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DO ANDRÓGINO
Teoria Plástica
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Joséphin Péladan
DO ANDRÓGINO
Teoria Plástica
tradução e apresentação
Aníbal Fernandes
T ÍTULO DO ORIGINAL: DE L’ANDROGYNE, THÉORIE PLASTIQUE
© SISTEMA SOLAR CRL
RUA PASSOS MANUEL 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2024
ISBN: 978-989-568-149-5
1.ª EDIÇÃO, ABRIL DE 2024
NA CAPA: MIGUEL ÂNGELO, TÚMULO DE GIULIANO DE MEDICI
REVISÃO: DIOGO FERREIRA
DEPÓSITO LEGAL: 531853/24
IMPRESSÃO E ACABAMENTO: TÓRCULO
Por volta de 1880, o mundo literário francês surpreendeu-se com um ser extravagante, vestido de uma forma que não ocultava o desejo de destoar entre as modas normalizadas da época; que exibia uma longa barba untada com óleo de cedro e cheirava intensamente a um somatório de sete perfumes (correspondendo cada um deles a um planeta). E era vulgar, em salões frequentados pela alta sociedade de Paris, mostrar-se com golas de renda de onde pendia um ramo de violetas, e com luvas de pele de veado enfeitadas a dourado.
Chamava-se Joseph-Aimé Péladan, mas surgia na literatura e no jornalismo com o seu nome ligeiramente alterado para Joséphin Péladan; gostava, no entanto, que o tratassem por Sâr Mérodack, com os mais cultos a não ignorarem que Mérodack era um nome que tinha soado na alta esfera da velha Babilónia, e Sâr significava nada menos do que «rei» na língua assíria.
Toda esta pretensão chegava-lhe, sem antecedentes conhecidos, de uma honrada família de comerciantes e lavradores das margens do Ródano; e era filho de um Péladan que se afastara da tradição familiar para ser jornalista (jornalista no muito conservador La France littéraire). Neste Joseph-Aimé, a «diferença» surgiu cedo; ainda muito jovem foi expulso do liceu por ter chamado «ateu» a um professor; e pouco depois seria expulso do seminário de Nîmes por se revelar com ideias consideradas
«sacrílegas», não admissíveis nos que andavam a ser modelados para a carreira eclesiástica.
Este natural de Lião (onde tinha nascido em 1858) teve o seu primeiro emprego num banco de Paris. A sua vastíssima cultura, que pedia ajuda a uma espantosa memória e chegava-lhe de leituras prolongadas até à exaustão, acrescentava ao espectáculo pessoal a invulgaridade de um vaidoso e erudito discurso. Oswald Wirth, que muitos anos mais tarde o estudou para escrever a biografia de Stanislas de Guaita, vê-o neste plano com algumas reticências: «Péladan, com um saber mais brilhante do que sólido, não tardou a evitar discussões que o levassem ao banco dos réus. […] Andava embriagado com o êxito do seu Vice suprême e com a curiosidade que despertava nos salões, onde se preocupava em causar sensação.»
Apesar dos cuidados em não se meter em sarilhos judiciais, a sua pena corrosiva no jornal La France causou-lhe em 1891 um sobressalto. Acusou Léon Bloy e Louise Read de terem deixado morrer o escritor Barbey d’Aurevilly sem a absolvição de um padre, pedida pelo moribundo. Isto foi considerado pelos valores do tempo uma afirmação grave, e foi por ela condenado em tribunal. Péladan já era nesses dias um rosacruciano. Em 1888 tinha fundado, com Stanislas de Guaïta, a cabalística Ordem da Rosa-Cruz. No entanto, três anos depois abandonava-a para fundar, mais solitariamente, a Ordem da Rosa-Cruz Católica e Estética do Templo de Graal. Este nome, que parecia não conter promessas de nenhuma significativa actividade cultural, fez uma grande quantidade de intelectuais acorrer à sua chamada. Houve no seu templo exposições de pintores e escultores que chegaram a sessenta. E apesar do Rosa-Cruz Católica do nome, apesar das ironizadas
extravagâncias de Péladan, este lugar dominado pelo Graal soube atrair Mallarmé, Zola, Verlaine, Gustave Moreau, entre outros, recebidos ao som de composições de Erik Satie e do prelúdio do Parsifal de Richard Wagner. (Ele considerava Wagner, com as suas óperas mitológicas, uma boa «terapêutica para desintoxicar a França do seu materialismo».)
