Don Juan da Inglaterra ou O Sonho de Lord Byron

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DON JUAN DA INGLATERRA

OU O SONHO DE LORD BYRON

Guillaume Apollinaire DON JUAN DA INGLATERRA OU O SONHO DE LORD BYRON

tradução e apresentação

Diogo Ferreira

T ÍTULO DO

ORIGINAL:

DON JUAN D’ANGLETERRE OU LE SONGE DE LORD BYRON

© SISTEMA SOLAR CRL

RUA PASSOS MANUEL 67B, 1150-258 LISBOA tradução © DIOGO FERREIRA, 2023

ISBN: 978-989-568-111-2

1.ª EDIÇÃO: DEZEMBRO DE 2023

NA CAPA: WILLIAM EDWARD WEST, GEORGE GORDON, 6TH LORD BYRON , 1822

REVISÃO: JERÓNIMO CABRITA

DEPÓSITO LEGAL: 523304/23

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: TÓRCULO

Em boa verdade, amei; E de bom grado voltarei a amar.

Abandonando qualquer preocupação em organizar com uma muito regrada ordem cronológica aquilo que foi a vida de Guillaume Apollinaire, o «pobre Guillaume», como o qualifica Blaise Cendrars, que andou por cá os seus trinta e oito anos a terminarem com flamejantes marcas nas letras francesas, e não só, componha-se um desobrigado conjunto de mosaicos — e no caso de algum deles se soltar e partir-se, tanto melhor, que então seja refeito.

Em primeiro lugar, queiram anotar-se umas quantas palavras que Paul Léataud escreveu sobre os seus versos. Isto é algo que não deixa de ser vultoso, porque Apollinaire estava estreitamente ligado aos seus poemas, como seria de esperar; arriscar-se-ia dizer que ele próprio era a sua produção poética:

«Uma maravilha de poesia estranha e musical, ao mesmo tempo bárbara e refinada, equívoca e penetrante como um canto de boémios nostálgicos, e que também faz pensar nessas vozes de mulheres que uma leve quebra no tom ainda torna mais deliciosas.»

Este poeta, e sempre a sê-lo em qualquer uma das frentes, mesmo na da Primeira Guerra Mundial onde se entrincheirou em Dezembro de 1914 e arranjou um ferimento na cabeça provocado por um estilhaço de granada, enquanto lia um dos números da revista Mercure de France… Este poeta, dizia-se, deixou livros que vão folgando entre a poesia, o romance (uns quantos eróticos, que é coisa que ajuda a ganhar a vida, como se irá ver), a crítica ou ainda o teatro (com desvios para o cinema); e para fazer-lhes um breve comentário, aqui ficam estas palavras de Roger Allard:

«[…] Gabava-se de ser um anunciador da novidade: no entanto, tinha uma alma de antiquário e coleccionador. Nas coisas novas procurava sobretudo a lembrança do passado e desfrutava por descobrir nelas concordâncias longínquas e móveis. Não tinha muito o sentimento da moda, nem mesmo dos objectos verdadeiramente modernos, mas tinha-o, a um nível muito agudo, do antiquado, da curiosidade, das analogias graciosas e barrocas. Gostava dos realejos, dos ginásios ao ar livre, dos cantores e dos saltimbancos de calçada, e de todos os aspectos anacrónicos das coisas e dos seres.

«Esse gosto pelo bricabraque literário e estético foi-lhe com frequência censurado. Na verdade, soube enobrecê-lo e harmonizá-lo com a nostalgia que era a essência do seu lirismo. Nostalgia de outrora e do futuro, nostalgia das paisagens desaparecidas ou ignoradas; os mais belos versos de Alcools nasceram dessa dupla angústia, a dos exilados, dos emigrantes, de todos os desterrados, de todos os desenraizados do tempo e do espaço […].»

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E para servir como toque final, esta frase de André Billy:

«O seu gosto conduzia-o para a estranheza, para o imprevisto, o abracadabrante, e contava sobre os seus achados com uma deliciosa ironia.»

