PARTIDA DO FIM END DEPARTURE
Ana Anacleto
texto | text
Eva Mendes Diogo Bolota conversa | conversation
Diogo Bolota PARTIDA DO FIM
Este livro foi publicado por ocasião da exposição Partida do Fim , de Diogo Bolota, com curadoria de Ana Anacleto, realizada na Giefarte, de 14 de Abril a 9 de Junho de 2023.
This book was published on the occasion of the exhibition Partida do Fim , by Diogo Bolota, curated by Ana Anacleto, held at Giefarte, from April 14, to June 9, 2023.
O jogador e o seu (im)permanente sistema de recompensas
Ana Anacleto
Numa tentativa de analisar os processos inerentes à constituição da razão enquanto processo cognitivo e de edificação de uma filosofia da linguagem, Ludwig Wittgenstein — na obra Philosophische Untersuchungen (publicada postumamente) — estabelece uma relação entre a linguagem e a prática lúdica do jogo. Defende que a linguagem não é estanque. Que um conceito não encerra em si um sentido unidimensional, e que a sua aplicação prática (e as consequentes variações de contexto a que é sujeito) lhe conferem sentido, transformando-o numa entidade elástica e permeável. Utiliza a expressão «jogo de linguagem» (Sprachspiel) para definir esse território desdobrado e complexo que a linguagem constrói. E, com ele, defende a impossibilidade de separação entre conceito e contexto, e sublinha a relação permanentemente tensa entre linguagem e realidade: um conceito refere-se a um determinado dado real, mas a sua aplicação contextual pode afastá-lo largamente desse dado real criando uma alteração, uma deslocação em termos de produção de sentido, situando-o numa outra dimensão de real (às vezes, mesmo antagónica ou divergente da original).
O contexto de uso de uma determinada palavra, conceito ou frase é assim, de acordo com Wittgenstein, determinante para a promoção ou decisão da utilização desta num determinado momento. A avaliação das «regras do jogo», do sistema operativo de valores inerente a cada situação, determina (segundo o autor) a forma como cada sujeito decide usar determinado conceito a cada momento, por forma a poder provocar no outro (aquele que será o alvo da sua comunicação) uma determinada produção de entendimento, de leitura, de compreensão.
Estamos então perante a constatação de que não existem conceitos absolutos, nem leituras absolutas, e para que seja produzida comunicação (entendimento e compreensão dos códigos de linguagem) a cada momento é necessário estarmos atentos e conscientes do contexto específico de circunstâncias que lhes dá lugar. Para Wittgenstein uma palavra não é definida por referência ao objecto que designa, nem pelas associações mentais que em torno dela possam ser produzidas, mas antes pela forma como é empregada a cada momento, numa relação directa com as restantes palavras numa frase e desta com o contexto do todo do discurso produzido. A habilidade ou inabilidade na utilização de um conceito determinará também a extensão da sua possibilidade de produção de sentido, ou seja, no caso da linguagem, o domínio das «regras do jogo» também é fundamental para o sucesso da sua performance.
Inúmeros autores (desde a Antiguidade Clássica) têm vindo a apontar a importância do jogo — entendido enquanto mecanismo social — para o estabelecimento de diversos aspectos formativos de cariz ético, procurando espelhar na vida um sistema de valores que é intrínseco à edificação da própria ideia de jogo. Há, no jogo, uma ideia de conflito artificial, ficcionado que se pressupõe poder ser resolvido através do cumprimento das regras. E a tentativa de decalque deste modelo de resolução para o território do real aproxima muitas vezes as estratégias sociopolíticas (tanto colectivas quanto individuais) do território simultaneamente tenso e lúdico em que o sujeito se vê colocado aquando da assumpção da sua condição de jogador.
Está amplamente estudada a importância que a dimensão lúdica tem na constituição das sociedades e no equilíbrio social (desde os processos de
aprendizagem inicial à constituição dos sistemas de regras e objectivos). Somos uma espécie que joga como nenhuma outra, e é grandemente devido a esta relação biunívoca, entre o jogo (enquanto território ficcional) e o real, que desenvolvemos dinâmicas de competição, mas também de colaboração e de entendimento em torno das estratégias grupais e da importância da concepção táctica em função de cada contexto específico.
Ora, o território da criação — e o da prática artística em particular — compreende necessariamente um conjunto de estratégias que se aproximam desta concepção do jogo. Ao estabelecer permanentemente propostas de relação entre entidades distintas (sejam elas objectos, formas, cores, conceitos, espaços ou mesmo a ausência de todos estes), e ao implicar permanentemente um outro (espectador/jogador) na partilha deste território, o artista assume o papel de um jogador (que cumpre e subverte sistematicamente o leque de regras implicadas na constituição do processo).