Péladan, incomodado pelo materialismo que dominava a sociedade francesa, sentia-se com a missão de expulsar dela a fealdade. Desdobrava-se por Manifestos com um tom lírico, onde a arte era enaltecida na sua elevada dimensão, e onde fortes acusações eram feitas à vocação rasteira da Terceira República. Ele próprio, de elogio em elogio chegou a sentir-se digno desta certeza: «À custa de talentos, e talvez de génio, conquistei o direito a ter perante todos um pensamento pleno, inteiro. Durante seis mil noites amei esforçadamente a língua francesa; posso dizer tudo em francês. Sou o seu burgrave sem vassalagem.»
O seu francês de dramaturgo espalhou-se por tragédias onde se degladiavam conhecimentos de música e pintura, onde os lugares da sua preferência — a Babilónia, o Egipto, a Pérsia — chegavam com frequência à tela dos cenários. Strindberg (quem tal diria?) rendeu-se. E em 1897 encontraram-se para uma amizade duradoura e sustentada por valores teatrais que ambos partilhavam.
O Péladan dos textos críticos não dispensava a evidência de uma exaustiva documentação; a Academia Francesa reconheceu-o duas vezes, em 1909 com o prémio Charles Blanc pelo seu Textos Escolhidos de Leonardo da Vinci, em 1914 com o prémio Joest atribuído a As Nossas Igrejas Artísticas e Históricas. E o autor de romances (hoje raramente lidos porque se desviam, nos temas e no estilo, do que mais interessa ao leitor actual) respondeu na sua
época a um bem firmado gosto dos leitores e de alguns intelectuais, como nos é provado por Barbey d’Aurevilly, que em 1884 prefaciou
o seu Le Vice suprême. Numa época em que o naturalismo de Zola fazia escola, o Péladan romântico e ocultista irritava-se; Zola era um alvo frequente das suas raivas jornalísticas, entre elas esta, que lhe saiu pesada e com um tom zoológico: «Esse Porco-Zola, esse marrão que é ao mesmo tempo um burro.»
Péladan chegou aos casamentos. Em 1896 teve como primeira mulher a condessa Leroy de Barde, união de cinco anos terminada com um divórcio; e teve como segunda mulher uma Christiane Taylor, desde há muito incondicional admiradora dos seus escritos e que o acompanhou até à sua morte, em Junho de 1918, partilhando penosamente os derradeiros anos de um desconsiderado crítico de arte, onde já nada restava do extravagante exibicionista, do mago e do ocultista rosacruciano.
A passagem dos anos deu-lhe direito, com o ensaio De l’Androgyne (a sua primeira edição é de 1910), à sobrevivência literária. O tema, que lhe era caro e Mario Praz considera no seu livro La carne, la morte e il diavolo uma obsessão da literatura decadente, tinha nove anos antes surgido como centro dos seus dois romances de 1891, L’Androgyne e La Gynandre (termo inventado para designar o correspondente feminino do andrógino).
Em 1869, no ensaio «The Subjection of Women», John Stuart Mill tinha escrito: «Considero o princípio que rege as relações entre os dois sexos — a subordinação legal de um sexo ao outro — mau em si e que representa, na hora actual, um dos principais obstáculos ao progresso da humanidade.» Uma pervertida leitura desta verdade romantizou-a e fez da unidade do andrógino o símbolo que anulava num meio termo esta diferença.
Em vez de aceitar a equivalência funcional entre dois sexos explícitos, uma concepção estética e homossexualizada do corpo humano quis ver no homem efeminado e na mulher masculinizada a forma ideal para a resolução deste conflito.
Uma distorcida leitura de O Banquete de Platão e de As Metamorfoses de Ovídio servia para teorizar esta «morte programada dos sexos». Surgiram, na literatura do século XIX que se mostrou atenta a esta confusão dos sexos, posições diferentes. Se nos lembrarmos de Rachilde, perceberemos que há nuns quantos romances seus uma aproximação, uma irmandade entre a androginia masculina e feminina. Péladan, pelo contrário, afasta o andrógino da ginandra. Se o seu andrógino literário é um adolescente virgem e com qualquer coisa de feminino numa simbiose dos sexos que corresponde ao «sexo inicial, sexo definitivo, absoluto do amor, absoluto da forma, sexo que nega o sexo, sexo da eternidade» (termina ele assim o seu poema «Hino ao Andrógino», a lembrar-se da forma humana que os Eloim criaram andrógina, diz ele, apoiado numa versão do Génesis não adoptada pelas religiões cristãs), a sua ginandra só é uma usurpadora que faz uma grotesca imitação da virilidade. Mircea Eliade, em Mefistófiles e o Andrógino, diz que os heróis de Péladan têm uma sensualidade «perfeita» e um hermafroditismo «mórbido ou mesmo satânico»; que o seu andrógino não é um andrógino, mas um hermafrodita onde os dois sexos co-existem anatomicamente, uma situação orgânica cheia de possibilidades eróticas.
