Entre o Granito e o Arco-Iris — O Cinema como Metamorfose da Experiência Interior / José Bogalheiro

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ENTRE O GRANITO E O ARCO-ÍRIS

O cinema como metamorfose da experiência interior

José Bogalheiro

ENTRE O GRANITO E

O ARCO-ÍRIS

O cinema como metamorfose da experiência interior

Esta publicação é financiada por fundos nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/04019/2020

1. A felicidade de atravessar a vau

2. Ao sabor da humidade salgada

3. O sol a sombra a cal .........................

4. No cinema, também «nós» somos muralistas ........

5. E depois outro e outro e outro

6. Uma árvore seja ela qual

7. É a vez de escrever sobre a

8. Do lado da vida .............................

9. «No princípio de tudo o coração»

Os fotogramas reproduzidos no corpo do texto pertencem aos filmes analisados — aqui identificados por ordem de capítulos —, tendo sido obtidos exclusivamente para este fim.

1. Artavazd Pelechian. Vremiena goda (As Estações), [35 mm, 1.37:1, P&B, 1975] DVD, FSF, 2018.

2. Boris Barnet. U Samogo Sinevo Morya (À Beira do Mar Azul), [35 mm, 1.37:1, P&B, 1936] DVD, Bach Films, 2006.

3. Pier Paolo Pasolini. Il Vangelo secondo Matteo (O Evangelho segundo Mateus), [35 mm, 1.85:1, P&B, 1964] DVD, Legend Films, 2006.

4. Sergei M. Eisenstein. ¡Que Viva Mexico! (Que Viva México), [35 mm, 1.37:1, P&B, 1932] DVD (Internet Archive).

5. Santiago Álvarez. Hanoi, Martes 13, [35 mm, 1.37:1, P&B e Cor, 1967] DVD, ELF, 2003.

6. Robert Fenz. Meditations on Revolution, Part V: Foreign City, [16 mm, 1.33:1, P&B, 2003].

Robert Fenz. Correspondence, [16 mm, 1.37:1, P&B, 2011].

7. Chantal Akerman. D’Est, [16 mm, 1.37:1, Cor , 1993] DVD, Icarus Films, 2003.

8. Jacques Rozier. Adieu Philippine, [35 mm, P&B, 1.66:1, 1963] DVD, Potemkine Films, 2008.

9. Abbas Kiarostami. 24 Frames, [DCP, 1.78:1, P&B e Cor, 2017], CG Cinéma, 2017.

Nota introdutória

Os textos que agora se reúnem em livro foram originalmente publicados, com periodicidade mensal, a partir de Novembro de 2022, no site de cinefilia À Pala de Walsh, sob a forma de crónicas, que, retomando uma interrogação de Virginia Woolf sobre como realizar a fusão entre a «verdade como algo de solidez granítica, e a personalidade como algo de intangível como um arco-íris», aí encontrou, então, o motivo para o título da série — «Entre o Granito e o Arco-Íris».

As duas séries de crónicas anteriores — que deram origem, respectivamente, aos livros Se Confinado Um Espectador (Documenta, 2022) e Do Álbum Que Me Coube em Sorte (Documenta, 2023) —, estabelecendo uma remissão expressa para «o cinema como metamorfose da experiência interior», já indicavam que, na origem de semelhante empreendimento se encontrava, naturalmente, essa modalidade de experiência a que, na sua singular forma de ocupação criativa do tempo, o espectador se entrega ao ver um filme, confiante na satisfação que a animação da «hora e meia de solidão especulativa» traz consigo e que as subsequentes investigações mais ou menos subterrâneas prometem acrescentar.

Uma vez mais, como nas séries que precederam, a escolha dos realizadores e respectivos filmes, nunca fechada à partida a não ser devido ao limite temporal que determinava que também esta série

fosse composta por nove crónicas, não podia deixar de satisfazer a condição-base de quem tivesse como primeira tarefa a constituição de uma colecção de filmes selectos. Perante a incomensurabilidade de filmes existentes e o imperativo de estabelecer uma lista própria, o espectador participante, que tenho designado de rebobinador, para aferir o seu próprio critério de selecção, convocara já figuras de agente criativo como a do coleccionador e a do pescador de pérolas, mas desta vez preferiu juntar-lhes a figura do alpinista ou, mais precisamente, do caminheiro de montanhas.

Ficava, assim, dada a indicação de que, na procura do que pudesse ser levar uma vida cinematográfica, à semelhança do caminheiro para o qual a montanha se apresenta, já não apenas como algo que o «prendeu para sempre», mas como algo a que ele mesmo pertence por inteiro, pois «à medida que penetra mais profundamente na montanha, penetra também mais na própria vida», assim para aqueles que fizeram do cinema uma «actividade de inventores», estaria reservada a possibilidade de estar à altura de responder à questão lançada por Virginia Woolf — «Se o cinema deixasse de ser um parasita, como faria para caminhar de cabeça erguida?» —, pelo que seria exclusivamente de realizadores dessa estirpe que os textos que agora se publicam se ocupariam.

Tanto quanto é de antecipar, para aqueles que só agora podem ler, com as correcções trazidas pela revisão, os textos reunidos neste livro, ressaltará do seu conjunto a ideia da especificidade do cinema que tenho afirmado, com bastante insistência, no sentido em que seria possível identificar um núcleo específico caracterizador desta nova prática artística, por contraposição ao teatro e ao romance, por

exemplo, nascida à volta da invenção da câmara cinematográfica e da noção de grande plano, havendo ainda aí que atribuir um sentido apropriado à expressão «mobilização da câmara» cuja função ganharia, porventura, maior pertinência se fosse expressamente associada a essa operação de designação incerta, mas que, nos melhores momentos, coube à découpage assumir.

De uma forma recapitulativa poder-se-ia afirmar que, nos filmes escolhidos, a fulguração figurativa aparece, mais do que qualquer outro traço saliente, como prova de que, no cinema, foi possível «caminhar de cabeça erguida» e que, quando isso é inteiramente conseguido em filmes, cujos realizadores, praticantes exímios da arte da contingência, sabem, como Jacques Rozier, que «o que interessa é surpreender-se a si mesmo, ser o primeiro espectador do seu filme», se vê realizada a crença de Pier Paolo Pasolini segundo a qual «o cinema é na prática como uma vida depois da morte».

Quero expressar o meu agradecimento aos editores do À Pala de Walsh, em particular ao Carlos Natálio, pelo convite que me levou a escrever, em total liberdade, os textos desta terceira série de crónicas que em primeira mão publicaram, bem como à editora Documenta que, com generoso acolhimento, tornou possível a concretização desta edição.

E também não pode deixar de ser mencionado o apoio financeiro à publicação concedido pela FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito das actividades desenvolvidas pelo CIAC — Centro de Investigação em Artes e Comunicação do Pólo IPL — Instituto Politécnico de Lisboa, que permitiu às investigações mais ou menos subterrâneas a que aludi ganharem esta nova forma.

Vremiena goda (As Estações, 1975), de Artavazd Pelechian

1. A felicidade de atravessar a vau

De pura água um ribeiro, de poucas jeiras um bosque, E uma segura fé na minha colheita […]

Horácio , em Odes

As duas séries de crónicas anteriores — «Se Confinado Um Espectador» e «Do Álbum Que Me Coube em Sorte» —, estabelecendo uma remissão expressa para «o cinema como metamorfose da experiência interior», já indicavam que, na origem de semelhante empreendimento se encontrava, naturalmente, essa modalidade de experiência a que, na sua singular forma de ocupação criativa do tempo, o espectador se entrega ao ver um filme, confiante na satisfação que a animação da «hora e meia de solidão especulativa» traz consigo e que as subsequentes investigações mais ou menos subterrâneas prometem acrescentar.