Na sua produção literária são vários os casos em que esse deleite encontrado nas estéticas e nos valores passados sobressai com maiores evidências. Queira lembrar-se da sua colaboração com a editora Bibliothèque des Curieux, que juntamente com Raoul Véze soube fazer chegar às mãos dos leitores daqueles dias páginas um tanto esquecidas e cheias de liberdades e libertinagens literárias. Editou-se, por exemplo, o Conde de Mirabeau; editou-se o Divino Pietro Aretino; editou-se o Andrea de Nerciat; editou-se o Marquês de Sade. Refinado trabalho arqueológico, dir-se-á com grande justeza. No entanto, no meio desse «bricabraque literário e estético», dessa «nostalgia de paisagens desaparecidas», e a manter o aroma desses antigos e bem enrolhados perfumes, Guillaume Apollinaire também surgiu como autor no meio desses casos, nessa mesma colecção de literatura de olvido. O poeta entregava-se à farra literária, e trazia consigo peculiares inovações, num museu de sensualidades.

Ora, o primeiro caso foi o de Le Rome des Borgia em 1913, na verdade um livro que pingou mais da pena de René Dalize do que da pena de Apollinaire. No ano seguinte aparecia nessas páginas amareladas La Fin de Babylone. E a singrar essas águas surge em 1915 Les Trois Don Juan, que tem na capa um pormenor d’A Maja Nua de Goya. E é precisamente desse livro que deriva este Don Juan da Inglaterra ou o Sonho de Lord Byron.

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Porque Apollinaire foi um homem de amores…

E esses amores levaram-no a preencher com a sua aguçada caligrafia folhas de papel que resultaram na sua bem fornida correspondência amorosa…

São bem conhecidas as suas cartas, e os poemas escritos nos seus reversos, à sua Lou, ou melhor, à sua Louise de Coligny-Châtillon, que ele vê pela última vez em 28 de Março de 1915, nessa Marselha dos adeuses, tão bem calejada por encontros e desencontros, saudações e despedidas, esfusiantes gargalhadas e amargas lágrimas. Em suma, tão bem calejada pelo mundo.

Apollinaire já andava metido nessa grande doideira que foi a Primeira Grande Guerra. Em 2 de Janeiro desse 1915, depois de cumprir uma certamente agradável licença militar de quarenta e oito horas de liberdade nos braços da sua Lou, despede-se dela e enfia-se no compartimento de um comboio na estação de caminhos-de-ferro de Nice. Talvez a «querida pequena» Lou lhe acene no cais. Ou talvez não o faça.

Nesse compartimento quis a fortuna que se encontrasse uma jovem chamada Madeleine Pagès, professora de letras num cólegio de raparigas em Oran. Entre os dois uma conversa estabeleceu-se. E diga-se, numa palavra, que enquanto o poeta deixava um amor naquele frio cais da estação de caminhos-de-ferro, conhecia o próximo… Como são as coisas…

Numa das cartas que trocaram, e por isto em especial favorecer a interligação dos amores para aqui chamada, saboreiem-se as linhas de Apollinaire a Madeleine, com a data de 21 de Outubro de 1915: «Adoro-te, meu amor, tomo a tua boca, as nossas línguas brincam deliciosamente como duas espadas a esgrimir. Amo-te

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hoje com infinita doçura, ao sorrir acaricio o teu corpo angélico, parece-me que brincamos no céu. […] Sim, meu amor, amo-te paradisiacamente. Acaricio-te com tão grande ternura, que dir-se-á que um riacho de leite corre sobre o teu corpo branco e cofunde-se com ele; só o teu divino rosto se mantém à superfície com a tua cabeleira, e adivinha-se a mancha escura do tosão triangular que é o meu Eldorado.»

Logo a seguir, porque estes assuntos também podem ter o seu interesse: «Envio-te hoje um livro que estava em impressão antes da guerra e acaba de ser publicado. Não tem valor, mas vindo de mim talvez te vá divertir. Verás ao que somos obrigados a descer para ganhar a vida em Paris, e eu sempre resisti a fazer trabalhos mais baixos como fizeram Willy ou os autores de folhetins. Contudo, vais dar-te conta que tenho outras coisas para escrever. Fiz isto enquanto me divertia, mas ainda assim é triste e mais mal pago do que as coisas à Willy e sobretudo à folhetinistas sentimentais. Foi escrito rapidamente, com as diversas histórias de Don Juan. Tirei tudo o que pude de Molière para o Tenorio, e o último não passa do resumo sob a tradução palavra a palavra do Don Juan de Byron. No entanto, não ponho estas coisas entre as minhas obras, e nem sequer as menciono no lugar do “Do mesmo autor” de L’Hérésiarque, Alcools, etc.»