Serve-nos este preâmbulo para nos aproximarmos cuidadosamente da proposta expositiva que Diogo Bolota desenvolveu e que agora se apresenta no espaço da Giefarte: Partida do Fim, e que resulta da relação simultaneamente dialógica e tensa entre um conjunto de obras, tipologicamente distintas, especialmente concebidas para este contexto.
Assumindo uma continuidade processual — que tem vindo a ser revelada nos contextos expositivos que tem integrado —, um manifesto interesse pela linguagem, pelos processos interpretativos, pela circularidade e pela dinâmica do jogo enquanto metáfora da vida e da própria condição humana, o artista propõe-nos a criação de um ambiente imersivo, detalhadamente pensado para a edificação de uma espécie de armadilha interpretativa. A presença e cuidada distribuição das obras no espaço, a sua envolvente, a escala e os seus aspectos materiais e formais ajudam a construir um universo de combinatória e estratégia que em muito favorece a instauração de um lugar de questionamento e de especulação.
Há uma secura, uma espécie de clareza formal seca que atravessa toda a exposição e que — como é aliás característico no seu trabalho — constitui uma extraordinária matriz para a concentração de uma temperatura psicoló-
gica tensa. Um estado de suspensão psicológica, que é criado pela presença das várias imagens de bolas de bilhar que parecem flutuar sobre fundos negros profundos (e sabemos o quanto o bilhar é um jogo que concilia aspectos de perícia e execução, com estratégia e azar, e o quanto o campo especulativo é, por inerência, o seu território privilegiado de actuação).
Encontramo-nos no território do jogo (desportivo ou recreativo, justo ou manipulado, vivido ou performatizado) onde a relação entre as regras e o livre-arbítrio se estabelece em permanente tensão, e onde a manifestação dos estados emocionais e psicológicos promove uma inevitável aproximação à vida.
O espectador vê-se mergulhado no jogo. A sua presença na sala sublinha a condição dúplice proposta por Diogo Bolota: poderemos ser simultaneamente jogadores (que cumprem as regras e controlam o jogo) e peças do jogo (que são alvo das acções do verdadeiro jogador: o artista)?
Parece-nos que o trabalho de Diogo Bolota vive nesta permanente tensão, criada a partir de um conjunto de estratégias conceptuais (ambiguidades, repetições, oposições, desdobramentos, verdades, mentiras, desejos e ficções) que confrontam permanentemente o espectador com a sua própria condição (enquanto espectador mas, sobretudo, enquanto entidade especulativa capaz de produzir sentido a partir de um determinado contexto de apresentação).
Neste sentido, o título Partida do Fim assume, desde logo, precisamente o lugar que Wittgenstein conferiu aos «jogos de linguagem». A «partida» é, por definição, o lugar do início, do princípio, e congrega uma ideia clara de tempo e espaço — é simultaneamente o momento em que tudo começa, precisamente no lugar onde tudo começa. A inversão na proposta semântica de Diogo Bolota aproxima e comprime o tempo e o espaço, de forma a assinalar a exposição como um instante. Esse instante em que o princípio e o fim estão aceleradamente próximos, podendo constituir-se como uma espécie de portal de passagem para o que poderá estar para lá desse «fim».
O isolamento da bola branca, que assinala normalmente o fim do jogo — e tradicionalmente a assumpção de um vencedor e de um vencido — parece marcar definitivamente uma circularidade: o fim dá lugar a um novo início
que dará, inevitavelmente, lugar a um novo fim. A vitória dará lugar à derrota que permitirá novamente uma vitória. E é precisamente apoiado neste sistema especulativo de recompensas que o jogador se permite continuar a jogar.
No chão da sala o artista introduz um elemento disruptivo (que parece não fazer parte das regras deste jogo): uma pintura que se nos apresenta como bandeira, e que cumpre o desígnio de introduzir-se no todo como uma armadilha.
Uma pintura afirmativa, codificada, que se faz timidamente bandeira, como que a dizer-nos que por detrás de todo o pensamento de Diogo Bolota pode vislumbrar-se agora esse lugar conceptual da pintura. Apresenta-se-nos como uma surpresa, como uma «partida». Mudamos o contexto (como sugere Wittgenstein) e mudamos o sentido: uma «partida» pode afinal ser também isso mesmo: uma armadilha.