Sem que se trate agora de pôr de parte os traços das figuras do coleccionador e do pescador de pérolas de que me fui socorrendo com o fito de procurar compreender melhor, isto é, dar vida à actividade desse espectador que tenho designado de rebobinador, a leitura de A Montanha Viva, de Nan Shepherd1, levou-me a levantar a

1 Nan Shepherd, The Living Mountain (Edinburgh: Canongate Books, 2014); A Montanha Viva, trad. Jorge Melícias (Lisboa: Edições 70, 2022).

hipótese de haver uma outra figura que poderia juntar-se-lhe, a saber, a do alpinista ou, mais propriamente, a do caminheiro de montanhas. A metamorfose que nessa experiência de convívio com as montanhas pode ser antecipada consiste na passagem da gratificação advinda da sensação experimentada (com a altitude, a distância, o esforço, o bem-estar) a um estado em que o interesse do caminheiro se foca na descoberta da montanha em si mesma (e já não através dos efeitos produzidos nele próprio), num longo processo em que «a coisa que se deseja conhecer cresce com o conhecimento», de tal modo que a montanha em si própria, tomando sempre novas qualidades, se apresenta, já não apenas como algo que «prendeu para sempre» o caminheiro, mas como algo a que ele mesmo pertence por inteiro, pois «à medida que penetr[a] mais profundamente na montanha, penetr[a] também mais na própria vida».

Ainda que mais à frente se justifique melhor as razões, devo mencionar desde já a referência à variação acolhida no título genérico — «Entre o Granito e o Arco-Íris» — desta terceira série de crónicas, em que, com maior precisão, se pretende cotejar as condições de possibilidade de levar uma vida cinematográfica. Em dois ensaios com o título de «A nova biografia» (1927) e de «A arte da biografia» (1939), Virginia Woolf discorre sobre o que poderá vir a ser a arte da biografia que, estando no início de carreira, «tem uma longa e activa vida à frente», mas se vê afectada «por uma elevada taxa de mortalidade». Para atingir o objectivo tão precisamente definido, «a transmissão da verdadeira personalidade», trata-se de pensar como realizar a fusão entre a «verdade como algo de solidez granítica, e a personalidade como algo de intangível como um arco-íris». Em vez

da modalidade de relação que noutro passo do ensaio é designada por «estranha amálgama» (de sonho e realidade), ou «casamento perpétuo» (do granito com o arco-íris), preferirei guardar alguma distância e, até prova em contrário, manter o «entre», sustentando a hipótese que é o que mais convém para atingir «aquele elevado grau de tensão que nos dá a realidade».2

De cada vez que, perante o vastíssimo e multidimensional universo de imagens em que estamos banhados, de entre as fabricadas pela mão do homem, o comummente dito espectador reserva um lugar de eleição para as imagens cinematográficas, está a tomar à sua conta a incumbência, havendo a mesma de ser transposta para o cinema, que Virginia Woolf formulava relativamente aos livros, a saber, «Como se deve ler um livro?»3

De múltiplos géneros e diferentes durações, acessíveis em suportes físicos ou através de plataformas de streaming, os filmes potencialmente à disposição como é que eu os vou ver? «O que hei-de fazer para tirar deles o máximo prazer possível? E é prazer, ou proveito, o que devo procurar?»

Levando na devida conta que o título do ensaio de Virginia Woolf tem um ponto de interrogação no final, desde logo deixará de haver a veleidade de pensar que o seu objectivo fosse «ditar leis» sobre «como poderemos aprender a arte da leitura». Se cada um

2 Virginia Woolf, «A nova biografia», em 48 Ensaios, trad. Ana Maria Chaves e Catarina Ferreira de Almeida, Antropos (Lisboa: Relógio D’Água, 2022), 272-279; Virginia Woolf, «A arte da biografia», em 48 Ensaios, 420-428.

3 Virginia Woolf, «Como se deve ler um livro?», em 48 Ensaios, 229-242.

«já tem dentro de si o que vai fazer corresponder ao que lhe é dado pelo poeta ou romancista», a questão será como chegar lá, desde logo não esquecendo que há dois tempos na leitura. No primeiro, correspondendo ao acto de leitura propriamente dito, em que se requer uma atitude de «empatia e compreensão», a tarefa é seguir o autor lendo «o livro tal como o escritor o escreveu», aceitando que «se tentarmos acompanhar o escritor na sua experiência da primeira à última palavra, sem lhe impormos o nosso plano prévio, então teremos uma boa hipótese de agarrar a ponta certa da meada». No segundo tempo, que é o do processo da pós-leitura, não raras vezes na sequência da desorientação que sobrevém quando chegamos ao fim, ora porque diferentes passagens do livro disputam a primazia, ora porque aquilo que foi objecto da nossa maior atenção se esvanece diante dos nossos olhos, torna-se indispensável enveredar por outro caminho até que, «a fazer uma coisa diferente, o livro surge inteiro à superfície da mente», assumindo uma forma definida: é então que esse livro «bem claro, bem seguro e completo», suscitando em nós uma emoção profunda e duradoura, fica entregue à nossa própria opinião, num tempo que é de «crítica e julgamento». Afinal, o «prazer — misterioso, desconhecido e inútil como é — é quanto basta» para justificar o envolvimento na aprendizagem de uma actividade de que nada mais se retira e que até o mais sábio é incapaz de descrever, mas esse é um segredo cuja revelação Virginia Woolf deixou para as últimas linhas do texto: «a razão pela qual evoluímos […] não é mais do que isto: adorámos ler».

Poderá, com os filmes, não ser bem assim?

Virginia Woolf, num outro ensaio desta mesma época, a que deu o título de «O cinema» (1926)4, deixa uma primeira observação, segundo a qual «o olho lambe tudo num instante, e o cérebro, agradavelmente estimulado, acomoda-se e vê as coisas acontecer sem se dar ao trabalho de pensar». E mais à frente, depois de uma apreciação crítica relativa à forma como o cinema até então lidara com a literatura, ao persistir numa relação de rapacidade com o romance mutuamente desastrosa, esquecendo que «o olho e o cérebro são separados violentamente ao tentarem, em vão, trabalhar em conjunto», formula a questão de fundo, e que ainda não deixou de ser crucial, nos seus exactos termos: «Se o cinema deixasse de ser um parasita, como faria para caminhar de cabeça erguida?»

A via apontada parte da convicção de que para que as imagens em movimento possam ser «mais reais, ou com uma realidade diferente daquela que percepcionamos no quotidiano», e o cinema consiga realizar as suas potencialidades permitindo-nos ver «a vida como ela é quando nós não estamos lá», é necessário que sejam as imagens a tomar a dianteira, a serem a fonte sensível da imaginação para que «o pensamento p[ossa] ser transmitido mais eficazmente pela forma do que pela palavra», e o cinema ora servindo-se dos «inúmeros símbolos para emoções que até aí não encontravam forma de expressão» que tem ao seu dispor, ora aproveitando «a exactidão da realidade e o seu surpreendente poder sugestivo» para produzir algo abstracto como os «sonhos que por vezes nos visitam o sono ou nos assaltam na penumbra das salas» — é esta via que augura ao cinema

4 Virginia Woolf, «O cinema», em 48 Ensaios, 223-228.

a possibilidade de dar uma resposta de cabeça erguida a estas outras perguntas deixadas por Virginia Woolf:

Haverá, perguntamos nós, alguma língua secreta que possamos sentir e ver, mas nunca falar, e, se existir, poderá ela ser tornada visível aos olhos? Haverá alguma característica do pensamento que possa ser tornada visível sem a ajuda das palavras?

Por esta mesma altura, tratando-se, porventura, de mera coincidência temporal curiosa, Boris Ejchenbaum, um destacado formalista russo, num texto intitulado «Problemas do estilo cinematográfico» (1927), defende com grande convicção que tal como «a cultura cinematográfica se opõe à cultura livresca e teatral do século anterior», assim também «o espectador cinematográfico se encontra em condições de percepção completamente novas, opostas às da leitura».

O texto de Ejchenbaum, para além de refutar vigorosamente o erro que consistiria em considerar a possibilidade de um cinema «mudo», afirma, a partir da análise das novas condições de percepção, a nova relação entre palavra e objecto: «o espectador cinematográfico […] move-se do objecto, do movimento visível, para a compreensão, para a construção do discurso interior», sendo que a recepção e a compreensão do filme estão intimamente ligadas «ao processo do discurso interior na mente do espectador»; por contraposição à palavra no teatro, a nova dominante, o movimento visto nas suas particularidades, constituindo uma espécie de linguagem mimada, «obriga o espectador a um trabalho mental» indispensá-

vel à construção do filme e à sua «tradução na linguagem do seu discurso interior»5.

