosidade em saber que credo filosófico, posto sob a forma discursiva, seria o de As Lojas de Canela. Talvez lá esteja mais apresentada a descrição da realidade do que a sua justificação. «As Lojas de Canela fornecem uma determinada receita da realidade, pressupõem um género muito especial de substância;


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a substância da sua realidade está em estado de fermentação constante, germinação, vida secreta. Não há objectos mortos, duros, limitados. Ela a todos deforma para lá dos seus limites, só por um instante se mantém sob determinada forma e para abandoná-la depois, mal surja oportunidade de o fazer. Nos hábitos, nas maneiras de ser dessa realidade, revela-se uma espécie de princípio: o da mascarada geral. A realidade só como aparência, brincadeira, jogo, assume certas formas. Se alguém existir como homem, e alguém como barata, não são formas que atinjam em profundidade o ser; não passa tudo de um papel distribuído superficialmente e por instantes para acabar, logo a seguir, de vez. O que lá se afirma é o monismo extremo da substância que faz os objectos individuais não passarem de máscaras. Está nesta errância das formas o genuíno princípio da vida. E por isso emana desta substância a aura da ironia universal. Existe nela uma permanente atmosfera de bastidores, de fundo de palco onde os actores, já despidos dos trajos, troçam do pathos dos seus papéis. No próprio facto de uma existência individual se encontra ironia, troça, a triste língua do truão entregue a zombarias. (Parece-me que há aqui um ponto comum entre As Lojas de Canela e o mundo das tuas composições pictóricas e teatrais.) «Qual é o sentido desta desilusão universal perante a realidade, não saberei dizê-lo. Só afirmo que não seria suportável se não soubesse, numa outra dimensão qualquer, indemnizar. De certo modo sentimos uma satisfação profunda quando a trama da realidade abranda, sentimo-nos interessados por essa bancarrota. «Falou-se da tendência destruidora do meu livro. Sob o ponto de vista de certos valores estabelecidos talvez seja verdade.


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A arte opera, porém, no sentido da profundidade anterior à moralidade; no ponto em que o seu valor só está in statu nascendi. «Como resposta espontânea da vida, a arte distribui tarefas à ética, e não o contrário. Se a arte só devesse confirmar o que já foi noutro lado estabelecido, seria inútil. Tem o papel de sonda mergulhada no inominável. O artista é um aparelho que grava percursos em profundidade, no ponto em que se opera a formação do valor. «Destruição? Só o facto de esta matéria se fazer obra de arte significa que a afirmamos, que em sua intenção fazemos um depoimento nas profundezas da nossa espontaneidade. «A que género pertence As Lojas de Canela? Como classificá-lo? Considero As Lojas de Canela um romance autobiográfico. Não só por estar escrito na primeira pessoa mas ser possível adivinhar-se que existem nele vários sucessos e experiências da infância do autor. Trata-se de uma autobiografia ou, melhor, de uma genealogia do espírito; genealogia kat’exochen porque descreve o nascimento da alma e segue-a até às profundezas onde ela se perde em devaneios mitológicos. Sempre senti que as raízes de um indivíduo, desde que seguidas até longe, se perdem numa qualquer floresta virgem e mítica. É esse o fundo definitivo para além do qual não podemos prosseguir. «Mais tarde encontrei em José e Seus Irmãos de Thomas Mann uma impressionante realização artística deste pensamento, realização à escala monumental. Mann mostra como se desenham na base de todos os sucessos humanos, e uma vez que os separemos do joio do tempo e do número, certos esquemas fundamentais, certas “histórias” onde aqueles sucessos repetidas vezes se modelam. Em Mann são histórias bíblicas, os