Março de 2023
The player and his (im)permanent reward system
Ana Anacleto
While attempting to analyse the procedures underlying the establishment of reason as both a cognitive process and a means to construct a philosophy of language, Ludwig Wittgenstein posited, in his posthumously published Philosophische Untersuchungen [Philosophical Investigations], a connection between language and the ludic activity of the game. According to him, language is not hermetic. A concept does not contain a unidimensional meaning; it is its practical application — and the contextual variations that ensue from it — that gives it meaning, turning it into an elastic, permeable entity. He used the term “language-game” ( Sprachspiel ) to de scribe the unfolding, complex territory language constructs, as well as to advocate the impossibility of separating a concept from its contexts, highlighting the permanently tense relationship between language and reality: a concept references a particular element from reality, but its contextual application may cause it to deviate widely from that element, generating a change, a dislocation in terms of production of meaning that takes it to a different dimension of reality, which may even sometimes greatly diverge from its original one.
The context of use of a particular word, concept or sentence is thus, according to Wittgenstein, of crucial importance to determine its use at a given moment. The “rules of the game”, i.e., the operative system of values underlying each different situation, is what determines — again, according to Wittgenstein — how each individual decides which particular concept to use at each given moment, in such a way as to stimulate in the other (the receiver of their communication) a certain type of understanding, reading or comprehension.
We find ourselves, then, confronted with the realisation that there are neither absolute concepts nor absolute readings, and that in order for communication (the understanding and comprehension of language codes) to occur at any given moment we must be consciously aware of the specific context of circumstances that generates them. In Wittgenstein’s mind, a word is not defined by the object it indicates, nor by the mental associations that may develop around it, but rather by how it is employed in each succeeding moment, in direct connection with the other words in a sentence, which in turn relates to the context of the whole discourse. The level of adeptness or ineptitude in the use of a given concept will also dictate the possibility scope of its production of meaning; in other words, as far as language is concerned, a grasp of the “rules of the game” is also crucial to its performative success.
Countless authors (as far back as classical antiquity) have stressed the importance of the game — as a social mechanism — as a means to convey a number of ethical elements, to reflect on everyday life a value system that is intrinsic to the construction of the very concept of game. The game contains an idea of artificial, fictionalised conflict, which, it is assumed, can be solved by following the rules. That attempt at transferring this solution model to the field of reality often brings (collective and individual) socio-political strategies close to the simultaneously tense and playful territory in which individuals find themselves when they take on the role of players.
The centrality of playing in society-building and social balance (ranging from early learning processes to the development of systems of rules and
aims) has been the subject of abundant study. We are the most playing-intensive of species, and this bi-univocal relationship between the game (as a fictional territory) and reality is what largely allows us to develop a number of dynamics that combine competition with collaboration and comprehension in terms of group strategies and of the importance of tactical thought regarding each specific context.
Now, the territory of creation — especially where artistic practice is concerned — necessarily comprises a set of strategies that are akin to this concept of the game. By permanently defining relational possibilities between distinct entities (be they objects, shapes, colours, concepts, spaces or even the absence of all of them) while permanently involving an other (viewer/player) in the sharing of that territory, the artist takes on the role of a player, who systematically fulfils and subverts the various rules involved in the construction of the process.
This preamble offers us a means to approach the exhibitive project which Diogo Bolota has developed and is now displayed at Giefarte: Partida do Fim1. It emerges from the simultaneously dialogic and tense relationship between a set of typologically distinct works that were conceived for this specific context.
Within a frame of processual continuity — which has been manifesting over time in various exhibitive contexts — and evident interest in the language, interpretative processes, circularity and dynamics of the game as a metaphor of life and the human condition, the artist offers us his creation of an immersive environment, carefully planned to generate a sort of imaginative trap. The presence of the works and their careful distribution across the space, their surroundings, scale and material and formal features all blend to create a combinatory, strategic universe that is greatly favourable to the instauration of a place for questioning and speculation.
A dryness, a sort of dry formal clarity, runs through all the exhibition, generating — as it is indeed emblematic of his work — an extraordinary
1 The Portuguese word “partida” has a variety of meanings, several of which are used in this text and untranslatable into English: game, beginning, start, practical joke (translator’s note).
focal point for a tense psychological temperature. A state of psychological suspension that is created by the presence of several pictures of billiard balls, which appear to float over deep black backgrounds (as we know, billiards is a game that combines skill and performance with strategy and chance; thus, the speculative realm is inherently its favourite field of play).
We find ourselves in the territory of the game (competitive or recreational, fair or rigged, lived or performed); there, the relationship between the rules and free will is in a constant state of tension and the expression of emotional and psychological moods fosters an inevitable connection to life.