O andrógino deste texto, centrado na sua representação artística, não é o mesmo que a leitura dos seus romances nos faz imaginar; não é dotado das capacidades eróticas que esta observação de Eliade sugere; Péladan limita-se a tomá-lo como encarnação dos
mais belos exemplos do homem-corpo ideal; e pretende demonstrar que os pintores e os escultores recorreram sempre a ele quando quiseram representar a beleza masculina com o que ela tem de mais sublime.
O Péladan decaído e esquecido, dos seus últimos anos, em 6 de Julho de 1918 (em L’Europe nouvelle) teve de Apollinaire estas palavras para exprimirem uma verdade que ainda hoje conhecemos: «Os jornais foram unânimes a dar a notícia da morte de Joséphin Péladan, e concluíram que não lhe foi concedido o lugar que ele merecia. Mas quando fazem o autor de Le Vice suprême responsável por esta injustiça, estão a rir-se de nós… Os culpados são os senhores da imprensa, que não procuram nem encorajam o talento, limitando-se a fazê-lo aos que têm uma determinada forma do saber-fazer. Temem acima de tudo espantar os seus leitores; e os autores com ideias novas ou que fazem, pelo menos, um corte com as da multidão, são seus inimigos. Mas a injustiça é tão flagrante, que nem a eles próprios escapa. Até chegam, depois da morte da vítima, a consentir que o reconhecem. Remy de Gourmont foi chorado pelos seus carrascos e Joséphin Péladan está a ser celebrado pelos seus torcionários.»
Se alguém escrever uma história da beleza, terá forçosamente de levar em conta e pôr em destaque variedades de tempo, de raça e lugar, a concepção de raiz do espírito humano.
Há fortes razões para o universal e permanente sentimento expressar a verdade; ele manifesta, pelo menos, o génio da espécie.
O colossal empreendimento que é satisfazer as necessidades espirituais, e que os sacerdotes e os artistas levam a cabo, representa desde que as sociedades existem um supremo direito do homem à imortalidade. Estamos de acordo sobre a moral que é necessária, mas diferimos sobre a beleza que à maior parte parece inútil. O iletrado possui muitas vezes uma noção exacta da justiça; o homem é fatalmente chamado a ser juiz, a comparar-se com os outros; e o direito surge como a espontânea flor da consciência. Qualquer um que nos apareça pela frente revela-se com competência sobre a beleza moral; começa por poder realizá-la em si próprio, sem iniciação, e ela depois surge-lhe como um possível benefício. Quando ouvimos o relato de uma probidade, de uma devoção, de uma magnanimidade, somos tranquilizados a respeito da inquietante perversidade da espécie, sonhamos com um bom criado, um garantido amigo ou uma generosa protecção.
Joséphin PéladanA Beleza manifesta-se ao comum dos homens com os traços da Concupiscência. Dizemos «uma beleza» para designar uma mulher, apesar de não haver nenhuma real relação entre o belo e o sexo. Séculos de literatura e galantaria sexualizaram o espírito ocidental, e ele deitou abaixo a estátua pura dos iniciados para instalar no seu pedestal o vulgar símbolo do instinto.
Para deixar clara a opinião do maior número, basta espremermos as expressões correntes e fazer com que elas jorrem, purulência da estupidez, a ideia dos que não pensam. Os eclesiásticos abominam a nudez, como se o nu fosse por si próprio vicioso.
Na Idade Média, e mais especialmente no século XIV, deu-se uma espantosa espiritualização que tem São Francisco, o estigmatizado, como radioso iniciador; os mistérios dos confrades da Paixão reflectiram-se na obra de arte que procura exclusivamente o patético. Chorava-se muito perante as Piedades, para sonhar com a beleza do corpo; as lágrimas velavam o olhar voltado para dentro, a contemplar uma outra beleza; mas distribuir cuecas ao Juízo Final de Miguel Ângelo foi um acto pusilânime, ao mesmo tempo contrário à estética e à fé1.