Emilio Garroni que, em «Linguagem verbal e elementos não-verbais na mensagem fílmico-televisiva», um texto publicado em francês em 1973, propõe uma releitura de Boris Ejchenbaum, prefere a designação de discurso interno, para melhor a cotejar com a noção de «linguagem interna» proposta pelo Círculo de Praga, sublinhando o facto de ser indispensável um suporte material ou substancial para funcionamento de uma actividade semiótica como tal, donde resulta que, para Ejchenbaum, «pensar consiste em organizar o nosso discurso interno segundo modalidades e condições específicas, como quando pensamos de uma forma original, quer dizer, não repetitiva […]»6.

Quando, em Agosto de 1983, ficámos a saber, graças a Serge Daney num artigo no Libération7, que entre os filmes de que fora em busca na Arménia encontrou os de um cineasta cuja sorte fora como a de outros Arménios, pois, como lhe repetiram lá, «nós somos um povo estranho, mas generoso: demos Mamoulian aos Estados Unidos, Verneuil à França e Pelechian ao cinema soviético», como não haveríamos de querer adivinhar o que o próprio Artavazd (dito Arthur) Pelechian teria intenção de «dar», assim houvesse tempo,

5 Boris Ejchenbaum, «I problemi dello stile cinematografico», em I Formalisti Russi nel Cinema, ed. Giorgio Kraiski, [1927] (Milano: Garzanti, 1971), 22-24.

6 Emilio Garroni, «Langage verbal et éléments non-verbaux dans le message filmico-télévisuel», em Cinéma: Théorie, lectures (Paris: Éditions Klincksieck, 1973), 116.

7 Serge Daney, «À la recherche d’Arthur Péléchian», Libération, 11 de Agosto de 1983; Claire Déniel e Marguerite Vappereau, eds., Artavazd Péléchian: Une symphonie du monde (Crisnée – Belgique: Yellow Now / Coté Cinéma, 2016), 19-22.

quando no regresso Daney o encontrou em Moscovo e aquele lhe confiou ao despedir-se: «poderia apresentar-lhe pessoas interessantes […] que não procuram nenhuma publicidade, são pintores, artistas, e nem sequer são dissidentes, quando muito são monges».

O artigo de Serge Daney teve, indiscutivelmente, o efeito de uma revelação, de cujo alcance o próprio deu conta nos seguintes termos: «Tive de imediato o sentimento (agradável) de me encontrar diante de um elo perdido da verdadeira história do cinema» já que «o cineasta, um autêntico, inclassificável», de quem fora em busca, trabalhava na montagem, «sobre, com e contra a montagem». Pelo próprio saberemos com que ambições: «Para mim, a montagem à distância abre os mistérios do movimento do universo. Posso sentir como tudo é feito e colocado em relação; posso sentir o seu movimento rítmico.»

Tendo tido uma breve carreira de desenhador industrial na Arménia, onde nasceu em 1938, a partir de 1963, estudou durante cinco anos no VGIK, a escola de cinema de Moscovo, ocupado por uma questão de que não pôde desfazer-se: «Será que o cinema precisa de mim? É que eu preciso do cinema».

A razão pela qual o cinema precisava de Pelechian advinha da necessidade de «retomar o cinema onde Eisenstein e Vertov o tinham deixado», mas ultrapassando o «impasse» em que caíra: «Vertov e Eisenstein inventaram uma nova máquina, mas montaram-na em carris de caminho-de-ferro».

E quanto à montagem, ao contrário da montagem segundo Eisenstein, Vertov ou Kulechov — cujos processos, fossem eles designados montagem associativa, montagem vertical ou montagem

contrapontística, consistiam sempre em colocar lado a lado duas imagens —, Pelechian propõe:

Na prática dei-me conta que esses elementos colocados lado a lado não me interessavam. Não desejava colar duas imagens. Pelo contrário, se há duas imagens que me interessam coloco-as em pontos diferentes. Separo-as. Compreendi que os elementos colocados à distância falam melhor entre si do que se estiverem lado a lado. Esses elementos funcionam não só à distância, mas também em relação às imagens que ficam entre eles.

Uma montagem que, aliás, destrói a montagem:

A montagem que pratico, ao contrário da montagem clássica, não «quer» dizer nada. A minha montagem cria um campo emocional à volta do filme. O filme ganha um contacto com nossa esfera emocional e essa conexão destrói a montagem.8

8 Claire Déniel e Marguerite Vappereau, eds., «Entretien avec Artavazd Péléchian par Pierre Dreyfus», em Artavazd Péléchian: Une symphonie du monde (Crisnée – Belgique: Yellow Now / Coté Cinéma, 2016), 162.

No núcleo fundamental da sua obra — O Início (1967, 10 min); Nós (1969, 30 min); Os Habitantes (1970, 10 min); As Estações (1975, 29 min); Nosso Século (1982-1990, 30 min); Fim (1992, 9 min); Vida (1993, 6 min) — de que, por ocasião da sua vinda à Cinemateca Portuguesa em Maio de 2019, foi feita uma retrospectica, o filme Vremiena goda (As Estações) é, porventura, aquele em que, sem ultrapassar a duração de meia hora, mediante a utilização de imagens em câmara lenta, repetições, sobreimpressões, rotações rápidas e os muitos recursos da montagem, a depuração é extrema,

e, seguindo a natureza o seu curso fortuito e irregular e os homens a sua faina «que quanto mais se vai menos é dura», a revelação do mundo, épica e lírica, atinge no cinema o seu mais alto grau. Durante a rodagem do filme, confirmou Pelechian (desfazendo uma dúvida de Jean-Luc Godard), «chovia, mas nós ajuntámos mais chuva», pois «tudo o que só às palavras é acessível deve ser evitado pelo cinema», augurara Virginia Woolf. Haverá, no entanto, uma última razão pela qual o cinema precisava de Artavazd Pelechian, pois, evitando quase totalmente o recurso à palavra, com este filme extraordinário que «[…] ensina a cair / sobre os vários solos / […] ao encontro / do cabo onde a terra abate e / a fecunda ausência excede // até à queda vinda / da lenta volúpia de cair»9, indica a razão da preferência de atravessar a vau:

Oh, feliz é quem encontrar o vau de tão alpestre e rápida corrente chamada vida, e a muitos praz tal nau!10

9 Luiza Neto Jorge, «O poema ensina a cair», em Os Sítios Sitiados (Lisboa: Plátano Editora, 1973), 162-163.

10 Francesco Petrarca, Trionfi, ed. Guido Bezzola e R. Ramat, Letteratura italiana Einaudi (Milano: Rizzoli, 1957), [versos 46-48], 57; Vasco Graça Moura, Os Triunfos de Petrarca (Lisboa: Bertrand Editora, 2004), 211.

2. Ao sabor da humidade salgada

Não vês, por conseguinte, em que instante a imagem vem das regiões do céu às regiões da terra?

Por isso e ainda uma vez, é necessário aceitar que há elementos admiráveis que ferem os olhos e provocam a visão. De certos corpos fluem perpetuamente os cheiros, como o frio dos rios, o calor do sol, e das ondas do mar a salsugem que rói os paredões ao longo do litoral. Não deixam variadas vozes de esvoaçar no vento. Finalmente, quando estamos junto do mar, vem-nos à boca muitas vezes uma humidade com sabor de sal […].

Lucrécio , em Da Natureza das Coisas

Não será demasiado temerário presumir que não terá sido por razões meramente circunstanciais que os cineastas que melhor lidaram com a questão evocada na crónica anterior, na formulação lançada por Virginia Woolf — «Se o cinema deixasse de ser um parasita, como faria para caminhar de cabeça erguida?» —, foram aqueles que fizeram do cinema uma «actividade de inventores», deles fazendo parte, se bem que tardiamente reconhecido, Boris Barnet, «o mais intimista e o mais requintado dos cineastas soviéticos e, em certo sentido, o mais marginal também»1, segundo os termos com que João Bénard da Costa, à primeira, não se coibiu de o definir.

1 João Bénard da Costa, «Barnet, Boris: U Samogo Sinevo Morya / “À Beira do Mar

U Samogo Sinevo Morya (À Beira do Mar Azul, 1936), de Boris Barnet

Numa reformulação, em que a propriedade dos termos carecerá de alguma indulgência, poder-se-á afirmar que a questão crucial consiste em dizer por meios cinematográficos aquilo que nos é dado. Utilizando, intencionalmente, o verbo dizer, ciente de que uns defenderão tratar-se de narrar e outros contraporão tratar-se de mostrar, o que se pretende pôr em evidência é a natureza específica da acção de apresentação diante dos nossos olhos através de meios cinematográficos.