The viewer is immersed into the game. Our presence in the room highlights the double condition proposed by Diogo Bolota: can we be simultaneously players (who follow the rules and control the game) and pawns (the subjects of the actions of the actual player: the artist)?
It seems to us that Diogo Bolota’s work lives in a state of permanent tension, which is generated by a set of conceptual strategies — ambiguities, repetitions, unfoldings, truths, lies, desires and fictions — that constantly confront the viewer with their own condition (as a viewer, but mostly as a speculative entity that is able to generate meaning from a given presentation context).
In this respect, the exhibition’s title, Partida do Fim, takes on at once the exact position Wittgenstein attributed to the “language-games”. “Partida” is, by definition, the place of the start, of the beginning; it congregates a clear idea of time and space, being simultaneously the moment when everything begins and the exact place where everything begins. The semantic inversion in Diogo Bolota’s title compresses time and space together, so as to present the exhibition as an instant. That instant in which beginning and end are acceleratedly close, enabling them to establish themselves as a sort of gateway to what may lie beyond that “end” [Port. fim].
The isolated white ball, normally a sign of the endgame — with its traditional assumption of a winner and a loser — appears to clearly indicate a circularity: the end gives way to a new beginning, which in turn will inevitably lead to a new end. Victory will give way to defeat, which will then
allow a new victory. It is precisely that theoretical reward system that allows the player to keep playing.
On the room’s floor, the artist has placed a disruptive element (which does not seem to fit the rules of this game): a painting that presents itself to us as a flag, with the intent of acting as a trap within the exhibition.
An affirmative, coded painting, that coyly comes across as a flag, as if telling us that behind all of Diogo Bolota’s thought the conceptual place of painting can now be glimpsed. It presents itself to us as a surprise, a “partida”. When we change the context (as Wittgenstein suggests), we change the meaning: a “partida” can, after all, be also a trap.
March 2023
fiz da tua voz a minha bandeira
fez do seu olhar a sua bandeira
faz da tua vontade a bandeira de todos
fez do seu ego a sua bandeira
fiz da bondade a minha bandeira
faz dos teus sonhos a tua bandeira
fiz da paz uma bandeira
fez acreditar na sua própria bandeira
não fiz da pintura a minha bandeira
faz um taco como haste de uma bandeira
faço da bandeira a minha pintura
bola branca
bola-de-Berlim
bola colorida
bola embolsada
bola preta
bola de tabela
carambola
bola sacada
bola plana
bola limpa
bola lisa
bola listada
bola pijama
bola cheia
bola vazia
última bola
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LISTA DE OBRAS LIST OF WORKS
- Início, 2023, Ninho de melro e bola de bilhar, 15 × 20 × 18 cm, Cortesia do artista e Gabinete Giefarte
- Vista geral da exposição Partida do Fim
Faço da bandeira a minha Pintura, 2023, Madeira de mogno, ponteira e óleo sobre tela, Dimensões variáveis, Cortesia do artista e Gabinete Giefarte
Faço da bandeira a minha Pintura e Fim, 2023, Madeira de mogno, ponteira e óleo sobre tela e Caixa de luz com impressão Duratrans, Dimensões variáveis e 63 × 63 × 13 cm, Cortesia do artista e Gabinete Giefarte
Fim, 2023, Caixa de luz com impressão Duratrans, 63 × 63 × 13 cm, Cortesia do artista e Gabinete Giefarte
Sem título #3, 2023, Impressão a jacto de tinta sobre papel fotográfico montado em Dibond, 240 × 150 cm, Cortesia do artista e Gabinete Giefarte
Sem título #2, 2023, Impressão a jacto de tinta sobre papel fotográfico montado em Dibond, 240 × 150 cm, Cortesia do artista e Gabinete Giefarte
Faço da bandeira a minha Pintura (pormenor), 2023, Madeira de mogno, ponteira e óleo sobre tela, Dimensões variáveis, Cortesia do artista e Gabinete Giefarte
Sem título #3, 2023, Impressão a jacto de tinta sobre papel fotográfico montado em Dibond, 240 × 150 cm, Cortesia do artista e Gabinete Giefarte
- Vista geral da exposição Partida do Fim
- Sem título #1, #2, #3, #4, 2023, Impressão a jacto de tinta sobre papel fotográfico montado em Dibond, 240 × 150 cm, Cortesia do artista e Gabinete Giefarte
- Vista geral da exposição Partida do Fim
- Sabotagem (1.º momento), 2015, Parafina sobre madeira e cobre, 180 × 420 × 60 cm, A Ilha, Maus Hábitos, Porto, Colecção do artista