Nesta época da arte pela arte e, menos do que isto, da arte pelo ofício, acha-se que os Gregos faziam o belo pelo belo; essas for-
1 Quando Miguel Ângelo pintou o Juízo Final na Capela Sistina do Vaticano, a sua obra foi considerada inadequada a uma capela cristã. Biagio da Cesena, mestre de cerimónias do papa, considerou-a «uma verdadeira desgraça, por expor figuras nuas»; era mais adequada, escreveu ele, a «banhos públicos e a tabernas». Em 1564, depois da morte do pintor, o maneirista Daniele da Volterra foi encarregado de tapar todos os seus órgãos genitais. Só em 1980, quando foi restaurada, recuperou a sua forma original. (N. do T.)
mas — que admiramos sem as compreender, como o cabouqueiro que encontra com a sua picareta uma inscrição de letras magistrais e aprecia-as, sem conseguir lê-las nem traduzi-las — essas formas não passam de corpos, como o de Prometeu modelado nos sarcófagos e nos camafeus. Atena, deusa védica da Aurora e da Inteligência, vai dar-lhes a alma.
Não há dúvida de que as Vitórias do museu da Acrópole cantam verdadeiras odes às linhas humanas, embora não haja a certeza de que elas sejam unicamente líricas.
O simbolismo durou até à Revolução Francesa; esta afirmação exigiria que volumosamente a demonstrássemos; mas concordar-se-á, pelo menos, que o Oriente blasonava, ou seja, incarnava uma ideia numa forma.
NO EGIPTO
A mais antiga figura que, neste ano 1910 de Jesus Cristo, um homem pode contemplar, é o colosso com cinquenta e três metros, esculpido na extremidade do planalto líbio em Gizé. É anterior à pirâmide de Quéops e também, segundo Duruy, anterior à criação do homem porque num manual de 1850 ele dá, com a maior das tranquilidades, ao nascimento de Adão a data de 4138 a.C. Este pormenor de uma especial comicidade assinala bem a novidade dos elementos históricos de que dispomos. E Victor Hugo, como é hábito, não diz grande coisa quando escreve:
Não foram incensórios que achataram o nariz da esfinge1. Porque o faraó Khufu encontrou-a em ruínas, e uma estela fala-nos das suas oferendas; Tutemés VI ofereceu-lhe água e fogo, e foi através dos séculos restaurada, mesmo na época de Ptolomeu, mesmo na época dos Césares.
A arte começa com um monstro: Andro-esfinge, diz o arqueólogo. Mas tem mamas! Gino-esfinge? Mas tem corpo de leão e debaixo do queixo a mísula hieroglífica da barba e do princípio masculino. Como as rainhas e as regentes a atribuíam a si próprias quando chegavam ao poder, esta figura une zodiacalmente os signos da Virgem e do Leão: uma cabeça de
1 Prólogo de «Les 7 500 000 Oui». (N. do T.)
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homem, um peito de mulher e um corpo de felino ou de gato colossal. Se reflectirmos no problema material que o artista teria de resolver — esculpir uma figura numa rocha, construir um colosso rupestre, porque a esfinge é a própria rocha do planalto acrescentada por revestimentos — compreendemos o inconveniente que essa forma tinha em relação ao destino que lhe davam. Há nisto uma complexidade de elementos que a estética não legitima; e o artista quis certamente dizer qualquer coisa mais do que a escultura permite. A Esfinge não é apenas um bom animal, um bondoso monstro. Mas será, antes de mais, um monstro? Cabeça de homem, mamas de mulher, corpo de leão, é o que vulgarmente ali se lê: pensamento, passionalidade, instintividade. A cabeça pensa, o seio suscita o desejo de onde nasce a paixão e a geração, seu fruto, e a animalidade concede-lhe a forma do homem. Poder-se-ia justificar aquele corpo leonino como uma invenção plástica; mas colocar seios por baixo da mísula, que figura a barba, implica
A Esfinge de Gizéuma concepção doutrinal e em simultâneo uma vontade decorativa. A designação Andro-esfinge é literalmente falsa: deverá dizer-se Andrógino-esfinge.