E voltando a dar livre curso ao caudal de desejo: «A ordem que vais pôr em mim e a que a tua preciosa presença ordenar, ó minha pequena e querida escrava, vai daqui em diante salvaguardar-me, espero eu, desses trabalhos. Meu amor, acaricio com atenção os teus seios mais belos do que os da Maja nua

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do Goya e que se esticam para mim como um botão de rosa que vai abrir-se.»

É que Apollinaire foi um homem de amores…

Mas não só um homem de amores. E neste passo, num tom anedótico, numa averiguação biográfica de quem conheceu com proximidade Guillaume Apollinaire, façam-se ressoar algumas vozes. A primeira, a da escritora e aviadora Louise Fauve-Favie, que num livro intitulado Souvenirs sur Guillaume Apollinaire escreve nestes sumarentos termos sobre os primeiros tempos de vida do poeta:

«A lenda que rodeava as origens de Guillaume Apollinaire, e que ele próprio tanto gostava de manter, dissipa-se. Também nós, os seus amigos, nos deleitamos a imaginar Apollinaire nascido de um príncipe da Igreja e de uma cortesã russa. E era toda uma juventude aventurosa no colégio do Mónaco vizinho da roleta e do trente-et-quarante, depois, aos dezoito anos, a liberdade, as grandes viagens pela Europa que ele fingia ter percorrido a pé e sem um tostão no bolso, para terminar na conquista do mundo literário em Paris. E quando muito, lamentamos que Apollinaire não tenha verdadeiramente roubado a Gioconda debaixo dos narizes dos seguranças do Museu do Louvre…

«A verdade é inteiramente outra, sem deixar de ser pitoresca.

«Guillaume Apollinaire nasceu em Roma, em 26 de Agosto de 1880, de pai desconhecido e de Mademoiselle Angeliska de Kostrowitzky. Foi baptizado em 29 de Setembro de 1880 na basílica Santa Maria Maior com os apelidos e nomes Wilhelm-Apollinaris de Kostrowitzky. […]

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«Quanto ao pai legalmente desconhecido de Apollinaire, sabemos de uma maneira precisa que era um oficial italiano. Madame de Kostrowitzky confessou-o ao juiz de instrução aquando do célebre caso da Gioconda. […] No mesmo dia, Albert de Kostrowitzky, o irmão do poeta, declarou ao mesmo juiz de instrução: “O nosso pai exercia a profissão de Camareiro secreto do Papa.” […] A sua mãe foi viver para o Mónaco, onde pôs os seus dois filhos no Colégio Saint-Charles. Fizeram aí a primeira comunhão e receberam o sacramento de confirmação. […] As férias da família Kostrowitzky eram passadas nas Ardenas. Guillaume e o seu jovem irmão Albert viviam sozinhos num hotel da pequena vila Malmédy, enquanto a sua mãe levava em Spa a sua vida mundana em redor das mesas de jogo do casino. Eram livres nessa idade em que tanto amamos a liberdade! Não, a infância de Guillaume Apollinaire não foi infeliz. Se tivesse sofrido, como conseguiria “conservar, da infância, a frescura e o privilégio de comover-se com tudo”, tal como tão bem disse o poeta J. Royère?

«Quando chegou aos dezoito anos, Madame de Kostrowitzky mandou-o ganhar a vida. Conheceu uma hora de tristeza, mas encontrou, depois disso, um trabalho de secretário com condições que muitos jovens burgueses franceses teriam desejado: tornava-se o professor de literatura de Mademoiselle Gabrielle de Milhau, da nobre e rica família francesa Milhau. […] No castelo de Neu-Glück, em Honnef, Wilhelm de Kostrowitzky passou um ano agradável, tratado com muitas atenções pela condessa de Milhau […]. Longas férias permitiram-lhe visitar as margens do Reno e até ir mais longe na Europa. […] Depois encontrou

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o seu primeiro amor: Annie, professora e dama de companhia de Mademoiselle Gabrielle de Milhau, que lhe inspirou a sua Canção do Mal-Amado. […] Apollinaire falava-nos com frequência dessa época feliz. “Sonho com as margens do Reno”, suspirou ele numa noite em que, da minha janela, olhava o Sena, e onde nos disse La Loreley1 .