- Sabotagem (2.º momento), 2015, Parafina sobre madeira e cobre, 180 × 420 × 60 cm, A Ilha, Maus Hábitos, Porto, Colecção do artista
- No-Reply Delivery System, 2021, Rede de ténis, colunas, suportes e tripés, som 1’30’’, Dimensões variáveis, Fundação Leal Rios, Cortesia do artista e Fundação Leal Rios
- Só consigo dar um chuto. As redes estão rotas, 2018, Giz, pastel seco e tinta de ardósia sobre papel, 50 × 70 cm, Cortesia do artista
- Amor Obstáculo, 2018, Balizas e rede, Dimensões variáveis, Espaço Moradia, Lisboa
Flyer introdutório com borracha da Pelikan
- Pelikan, 2016, Silicone, Dimensões variáveis, Colecção Figueiredo Ribeiro
- Falsa Partida, 2020, Vídeo HD com som em loop 10’, Dimensões variáveis, Colecção do artista
- S/ Ponto de Fuga, 2015, Acrílico translúcido e bronze aberto, Dimensões variáveis, Galeria A Cunha
Coat of Arms, 2014, Papier machê e barrotes em madeira de pinho, Dimensões variáveis, Espaço Avenida 211, T0
Em memória de Hermínio Simões, pelas tardes com a matemática
Conversa
Eva Mendes — Diogo Bolota
Eva: Acho que um assunto interessante para desenvolvermos, considerando a relação que a maioria dos teus projectos têm com a metáfora do jogo, é a questão do protagonista.
Diogo: … do jogador.
Exacto. Em 2015, por exemplo, apresentavas Sabotagem na Passos Manuel (Porto), uma obra que, aliás, está presente neste livro. Além da escultura, fizeste também uma performance, o que me leva a pensar que existe uma relação muito directa entre ti e o espectador e, portanto, que neste contexto te coloca mais a ti, enquanto artista, no papel de jogador desta situação.
Sim, embora eu faça a performance com outra pessoa por ser impossível fazê-la sozinho.
E em que consistia exactamente a performance?
A performance era desmontar uma escultura e transformá-la numa segunda com o mesmo número de peças.
Que era uma espécie de grande castelo de cartas de jogar.
Sim, um castelo de cartas que era transformado numa tábula rasa — o playground — em que as tiras de cobre atravessavam as cartas e sustentavam-nas, passando essas a ser módulos que intervinham no chão. Nesse sentido, é um trabalho com uma repercussão de componente teórica subjacente a todos os trabalhos no futuro. Ainda mais, tendo sido a minha primeira exposição individual.
Também esta ideia escultórica de passar algo do tridimensional para o bidimensional introduziu o meu interesse em relacionar-me com a própria disciplina da pintura.
Era precisamente essa relação que eu gostava de discutir contigo, esse limbo incerto que navegas entre as duas práticas.
A partir do momento em que tu estudas numa faculdade tão categórica como as Belas-Artes, e que te pedem para seres artista aos dezoito anos — seja pintor, seja escultor, seja o que for —, torna-se tudo muito complexo. Não é como se eu quisesse simplesmente arrasar essa categorização, mas havia uma procura de uma espécie de definição dos limites do próprio trabalho.
Queres dizer formalmente?
Também. Eu parti de uma premissa que é a escultura. Ou parto eventualmente da premissa da disciplina da escultura ou da pintura — uma disciplina — e ponho em causa, por via da performance, a noção do «circular à volta» dessa escultura.
Falas relativamente a Sabotagem.
Sim, porque esse espaço era interdito — o da garagem da Passos Manuel —, só podiam entrar os performers e, no fim, o espectador que encontraria a nova escultura. Ou seja, já havia uma coisa de — claro, ostentação da obra de arte, quase num plinto —, mas também de inacesso à obra. Então, e ainda sabota-
gem, era quase uma espécie de totem ou de leitmotiv, ou até mesmo um manifesto posto em causa dentro dessa categorização das disciplinas.
Isso é muito elucidativo, porque na verdade nunca tínhamos falado sobre este momento no teu trabalho e creio ser um desbloqueio para a leitura das tuas individuais que se seguiram. Nessa ocasião, por exemplo, o espectador via a performance mas não estava no mesmo espaço físico. É isso?
Sim, estávamos separados por uma vitrina de vidro, uma ilha envidraçada.
Não existiu um jogo de ocultação e revelação, então. Eu nunca escondo nada! Gosto apenas das entrelinhas. Embora houvesse a «pele» do vidro a separar-nos. Não omito nada nos meus trabalhos porque muito do que eu faço segue a premissa de que todas as vistas são potenciais, como se estivessem a navegar no vazio. Mesmo as esculturas de Abrantes (Defeito Desfeito, 2015) davam para circular e isso para mim é o papel óbvio da escultura.