De entre esses meios cinematográficos, o primeiro a disputar a primazia é, naturalmente, a câmara:

A pintura e o desenho são técnicas para produzir imagens [pictures]. Tal como a fotografia. Mas a natureza especial da fotografia permanecerá obscura se não a pensarmos também numa outra perspectiva — como uma contribuição para a tarefa de ver. A invenção da câmara deu-nos não apenas um método de produção de imagens, e não apenas imagens de uma natureza nova: mas sim um novo modo de ver. 2

Esta observação de Kendall Walton, acompanhando o ponto de vista defendido por outros «realistas» como André Bazin ou Roland Barthes, permite-nos avaliar melhor a importância da câmara na invenção do cinema e da função do homem-da-câmara na «técnica

Azul” (1936)», em Escritos sobre Cinema, vol. 1.o, tomo I (Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2018), 125.

2 Kendall L. Walton, «Transparent Pictures: On the Nature of Photographic Realism», em Marvelous Images: On Values and the Arts (New York: Oxford University Press, 2008), 85.

de produção de imagens» no cinema dos primeiros tempos, que habitualmente designamos por primitivo, que, ao contrário do que aconteceu depois como resultado da implantação do designado cinema pertencente ao modo de produção dominante, não alienou essa função, tal como o não fizeram realizadores que, ao longo da história do cinema, não abdicaram de pensar o estilo e a forma de expressão cinematográfica como indissociáveis desse novo modo de ver e do uso dos meios cinematográficos próprios para o realizar.

A merecer, no entanto, particular relevo são os casos de obras que «ferem os olhos e provocam a visão» e cuja «fulguração figurativa» é obtida conjugadamente com a adopção de uma nova prática no que diz respeito ao argumento cinematográfico. Antes de procurar a prova, de forma mais concreta, em U Samogo Sinevo Morya (À Beira do Mar Azul, 1936), de Boris Barnet, será útil referir que a expressão «fulguração figurativa» encontra a justa remissão para Pier Paolo Pasolini, que a utiliza na dedicatória do seu filme Mamma Roma a Roberto Longhi, que fora seu professor e de cujo olhar sobre a pintura (de Giotto, Masaccio, Caravaggio, Piero della Francesca) se considera devedor. A repercussão da mesma no cinema, conforme registo do diário, com data de 3 de Maio de 1962, é explicada nos seguintes termos:

[…] o meu gosto pelo cinema não é de origem cinematográfica mas figurativa. O que tenho em mente como visão, como campo visual, são os frescos de Masaccio, de Giotto — que são os pintores de que mais gosto, juntamente com alguns maneiristas (por exemplo, Pon-

tormo). E não consigo conceber imagens, paisagens, composições de figuras que escapem à minha paixão pictural dos começos.3

Por outro lado, convirá acrescentar que a impossibilidade sentida por Pasolini de «escrever usando a técnica do romance» se transformara na «vontade de usar uma outra técnica, a do cinema». Tal mudança viria a contar com uma reflexão de grande alcance num texto intitulado «O argumento cinematográfico “como estrutura que quer ser outra estrutura”» (1965), no qual Pasolini parte não da ideia mais comum do argumento em que, visto este na sua função mediadora, sobressairia o seu carácter transitivo, mas antes considerando-o «como obra completa e acabada em si própria» que, no entanto, não pode deixar de fazer «alusão contínua a uma obra cinematográfica a fazer». Decorre daí que na leitura de um argumento se exige uma «colaboração muito particular» daquele que se entrega a tal tarefa. O que lhe é pedido é nem mais nem menos do que um empréstimo. A expressão utilizada por Pasolini para definir em que consiste este empréstimo é compiutezza «visiva». Não seguindo os que traduzem esta expressão por «acabamento», mas por completude visual: uma plenitude, quer dizer, uma inteireza visual, que um argumento não pode ter, mas a que faz necessariamente alusão, e que só poderá ser alcançada na obra cinematográfica a fazer4, fica também mais explícito o papel que cabe aos meios cinematográficos.

3 Pier Paolo Pasolini, Accattone – Mamma Roma – Ostia, Edição digital, [2006] (Milano: Garzanti, 2014), 209.

4 Pier Paolo Pasolini, «La scenneggiatura come “struttura che vuol essere altra strut-

chaminés, e outros animais (vacas que atravessam, cão que fareja, pássaros que voam) faria crer que é deles que dependeria a vida no quadro ou a sua animação, bem como a nossa percepção do movimento e do tempo. Note-se, contudo, que o Frame 1 retoma no fim a configuração inaugural da pintura de Bruegel, o que não deixa de ser um aviso de que as coisas não se passam assim. Pelo contrário, tudo o que é susceptível (plausível, verosímil, necessário) de imaginariamente se passar, acontece no tempo que foi dado pela pintura. E, mais do que isso, o fragmento que se impõe, captado pelo pintor, continua a desafiar a nossa imaginação, saltemos nós para antes ou para depois dele, como «um bloco de sensações que se sustém, que existe em si», à prova do tempo.

A aparente replicação do procedimento adoptado no Frame 1 nos seguintes, com a diferença de que nestes o ponto de partida

são fotografias realizadas ao longo do tempo por Abbas Kiarostami, introduz um elemento inteiramente sem referência, aleatório, relativamente à tarefa que caberia ao espectador de imaginar um antes ou um depois do momento decisivo, determinado pelo disparo da máquina fotográfica, uma vez que as fotografias que estiveram na origem do prolongamento narrativo a que Kiarostami se entregou, e nos propõe que continuemos, não são apresentadas. Em tais circunstâncias, dir-se-ia, que a imaginação do espectador, mais do que num

prolongamento narrativo, haveria de ocupar-se com o momento singular originalmente captado pela máquina fotográfica de Kiarostami. Como envolver-se, então, em tal empreendimento criativo e o que pode o espectador dele retirar?

A experiência de vida de Abbas Kiarostami parece conter indicações preciosas sobre como via as coisas, em três momentos sucessivos: «Aos onze anos tinha um pequeno projector e via as películas fotograma a fotograma, como se fosse uma colecção de selos»3; pelos vinte anos «a realização de anúncios [de 1960 a 1969 realizei mais de cento e cinquenta] foi a minha escola de cinema: aprendi a transmitir uma ideia em pouco tempo […], às vezes é necessário resumir tudo em trinta segundos»4; na década seguinte, aos trinta anos, no Kanun, o Instituto para o Desenvolvimento Intelectual das Crianças e Adolescentes, «os primeiros dez anos de actividade do departamento de cinema foram um período único. Até ao princípio de 1979, o Instituto tinha produzido, entre curtas e longas-metragens, quase cento e quarenta filmes, entre os quais muitos desenhos animados. […] Os nossos trabalhos eram depositários de uma reflexão que não existia nos filmes daquela altura»5.

Dessa reflexão advirá a convicção de Kiarostami, que parece consolidar-se na inversa medida da sua paciência para suportar «o cinema narrativo», segundo a qual uma «fotografia não conta uma história, mas deixa-nos a liberdade de a imaginar». Uma tal afir-

3 Abbas Kiarostami, «No trabalho (parte I)», em Abbas Kiarostami (Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2004), 32.

4 Kiarostami, 36.

5 Kiarostami, 37-38.

mação não deverá, contudo, induzir em erro, pois Kiarostami não se cansa de insistir num ponto, para si, crucial de que as suas «fotografias são as mesmas de quando foram tiradas», que «a moldura preta que circunda o negativo da imagem», encerrando «o fotograma como um documento», é que lhes confere validade.6

Nas três coisas (tempo, objectiva, tema) que, em seu entender, contam na sua intervenção criativa tudo parece convergir para a definição do que é decisivo no momento do disparo:

O importante é o enquadramento. […] Ao escolher e enquadrar alguma coisa, dá-se-lhe a dimensão da importância que provém do facto de a ter seleccionado. No momento em que se selecciona algo, confere-se-lhe um valor acrescentado que o separa de toda e qualquer outra coisa.7

Embora, aparentemente, contradizendo Kiarostami, para quem «a linguagem da fotografia não necessita de palavras e, no seu caso, nem sequer de didascálias», sou levado a supor o que Walter Benjamin teria acrescentado: «O que devemos exigir ao fotógrafo é a capacidade de dar à sua fotografia uma legenda que a subtraia ao desgaste pela moda e lhe confira o seu valor de uso revolucionário.»8

6 Abbas Kiarostami, «Duas ou três coisas que sei de mim», em Abbas Kiarostami (Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2004), 22.