O mais antigo monumento da forma representa o andrógino. E, nesta distância sem data numérica, as ideias não estavam como hoje fragmentadas e individualizadas; a obra de arte não se destinava a amadores; apresentava um sentido por todos perceptível e um outro imperceptível, exteriormente à iniciação. Os mitos não serviam apenas de iluminuras de fantasia, elaboradas pela casta sacerdotal para divertir a multidão: eram poemas escritos «por dentro e por fora», e com um relevo muitas vezes grosseiro que correspondia rigorosamente à sua subtil concepção.
A Andrógino-esfinge representa a humanidade confiante na ressurreição que todas as auroras manifestam.
Esotericamente representa o estado inicial do homem1, idêntico ao seu estado final. Informa-o sobre o princípio da evolução e o segredo da felicidade. Este princípio consiste na complementar procura de um reflexo idêntico, e este segredo facilmente se decifra com a palavra amor que, na androginização passional, consiste heraldicamente na aproximação da barba e dos seios. A Esfinge encarna toda a teologia, com a solução das origens e das finalidades, um credo de pedra mais sintético e claro do que as redacções conciliares. Passando do exame do aspecto ao estudo da expressão, descobrimos que esta figura sorri ao contemplar o ponto
1 Noutro lado (Comment on devient fée, 1892) estudei longamente o capítulo do Génesis que representa certamente uma versão egípcia explorada sob o nome de Moisés, e o Simpósio de Platão, que fornece a forma arcaica do mesmo mito. (N. do A.)
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Ramsés II (Museu de Turim)
do céu onde o sol nasce; e sorri como o São João Baptista de Leonardo: espiritualmente. Os mais belos rostos da Hélade têm todos um véu de divina melancolia; a serenidade que os manuais lhes atribuem só existe se a relacionarmos com os esgares apaixonados das cabeças modernas. O imortal helénico é feliz, no sentido em que a doença e a morte não podem atingi-lo. Mas vê à sua volta o mal, e nunca sorri. Impassível e sem esperança, limitado na sua
imortalidade, o deus grego só é um homem em estado de perfeição; o seu olhar não orientado plana sem aspiração, só com complacência por si próprio. Não corresponderá isto ao mito cheio de adultérios e desordens, de estupros e corneações, de competições? Apolo não é amado, Hefesto é enganado, Zeus sofre com as celeumas de esposo infiel; e entre Atena e a sentimental Afrodite, as duas grandes deusas, há uma guerra eterna no tabuleiro de xadrez onde os homens servem de peças.
A Esfinge sorri ao seu ilimitado futuro; ao ser homem e mulher reconstituiu a sua unidade sexual; porque é um Deus, sabe que um dia vai reconstituir a sua unidade original, na exacta medida da involução à evolução. Um dogma anima a mais velha figura que conhecemos, um dogma que foi o fundo dos outros dogmas, estabelecendo com clareza o plano do futuro.
A síntese plástica dos sexos não é filha do génio artístico; impôs-se como fórmula sagrada ao artista, que soube magnificamente resolvê-la. A semente de onde jorra uma forma, sempre foi uma ideia; sobretudo aqui, onde era preciso combinar elementos que a natureza só oferece num disseminado e antitético estado.
O Egipto só nos deixou estatuetas dos seus deuses; a estátua é privilégio do faraó, de resto um deus consorte porque a adopção divina coexiste com o seu nascimento.
A partir da segunda dinastia o tipo real androginiza-se; a estatura fica mais fina e rapidamente cresce, tal como vemos no Ramsés II de Turim. E até ao Amósis mantém-se, ou antes, denuncia uma graça de efebo, um tipo juvenil.
Nas pinturas e nas gravuras murais (porque a marca do cinzel grava com frequência a linha sem dar a nenhuma parte saliência) o perfil só diferencia o sexo pelo contorno do seio
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Ísis e Néftis abençoam o faraó
e pelo penteado. Ísis e Néftis, que põem as mãos por cima do faraó, só se distinguem dele pelos atributos do seio. Qualquer que seja o deus, Tote, Horus ou Osíris; qualquer que seja o acto do rei, quer trate da apresentação da oferenda, de uma arremetida no seu carro, do sacrifício dos vencidos ou da carícia no queixo de uma mulher, é mantida a plástica exageradamente delicada ou esbelta. O mesmo acontece com as representações do Zodíaco ou de uma procissão. Acontece o mesmo com uma obra mais banal, constantemente aplicada através das dinastias, que não representa apenas uma rotina; representa uma visão particular do corpo humano, ou antes,
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uma concepção da sua beleza. Não podemos censurar o hieratismo de se ter dado ao faraó, no tiro ao arco, o mesmo braço fino de Ísis a elevar um símbolo; a sua cintura até parece ter marcas do espartilho; mas por outro lado os prisioneiros, os tributários mostram traços étnicos muito acentuados. Encontramos aqui a mesma concepção que há na arte cristã quando figura os anjos; o ser que actua como mandatário do mais alto não precisa de força física, faz o gesto e não o esforço; chama a força do alto e ela desce. Isto significa que o seu poder verbal dispensa-o da força física.