Há três factores dentro de uma escultura: a forma, a cor e a textura. Pelo menos estas três são as componentes materiais da própria escultura. Além disso, a dimensão da própria escultura pode querer dizer três coisas:
Se uma escultura é menor que tu — se tens de olhar sobre a escultura — então tu tens domínio sobre ela;
Se a escultura está ao mesmo nível do teu olhar, então estás numa relação directa com ela — de aproximação e intimidade;
Se a escultura é maior que tu, então tem poder sobre ti.
É claro que podemos passar isto para outros meios, mas pelo menos é assim que eu encaro as coisas, como aprendi a fazê-lo.
Tens trabalhos que são muito mais da ordem da escala superior à tua, de involvência e domínio. Mas depois também tens objectos mais singelos, como as esculturas da The Air-Conditioned Nightmare (Galeria Uma Lulik_, 2021), que partilham uma escala muito mais intimista.
Sim, e que remetem para a infância, nesse caso, porque apesar de a escala ser superior à dos animais que representam, são inferiores à dos humanos que estão em relação com elas — e com a própria carcaça exagerada que pairava no tecto da exposição.
Existe uma ideia de proximidade e distanciamento no meu trabalho. Aconteceu-me um episódio que retrata isso: na praia, subi a um degrau de uma escultura que tinha um monóculo, espreitei ao longe e centrado estava um barco no oceano. De repente uma onda veio contra mim e encharcou-me e o longe aproximou-se enquanto armadilha.
Algo que estará relacionado com a tua — nossa — percepção do mundo enquanto crianças, onde sentimos que tudo é maior do que na realidade é.
Sim, aquela sensação de voltarmos, em adultos, a um espaço habitado na infância e de repente esse espaço minguou apesar de ser o mesmo. Na própria galeria, existia essa sensação de enjaulamento, já explorado até no cinema com Lynch e Herzog.
Interessa-me muito esta ideia da micro e macroescala. É um bocado como se eu tivesse um prato e tu também, e cada um tem uma ervilha no seu prato. Eu gostava que a tua ervilha fosse igual à minha para que houvesse uma ligação — uma partilha de sentimentos —, para que tivéssemos a mesma experiência e a questionássemos juntos.
Mas todas as ervilhas são diferentes. Eu lembro-me da estranheza dessa exposição, e do quão particularmente intimista ela me pareceu no teu trabalho. Lembro-me de ficar surpreendida com o texto, também, que foi escrito por ti.
As tuas palavras acentuavam essa intimidade com o espectador e traziam uma carga poética que eu ainda não conhecia na tua obra. Agora sei que não é uma faceta que tragas cá para fora assim tão recorrentemente.
É verdade, apesar de ter sido uma situação fruto das vicissitudes da profissão. Não houve curador e então eu escrevi! Expor é estar numa certa nudez e essa vulnerabilidade é dada aos poucos.
Acredito ser uma zona com muito potencial e marcou-me muito, confesso-te. Talvez pelo contraste com a visceralidade plástica das esculturas.
Até houve pessoas a saírem de lá. Não aguentavam a carcaça. Curiosamente, ela foi um pouco como uma salvação.
Em que sentido?
Foi uma espécie de projecção de uma epifania. Houve uma revelação na minha vida, e a partir do momento em que coloquei uma carcaça no tecto — ou no céu — foi para mim como a desmaterialização absoluta de um corpo. E isso convocou uma certa performatividade à exposição. Houve um movimento, um desenho radial — a luz, a projecção, a sombra. Mas, essencialmente, faltava um punch, eu sabia-o mesmo depois de o todo da exposição estar produzido, e ela foi isso, apesar de só ter entrado muito em cima do momento da abertura, o que não é de todo normal para mim.
Ainda por cima uma presença tão radical.
Exacto. Mas sempre trabalhei um pouco assim — no limite — e isso potencia ao máximo a exploração dentro do próprio trabalho.
Era inquestionavelmente impactante esse contraste entre a clareza e a brancura das esculturas, que por sua vez tinham um ar muito etéreo, e a violência serena presente na sua dissecação. Ao mesmo tempo tínhamos essa evidência nesse corpo sem vida, nu e cru, que pairava sobre nós. Era desconcertante e profundamente sensível.
Mesmo todo o momento que atravessávamos na altura, numa incerteza pandémica, resultou em que as pessoas estivessem muito ávidas de viver com a simplicidade dos pés na terra e, de certo modo, acho que a exposição só poderia ter acontecido nessa altura, apesar de a sua ligação antecedente ser a exposição Defeito Desfeito (Abrantes, 2020).