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mitos eternos da Babilónia e do Egipto. A uma escala mais modesta tentei encontrar a minha própria mitologia privada, as minhas próprias “histórias”, a minha própria genealogia mítica. Tal como os Antigos fizeram nascer antepassados de casamentos mitológicos com os deuses, tentei eu criar para mim uma geração mítica de antepassados, uma família fictícia qualquer, a partir da qual a minha verdadeira origem foi traçada. «De certo modo estas “histórias” são reais, representam a minha maneira de viver, o meu particular destino. E a dominante de tal destino é uma solidão profunda, um distanciamento das coisas da vida de todos os dias. «A solidão é o reagente que leva a realidade ao ponto de fermentação, à decantação das formas e das cores.» Dois anos antes desta resposta a Witkiewicz, Bruno Schulz era em crise de solidão arrastado para uma vida estéril, destituía de toda a fermentação a sua realidade, reconhecia-se incapaz de decantar formas e cores. É que há, pelo menos, duas solidões: — a fértil, de uma maior e melhor disponibilidade para o espectáculo da vida; e a que fere de amor ou da falta dele o solitário, não raras vezes destinada a soçobrar numa grande anulação. Schulz tinha uma noiva «teórica» e distante que decidiu, perante este naufrágio de forças vitais, cortar pela raiz o que só era namoro de cartas distraído por raros encontros em Varsóvia. Dedicadas à sua crise, perduraram no diário desta mulher desiludida pelo menos três frases: — «Ele tinha o mundo da imaginação, tinha aqueles cumes, e eu nada.» «Séculos me separavam de Bruno.» «Eu já não sentia nada; tinha terminado toda a excitação de uma vida com quatro anos.» E Schulz numa carta: As nossas relações


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foram uma série de sofrimentos e momentos difíceis. Sinto, no fim de contas, alívio por ela ter rompido de vez comigo. Os jornais deram uma notícia falsa. Não estávamos casados. Eu devia sentir-me contente com a ruptura, mas só sinto uma terrível falta e o vazio da vida. Nada posso fazer, não agarro num livro sem que ele me não aborreça enormemente. […] Desde há meses nada escrevo nem estou, sequer, em estado de escrever o mais pequeno artigo. Mesmo esta carta é um esforço. O Drohobycz de Schulz esfumou-se depois numa melancolia baça. O seu pai, comerciante de fazendas, acabara por desaparecer transformado numa barata (segundo a versão mitológica deste livro) e Bruno dava aulas tristes de um desenho que não era o dele mas outro, apenas enfrentado por ter de sustentar a sua família. Só disponho de 240 zl. por mês, ficou registado numa carta. O meu livro As Lojas de Canela não me rendeu nada. Custou-me, pelo contrário, várias viagens a Varsóvia. Um ano depois, Schulz pensava na reforma: É dos meus sonhos o mais querido, mas não se mostra tão cor-de-rosa como parecia. Far-me-ia dispor apenas de duzentos zlotis mensais, dez meses no ano. Que seriam o suficiente se não tivesse de sustentar a minha irmã, o meu sobrinho e uma prima que vivem comigo. E no ano seguinte desabafou assim numa carta a Romana Halpern, sua amiga e confidente: Descobri que não sou pintor nem escritor, nem sequer sou bom professor. Julgo que enganei o meu mundo com um certo brilho, e realmente não o tenho. Tentei renunciar à criatividade, viver como um homem vulgar, mas é uma vida que me parece bem triste. A minha vida de todos os dias depende cada vez mais da minha arte, porque só aguento razoavelmente o lugar de professor mediante valores