7 Kiarostami, 14.

8 Walter Benjamin, «O autor como produtor», em A Modernidade, trad. João Barrento, Obras Escolhidas de Walter Benjamin / 3 (Lisboa: Assírio & Alvim, 2006), 284.

Relativamente a 24 Frames, tratando-se por princípio de planos fixos, cuja composição mostra, aliás, em vários deles uma dupla moldura, ao eleger como critério primordial o enquadramento, a escolha do momento de disparo da máquina e do tempo de exposição à luz da película ou do sensor (determinado pela abertura/fecho do obturador) acabaria por ficar secundarizada relativamente à determinação do que no frame — instantâneo, fragmento, quadro — sustenta a imaginação narrativa, a que Kiarostami na citação acima chamava a liberdade de imaginar.

Haverá, por isso, necessidade de voltar à questão da denominação. Sem a extensão e grau de pormenor com que já foi feito, mas aqui não cabe, há que indagar «qual seria no cinema o equivalente de um quadro», revisitando o dispositivo cénico conhecido por quadro vivo.

Nos capítulos 5 e 6 da segunda parte de As Afinidades Electivas, Goethe oferece-nos, com extraordinária riqueza de pormenores e rara vivacidade, o dispositivo cénico de uma forma de representação em voga no seu tempo e de Kleist: o quadro vivo. Quadros célebres, como os de Van Dyck ou Poussin, ou mesmo provindo dos chamados presépios, eram repostos, em cenários concebidos para o efeito, diante de uma vasta assistência; para neles representarem, a escolha recaía «em pessoas tão bem formadas às quais não falta[va] certamente nada para poderem imitar movimentos e atitudes dignos de ser pintados». Se para a selecção das gravuras ou género de instalação a adoptar, sobretudo no que respeita à iluminação, ou mesmo para a confecção do guarda-roupa, era requerida muita preparação e envolvimento dos intervenientes, o certo é que «uma tal imitação

[representar quadros verdadeiros já muito conhecidos] ainda que dê muito trabalho na sua organização, provoca, em contrapartida, um prazer inacreditável».

Quer isto dizer que é, sobretudo, do ponto de vista da economia emocional que estes quadros vivos merecem ser considerados. Concebidos como dispositivos de representação estática, confiada a grupos de personagens imóveis, pode mesmo afirmar-se que aquilo que melhor os caracteriza é a intensidade na imobilidade. Esta tem na sua origem uma forma, sem dúvida, paradoxal de repartição da actividade/passividade na relação entre paralisia fascinante e intensa agitação.

A narrativa de Goethe não deixa de incluir aspectos dessa dinâmica entre «personagens» do quadro e assistência, mediada pelo, também ele contraditório, «efeito de real»: ora a apreciação afirma que a «imitação viva ultrapassava em muito a gravura do quadro [a imagem original] e despertou o encanto de todos», ora considera que «a realidade como quadro oferecia vantagens particulares», para logo contrapor que «a presença do real em vez da presença do aparente [da imagem] causava uma espécie de angústia». Ao mesmo tempo tudo parecia suspenso entre o momento em que «a imagem pareceu ter-se imobilizado, e tornar-se estática» e aquele em que a angústia advém da percepção do fim iminente da representação através da quebra da imobilidade: «o conhecedor sensível que houvesse contemplado esta aparição teria receado ver nela qualquer movimento». Contudo, o aspecto mais surpreendente parece ser o que por ora designaríamos de anterioridade figural, que determina que antes da sua própria composição «tudo parecia estar já a postos para o

quadro». Talvez se pudesse falar de uma anterioridade que convoca o quadro ou, então, que o anuncia.9

O testemunho de Elisa Resegotti sobre o método de trabalho de Kiarostami como fotógrafo, e da sua exigência em «arranjar sempre um motivo gráfico antes de fotografar» poderá, talvez, ajudar a conceber a necessidade de uma anterioridade afectiva ainda mais primordial: «A fotografia é um instante, certamente fugidio, mas Kiarostami, pacientemente, obstinadamente diria eu, espera, procura, retorna até que o seu olho veja aquilo que o coração sugere e pede»10.

No Frame 24, o derradeiro quadro da obra de Kiarostami, uma rapariga parece ter adormecido enquanto a sequência final de The Best Years of Our Lives (Os Melhores Anos das Nossas Vidas, 1946), de William Wyler, corre lentamente no monitor, tendo como banda sonora a música «Love Never Dies» de Andrew Lloyd Webber, retardando o aparecimento do cartão de fecho com o «The End».

Apesar de apócrifa, a afirmação atribuída a Jean-Luc Godard, segundo a qual «o cinema começa com D.W. Griffith e termina com Abbas Kiarostami»11, terá contribuído para que este filme pudesse ter sido tomado por uma espécie de testamento, paradoxal, sobre o cinema exibindo o seu próprio fim.

9 José Bogalheiro, Empatia e Alteridade: A Figuração Cinematográfica como Jogo (Lisboa: Documenta, 2014), 393-394; Johann W. Goethe, As Afinidades Electivas, trad. Maria de Assunção Pinto Correia, [1810], Obras Escolhidas / 4 (Lisboa: Relógio D’Água, 1999), 222, 223, 236, 225, 224, 237, 237, 223.

10 Abbas Kiarostami, «Correspondência(s)», em Abbas Kiarostami (Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2004), 182.

11 Jean-Michel Frodon e Agnès Devictor, Abbas Kiarostami: L’œuvre ouverte (Paris: Éditions Gallimard, 2021), 7, 17.

• José Bogalheiro

Contradirei, porém, esse augúrio apoiando-me nos que de forma cúmplice a mim se têm juntado confessando que já, por análogo cabeceio, lhes aconteceu terem saltado a cena imperdível de La grande illusion (A Grande Ilusão, 1937) de Jean Renoir, pois a todos tenho ouvido afiançar que tal não lhes acontecerá da próxima vez que o filme passar.

E junto a vigorosa afirmação de Jean-Luc Nancy, a propósito de Zendegi va digar hich (E a Vida Continua, 1992), mas que se ajusta a este caso: «[A fotografia] reenquadrada, no filme, diz: o cinema é isto, montagem e enquadramento e efeitos especiais. A vida continua, antes, depois do cinema, mas também através dele, e até como ele. O que se trata é de enquadrar a vida, o contínuo»12.

O que não se apresenta tão óbvio de realizar, pois em momentos em que o cinema dá primazia à vida — belo exemplo — como em Vivre sa vie (Viver a Sua Vida, 1963), que no seu título longo é dito Vivre sa vie: Film en douze tableaux (Viver a Sua Vida: Filme em 12 Quadros), o recurso na construção fílmica à segmentação em quadros, quais fragmentos discretos e descontínuos, no « Quadro 11. Nana faz filosofia sem o saber» traz-nos de volta o Mosqueteiro «Porthos, o grande, o valente, um tanto estúpido. Uma vez tinha de pôr uma bomba num subterrâneo para o fazer rebentar. Fá-lo, põe a bomba, acende a mecha, foge, naturalmente. A correr, de repente, põe-se a pensar. Pensar em quê? Pergunta-se como é possível pôr um pé à frente do outro. Então pára de correr, de andar: já não pode avançar.

12 Abbas Kiarostami, «Correspondência(s)», em Abbas Kiarostami (Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, 2004), 191.

Explode tudo, o subterrâneo cai-lhe em cima […], é esmagado e morre. Assim, a primeira vez em que pensou, morreu por isso».

A conclusão tirada pelo filósofo (Brice Parain) na conversa com Nana (Anna Karina) de que «a vida com pensamento supõe que se matou a vida quotidiana, demasiado elementar» apresenta-se excessivamente cruel para quem, quando estas crónicas começaram, com ar, porventura, imoderadamente incisivo, afirmava «o cinema como metamorfose da experiência interior».