«Aos 22 anos, Wilhelm de Kostrowitzky ganha a vida num banco, mas à noite trabalha junto da sua mãe, com quem partilha o apartamento da rua De Naples. Pode ver-se que é a vida tradicional do jovem francês pouco afortunado que quer, como nessa altura dizíamos, “fazer letras”. Já adoptou o pseudónimo Guillaume Apollinaire e fez os seus começos na Grande Revue com dois poemas e artigos. Frequenta os cenáculos literários, colabora na Revue Blanche. Concretiza o sonho de todos os jovens escritores de todos os tempos: criar uma revista literária.

«As primeiras obras de Apollinaire suscitaram curiosidade. Foi l’Enchanteur pourrissant com gravuras em madeira de André Derain, em 1909; depois, l’Hérésiarque et Cie em 1910; o Bestiaire ilustrado por Raoul Dufy, em 1911.

«Esse ano de 1911, que começava a consagrar a sua reputação literária, devia, por outro lado, ser-lhe nefasto. Foi o ano do roubo da Gioconda no Museu do Louvre. De repente, Guillaume Apollinaire tornou-se célebre no mundo inteiro. Passou pelo homem que tinha roubado a Gioconda. […] Mas Apollinaire não tinha sido menos capturado por um caso semelhante a este: o do roubo das estátuas fenícias do Louvre por Géry

1 Poema de Apollinaire que faz parte do seu livro Alcools. (N. do T.)

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Pieret, um jovem belga bastante deliquente que Apollinaire recebia em sua casa e de quem fizera o seu secretário intermitente. Sempre atraído pelo pitoresco dos seres, Apollinaire descobria neste o modelo de uma das personagens do l’Hérésiarque et Cie. Personagem fantástica, de facto, esse barão D’Ormesan, de quem relemos, sem nos fartarmos, as inesquecíveis aventuras…

«O roubo das estatuetas fenícias surge-nos hoje como uma história bastante ridícula. Géry Pieret, depois de as ter roubado no Museu do Louvre, com a maior facilidade do mundo, enfiou-as debaixo do sobretudo, e com o peito dessa maneira bem arredondado foi fazer conversa com o segurança encarregado de as vigiar. Depois disso encaminhou-se para o domicílio de Apollinaire. Este, na companhia de Fernand Fleurel, que contou esta cena, começou a rir-se ao ver o seu visitante perder a corpulência à medida que expunha o pequeno roubo. Os risos chegaram a redobrar quando Géry Pieret ingenuamente revelou de onde vinham as estatuetas. Mas pouco depois Apollinaire, mudando de tom, cobria o ladrão de insultos:

«— Desaparece-me da frente, e depressa!

«Não foi preciso repeti-lo a Géry Pieret. Nessa mesma noite, ele apanhava o comboio para Marselha.

«Isto talvez não tivesse mais consequências se, por um desses singulares acasos que faziam Apollinaire dizer: “Acontecem-me sempre coisas extraordinárias”, o roubo das estatuetas fenícias não se tivesse dado ao mesmo tempo que o da Gioconda.

«Foi então que Apollinaire se apercebeu — tarde demais — que poderia passar pelo receptador das estatuetas fenícias. Mas o que fazer? Pensou em atirá-las ao Sena. Depois veio-lhe

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a ideia absurda de ir subrepticiamente colocá-las na montra do Paris-Journal ! Resultado: na madrugada de 7 de Setembro, o receptador-mistificador foi detido, e depois levado para a prisão de La Santé.

«No entanto, Géry Pieret escrevia de Francfort uma carta endereçada a Étienne Chicet, redactor no Paris-Journal, onde confessava ser o único culpado e declarava que Apollinaire, ao guardar as estatuetas, só tinha agido por piedade dele.

«Apollinaire, indultado, foi aclamado pelos seus amigos à saída da prisão. […] Todas as mãos se estenderam-se para ele. Davam-lhe beijos. Pouco faltou para o levarem aos ombros.

«Termina assim, em libações, a história das estatuetas fenícias que, frequentemente confundida com a história do roubo da Gioconda, fez durante muito tempo parte da lenda do poeta.»