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que peço emprestados à arte. Na imaginação já tenho, porém, esse lugar perdido e estou na maior das misérias. Quando olho para os tolinhos e os mendigos andrajosos da cidade, penso: Não vai tardar, com certeza, que eu esteja como eles. Como sabe, sou impróprio para qualquer trabalho honesto. Não consigo esforçar-me, não sei achar nenhum encanto no professorado (e também não sei viver sem nenhum encanto, sem um pouco de tempero, de condimento que exalte a vida). Nisto sou muito diferente dos meus colegas professores. Gostaria de flanar, não fazer nada, vadiar, extrair um pouco de alegria à paisagem, extraí-la do firmamento que se abre entre as nuvens da tarde. Talvez a melodia me voltasse, a onda de prosa me submergisse. Os meus deveres profissionais enchem-me de horror, nojo, paralisam-me no que é alegria de viver. Nestes tempos de desemprego só se ouvem ameaças e censuras. E o dever atinge dimensões apocalípticas. Bruno Schulz viveu com este estado de espírito seis anos feitos de um mesmo décimo terceiro mês supranumerário e postiço que iria arrastá-lo por uma insanável melancolia, antes de ela se decantar no momento nazi, capaz de encenar o drama há longo tempo a representar-se num palco invisível. Foi-lhe imposta a braçadeira confirmadora de sangue judaico e foi visto, mais gnomo do que nunca, a percorrer as ruas de Drohobycz, como aconteceu no dia em que encontrou um seu antigo professor. Ia a caminho do ghetto, para onde fora obrigado a mudar-se abandonando memórias de trinta anos vividos na rua Florianska, na praça do Mercado. — «Então? — tinha-lhe perguntado esse professor, de acordo com a sua recordação desse momento. — «Até Novembro vão liquidar-nos a todos.


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— «Liquidar? A quem? — «A nós, judeus. — «Liquidar? O que quer isso dizer? — «Liquidar.» No que a si próprio respeita, esta precisão até no mês acertou. O anúncio do seu final começa por um período de humilhações. A Schulz exige-se o papel de judeu assustado, talvez com uma consciência vaga de poder vir a conhecer o cheiro a amêndoas amargas das câmaras de gás; e, para o evitar, sujeito à protecção de Felix Landau, um ex-carpinteiro de Viena altamente colocado na Gestapo. O seu reconhecido talento como desenhista permite-lhe comprar uma relativa segurança pintando as paredes do quarto de dormir de um rapazinho, filho de Landau, com cenas dos contos de Grimm; pintando, na sede local da Gestapo, frescos que enaltecem a epopeia nazi; forçando os seus olhos míopes numa relação de livros roubados à Galícia, para Berlim decidir quais devem ser destruídos e quais devem ser enviados para a capital do Reich. Longe, em Varsóvia, é ao mesmo tempo congeminada a parte mais aventureira de um folhetim. Alguns escritores seus amigos conseguem convencer um jovem oficial polaco a disfarçar-se de militar SS, a viajar até Drohobycz e a arranjar um pretexto para prender Bruno Schulz. Com algemas nos pulsos, Schulz viajaria até Varsóvia para ser julgado mas, na verdade, para fugir para outro país com documentos falsos. O estratagema não chega, porém, ao momento idealizado para a sua execução porque entretanto mais aguda se faz uma contenda que opõe dois rivais, Felix Landau e Karl Günther, qualquer deles com grande influência nas hostes nazis de Drohobycz. Uma das facetas desta rivalidade é alimentada pela protecção exi-