Enquanto às voltas andamos com a pergunta de Nana sobre se «o amor não devia ser a única coisa verdadeira?», segue o filme da nossa vida. Se relativamente à percepção da mesma ainda não o sabemos bem, mas faz cada vez mais caminho a «ideia de que a consciência é composta de momentos discretos», no que respeita à rodagem cinematográfica do filme da nossa vida (constituição presente do nosso passado, com quadros esquecidos, apagados, substituídos, imaginados) não há dúvida que se trata sempre de instantâneos, de momentos discretos em que, qualquer que seja o número de fotogramas ou de frames por segundo, o simples facto de esse número poder ser variável só acentua a realidade da existência de um espaço-tempo negro entre eles, um tempo perdido, não colectável.

Se bem que a vida não seja um exercício de percepção, a especulação prossegue

[…] sobre o modo como a continuidade visual é percebida ou construída e, por extensão, sobre a aparente continuidade da própria consciência. Eles [Crick e Koch] propuseram que «a consciência [no que concerne à visão] é uma série de instantâneos estáticos, com o

movimento “pintado” sobre eles […] [e] que a percepção ocorre em momentos discretos».13

Mas havendo, para além disso, uma inexorabilidade técnica na captação e registo ou geração de imagens, evidenciada na decomposição do que aparentava ser contínuo, desde sempre, o cinema usou a melhor forma de lidar com a fragmentação e a descontinuidade, entregando essa tarefa de reconstrução, de ligação, de montagem, na procura reiterada da justa posição dos fragmentos — em que somos realizadores do filme da nossa vida e ao mesmo tempo o seu assunto — ao trabalho do espectador activo, participante, que apelidei de rebobinador.

13 Oliver Sacks, O Rio da Consciência (Lisboa: Relógio D’Água, 2017), 155-156.

E, assim, termino com versos de Ruy Belo, onde também encontrei o título para esta última crónica desta série:

lembro-te apenas o que te esqueceu

Não temas porque tudo recomeça

Nada se perde por mais que aconteça uma vez que já tudo se perdeu14

14 Ruy Belo, «Homem de Palavra(s) / Uma vez que já tudo se perdeu», em Todos os Poemas (Porto: Assírio & Alvim, 2014), 312.

140 • José Bogalheiro

Só se os nossos olhos se desviarem de uma coisa e pousarem nela muito mais tarde é que essa coisa se torna outra coisa; e talvez nem mesmo neste caso.

György Lukács, em Die Seele und die Formen

Se uma justificação retrospectiva fosse intentada relativamente à decisão de dar a este volume, bem como aos dois que o precederam, o subtítulo comum de o cinema como metamorfose da experiência interior, seria levado a regressar a uma observação feita por Ernst Gombrich a propósito do seu, talvez, mais conhecido livro — Arte e Ilusão1, cujo título fora encontrado acolhendo a sugestão do seu amigo Karl Popper, sendo que, depois, «muitas vezes se arrependeu dessa escolha», devido ao mal-entendido que o termo «ilusão» tinha permitido. E pior do que isso terá sido o facto de assim se ter desviado o foco de algo em que, retomando, aliás, termos de Popper, assentava a sua concepção do processo que conduzira à representação realista segundo a qual «se trata de criar uma hipótese e de a testar; e o teste é precisamente o que o artista faz ao dar dois passos atrás para poder ver aquilo que pintou»2. Esta formulação que, por

1 E.H. Gombrich, Arte e Ilusão — Um Estudo da Psicologia da Representação Pictórica, trad. Raul de Sá Barbosa, [1959] (São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1986).

2 Ernst Gombrich e Didier Eribon, Ce que l’image nous dit — Entretiens sur l’art et la science (Paris: Éditions Adam Biro, 1991), 95-96.

Posfácio

outro lado, parafraseava Whistler que, em resposta a um aluno que afirmava «eu pinto o que vejo», lhe observara «mas não se esqueça de ver o que pintou», convirá ao cinema, se bem que, neste caso, haja que a conjugar ainda com um conselho de Kokoschka que dizia «não se esqueçam do que vêem: nunca mais voltará!»3, algo que, no processo criativo cinematográfico corresponderá, para o realizador, à exigência de conjugação de dois tempos aparentemente extremos, distantes, o inicial, em que se surpreende a si mesmo com o que surge à sua vista, e o final, em que lhe cabe «ser o primeiro espectador do seu próprio filme».

Ao regressar à experiência de espectador de cinema, ciente de que, à falta de elucidação oportuna sobre o que o termo «interior» abarcava, seria agora tarde para a empreender, nem por isso, enquanto ensaísta ambulante que amiúde se detém, deixaria de aproveitar o ensejo para dar «dois passos atrás» e retomar esse outro motivo abandonado que apareceu designado por levar uma vida cinematográfica.

Na esteira da observação de Wittgenstein, segundo a qual «não se repara no que está sempre diante dos olhos»4, Stanley Cavell considera que pôr os olhos no que está mais à vista, mas não vemos é uma tarefa filosófica5.

3 Gombrich e Eribon, 108.

4 Ludwig Wittgenstein, «Investigações Filosóficas (1.ª Parte)», em Tratado Lógico-Filosófico / Investigações Filosóficas, trad. M.S. Lourenço (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995), [129], 263.

5 Stanley Cavell, Un ton pour la philosophie: Moments d’une autobiographie, trad. S. Laugier e É. Domenach (Paris: Bayard, 2003), 8.

No cinema, semelhante tarefa entendeu-a Pier Paolo Pasolini, aliás, perante uma grande incompreensão à sua volta, como capaz de pôr diante dos nossos olhos uma «expressividade [da realidade] que nos podia escapar», tendo-se socorrido de uma analogia com o funcionamento do espelho para exemplificar o modo como o desdobramento reflexo produzido através da reprodução cinematográfica é susceptível de proporcionar a «descoberta» da realidade:

Em suma, aconteceu-me o que poderia acontecer a qualquer um que faça investigações sobre o funcionamento do espelho. Coloca-se diante do espelho e observa-o, examina-o, toma notas e, no fim, que vê? Vê-se a si mesmo. De que se apercebe? Da sua presença material e física. O estudo do espelho remete-o fatalmente para o estudo de si mesmo.

É o que acontece a quem estuda cinema: como o cinema reproduz a realidade, acaba por remeter para o estudo da realidade. Mas, de uma maneira nova e especial, como se a realidade tivesse sido descoberta através da sua reprodução, como se alguns dos seus mecanismos de expressão emergissem apenas desta nova situação «de reflexão».6

Se, contudo, de maneira mais incisiva, a nossa pretensão fosse ver a própria vida não poderíamos deixar de levar em conta a circunstância indeclinável que os versos de Ferreira Gullar assinalam: «À vida falta uma parte / — seria o lado de fora — / pra que se visse

6 Pier Paolo Pasolini, «Dialogo 1.º», Cinema & Film, n.º 1 – Inverno (1966/67): 6; Pier Paolo Pasolini, «Língua e palavras», em As Últimas Palavras de Um Ímpio (Conversas com Jean Duflot), [1981] (Lisboa: Distri Editora, 1985), 111.

passar / ao mesmo tempo que passa»7 e, então, considerar que terá sido Virginia Woolf que concebeu o quadro mais completo e vívido sobre como proceder quando se aceita a incumbência de reparar no que está diante dos nossos olhos.

Num texto, intitulado «A morte da mariposa»8, que encabeça a primeira colectânea de ensaios de publicação póstuma (1942) e é, provavelmente, o último que escreveu antes do suicídio e da carta deixada ao marido, Virginia Woolf começa por observar, em plano aproximado, cruzando a moldura da sua janela, uma borboleta nocturna voando desencontrada com as horas das da sua espécie. Por outro lado, lá fora, em plano afastado, manifestações da mais exuberante vitalidade matinal, como o brilho da terra húmida arada pelos lavradores, o esvoaçar festivo e inquieto das gralhas ou o vigoroso movimento dos cavalos, impedem-na de manter os olhos pregados no livro. Nas quatro páginas deste ensaio em que, apesar de não ter contado com as revisões a que Virginia Woolf habitualmente submetia os seus escritos, é bem patente quanto a sua «visão» nos leva a «suspeitar que a arte da escrita tem como coluna dorsal a ligação feroz com uma ideia» — «algo em que se acredita convictamente ou algo que se vê com precisão»9, deparamos, por assim dizer, com o que se passa em três planos correlativos ao que as suas palavras dão

7 Ferreira Gullar, «Barulhos / Versos de entreter-se», em Toda Poesia (São Paulo: Companhia das Letras, 2021), 327.

8 Virginia Woolf, «The Death of the Moth», em The Death of the Moth and Other Essays (London: The Hogarth Press, 1942); Virginia Woolf, A Morte da Mariposa, trad. Ana Carolina Mesquita, [Edição bilingue] (São Paulo: Editora Nós, 2021).