Decorria o ano 1911 quando Apollinaire conheceu estes injustos dias de prisão. Completaria daí a pouco trinta e um anos de idade, e no ano seguinte ia publicar na revista Les Soirées de Paris os melancólicos mas alentados versos de um dos seus mais belos poemas, Le Pont Mirabeau, inspirado pela ruptura amorosa que nesse mesmo ano viveu com a pintora Marie Laurencin, outro dos seus amores. Não obstante, o seu livro de poesia Alcools, que começou por chamar-se Eau-de-vie, andava a ser magicado. E aproveite-se para dizer que 1912 foi o ano em que ele se instalou na sua morada definitiva: o número 202 do bulevar Saint-Germain, visitado por inúmeros artistas, incluindo o poeta Philippe Soupault, que relembra desta maneira essas andanças:

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«Às vezes eu ia visitá-lo à sua casa. No final da sua vida, vivia num apartamento no último andar de um prédio situado na esquina do bulevar Saint-Germain e da rua Saint-Guillaume. Divisões minúsculas e pequenos corredores. O seu quarto (aquele onde morreu) estava enfeitado com quadros dos seus amigos Picasso, Braque, Marie Laurencin. O seu “escritório” era iluminado por um postigo e servia também de sala de comer. Sentia-se ali à vontade.

«Eu surpreendia-me com o quadro que aquele que para mim era um grande poeta tinha mais ou menos voluntariamente criado. Vi-o escrever aí vários poemas debaixo dos meus olhos, em especial Ombre. Era um espectáculo inesquecível. Vi-o também corrigir provas. Esforçava-se muito, mas não podia impedir-se de sorrir e até de soltar uma gargalhada.»

*

Faça-se aqui uma interrupção, conservando sempre uma certa desenvoltura mosaica, e dê-se lugar às palavras de dois dos seus biógrafos, Denis Bordat e Bernard Veck, que em certa página a quatro mãos oferecem uma muito saborosa imagem de Apollinaire:

«Guillaume Apollinaire tinha herdado da sua mãe o pecado da gula. “O vinho soava-lhe na barriga, a carne fazia ruído entre os seus dentes”, escreveu Chagall. Amava comer, empanturrar-se, engolir os pratos uns atrás dos outros, voltar a fazê-lo até não ter fome, sede, e sempre até estar saciado.

«À mesa resplandecia. Com as grandes bochechas bem inchadas, a pança farta como deve ser, o colarinho aberto, o cinto

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um furo mais largo, esperava o sinal de partida e lançava-se em todas as direcções na ementa dos pratos e dos vinhos. Escolhia os mais variados manjares porque gostava de tudo, excepto da carne vermelha. Tinha preferência pelas tripas, pelos sequilhos glaceados e pelo risoto, de que ele próprio vigiava a cozedura quando convidava os amigos para jantar.

«Apollinaire no restaurante era um espéctaculo: tinha o guardanapo à volta do pescoço, a empanturrar-se com uma galinha à qual quebrava os ossos com os dentes e as mãos, com o falso colarinho aberto, a pequena boca que se fazia enorme e cheia de molho, o sorriso a crescer ao longo dos pratos. Levantando-se bruscamente depois de ter engolido dois pedaços de carne de vaca com sal grosso e três costeletas, dizia: “Esperem por mim. Agora tenho de ir cagar ao Lutétia.” Porque conhecia as melhores latrinas de Paris, que aconselhava sempre aos seus amigos.»

*

Neste cortejo de palavras alheias sigam-se as de Jean Cocteau, sempre aveludadas, e que usando da sua característica leveza lembram Apollinaire no seu livro A Dificuldade de Ser:

«Conheci-o com farda azul-clara, a cabeça rapada, a têmpora marcada por uma cicatriz parecida com a estrela-do-mar. Um dispositivo de ligaduras e couro fazia-lhe qualquer coisa como um turbante ou pequeno capacete. Julgar-se-ia que este pequeno capacete escondia um microfone; fazia-o ouvir aquilo que os outros não conseguiam ouvir, e ele vigiava em segredo um requintado mundo. Do qual transcrevia as mensagens. Alguns dos seus poemas nem mesmo esta proveniência tradu-

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zem. Vimo-lo muitas vezes a escutar. Baixava as pálpebras, cantarolava, molhava a caneta. Ela ficava com uma gota de tinta pendurada. Esta gota tremia e caía. Estrelava a folha. Alcools, Calligrammes, todos são sinais de um código secreto.

