Às Vezes Ponho-me a Olhar para Uma Pedra

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Teresa Segurado Pavão e João Cutileiro

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra

fundação carmona e costa DOCUMENTA

vezes ponho-me a olhar para uma pedra

Teresa Segurado Pavão e João Cutileiro

Às

textos

Filipa Oliveira

Ana Cristina Pais

Para a Margarida
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No alto das montanhas por uma ravina profunda dentro do meu bloco maciço, fechado, sozinho — mas depois trazido para baixo e despojado, sou agora visto contra a minha vontade indigente de pedra.

João Cutileiro referia-se frequentemente a este poema ao falar do seu processo criativo. Para Michelangelo, a escultura estava dentro do bloco de mármore à espera de ser libertada pela mão do artista e, no poema, gracejava que bastava atirar a pedra por uma montanha abaixo para que o excesso fosse naturalmente retirado, mesmo contra a sua vontade. Cutileiro concluía a sua história dizendo que ele viria atrás do bloco apanhando os restos e faria a sua obra juntando esses fragmentos. Era assim que Cutileiro trabalhava, a partir do desperdício proveniente das pedreiras.

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De alguma maneira podemos ler toda a história da escultura, talvez mesmo toda a história da arte, a partir deste gesto: o de apanhar os destroços das gerações anteriores e voltar a erguê-los de outra forma, com outras perspectivas, em especial, com outras intenções e objectivos. Se o tempo é uma invenção humana, uma construção que nos ajuda a diferenciar o presente do passado, esta exposição vem mostrar que estes diferentes tempos comunicam e fluem entre si. Dobram-se, como defenderia Deleuze.

A exposição teve como início o desejo de Teresa Segurado Pavão prestar homenagem a João Cutileiro. Uma homenagem ao artista e ao amigo que tanto admirava. Teresa Segurado Pavão visitava frequentemente o atelier de Cutileiro, e da mesma forma como este se maravilhava com os restos das esculturas de Michelangelo, Segurado Pavão fascinava-se com os excedentes das obras de Cutileiro.

Os fragmentos são um elemento central na obra de Teresa Segurado Pavão, espoletam a sua imaginação, ao mesmo tempo que carregam memórias, histórias e vidas antigas. A partir de pequenos objectos — restos de esculturas, cacos de faiança e de porcelana, pedras, ossos, fios, conchas, marfins de um velho piano —, e num diálogo íntimo e profundo, a artista constrói as suas obras integrando os fragmentos através de sulcos, reentrâncias, relevos, furações. Recorre também a elementos metálicos, neste caso o ferro, aludindo às estruturas das esculturas de Cutileiro.

João Cutileiro, e depois Margarida Lagarto, juntavam caixas com «restos», desperdícios das obras do escultor que ofereceram à ceramista. Daqui resultou a série de trabalhos que é apresentada no Museu de Arte Antiga pela primeira vez em diálogo com um importante grupo de esculturas de Cutileiro. As afinidades entre a obra de ambos tornam-se evidentes, e, em particular, nesta escala do íntimo. Detêm-se nos detalhes, nos gestos realizados com o máximo de cuidado e atenção, com uma economia formal das linhas e das figuras.

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Há uma proximidade natural entre o barro e a pedra. Ambos são materiais minerais, mas em estados diferentes. Teresa Segurado Pavão escolhe trabalhar com barro branco por se aproximar a uma folha de papel imaculada à espera de ser intervencionada pelo artista. Cutileiro escolhe maioritariamente trabalhar o mármore, uma matéria-prima local mas também a pedra nobre da escultura. Segurado Pavão escolhe também finalizar as suas obras na roda do oleiro, para que a manualidade que é habitual nas suas peças seja substituída por um aspecto mais mecânico, aproximando-se da forma como Cutileiro terminava as suas esculturas. Utiliza ainda o ferro para as ligações entre a pedra e a cerâmica (agrafos, espigões, prisões), como o escultor estruturava as suas obras.

As peças de Segurado Pavão podem ser agrupadas por tipologias de formas — formas que a artista refere como as primárias da cerâmica e que evocam um uso do quotidiano que se perdeu num processo de transformação artística. Ao observá-las, somos transportados para um imaginário que se prende, por um lado, com a essência de um museu como Arte Antiga — preservar a memória, estudar, catalogar —, mas também com o de um sítio arqueológico — a emoção da descoberta, agrupar, cuidar.

Para este livro decidimos juntar às imagens das obras as belíssimas fotografias de Henrique Pavão do atelier do João Cutileiro. Um espaço parado no tempo, coberto por um manto de pó de pedra. O espaço de trabalho transforma-se também ele num sítio arqueológico, um lugar da memória, mas também um campo para descoberta futura.

Esta é uma exposição sobre fragmento, memória e escultura. Uma exposição sobre o cuidar, o preservar e o dar uma nova vida. Talvez mais do que uma simples exposição, é um projecto de afectos e de homenagens.