9 Virginia Woolf, «O ensaio moderno», em 48 Ensaios, trad. Ana Maria Chaves e Catarina Ferreira de Almeida, Antropos (Lisboa: Relógio D’Água, 2022), 150.

forma: «o mundo», «o quadrado da janela», «a consciência». Numa manhã de meados de Setembro, vinda da extensão das colinas, da vastidão do céu, do distante fumo das casas, irrompe pela janela a energia colossal do mundo. E, no entanto, com a progressiva deslocação do foco de atenção para o voo reiterado de uma mariposa em variação limitada aos quatros cantos da janela, «não havia como não observar» essa mesma energia no espectáculo da sua dança ou, mais precisamente, ser levado a crer ser essa a verdadeira natureza da vida — um fio de luz tornado visível todas as vezes que a mariposa cruza a vidraça, uma ínfima gota de vida pura, mesmo quando fraqueja. Sendo que o que, assim, se infiltra na consciência, pelos corredores emaranhados e estreitos do cérebro de um humano observador, entre a estranheza, o espanto e a profunda comoção, é a energia da luta incansável, da resistência, de uma minúscula borboleta que «não era nada, ou quase nada, além de vida». E quando as sucessivas falhas e a queda fatal no parapeito da janela fariam suspeitar de um inimigo lá fora, ao contrário, com o meio-dia chegado, a imobilidade e a quietude tinham-se substituído ao movimento e à pujante animação da natureza como se, por um instante, tudo e todos se inclinassem diante do «quinhão de vida que cabe a uma mariposa», nos seus esforços para se manter a voar, de forma esplêndida e digna, se bem que os humanos, em tais circunstâncias, tendam a acrescentar: «E por vezes por vezes ah por vezes / num segundo se evolam tantos anos»10.

10 David Mourão-Ferreira, «Matura Idade [1966-1972] / Os Sonetos / E por vezes», em Obra Poética [1948-1995], ed. Luis Manuel Gaspar, 2.ª edição (Porto: Assírio & Alvim, 2022), 413.

Quando Pasolini afirma que «a morte opera uma rápida síntese da vida passada, e a luz retroactiva que ela lança sobre a vida escolhe os pontos essenciais desta, fazendo deles actos míticos ou morais», considerando que «a montagem é, portanto, muito semelhante à escolha que a morte faz dos actos da vida colocando-os fora do tempo»11, dada a insistência com que semelhante formulação é reiterada nos textos, datados de 1967 e publicados em apêndice a Empirismo eretico, não é seguro que essas palavras evitem uma ambiguidade redutiva, limitando o efeito da desassombrada asserção segundo a qual «o cinema na prática é como uma vida depois da morte».

Na transposição dessa metamorfose para o cinema, há passagens em que parece impor-se o entendimento de que, quando é mencionada a «montagem», a referência é a fase de montagem de um filme (entendida, portanto, como uma fase de produção, naturalmente, posterior à fase de rodagem). Julgo, porém, que a força vital contida nessa analogia relativamente ao tempo, mesmo na sua formulação mais insistente — «o presente torna-se passado» —, deve ser compreendida como uma antecipação de plenitude.

A afirmação de que, num filme, «o sentido [de uma acção] é já pleno e decifrável como se a morte tivesse já ocorrido»12 tem de ser percebida como algo que um filme pode incluir no acto de criação, desde o princípio, no próprio acto de enquadrar: a inteireza do acto, a plenitude do sentido.

11 Pier Paolo Pasolini, «I segni viventi e i poeti morti [1967]», em Empirismo eretico, Opere di Pier Paolo Pasolini, [1972] (Milano: Garzanti, 1977), 254, 253.

12 Pier Paolo Pasolini, «Essere è naturale? [1967]», em Empirismo eretico, 247.

Retomando a analogia do espelho usada por Pasolini, dir-se-ia que, estando aos humanos (mortais) vedado o conhecimento da morte por experiência própria, com «a abolição do tempo como continuidade e a sua transformação em realidade significante e moral», bem entendida, na visão própria do acto de criação de um filme cumprir-se-ia, antecipadamente, a metamorfose que propiciaria ver «cara a cara», em vez de ver «através de um espelho»13.

A bem da precisão deverá, contudo, referir-se que a ambiguidade a que se aludiu estaria desfeita pelo próprio Pasolini ao afirmar que «a [sua] ideia da morte era […] moral: não remetia para depois da morte, mas para antes: não para o além, mas para a vida. Para a vida entendida como dar cumprimento, como tendência desesperada, incerta […], visando uma perfeição expressiva própria», bem como ao declarar a sua desafeição relativamente às experiências tidas por inovadoras no cinema de poesia dizendo não acreditar «num cinema de poesia lírica obtida através da montagem e da exasperação dos meios técnicos»14.

Tratando-se, pois, de um «paradoxo que não cabe resolver, mas aceitar», à preponderância da montagem na determinação do sentido (ou da selecção das unidades de sentido) haveria, então, que contrapor a afirmação de que no cinema ou, para fazer jus à distinção pasoliniana, num filme, no princípio, está o «acto de enquadrar».

13 Frederico Lourenço, trad., «1.ª Carta de Paulo aos Coríntios», em Bíblia. Novo Testamento: Apóstolos, Epístolas, Apocalipse, vol. II (Lisboa: Quetzal, 2017), [1 Cor 13: 12], 257: «Pois nós vemos agora através de um espelho enigmaticamente; mas depois, <será> cara a cara».

14 Pasolini, «I segni viventi e i poeti morti [1967]», 252, 255.

A tendencial primazia atribuída à montagem ter-nos-á feito crer, por demasiado tempo, que «o todo», «a unidade», «o sentido» ou mesmo quando repetimos que «o todo é maior do que a simples soma das suas partes» advém do que sabemos ou realizamos depois. Ainda que passando por excessivamente abrupto, haverá, ao contrário, que sustentar que o que se vê no «quadro», no «plano», no «enquadramento», na «vida» advém de uma intuição — para empregar o termo de que Luis Buñuel se serviu, em 1928, para definir a découpage15 — que acompanha o «acto de enquadrar».

A evocação da mudança de ponto de vista assinalada por Virginia Woolf a propósito de «A nova biografia»16, caracterizada por uma alteração da relação entre «verdade» (obras e acções) e «personalidade» ou «o homem em si» (vida interior do pensamento e da emoção) ou, dito de forma mais metafórica, entre o «granito» e o «arco-íris», torna evidente que a vida que é para nós cada vez mais real é «a vida que reside na personalidade mais do que no acto», muito embora falte a descoberta do método para «escrever a respeito das pessoas e de si próprio, como se fossem ao mesmo tempo reais e imaginárias» e atingir essa «estranha amálgama de sonho e realidade».

É, no entanto, o que Virginia Woolf consegue ao pôr diante dos nossos olhos, no «quadrado da janela», com as minguadas oportunidades do destino de um insignificante insecto, uma síntese artística, resultado de fazer escolhas de «traços significativos e de valor», como

15 Luis Buñuel, «“Découpage ” o segmentación cinegrafica», em Obra Literaria, ed. Agustin Sanchez Vidal (Zaragoza: Heraldo de Aragon, 1982), 171-174.

16 Virginia Woolf, «A nova biografia», em 48 Ensaios, 272-279.

Pasolini defendera no cinema, através da operação subjectiva que é necessário o cineasta realizar para chegar à expressão no filme, por meio da língua do cinema: abandonar a reprodução fluida da natureza e fixar-se em aspectos da realidade (um rosto, um gesto, uma paisagem), ou seja, tornar-se um fetichista, cujo «amor pelas “coisas do mundo” o impede de as ver naturais».

Já relativamente a esses actos e expressões que a morte consuma como «significativos e de valor» nem por isso deixava de observar que, guardadas na memória como epígrafes, são essas expressões que serão objecto de rememoração. Ficando fora do tempo, são as que permanecem entre nós. E, talvez, houvesse mesmo que perguntar a que metamorfoses podem essas expressões e actos consumados estar destinados ainda por via da rememoração e do afecto.