Talvez o que diferencia uma prática da outra, porque apesar de tudo eram exposições muito diferentes, seja o lado industrial do jogo face ao lado
manual e mais pessoal da infância — que se aproximava nesta e se distanciava na outra.
É também a diferença entre trabalhar diariamente ou projectualmente no atelier. É um pouco triste no sentido em que, infelizmente, no tempo que me resta eu não possa estar todos os dias nesse lugar. Por vezes sinto que o meu trabalho poderia ganhar contornos mais plásticos e expressivos ao nível da semiótica e do conceptualismo, caso tivesse essa disponibilidade.
Retornando à tua questão mais sensível. Por exemplo, eu agora (Partida do Fim, 2023) também coloquei a bandeira como pintura, que é um objecto bastante manual e faz contraste com a planura das fotografias, até porque está amarrotado. Essa bandeira foi feita no estúdio, enquanto as outras peças foram apropriadas da realidade e transformadas. As bolas existem, mas foram manipuladas.
Acho que a questão do atelier não é necessariamente uma questão a fugir. Triste ou não triste, é uma realidade que afecta muitos artistas. E não digo apenas a questão do tempo, mas também a da própria condição da escala.
Daí apenas uma destas obras ter estado no atelier. As outras perderam a virgindade na exposição. Nesse sentido, foi uma exposição muito construída a partir de ideias. Maquetas, escalas e ideias. Deixando sempre, claro, um espaço para transformação.
Por curiosidade, o que é o teu atelier para ti neste momento?
O meu atelier é a casa que eu não tenho.
Acho que é muito importante para um artista a ideia de casa. Talvez por não se tratar da casa convencional, mas a casa só sua.
Se tu não te sentes bem na tua prática, se não te sentes em casa, então acho tudo muito difícil. Temos de tratar de nós próprios. Ao partir para qualquer projecto, se não estiveres bem contigo é muito difícil estares bem com os outros. É um pouco isso.
Por retornar ao protagonista… Já falámos dessa excepção que foi a performance e a transformação in situ operada por ti mas, num outro projecto, apresentado na Fundação Leal Rios em 2021 e de nome No-Reply Delivery System, coabitavam duas protagonistas — por sinal irmãs —, a Serena e a Venus Williams. Eu já usei três figuras públicas no meu trabalho, digamos, e nunca foi por uma questão de serem figuras públicas, mas mais pela relação que estabelecem com o mundo exterior, enquanto pessoas reais.
Sim, recordo-me também do Usain Bolt num vídeo ( Falsa Partida, 2020).
Sim, que também tem relação com a Partida do Fim. No caso da Serena e da Venus, o que acontece é que há esta ligação intrínseca de serem irmãs e de, nesta partida muito específica, a Serena ter ultrapassado a Venus, por sua vez mais velha, e essa situação nunca mais se ter invertido. Quase como se o limite do corpo da Venus cedesse a esse acontecimento para sempre. Às vezes as pessoas pensam que isso se pode relacionar um pouco com as minhas circunstâncias pessoais, mas sei que na verdade a ligação vem de outro sítio.
Confesso-te que, na minha ignorância relativamente ao mundo do desporto, lembro-me de ter pensado inicialmente que tu estarias a interpretar para o teu universo artístico uma narrativa oriunda de alguma tragédia clássica. Porque todos os elementos estavam lá, desde o conflito familiar, à dúvida existencial, ao próprio pathos.
Sem dúvida, mas não somente isso. Foi o interesse pela dinâmica em questão e pelas personagens, uma vez mais, reais.
E sentes que existe alguma relação entre esse interesse e o próprio «feminino»?
Sim, acho que estou sempre em busca do feminino.
Em que medida?
O triângulo, a Venus, o bilhar — o triângulo que organiza as bolas.
O Diogo «Gentil» está relacionado com isso?
Já no catálogo da exposição Defeito Desfeito (2020) escrevi um manifesto que derivou de uma outra peça, onde me questionei sobre o meu nome artístico. Deixa-me ler-te:
« GENTIL MANIFESTO
Um nome não é um nome,
É um adjectivo.
Uma qualidade,
Por não ser um nome
E sim um adjectivo.
Assim sou Gentil, adjectivo assim o sou.»
Mas no fim não mudaste o teu nome.
Não mudei o meu nome, mas resolvi dentro de mim o meu legado.