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bicionista a dois judeus da cidade: Landau protege o artista Schulz, e Günther o dentista Löw. E num dia em que Landau mata à queima-roupa Löw, houve quem ouvisse Günther dizer a Landau: «Como mataste o “meu” judeu, podes ter a certeza de que vou matar o “teu”.» No dia 19 de Novembro de 1942, dirigia-se Bruno Schulz para o ghetto quando percebeu que estava a ser perseguido por um grupo de SSs. Como reacção pôs-se em fuga, um bom pretexto para ser alvejado. Foi abatido com dois tiros na nuca; e o advogado Izydor Friedman, que presenciou a cena, garantiu mais tarde que esses dois tiros tinham sido dados por Günther. E também são seus estes pormenores: «Quando anoiteceu fui procurar o cadáver. Despejei-lhe os bolsos. Todos os documentos e papéis que lá encontrei foram entregues a Zygmunt Hoffman, que viria pouco depois a morrer. De madrugada fui enterrar o Bruno no cemitério judaico.» Esta morte — de um homem humilhado na sua condição de judeu e protegido por uma personalidade do regime que oprimia o seu país, abandonado na rua até ao momento em que um seu amigo pôde com menor risco dar-lhe sepultura — é um fim adequado ao que todos conheceram fisicamente débil, a falar com uma voz que se desfazia num murmúrio, de amenidade discreta, contida e quase a confundir-se com a manifestação de uma vergonha; de um ansioso, complexado e reservado, dir-se-ia que a mostrar vontade de ser tomado por insignificante. Witold Gombrowicz, que várias vezes confesssou quanto lhe devia literariamente, num parágrafo do seu Diário argentino instalou-o no que eram as sensíveis diferenças das suas posições na sociedade e no mundo: «Bruno era um homem que a si próprio se negava, e eu um homem que a si próprio se procurava. Ele desejava o aniquilamento, eu a


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realização. Ele tinha nascido escravo, e eu senhor. Ele desejava a degradação, e eu suplantar tudo. Um masoquista — persistente, indomável — a todo o momento visível. Não, Bruno não tinha sido feito para dominar. Era um gnomo minúsculo, macrocéfalo, medroso de mais para se atrever a existir; tinha sido expulso da vida e vivia à margem.» Em 1960, o crítico polaco Arthur Sandauer revelou a editores franceses e alemães um escritor do seu país que Cracóvia acabava de voltar a pôr à disposição do público com As Lojas de Canela (aqui numa tradução feita a partir dos seus textos francês e inglês). Desde logo houve a precipitação de ser comparado com Kafka. Estavam confundidos no que parecia uma mesma tradição bíblica e nos mitos que ela alimenta; e até acontecia que a metamorfose em insecto de Gregor Samsa era repetida em Jakub, o Pai das histórias de Schulz. Eram no entanto separados por algo de mais fundamental: ao asceticismo de Kafka opunha-se a sensualidade de Schulz; à secura estilística de Kafka a exuberância verbal de Schulz, o delírio de um amante das palavras que a todo o momento travavam batalha dura para as dominar. Tinha sido preciso esse meio século para o autor de uma tão brilhante singularidade literária começar a ser reconhecido como nome central da literatura polaca, para o autor de tão belos desenhos, com Vénus à Masoch e homens humilhados, alimentar álbuns e surgir em exposições públicas que mostravam o melhor do seu nunca concluído Livro Idólatra. Depois, o rescaldo da Segunda Guerra Mundial dividiu a Galícia entre nações com influência soviética, e teve a sua parte ocidental concedida à Polónia e a sua parte oriental integrada na Ucrânia. Mas daquela «outra» Galícia do final do século XIX tinham saído dois nomes que a Literatura viria a ter como inquestionável referên-


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cia: o autor de As Lojas de Canela e Joseph Roth, naquela instabilidade de fronteiras e poderes orientados para línguas diferentes: Schulz a exprimir-se em polaco (embora dominasse o alemão e tenha escrito um conto — «Die Heinkehr» — nesta língua) e Joseph Roth com uma cultura germânica dominada pela Áustria mas ainda assim de alma indefectivelmente galiciana; ou, no seu romance A Cripta dos Capuchinhos, não teria deixado escrito: «Têm todos os talentos, os meus judeus da Galícia.» A.F.



