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COM A NOITE DE PERFIL
ensaios sobre Eugénio de Andrade
Federico Bertolazzi
COM A NOITE DE PERFIL
ensaios sobre Eugénio de Andrade
Obra publicada com o apoio da Cátedra Agustina Bessa-Luís e do Dipartimento di Storia, Patrimonio Culturale, Formazione e Società da Universidade de Roma Tor Vergata.
Os ensaios «Gosto de muros brancos, de praças quadradas», «Paisagem e sexualidade», «Língua e poética», «Breves observações sobre o uso dos plurais em Eugénio de Andrade» e «Carnadura concreta» foram traduzidos por Ana Natividade.
A Paula Morão, mestreCOM A NOITE DE PERFIL
Gracili arbusti, ciglia
Di celato bisbiglio…
Impallidito livore rovina…
Un uomo, solo, passa
Col suo sgomento muto…
Conca lucente, Trasporti alla foce del sole!
Torni ricolma di riflessi, anima, E ritrovi ridente
L’oscuro…
Tempo, fuggitivo tremito…
Giuseppe Ungaretti, «Lago luna alba notte»
Com a noite de perfil a medir-me cada passo
Eugénio de Andrade, «O ofício»
NOTA PRÉVIA
Neste ano de 2023, em que se comemora o centenário do nascimento de Eugénio de Andrade, reúno neste livro os ensaios que a ele dediquei nos últimos vinte anos e que tenho publicado de forma dispersa.
Quer, esta, ser a minha homenagem ao poeta que tão grande papel, involuntariamente, teve nas mais importantes escolhas que fiz.
Os ensaios são aqui apresentados com pequenos ajustes para evitar excessivas redundâncias, contudo conservam o carácter circunstancial das publicações originárias e a insistência em alguns temas e lugares que de vários pontos de vista abordei.
Federico BertolazziRoma, 21 de Julho de 2023
EVOCAÇÃO DE EUGÉNIO DE ANDRADE 1
É em representação da Comissão promotora das celebrações do centenário de Eugénio de Andrade que aqui intervenho e quero primeiramente agradecer à direcção da Casa da Música a organização deste concerto de homenagem a Eugénio de Andrade, no dia em que o poeta completaria cem anos e na cidade que escolheu como seu «refúgio». Agradeço ao Senhor Ministro da Cultura e ao Senhor Presidente da Câmara Municipal do Porto o apoio que concederam para a organização das celebrações propostas pela comissão para homenagear este poeta que, há muito, ultrapassou os limites nacionais e cuja poesia penetra cada vez mais nas literaturas de outros países.
*
«No prato da balança um verso basta / para pesar no outro a minha vida», escreveu Eugénio de Andrade: um dístico que, na sua admirável contenção, é uma inteira poética.
Eugénio publicou estes dois versos pela primeira vez no Pequeno Caderno do Oriente, livro escrito em Macau e que evoca Camilo Pessanha, mestre da inefável musicalidade, a propósito do qual Eugénio também citou o epitáfio de Keats dizendo: «eis um outro que escreveu o seu nome na água». Creio que nessa linhagem Eugénio tem lugar de honra. Também ele
1 No dia 19 de Janeiro de 2023 inauguraram-se as celebrações do centenário do nascimento de Eugénio de Andrade. A comissão promotora das celebrações, que integrei juntamente com Carlos Mendes de Sousa, Joana Matos Frias e José Tolentino Mendonça, propôs à Casa da Música do Porto a realização de um concerto que homenageasse o poeta. Estas são as palavras que naquela ocasião pronunciei.
escreveu o seu nome na água, ou melhor, nas águas, como gostava de dizer: «nas águas rumorosas da memória / contigo acabo agora de nascer». São águas, estas de Eugénio, que têm sempre um valor primordial, amniótico, e são ao mesmo tempo sinal de uma transparência substancial e teleológica que é capaz de ligar extremos: «Escrevo / para subir às fontes / e voltar a nascer». Este percurso de volta ao nascimento fê-lo, Eugénio de Andrade, no corpo vivo da língua com o intuito de restituir a essa matéria quase milenar, que herdara, uma pureza que a pudesse honrar: «é a minha única herança a palavra», escreveu. Com efeito, deixou-nos Eugénio o exemplo de um trabalho, de um ofício, através do qual quem recebeu a língua no «falar materno», e também quem, vindo de fora a aprendeu, encontra uma depuração que faz com que a língua dispa a patine do quotidiano, do habitual, e se mostre numa evidência absoluta, tangível, concreta, cuja claridade ofusca e chega a ocultar a profundidade do abismo sobre o qual paira, como fazem as águas do mar quando sobre elas incidem «le trombe d’oro della solarità», nas palavras de Eugenio Montale. Foi Vicente Aleixandre quem uma vez disse a Eugénio de Andrade: «tu conheces tão bem o mar porque conheces muito bem a alma». Na poesia de Eugénio de Andrade, solaridade e abismo coabitam, por isso, como ninguém, encarnou aquilo que considero ser o seu próprio mote: «A poesia, se não for o lugar onde o desejo ousa fitar a morte nos olhos, é a mais fútil das ocupações».
Estamos aqui para celebrar Eugénio de Andrade, para celebrar aquele que praticou a poesia como uma moral — «fidelidade do homem ao homem, na sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente» — e cuja presença no cânone literário da língua portuguesa se impõe com a evidência de um fenómeno natural e não carece do selo de nenhuma academia nem de nenhum académico. Celebrá-lo, disto tenho a certeza, é o mínimo que lhe devemos. Longa vida a Eugénio de Andrade, longa vida à sua poesia, que é também nossa.