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A Associação Cultural Centro de Arte João Cutileiro tem por missão o desenvolvimento de actividade cultural e criativa no domínio da arte contemporânea. De entre o conjunto das suas actividades, gere e dinamiza o legado artístico do escultor João Cutileiro, promovendo a sua comunicação, através da organização e produção de exposições, da dinamização de actividades de mediação cultural e do estabelecimento e desenvolvimento de projectos de educação formal e não formal. Para este efeito colabora com outras entidades públicas e privadas, promove residências artísticas, projectos de formação e investigação artística, projectos de intercâmbio internacional, sempre numa dinâmica de apoio, dinamização e divulgação da criação artística contemporânea.

O Centro de Arte João Cutileiro, através da concretização das suas actividades, procura divulgar as diferentes dimensões que a obra de João Cutileiro integra, destacando sobretudo a renovação artística trazida por Cutileiro à escultura portuguesa, que influenciaria, de forma definitiva, a percepção e

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o trabalho de escultores de gerações posteriores, como José Pedro Croft, Rui Sanches, Rui Chafes, Manuel Rosa, Susana Piteira ou Alexandra Ferreira, entre muitos outros, cabendo-lhe um papel essencial no contexto das transformações que se operaram na escultura em Portugal ao longo do século XX e, por sua influência ou estímulo, na transição para o século XXI.

Consciente da importância do seu trabalho para a História da Arte e da Escultura portuguesas, generoso e com sentido de futuro, João Cutileiro deixou-nos um património invejável que procuramos merecer e que continuará, certamente, a potenciar futuro e a inspirar gerações.

O trabalho de Teresa Pavão que aqui se apresenta parte da memória material da escultura de João Cutileiro, traduzida numa série de «sobras» de escultura que recebeu do artista, donde emanam as novas formas impostas à cerâmica e resultam obras de grande harmonia e delicadeza. Para consubstanciar o diálogo entre os universos dos dois criadores, Filipa Oliveira seleccionou um conjunto de trabalhos de João Cutileiro que fazem o pleno ao integrar, complementarmente, os espaços da colecção de cerâmica no Museu Nacional de Arte Antiga, a quem agradecemos a parceria de produção e o extraordinário acolhimento deste projecto.

À Fundação Carmona e Costa um agradecimento particular pelo apoio à edição do catálogo.

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Ana Cristina Pais Centro de Arte João Cutileiro
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pp. 57-59: esculturas de João Cutileiro no seu atelier (montagem fotográfica)

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O ATELIER DE JOÃO CUTILEIRO

Henrique Pavão

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A artista agradece a Ana Cristina Pais, Ana Sousa, Anísio Franco, Dinorah Lucas, Filipa Oliveira, Henrique Pavão, Joana Capucho, Joaquim Caetano, Jorge Conceição, José Cassinda, José Pedro Croft, Manuel Rosa, Margarida Lagarto, Maria Miguel Lucas, Pedro Reis Gomes, Rafael Alfenim, Ramiro A. Gonçalves, Rui Sanches.

Com um agradecimento especial a Maria da Graça Carmona e Costa e a Tiago Praça pelo seu apoio incondicional.

Vive e trabalha em Lisboa, onde nasceu em 1957. Fez o curso da Escola António Arroio e o curso de Cerâmica do IADE. Frequentou os departamentos de Desenho, Pintura e Joalharia do Ar.Co e o atelier de tapeçaria de Gisela Santi. Criou a tp (loja de autor) em Lisboa (2004-2018).

Expôs o seu trabalho recentemente no Museu Nacional do Azulejo (Lisboa), Convento dos Capuchos (Almada), Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves (Lisboa), Appleton Square (Lisboa), MUDE – Museu do Design e da Moda (Lisboa), Museu de Artes Decorativas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva (Lisboa), entre outros. Encontra-se representada em colecções privadas e institucionais, nacionais e internacionais das quais se destacam: Fundação Carmona e Costa, Museu Nacional do Azulejo, MUDE – Museu do Design e da Moda e Museu Nacional do Traje.

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Teresa Segurado Pavão

João Cutileiro

Nasceu a 26 de Junho de 1937, em Lisboa, e aí faleceu em 5 de Janeiro de 2021. Vivia e trabalhava em Évora desde 1985. Frequentou os ateliers de António Pedro, Jorge Barradas e António Duarte de 1946 a 1950, tendo feito a sua primeira exposição individual (Tentativas Plásticas) em 1951, com 14 anos, em Reguengos de Monsaraz, onde apresentou esculturas, pinturas, aguarelas e cerâmicas.

Em 1953 ingressou na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, onde esteve até 1955, e expôs trabalhos seus no VII e no VIII Salão Geral de Artes Plásticas da Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa. No final desse ano, foi para Londres, onde se fixou e frequentou, entre 1955 e 1959, a Slade School of Art. Aí, foi aluno de Reg Butler, tendo recebido três prémios no final do curso: composição, figura e cabeça. Nessa época trabalhou durante seis meses como assistente de Reg Butler e expôs na I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa (1957), e duas vezes na galeria Young Contemporaries, AIA, em Londres (em 1957 e 1959).