BRUNO SCHULZ DESENHOS


ProcissĂŁo (pormenor)



Undula de noite


O livro da idolatria


A besta


Sem tĂ­tulo


O pai a planar por cima do candeeiro


Sem tĂ­tulo


JosĂŠ e o homem-cĂŁo durante a metamorfose


JosĂŠ e um homem a transformar-se em cĂŁo


Projecto de ex-libris


Nemrod


A cidade encantada (pormenor)

A infanta e os seus anĂľes



Undula entra na noite


Susana e os velhos


Capa da edição original de As Lojas de Canela


AS LOJAS DE CANELA



Agosto

i No mês de Julho o meu pai partia para águas e deixava-nos, à minha mãe, ao meu irmão mais velho e a mim, entregues aos dias de Verão de uma brancura de fogo, que inebriavam. Tontos de luz folheávamos o grande livro das férias que em todas as páginas cintilava de sol e no mais fundo de si mesmo conservava, com uma doçura que atingia o êxtase, a polpa das peras douradas. Nas manhãs de luz, Adela voltava abrasada como Pomona, regressava do esplendor do dia e despejava o cesto com todas as belezas coloridas do sol. Começava pelas cerejas brilhantes, inchadas de água sob a pele fina e transparente, as misteriosas ginjas negras com um sabor que não cumpria todas as promessas do cheiro, os damascos de polpa dourada onde dormitavam tardes longas e abrasadoras; e depois da pura poesia dos frutos vinham os enormes pedaços de carne cheios de força e nutritivos, com o teclado musical das costeletas de vitela; os legumes parecidos com plantas aquáticas, medusas mortas ou moluscos — todo um material para refeições que tinha um gosto inerte e ainda não determinado, os ingredientes vegetais e telúricos do futuro almoço que emanavam um bravio e campesino cheiro. Dia após dia, no primeiro andar daquele imóvel que dava para a Praça do Mercado a sombria casa era de uma ponta à outra atravessada pelo auge do Verão: o trémulo silêncio dos feixes de ar, os rectângulos de luz que no soalho encerado sonha-


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vam um devaneio febril, uma melodia de realejo arrancada ao ouro da mais funda artéria do dia, dois ou três compassos do estribilho que um piano tocava sei lá onde e a todo o momento ali chegavam para desfalecer no sol dos passeios brancos, desaparecendo na luz intensa do dia. Logo depois de arrumar a casa, Adela puxava os estores de linho e mergulhava tudo na penumbra. Nessa altura as cores baixavam uma oitava, os quartos enchiam-se de escuro como se mergulhassem de repente na luz das profundidades marinhas reflectida nos espelhos verdes da água, e o calor tórrido do dia respirava por inteiro nos estores que levemente se inchavam com os devaneios do meio-dia. Nas tardes de sábado, a minha mãe dava um passeio comigo. Directamente, sem nenhum degrau, passávamos da penumbra do corredor ao banho de sol do dia claro. Os transeuntes patinhavam no ouro e semicerravam pálpebras que pareciam pegajosas de mel, franziam o lábio superior pondo à mostra os dentes e as gengivas. Todos tinham na cara esse esgar de calor, como se a luz lhes impusesse uma máscara de fraternidade solar, e todos — novos e velhos, mulheres e crianças — ao cruzarem-se nas ruas cumprimentavam com esta máscara bárbara que passava, insígnia de um culto báquico que estava pintalgado nos rostos a grandes pinceladas de ouro. A Praça do Mercado estava vazia, amarela de fogo, e como o deserto bíblico varrida por rajadas quentes. Só as acácias espinhosas estendiam a sua folhagem clara, tufos de filigranas verdes e cuidadosamente recortadas como nos tapetes antigos. Eram árvores cheias de afecto, que imitavam o vento desgrenhando com um gesto teatral as copas e mostrando com atitudes patéti-