Nesta Partida do Fim, contudo, senti que o protagonista não eras tu. O protagonista era mesmo o espectador, que tinha claramente um papel activo em descodificar o jogo. Não havia personagens além de nós. Não havia Serenas, nem carcaças, nem tu.
Sim, tu eras uma bola. Achas que foi porque dei mais dados?
Aqui a exposição era mais misteriosa e simultaneamente mais codificada. Talvez mais abstracta, até. O taco estava a uma escala muito superior à nossa, aproximando-nos da qualidade de bolas, também, como se elas fossem o nosso espelho. E depois o ninho, o berço. Tão terno e tão macabro.
Sim, mas quase materno.
A chave do jogo.
Essa obra chama-se Início. Talvez o início da partida do fim. Partida de piada, partida de jogo, partida de «partida, largada, fugida» do jogo a partir do fim. Porque acho que o ciclo de trabalho de um artista é sempre este, não é? Tu acabas e depois começas. E ela parte mesmo disso, de um início que já não está presente, que é um luto que eu fiz e que me trouxe as naturezas- mortas das bolas de bilhar. Só foi possível acontecer porque já tinha feito esse luto. Portanto, é uma espécie de pós-luto. Nessa obra, o oito é inevitavelmente o infinito.
A impossibilidade de fugir a esse destino, de terminar e começar de novo, talvez.
O próprio ninho foi parar uma semana antes ao meu atelier. Já tinha pensado neste trabalho antes e nunca tinha encontrado um ninho, e há um dia em que o caseiro do terreno onde me encontro coloca um ninho no meu atelier. Não é preciso dizer mais nada.
Não são precisos mais sinais. Também a tua performance em Coimbra ( Elegia
Própria, 2022) já estava relacionada com esta ideia de luto e de partida.
Talvez olhes para esse ninho como um lugar simultaneamente de nascimento e de morte.
Tenho uma fotografia de uma amiga grávida ao lado do ninho. É isso. Nunca sabemos quanto tempo estaremos aqui. Sabemos apenas que a morte é certa.
Para quem fazes o teu trabalho?
Imagino sempre um jovem a olhar para as minhas coisas, e de alguma forma espero que as imagens lhe digam algo. Agora, tirando essa brincadeira, acho que não tenho um público especializado, nem quero ter — faço muita questão de procurá-lo. Gostava, acima de tudo, de transmitir a ideia de esperança às pessoas.
Talvez essa imagem do jovem se extrapole um bocadinho para a criança em cada um de nós.
Se calhar eu gostava era de ser criança para sempre! Acho que os trabalhos que tenho são também pedaços de desejos que tenho, materializados.
Crês ser uma questão nostálgica?
Sim, foi o período mais inconscientemente bem vivido que eu tive. Foi o único período em que vivi em Portugal sem sentir necessidade de fuga. É uma questão da perda da fome do absoluto, e na vida prática não se consegue abarcar tudo.
E nessa simultânea nostalgia e perda, enquanto artista, qual é o teu maior desejo — em termos poéticos e práticos?
Em termos práticos, é tornar a minha prática sustentável. É muito difícil trabalhar no vazio. Poeticamente, a minha grande referência é o meu avô materno, que se formou em Coimbra e abriu um colégio no Estoril completamente sozinho e por vontade própria. Eu acho que quero continuar essa atitude meritocrática em que não estou a pisar ninguém mas a criar oportunidades para os outros. Quero, essencialmente, que a minha prática seja um espelho — para mim e para todos — do que se passa no nosso entorno. Quero que essa transparência se mantenha, e não quero que o discurso prevaleça sobre a obra. Interessa-me essa transparência de dentro das coisas. De alguma forma, sei que é um cliché, mas quero ser diferente.
Não é fácil colocar esta pergunta, mas achas que a metáfora do jogo se encontra no teu próprio modo de trabalhar e pensar? Isto no que diz respeito às dinâmicas inerentes ao teu processo.
Sim, maioritariamente operado pela via da palavra. Seja através de mapeamentos mentais, conversas ou histórias das quais por vezes me aproprio.
Existe, portanto, essa relação subtil com o lugar da brincadeira. Dirias que é algo leve ou pesado?
Acho que é um misto, é um trágico-cómico. Há uma leveza na seriedade das coisas que faço. E isso de alguma forma é uma brincadeira. Gosto de brincar com a identidade, com o «dito por não dito», com a perversão deste meio artístico, tudo.
Não deixa de ser igualmente trágica e cómica esta consciência de que aqui existe sempre alguém que nos diz: «Tens de saber jogar o jogo».
E o meu jogo é contra esses jogos. Talvez seja esse o futuro do meu trabalho. Esse e ser livre.