Muito obrigado.
TÁBUA
Este livro reúne textos dispersos publicados entre 2004 e 2023, alguns deles já incluídos numa primeira recolha publicada em Roma em 2011: Con la notte di profilo. Brevi saggi su Eugénio de Andrade. Os textos originariamente escritos em italiano foram aqui traduzidos.
O texto que abre a recolha é o da evocação de Eugénio de Andrade que fiz no dia 19 de Janeiro de 2023, por ocasião do concerto que inaugurava as comemorações do centenário do nascimento de Eugénio de Andrade, na Casa da Música, no Porto.
1. «Poética da brevitas na poesia de Eugénio de Andrade» foi publicado pela primeira vez na revista Textos e Pretextos, n.º 5, Inverno de 2004.
2. «“Gosto de muros brancos, de praças quadradas”. Sobre a antologia italiana Dal mare o da altra stella» foi publicado como posfácio na antologia de poemas por mim seleccionados e traduzidos: Eugénio de Andrade, Dal mare o da altra stella, Roma, Bulzoni, 2006.
3. «Paisagem e sexualidade» é o texto da comunicação que apresentei no congresso internacional «La poesia di Eugénio de Andrade e la cultura europea», Universidade de Milão, 8 e 9 de Maio de 2006, e que tinha originariamente o título «Lettura del mondo in Eugénio de Andrade. Paesaggio e sessualità fra rarefazione e trasfigurazione», com o qual foi publicado em Con la notte di profilo.
4. «Língua e poética numa tradução da poesia de Eugénio de Andrade» foi escrito para complementar a publicação da já referida antologia e publicado pela primeira vez no meu Oltre la lettera. Tre studi di traduzione fra portoghese e italiano (Roma, 2007).
5. «Breves observações sobre o uso dos plurais em Eugénio de Andrade» teve a sua primeira publicação em Con la notte di profilo, 2011.
6. «“A outra face”. Sobre Véspera da Água» foi publicado em 2014 como prefácio do livro de Eugénio de Andrade, Véspera da Água, na mais recente colecção em que a sua obra é publicada pela editora Assírio & Alvim, de Lisboa.
7. «“Ao sol de muitos dias”. Sobre Rente ao Dizer» foi publicado em 2017 como prefácio do livro de Eugénio de Andrade, Rente ao Dizer, Lisboa, Assírio & Alvim.
8. «Carnadura concreta. Sobre a edição italiana de Ostinato Rigore» acompanhava como prefácio a tradução italiana de Ostinato Rigore, que fiz e que foi publicada pela editora Valigie Rosse, de Livorno, em 2019.
9. «“A transparência do mundo”. Sobre Prosa», originalmente apenas «A transparência do mundo», foi escrito como prefácio para o volume Prosa, que reúne todas as prosas de Eugénio de Andrade e foi publicado, pela editora Assírio & Alvim, em 2022.
10. «No labirinto transparente. Língua e sentido na poesia de Eugénio de Andrade, de As Mãos e os Frutos a Véspera da Água» foi publicado com o título «No labirinto transparente. Língua e sentido em Eugénio de Andrade» na revista Colóquio/Letras, n.º 213, Maio/Agosto 2023.
11. «Labor limae e dimensão estético-ontológica da variação textual» foi apresentado como comunicação no colóquio «Descubra as diferenças», sobre variação textual, na Biblioteca Nacional de Portugal, a 17 de Maio de 2023. É aqui publicado pela primeira vez.
12. «Na senda de Pessoa? Eugénio e Sophia» foi apresentado como comunicação no congresso internacional «Variações de Fernando Pessoa», que teve lugar na Biblioteca Nacional de Portugal, de 14 a 16 de Junho de 2023.
1. Poética da brevitas na poesia de Eugénio de Andrade [2004] ................................................ 19
2. «Gosto de muros brancos, de praças quadradas». Sobre a antologia italiana Dal mare o da altra stella [2006] .......... 35
3. Paisagem e sexualidade [2006] ........................... 47
4. Língua e poética numa tradução da poesia de Eugénio de Andrade [2007] ..................................... 63
5. Breves observações sobre o uso dos plurais em Eugénio de Andrade [2011] ..................................... 81
6. «A outra face». Sobre Véspera da Água [2014] .............. 91
7. «Ao sol de muitos dias». Sobre Rente ao Dizer [2018] ........ 103
8. Carnadura concreta. Sobre a edição italiana de Ostinato Rigore [2019] .......................................... 111
9. «A transparência do mundo». Sobre Prosa [2022] ........... 121
10. No labirinto transparente. Língua e sentido na poesia de Eugénio de Andrade, de As Mãos e os Frutos a Véspera da Água [2023] ........................................... 131
11. Labor limae e dimensão estético-ontológica da variação textual [2023] .......................................... 149
12. Na senda de Pessoa? Eugénio e Sophia [2023] .............. 157
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1.ª EDIÇÃO, ABRIL DE 2024
ISBN: 978-989-568-120-4
CAPA: DESENHO DE ANA NATIVIDADE, PLUMA , 2005
REVISÃO: LUÍS GUERRA
DEPÓSITO LEGAL: 531652/24
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