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cas a elegância dos seus leques de avesso tão prateado como a pelagem nobre das raposas. Nas velhas casas, nas paredes polidas por dias de vento brincavam os reflexos da atmosfera, os ecos, memórias de cores espalhadas no fundo colorido do tempo. Parecia que gerações inteiras de dias de Verão vinham como pedreiros pacientes esgaravatar o reboco bolorento das velhas fachadas, estalar-lhes o esmalte enganador pondo à mostra o seu verdadeiro rosto, não só a fisionomia que o acaso esculpira mas a vida que as tinha modelado por dentro. Cegas com a luz da praça vazia, as janelas agora dormiam muito calmas e as varandas confessavam ao céu a sua vacuidade. As portas escancaradas cheiravam a frescura e a vinho. Num canto da praça, um pequeno grupo de crianças andrajosas que fugiam à vassoura tórrida do calor, com pancadas de botões e moedas sitiava e provocava sem tréguas um pano de parede, como se o horóscopo destas pequenas rodelas de metal pudesse desvendar a verdadeira natureza da alvenaria, o sentido hieroglífico das fendas e das ramificadas fissuras. Exceptuado este pequeno grupo de crianças, a praça estava vazia. A todo o instante se esperava que o burro do samaritano, seguro pelo freio, aparecesse na sombra das acácias à frente da entrada de abóbada perfeita e atravancada com barris do taberneiro, e dois servos se precipitassem para tirar o doente da sala sufocante e o levassem com cuidado pela escada fresca, até ao piso que cheirava a sabá. A minha mãe e eu lá íamos percorrendo os dois lados da praça batidos pelo sol, a passear as nossas sombras oblíquas pelas paredes das casas, como num teclado. Os pavimentos desfilavam lentamente sob os nossos pés que se arrastavam, alguns


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de um cor-de-rosa claro de pele humana, outros dourados ou azuis, todos planos, quentes e aveludados como rostos solares que os passeantes pisavam até ficarem irreconhecíveis, suavemente inexistentes. Por fim, na esquina da rua Stryj entrávamos na sombra da farmácia. Na montra, um grande frasco com xarope de framboesa simbolizava a frescura de fragâncias benfazejas. Mais uns tantos edifícios, e a rua deixava de conseguir manter o seu decoro, como o campónio que a caminho de casa se desfaz por completo da elegância citadina e, à medida que fica mais perto da aldeia, aos poucos se transforma em miserável labrego. Os casebres dos subúrbios mergulhavam na verdura, ocultos até às janelas pela doida e exuberante floração dos pequenos jardins. Esquecidos pela força do sol, ervas daninhas, cardos e flores expunham-se em profusão, felizes com esta pausa que aproveitavam sonhando à margem do tempo, no limite do dia infinito. Um imenso girassol içado até à ponta de um formidável pé com elefantíase, aguardava o fim dos dias nesse luto amarelo, vergado pela carga da sua monstruosa corpulência. Porém, as ingénuas campainhas de subúrbio e as simples flores de percal nada podiam contra tudo isto e limitavam-se a estar muito hirtas nas suas camisas cor-de-rosa e brancas, insensíveis ao grande drama do girassol.

ii A folhagem embaraçada das ervas daninhas e dos cardos arde e crepita no fogo do meio-dia. A sesta preguiçosa do jardim



A Borrasca

Durante aquele vazio e prolongado Inverno a escuridão fez uma colheita centuplicada e excepcional na nossa cidade. Bem certo é que tinha havido atraso a arrumar águas-furtadas e sótãos, bem certo é que tinham deixado amontoar-se panelas e mais panelas, frascos e mais frascos, bem certo é que fora tolerado um acréscimo excessivo de garrafas vazias. Aos poucos, nessa floresta de traves e tábuas a escuridão começou a degenerar e a fermentar com muitas bolhas. E então começaram as sombrias assembleias de tachos, os debates inúteis e ruidosos, as efervescências fétidas, o gorgolejo de garrafões furados. Até à noite em que essa tropa de tachos e garrafas rebentou telhados e escorreu pela cidade numa multidão compacta. Umas por cima das outras, as águas-furtadas projectavam para todos os lados batalhões negros, e no seu eco forte cavalgavam batalhões de traves e travamentos, de pontaletes de madeira flectidos sobre joelhos de pinho, enchendo os espaços da noite com o galope das asnas, o estrondo das vigas mestras e dos grampos. Nessa altura os grandes rios negros transbordaram e começaram as obscuras migrações de barris e pipas que vogavam através das noites. As suas assembleias negras e ruidosas sitiavam a cidade. À noite, esta multidão cega de utensílios desatava a fervilhar e avançava como um cardume de peixes tagarelas, uma invasão de redes grulhantes e de selhas vadias.