«Só vejo François Villon e Guillaume Apollinaire capazes de manter-se sem queda neste andar coxo de que a poesia é feita, coisa que não passa pela cabeça dos que pensam executá-la porque escrevem versos.

«Entre os dedos de Apollinaire a palavra rara (ele usava-a) perdia o pitoresco. A palavra banal ficava insólita. E estas ametistas, pedras de lua, esmeraldas, cornalinas, ágatas que ele usava, instalava-as com a naturalidade de um desses vendedores de cestos que em cima da sua cadeira de rodas encestam no passeio. Não se imagina artista de rua mais modesto, mais atento do que este soldado azul.

«Era anafado sem ser gordo, tinha o rosto pálido e romano, um pequeno bigode por cima da boca que destacava as palavras com voz curta, uma graça um pouco pedante e uma espécie de sufocação.

«Os olhos riam-se da gravidade do rosto. As mãos de padre acompanhavam a palavra com gestos que lembravam os marinheiros quando os exageram para beber um copo e mijar.

«O riso não lhe saía da boca. Chegava dos quatro cantos do organismo. Invadia-o, abalava-o, imprimia-lhe solavancos. Depois este riso silencioso esvaziava-se pelos olhos, e o corpo voltava ao seu lugar.

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«Com peúgas e sem as polainas de couro, a perna moldada nas calças curtas, atravessava o seu pequeno quarto do bulevar Saint-Germain; subia alguns degraus até ao gabinete minúsculo onde ficámos a conhecer a tiragem de luxo das Serres-Chaudes e o pássaro de cobre do Benin.

«As paredes estavam cobertas por telas de camaradas seus. Para além do retrato de Rousseau com o tapume de cravos e das raparigas angulosas de Laurencin, havia fauves, cubistas, expressionistas, orfistas e um Larionov da época do maquinismo, do qual dizia: “É o contador de gás.”

«Era louco por escolas; e, desde Moréas à Closerie des Lilas, conhecia a virtude dos nomes que elas têm e as pessoas misteriosamente repetem.

«O rosto da sua mulher parecia-se com o bonito aquário de peixes vermelhos das lojas do cais, à frente de caixas de livros que conseguem, escreveu ele, fazer o Sena continuar a existir.

«Na manhã do armistício de 1918, Picasso e Max Jacob tinham vindo ao 10 da rua de Anjou. Eu vivia ali, na casa da minha mãe. Disseram-me que Guillaume os inquietava; tinha o coração envolto por gordura e iam telefonar a Capmas, o médico desses meus amigos. Contactámos com Capmas. Mas era tarde demais. Capmas suplicou ao doente que o ajudasse, se ajudasse, teimasse em viver. Mas já não tinha forças para isso. O encantador arfar fazia-se trágico. Sufocava. À noite, quando voltei a encontrar-me com Picasso, Max e André Salmon no bulevar Saint-Germain, fui informado de que o Guillaume tinha morrido.

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«O seu pequeno quarto estava cheio de sombra e de sombras: as da sua mulher, da sua mãe, nossas, de outros que circulavam ou se recolhiam, e eu não reconhecia. O rosto morto iluminava à volta dele a roupa. Com uma beleza laureada, radiosa ao ponto de nos parecer que víamos o jovem Virgílio.

A morte, com o trajo de Dante, puxava-o pela mão como às crianças1.»

E morreu, vítima da gripe espanhola que naquele ano pintava o diabo numa Europa talvez a julgar que ia ver alguma trégua nas misérias provocadas pela Primeira Grande Guerra.

Todavia, parece que atrás deste séquito de lembranças ainda vem Blaise Cendrars, com o cigarro no canto da boca e algumas palavras a dizer sobre uma curiosa ironia a respeito da morte do poeta, e talvez possa até dizer-se, do poeta assassinado:

«O cortejo desfilou pelo bulevar Saint-Germain com os apupos da multidão que vaiava não Guillaume Apollinaire, mas simplesmente Guillaume, o Guillaume II da Alemanha. Era o dia seguinte ao armistício, os últimos dançarinos nas ruas ainda por lá andavam e soltavam horríveis berros. Era de uma ironia bastante penosa, mas Guillaume gostava de tal maneira de tudo o que saía da banalidade e do extraordinário, tudo o que proclamava a beleza de viver, que isto, por certo, tê-lo-ia feito feliz.»