Aceitando que «é deste modo que uma vida se torna numa história», como Pasolini conclui, outra seria ainda a questão de saber como se constitui uma biografia que incluísse as sombras próprias de uma identidade fantasmática. Essa vida que levamos e em que acontece que «às vezes acabamos por tomar por nossos [como sendo da nossa conta] actos realizados [consumados] em sonhos»17. Como neste caso de uma lembrança de Virginia Woolf:

Sonhei que estava a olhar-me a um espelho quando uma cara horrível (a cara de um animal) surgiu de repente por cima do meu ombro.

17 Gilles Deleuze, «Correspondance avec Dionys Mascolo», em Deux régimes de fous — Textes et entretiens ( 1975-1995), ed. David Lapoujade (Paris: Éditions de Minuit, 2015), 309.

Não tenho a certeza se se tratou de um sonho ou se aconteceu de verdade. Estaria eu a ver-me ao espelho, um dia, quando qualquer coisa se deslocou atrás de mim, levando-me a crer que seria um ser vivo? Não posso ter a certeza. No entanto, nunca esqueci o outro rosto ao espelho, fosse ele sonho ou realidade, nem que o sucedido me assustou.18

Conhecedor como era da Grécia Antiga, Sigmund Freud não ignorava, por certo, «a estreita intimidade, nas representações gregas, entre a mulher e o espelho» e como o espelho na sua exclusiva condição de «coisa feminina […] muitas vezes bem podia servir […] para revelar, como que sem saber, a parte feminina secretamente escondida em cada homem»19. Na ilusória percepção da aparição da própria imagem, relatada por Freud a propósito da ocorrência da sensação de inquietante estranheza «quando a nossa própria imagem, involuntária e inesperadamente, surge diante de nós», a razão do profundo desagrado causado adviria, segundo ele, do facto de «em vez de nos assustarmos perante o nosso próprio duplo, simplesmente não o reconhecemos».

[…] encontrava-me sozinho, sentado num compartimento com couchette, quando, na sequência de um violento solavanco do comboio em marcha, se abriu a porta da casa de banho contígua e um senhor

18 Virginia Woolf, «Um esboço do passado», em Momentos de Vida, trad. Eugénia Antunes (Lisboa: Ponto de Fuga, 2017), 83.

19 Françoise Frontisi-Ducroux, «L’œil et le miroir», em Dans l’œil du miroir, por Jean-Pierre Vernant e Françoise Frontisi-Ducroux (Paris: Odile Jacob, 1997), 59, 67.

150 • José Bogalheiro

de idade, em roupão e com um boné de viagem na cabeça, entrou no meu compartimento. Supus que, ao deixar a casa de banho, situada entre os dois compartimentos, se tinha enganado e por lapso entrara no meu compartimento; ergui-me para o esclarecer, mas reconheci, perplexo, a breve trecho, que o intruso era a minha própria imagem, reflectida pelo espelho na porta de ligação. Recordo-me que essa aparição me desagradara profundamente.20

Será, talvez, de acrescentar que se considerássemos poder tratar-se, também neste caso, de um surpreendente retorno da interdição vigente entre os gregos do uso de espelhos pelos homens, tornar-se-ia inevitável aceitar, com as devidas consequências, que não se dispõe de outro espelho para além do olhar do outro, «o olhar de um outro homem, do semelhante e do igual, no qual cada um procura e encontra a sua imagem»21.

Muito embora sabendo que o que invade o nosso espírito, quando nos debruçamos sobre empreendimentos de autocompreensão22, tais como as autobiografias intelectuais, é uma narrativa semeada de enigmas, anacronismos e falsos passos, para além de tudo o mais que pode ser objecto de curiosidade, não desistimos de querer compreender «como é que uma intuição se transforma em substân-

20 Sigmund Freud, «O sentimento de algo ameaçadoramente estranho», em Textos Essenciais sobre Literatura, Arte e Psicanálise, trad. Manuela Barreto, [1919] (Lisboa: Publicações Europa-América, 1994), 242 (nota de rodapé).

21 Frontisi-Ducroux, «L’œil et le miroir», 65.

22 Paul Ricoeur, Réflexion faite — Autobiographie intellectuelle (Paris: Éditions Esprit, 1995), 11.

cia de vida intelectual e de trabalho»23 ou, mais simplesmente, saber como é que uma dada questão veio à cabeça dos seus autores, algo que corresponderia, no que me toca, à interrogação sobre a possibilidade de levar uma vida cinematográfica ser uma coisa desejável. Com o meu particular interesse em dar corpo a essa ideia, não possuindo a expressão um uso corrente, mesmo se nos detivermos na analogia com expressões tais como «levar uma vida de virtude» ou, então, «levar uma vida de dificuldades», terei encontrado o seu motivo — como nos sonhos, cuja matriz elementar é a repetição do desempenho de uma função abandonada; no meu caso, na tropa, de que desertei — na parábola do filho pródigo que, sendo aquela que mais representações figurativas teve desde sempre (facto que atesta bem a extraordinária capacidade de as imagens sobreviverem e voltarem ao nosso convívio), não parece, ainda assim, ter sido essa sua força imagética a determinar a imposição na minha memória, mas talvez antes a estranha e mágica sonoridade da expressão, na tradução então em voga, com que era caracterizada a decisão e o que o filho pródigo fizera depois: «tendo deixado a casa do pai, em longes terras, levou uma vida dissoluta». No tempo remoto em que esta expressão ganhou a minha inconfessada predilecção, estava longe de poder avaliar que o termo dissoluta era o particípio passado, na sua forma erudita, do verbo dissolver e que, portanto, equivaleria mais ou menos ao mesmo que uma vida «dissolvida». Sei agora que o termo bíblico, na versão grega ( asôtôs), um advérbio que surge

23 Judith Schlanger, Fragment épique — Une aventure aux bords de la philosophie (Paris: Éditions Belin, 2000), 139.

uma única vez em todo o Novo Testamento, na sua tradução literal significaria «de forma isenta de salvação»24, que não pode ser salvo, como julgo que acontece com o torrão de açúcar no copo de água, mau grado a contingência da nossa espera. Deste modo, se na palavra dissoluta do meu fascínio juvenil (ou na sua forma adverbial dissolutamente), algo mais pudesse ser procurado — qual retoma de um motivo abandonado —, a afirmação de Jorge Luis Borges «eu sou o rio» seria, afinal, a que melhor conviria. Pudera eu, então, antecipar como é que essa condição, em acordo com os augúrios de Merleau-Ponty para o cinema, no momento em que tivesse sido visto «um filme que [fosse] plenamente um filme» e o espectador, cuja «experiência cinematográfica [fosse] percepção», tivesse podido experimentar «uma imagem radiante, um ritmo», tal como no uso poético da linguagem «que nos descreve a estrutura essencial da coisa sem nos dar o seu nome e nos força assim a nela entrar» 25 , corresponderia ao que — estando prontos para «nos colocarmos na duração para passar dela aos momentos, em vez de partir dos momentos para ligá-los em duração»26 — seria, isenta de acrimónia e sem remissão, levar uma vida cinematográfica dissoluta.

24 Frederico Lourenço, trad., «Evangelho segundo Lucas», em Bíblia. Novo Testamento: Os Quatro Evangelhos, vol. I (Lisboa: Quetzal, 2016), [Lc 15:13], 279 (notas): «Poucos dias depois, o filho mais novo, juntando tudo, partiu para uma terra longínqua e por lá esbanjou tudo, vivendo prodigamente».

25 Maurice Merleau-Ponty, Palestras, [Título original: Causeries, 1948] (Lisboa: Edições 70, 2003), 58-60.

26 Henri Bergson, A Evolução Criadora, trad. Pedro Elói Duarte, [1907] (Lisboa: Edições 70, 2001), 318.

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obras de josé bogalheiro na documenta

Empatia e Alteridade – A Figuração Cinematográfica como Jogo, José Bogalheiro

Empatia e Alteridade – A Figuração Cinematográfica como Jogo + DVD, José Bogalheiro (ed. numerada e assinada)

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Edição de José Bogalheiro e Manuel Guerra

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Empatia e Alteridade – A Figuração Cinematográfica como Jogo, José Bogalheiro

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