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Com um fundo sonoro de aplausos empilhavam-se barris, baldes e pipas, cubas de barro dos oleiros que baloiçavam molemente; os chapéus usados galgavam por cima de cartolas velhas formando uma coluna imensa que se desmoronava conforme a escalada prosseguia. Todos e todas se fartavam de estalar línguas de pau, modelavam um chilreio de imprecações e de insultos nas bocas de madeira, por todo o espaço da noite espirravam lama. E à custa de pragas e blasfémias acabavam por vencer. Chamadas pelo coaxar de utensílios que grulhavam alto e bom som, as caravanas do vento acabaram por armar acima da noite as suas tendas. Este acampamento enorme, este anfiteatro negro e móvel rodopiou demoradamente no céu antes de cair sobre a cidade. E de repente a sombra explodiu numa borrasca forte e desenfreada que durante três dias e três noites tudo fustigou… * — Esta manhã não vais à escola — disse a minha mãe — faz um vento terrível. Na nossa casa flutuava um delicado véu de fumo com cheiro a resina. O fogão de aquecimento uivava e assobiava como se lá andasse uma matilha de cães ou demónios. Com a barriga cheia, às pintas, o dragão bochechudo sorria de contente e fazia ademanes grotescos. Corri descalço até à janela. O céu inchava-se de ventos. Espantosamente vasto e com uma cor acinzentada de pérola, era percorrido por tensas linhas de força prestes a romper-se, sulcos cruéis que pareciam veias de estanho ou chumbo solidificados. Dividido


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em campos energéticos e a fremir de tensão contida, quase parecia que rebentava. Os diagramas da impalpável borrasca a bel-prazer se inscreviam nele e carregavam a paisagem de dinamismo. Não a víamos. Era adivinhada nas casas, nos telhados distendidos pela sua fúria. Parecia que as armações dos telhados cresciam, mal eram penetradas pela sua força, e umas atrás das outras explodiam enlouquecidas. Desnudava as praças, nas ruas deixava atrás de si um vazio branco, varria cuidadosamente e até à migalha mais ínfima o pavimento dos largos. Só de onde em onde se via um vulto solitário, que abanado pelas vergastadas se agarrava a uma parede. A Praça do Mercado expunha às rabanadas triunfais do vento a sua calvície luzidia. O vento insuflou no céu cores mortas e frias, listas de um cinzento quase verde, amarelas e lilases, abóbadas longínquas e arcadas do seu labirinto. Sob estes céus de ameaça os telhados erguiam-se lívidos e a tremer de impaciência. Os que tinham apanhado a borrasca levantavam-se com uma inspiração profunda acima das casas vizinhas e profetizavam debaixo do céu ventoso. Não tardava que voltassem a cair, esgotados, sem poder suster por mais tempo o sopro forte que retomava o seu curso invisível, enchendo o espaço de ruído e terror. Por sua vez, outras casas levantavam-se com um grande grito e começavam, num paroxismo de clarividência, a vaticinar. À volta da igreja, faias robustas erguiam para o céu braços que testemunhavam revelações perturbantes, e gritavam, gritavam. Mais além, atrás das coberturas da Praça do Mercado eu via paredes de fogo longínquas, as fachadas nuas de casas de subúrbio. Hirtas de susto e sideradas, trepavam umas para cima