Logo a seguir, acrescenta:

1 Excerto transcrito a partir da edição d’A Dificuldade de Ser, de Jean Cocteau, pertencente à colecção Sistema Solar.

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«E a coisa que até ao dia de hoje me deixa estupefacto e faz dizer que Apollinaire não morreu, é que depois de eu ter atravessado Paris inteira de táxi, quando chegámos ao Père-Lachaise já o cortejo de Apollinaire tinha desaparecido. A cerimónia tivera lugar. Embora cinco minutos após o enterro, ninguém soubesse em que lote estava Apollinaire. Inclinei-me sobre duas campas, e numa delas havia um cômoro congelado exactamente com a forma de Apollinaire. E foi isso que me fez dizer: “O Apollinaire, meus filhos, o Apollinaire não morreu!”»

*

Blaise Cendrars parece ter razão, Guillaume Apollinaire por aí anda.

Foi 1918 o ano da sua morte física — cem anos antes, o planeta Vénus eclipsava Marte num raríssimo fenómeno astral. Estariam a preparar-se tempos de intensos amores? Talvez, porque Lord Byron, todo ele romantismo, todo ele fúria de sentimentos, molhava na tinta a sua pena para arranhar no papel as primeiras ottavas rimas do extenso e inacabado poema Don Juan. E assim foi; e assim continuará a ser.

Diogo Ferreira

Apresentação 22

ÚLTIMOS LIVROS SISTEMA SOLAR

A morte da terra, J.-H. Rosny Aîné

Nossa Senhora dos Ratos, Rachilde

O colóquio dos cães incluído no Casamento enganoso, Miguel de Cervantes

Entre a espada e a parede, Tristan Bernard

A vida de Rembrandt (história a ir para onde lhe dá), Kees van Dongen

Os meus Oscar Wilde, André Gide

As aventuras de uma negrinha à procura de Deus, George Bernard Shaw

Meu irmão feminino – «Noites Florentinas», Marina Tsvietaieva

Jean-Luc perseguido, Charles Ferdinand Ramuz

O filho de duas mães, Edith Wharton

A armadilha, Emmanuel Bove

Um jardim na margem do Orontes, Maurice Barrès

Erotika Biblion, Conde de Mirabeau

A minha amiga Nane, Paul-Jean Toulet

Paludes, André Gide

O bar dos dois caminhos, Gilbert de Voisins

Sol, D.H. Lawrence

Cagliostro, Vicente Huidobro

As magias do Ceilão, Francis de Croisset

Má sorte que ela fosse puta, John Ford

Chita – uma memória da Ilha do Fim, Lafcadio Hearn

A mulher 100 cabeças, Max Ernst

A dificuldade de ser, Jean Cocteau

O duplo Rimbaud (com um preâmbulo de Benjamin Fondane), Victor Segalen

A vida apaixonada da grande Catarina, Princesa Lucien Murat

Casa de incesto, Anaïs Nin

Morte de Judas seguido de O ponto de vista de Pôncio Pilatos, Paul Claudel

Os domingos de Jean Dézert seguido de contos, Jean de la Ville de Mirmont Ser ou não ser – Três histórias, Honoré de Balzac Babilónia, René Crevel

O encontro (uma história incerta), Henri de Régnier Carmilla, Sheridan Le Fanu

Mulheres na vida, Guy de Maupassant

O plantador de Malata, Joseph Conrad

A mandrágora, Jean Lorrain

A biografia de Vénus, deusa do amor, Francis de Miomandre Viagem ao país dos Tarahumaras, Antonin Artaud

O nevoeiro de 26 de Outubro e outras lições de abismo, Maurice Renard

Salomé, Salomés…, Gustave Flaubert, Oscar Wilde, Guillaume Apollinaire e ainda Mário de Sá-Carneiro, Eugénio de Castro, Fernando Pessoa

Battling Malone, pugilista, Louis Hémon Kyra Kyralina, Panait Istrati

Codine, Panait Istrati

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