Datam de 1964 as primeiras figuras articuladas, e de 1966 o início do uso de ferramentas eléctricas, para o trabalho da pedra, utilizando essencialmente o mármore, de que fazia surgir, além das figuras femininas, as paisagens, as caixas e as árvores. Ao longo da década de 1960, Cutileiro fez diversas exposições em Lisboa e uma no Porto.

Em 1970 regressou a Portugal e instalou-se em Lagos, criando aí uma das suas obras de referência, D. Sebastião, elemento central construído para uma praça naquela cidade, que constituiria, nas palavras de José-Augusto França, «a ruptura escandalosa» com a tradição escultórica que se vivia nessa época em Portugal, e abriria definitivamente o caminho à mudança que as artes plásticas vinham anunciando.

No ano seguinte, conquistou uma menção honrosa no Prémio Soquil e, cinco anos mais tarde, as suas esculturas e mosaicos foram expostos na Unikat-Galerie, em Wuppertal (na Alemanha), seguindo-se exposições na Royal Academy of Arts, em Londres e no Museu de Lagos (1978), na XV Bienal Internacional de São Paulo, Brasil (1979) e em Évora (1979 e 1981), entre outras. Em 1980, a sua obra voltaria à Alemanha (Munique e Wuppertal), tendo exposto também nos Estados Unidos, no II Congresso da International Association of Sculptors realizado em Washington, entre muitas outras exposições,

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colectivas e individuais, que o consagraram, nas décadas seguintes, como grande criador em Portugal e além-fronteiras.

Em 2018, no Centro Internacional de Arte José de Guimarães, a exposição intitulada Constelação Cutileiro ensaiaria, finalmente, conforme consta do catálogo então publicado, «uma espécie de cartografia celeste da geometria das relações, afectos e interacções de que Cutileiro, espécie de astro solar, foi o ponto referencial e o campo magnético de uma conjugação energética» que viria a transformar radicalmente a escultura portuguesa do século XX, aportando contributos essenciais para a sua definição no século XXI.

Em Évora foi o motor, com o Ar.Co, da organização do I Simpósio Internacional de Escultura em Pedra, em 1981, que constituiu um marco fundamental no espectro da produção escultórica em Portugal no século XX, reunindo nesta cidade, onde haveria de fixar-se definitivamente em 1985, um grupo excepcional de escultores estrangeiros, nomeadamente Sergi Aguilar (Espanha), Andrea Cascella (Itália), Minoru Niizuma (japonês naturalizado norte-americano), Syoho Kitagawa (Japão) e Pierre Szekely (húngaro residente em França), e um grupo de jovens escultores portugueses, Rui Anahory, Brígida Arez, José Pedro Croft, Amaral da Cunha, Pedro Fazenda, Luísa Periennes, Pedro Ramos, Manuel Rosa e António Campos Rosado. Muitos destes farão parte da «constelação Cutileiro» a que já aludimos — artistas que, pela influência directa, pela cumplicidade criativa, pelo estímulo ou pela convivialidade, constituem parte da herança cultural e artística de João Cutileiro.

João Cutileiro foi condecorado com a Ordem de Sant’Iago da Espada, Grau de Oficial, a 3 de Agosto de 1983. Receberia ainda doutoramentos Honoris Causa pela Universidade de Évora e pela Universidade Nova de Lisboa, este último concedido em 2017.

Consciente do seu papel, e generoso na convicção de que um seu legado poderia contribuir para o desenvolvimento cultural do seu país e para estímulo e oportunidade de trabalho de outros, particularmente de novas gerações de escultores, entregou ao Estado português a sua casa de Évora, que compreende o seu atelier, todo o seu arquivo pessoal e uma importante selecção de obras representativas do seu percurso artístico.

João Cutileiro é, indiscutivelmente, um dos mais singulares artistas portugueses do século XX. Excessivo, festivo, generoso, o seu trabalho marcou decisivamente a paisagem artística e cultural em Portugal a partir do final dos anos 1950 e início dos anos 1960.

Em reconhecimento do inestimável trabalho de uma vida dedicada à arte, à criação artística e à divulgação e fomento da escultura, difundindo amplamente, em Portugal e no estrangeiro, a Cultura portuguesa, o Governo português concedeu-lhe, em 2019, a Medalha de Mérito Cultural.

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Este livro foi publicado por ocasião da exposição

«Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra» – Teresa Segurado Pavão e João Cutileiro , com curadoria de Filipa Oliveira, realizada no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, de 5 de Janeiro a 26 de Março de 2023.

Trabalhos em ferro: Pedro Reis Gomes

Olaria: Tiago Praça

© Sistema Solar Crl (chancela Documenta), 2023

Rua Passos Manuel 67 B, 1150-258 Lisboa

imagens © Herdeiros de João Cutileiro, Teresa Segurado Pavão, Henrique Pavão textos © os Autores

1.ª edição, Março de 2023

ISBN 978-989-568-087-0

Fotografias: Tiago Ferreira Pinto e Paulo Castanheira (assistente)

Design gráfico: Manuel Rosa

Revisão: Helena Roldão

Depósito lega l : 512774/23

Pré-impressão, impressão e acabamento: Gráfica Maiadouro SA

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