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das outras. Um frio reflexo vermelho envolvia-as numa cor de fim de tarde. Nesse dia não almoçámos porque o fogo se virava constantemente para dentro da sala com grossas volutas de fumo. Fazia frio nos quartos que cheiravam a vento. Seriam duas da tarde quando deflagrou nos arredores da cidade um incêndio e se propagou de forma perigosa. A minha mãe e Adela começaram a emalar roupas, peles e pratas. Anoiteceu. A borrasca aumentou na sua força e na sua violência invadindo por completo o espaço. Deixara de visitar as casas uma a uma, para construir sobre a cidade um edifício imenso, um labirinto negro de várias dimensões e com superestruturas sem fim. E deste labirinto fazia sair grandes correntezas de quartos, à custa de coriscos suscitava corredores e dependências, a ribombar criava blocos de casas imensos e fazia todas essas construções imaginárias, todas essas abóbadas e fortalezas, cair para se elevar ainda mais e modelar o infinito amorfo do seu inspirado hálito. O quarto tremia ao de leve, os quadros tilintavam na parede. Os vidros reflectiam o clarão gorduroso do candeeiro. As cortinas enfolavam com a respiração tumultuosa da noite. De repente reparámos que o meu pai desde manhã não aparecia. Devia ter ido para a loja ao nascer do dia e a borrasca tê-lo surpreendido ali, cortando-lhe a retirada. — Ainda hoje não comeu nada — lamentou-se a minha mãe. Teodor, o caixeiro principal, ofereceu-se para lhe levar víveres enfrentando a noite e a borrasca. O meu irmão decidiu acompanhá-lo.


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Meteram-se em grandes casacos de pele de urso e, para não serem arrastados pelo vento, lastraram os bolsos com ferros de engomar e almofarizes. A porta que dava para a noite foi aberta com precauções. E mal o caixeiro e o meu irmão puseram um pé lá fora foram engolidos pela noite, na soleira da porta, e a borrasca apagou completamente o seu rasto. Até a lanterna que levavam perdemos de vista. Depois de a borrasca os engolir, pareceu que nos dava algum descanso. Adela e a minha mãe tentaram reacender o fogo da cozinha mas os fósforos apagavam-se, uns atrás dos outros, e a cinza e a fuligem saltavam-lhes para a cara. Encostados à porta, apurávamos o ouvido. Parecia que se ouviam vozes, imprecações e gritos nos uivos do vento. Ora nos parecia que o meu pai pedia socorro, perdido na tempestade, ora que Teodor e o meu irmão tinham vozes despreocupadas à frente da porta, a olharem para a noite. Era uma sensação de tal forma nítida, que Adela abriu-a e viu que Teodor, com o meu irmão atrás, realmente ali estavam e voltavam com grande esforço da borrasca que os tinha engolido por completo. Ofegantes, entraram no vestíbulo e empurraram com grande esforço a porta atrás de si. Foi-lhes preciso empregar quantas forças tinham, tão violentas eram as rajadas do vento. Acabaram por correr o ferrolho, afastando para mais longe a borrasca. Contaram-nos a noite e a tempestade de uma forma desordenada, aos bocados. Os seus agasalhos de pele embebidos em vento cheiravam a ar livre. A luz fazia-os pestanejar; ainda cheios de noite, sempre que os olhos piscavam, pingavam escuridão. Não tinham conseguido chegar até à loja, tinham-se




ÍNDICE

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Bruno Schulz | desenhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

7 23

Agosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Visitação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os Pássaros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os Manequins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tratado dos Manequins, ou o Segundo Génesis . . . Fim do Tratado dos Manequins . . . . . . . . . . . . . . . Nemrod . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Senhor Karol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As Lojas de Canela . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Rua dos Crocodilos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As Baratas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Borrasca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Noite da Grande Estação . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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desenhos de

Bruno Schulz tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes

O sangue do mistério… perdido na noite circundante o seu fluido obscuro.

Bruno Schulz AS LOJAS DE CANELA

Bruno Schulz AS LOJAS DE CANELA

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