Tiro ao arco (fresco egípcio)![](https://assets.isu.pub/document-structure/240621171403-fbb7baf8d86e96f9e49fd8a44c8c4d7b/v1/2aacc58bb95c602053f6d09cc7f8b13c.jpeg)
São Sinfrónio de Ingres
Costuma concluir-se que o emprego da palavra andrógino pressupõe um desdenhoso julgamento do povo; é um engano.
A verdadeira aristocracia só tem uma sombra negra: a burguesia; e o povo, esse, desde que possa escolher tem gosto pelo ideal; não há como ele para sentir prazer com os dramas que só manifestam no teatro a sua moralidade e o seu heroísmo.
Gosta do travesti, a derradeira forma do andrógino que sobrevive à sagrada concepção das iniciações antigas.
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A combinação dos dois termos dá origem a um terceiro, formado a partir deles: e assim se chega à forma ridícula e precisa que a ciência propriamente dita adoptou1.
1 Péladan não diz que termo é este. Não parece, no entanto, que se trate de uma designação onde se reconheça uma simbiose destas duas palavras. (N. do T.)
Jacó e o Anjo de Delacroix![](https://assets.isu.pub/document-structure/240621171403-fbb7baf8d86e96f9e49fd8a44c8c4d7b/v1/83c2ae25f3e42be6dd8ae22bc0d3c918.jpeg)
O ideal do corpo humano resulta da fusão da donzela e do donzel no seu período florescente; a estética chega assim à sua precisa e luminosa fórmula.
E tem o andrógino como seu verdadeiro Arquétipo.
Heliodoro tentando roubar o tesouro de Jerusalém de Gustave DoréLIVROS SISTEMA SOLAR
Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo
O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain
No sentido da noite, Jean Genet
Com os loucos, Albert Londres
Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James
O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier
A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco
Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet
David Golder, Irene Nemirowsky
As lágrimas de Eros, George Bataille
As lojas de canela, Bruno Schulz
O mentiroso, Henry James
As mamas de Tirésias – drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire
Amor de perdição, Camilo Castelo Branco
Judeus errantes, Joseph Roth
A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence
Porgy e Bess, DuBose Heyward
O aperto do parafuso, Henry James
Bruges-a-Morta – romance, Georges Rodenbach
Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville
Histórias da areia, Isabelle Eberhardt
O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna
Autobiografia, Thomas Bernhard
Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe
Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès
Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton
Dicionário filosófico, Voltaire
A Papisa Joana – segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides
Bom Crioulo, Adolfo Caminha
O meu corpo e eu, René Crevel
Manon Lescaut, Padre Prévost
O duelo, Joseph Conrad
A felicidade dos tristes, Luc Dietrich
Inferno, August Strindberg
Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West
Freya das sete ilhas, Joseph Conrad
O nascimento da arte, Georges Bataille
Os ombros da marquesa, Émile Zola
O livro branco, Jean Cocteau
Verdes moradas, W.H. Hudson
A guerra do fogo, J.-H. Rosny Aîné
Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès
Messalina, Alfred Jarry
O capitão Veneno, Pedro Antonio Alarcón
Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva
Visão invisível, Jean Cocteau
A liberdade ou o amor, Robert Desnos
A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence
O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle
Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg
Histórias aquáticas – O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad
O homem que falou (Un de Baumugnes), Jean Giono
O dicionário do diabo, Ambrose Bierce
A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco
O caso Kurílov, Irène Némirowsky
Nova Safo – tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura
A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson
Gaspar da Noite – fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand
Rimbaud-Verlaine, o estranho casal
O rato da América, Jacques Lanzmann
As amantes de Dom João V, Alberto Pimentel
Os cavalos de Abdera e mais forças estranhas, Leopoldo Lugones
Preceptores – Gabrielle de Bergerac seguido de O discípulo, Henry James
O Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo
sobre o plano a idade e o carácter do poema, Ernest Renan
Derborence, Charles Ferdinand Ramuz
O farol de amor, Rachilde
Diário de um fuzilado, precedido de Palavras de um fumador de ópio, Jules Boissière
A minha vida, Isadora Duncan
Rakhil, Isabelle Eberhardt
Fuga sem fim, Joseph Roth
O castelo do homem ancorado, Joris-Karl Huysmans
Tufão, Joseph Conrad
Heliogábalo ou o anarquista coroado, Antonin Artaud
Van Gogh o suicidado da sociedade, Antonin Artaud
Eu, Antonin Artaud
A morte difícil, René Crevel
A lenda do santo bebedor seguido de O Leviatã, Joseph Roth
O Chancellor (Diário do passageiro J.R. Kazallon), Jules Verne
Orunoko ou o escravo real (uma história verídica), Aphra Behn
As Portas do Paraíso, Jerzy Andrzejewski
Tirano Banderas (novela de Terra Quente), Ramón del Valle-Inclán
Cáustico Lunar seguido de Ghostkeeper, Malcolm Lowry
Balkis (A lenda num café), Gérard de Nerval
Diálogos das carmelitas, Georges Bernanos
O estranho animal do Vaccarès, Joseph d’Arbaud
Riso vermelho – fragmentos encontrados de um manuscrito, Leonid Andreiev
A morte da terra, J.-H. Rosny Aîné
Nossa Senhora dos Ratos, Rachilde
O colóquio dos cães incluído no Casamento enganoso, Miguel de Cervantes
Entre a espada e a parede, Tristan Bernard
A vida de Rembrandt (história a ir para onde lhe dá), Kees van Dongen
Os meus Oscar Wilde, André Gide
As aventuras de uma negrinha à procura de Deus, George Bernard Shaw
Meu irmão feminino – «Noites Florentinas», Marina Tsvietaieva
Jean-Luc perseguido, Charles Ferdinand Ramuz
O filho de duas mães, Edith Wharton
A armadilha, Emmanuel Bove
Um jardim na margem do Orontes, Maurice Barrès
Erotika Biblion, Conde de Mirabeau
A minha amiga Nane, Paul-Jean Toulet
Paludes, André Gide
O bar dos dois caminhos, Gilbert de Voisins
Sol, D.H. Lawrence
Cagliostro, Vicente Huidobro
As magias do Ceilão, Francis de Croisset
Má sorte que ela fosse puta, John Ford
Chita – uma memória da Ilha do Fim, Lafcadio Hearn
A mulher 100 cabeças, Max Ernst
A dificuldade de ser, Jean Cocteau
O duplo Rimbaud (com um preâmbulo de Benjamin Fondane), Victor Segalen
A vida apaixonada da grande Catarina, Princesa Lucien Murat
Casa de incesto, Anaïs Nin
Morte de Judas seguido de O ponto de vista de Pôncio Pilatos, Paul Claudel
Os domingos de Jean Dézert seguido de contos, Jean de la Ville de Mirmont
Ser ou não ser – Três histórias, Honoré de Balzac
Babilónia, René Crevel
O encontro (uma história incerta), Henri de Régnier
Carmilla, Sheridan Le Fanu
Mulheres na vida, Guy de Maupassant
O plantador de Malata, Joseph Conrad
A mandrágora, Jean Lorrain
A biografia de Vénus, deusa do amor, Francis de Miomandre Viagem ao país dos Tarahumaras, Antonin Artaud
O nevoeiro de 26 de Outubro e outras lições de abismo, Maurice Renard
Salomé, Salomés…, Gustave Flaubert, Oscar Wilde, Guillaume Apollinaire e ainda Mário de Sá-Carneiro, Eugénio de Castro, Fernando Pessoa
Battling Malone, pugilista, Louis Hémon
Kyra Kyralina, Panait Istrati
Codine, Panait Istrati
Carmen seguido de Lokis, Prosper Mérimée
Jésus-La-Caille, Francis Carco
Don Juan da Inglaterra ou o sonho de Lord Byron, Guillaume Apollinaire
O concílio de amor – Uma tragédia celeste, Oskar Panizza
Coração das Trevas, Joseph Conrad
Moscardino, Enrico Pea
Do Andrógino – Teoria Plástica, Joséphin Péladan
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