O Concílio de Amor — Uma Tragédia Celeste

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Oskar Panizza O CONCÍLIO DE AMOR

UMA TRAGÉDIA CELESTE

texto português e apresentação Aníbal Fernandes

TÍTULO DO ORIGINAL: DAS LIEBESKONZIL.

EINE HIMMELSTRAGÖDIE IN FÜNF AUFZÜGEN

© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2023

ISBN: 978-989-568-106-8

1.ª EDIÇÃO, DEZEMBRO DE 2023

NA CAPA: PINTURA DE SIMON VOUET (1640)

REVISÃO: DIOGO FERREIRA

DEPÓSITO LEGAL: 523306/23

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: TÓRCULO, ESPANHA

Em 1904, Oskar Panizza foi internado num asilo de alienados, onde permaneceu durante dezassete anos até à sua morte, em Setembro de 1921. Tinha nascido sessenta e oito anos antes em Bad Kassingen, filho de um beato pai católico de origem italiana, pertencente a uma família de pescadores do lago do Como, e de uma mãe arisca com lugar na aristocracia protestante-huguenote, uma prolífera escritora; viveu, nesta disputa de religiões, os dois primeiros anos de uma inocência indiferente aos matizes de uma e outra formas de render graças ao mesmo

Espírito Supremo.

Panizza, no seu texto autobiográfico de 1904, onde se refere na terceira pessoa e trata por «doente», não é meigo para com os membros da sua família. Um dos seus tios, diz ele, atingido por uma loucura religiosa intermitente morreu no pavilhão de alienados de um hospital de Würzburg; uma sua tia, psiquicamente anormal, ora se mostrava lúcida, ora fraca de espírito; à sua mãe chama irascível; ao seu pai, que morreu com tifo, vê-o como um passional excêntrico e debochado, consumado mundano, mau marido e mau administrador dos bens familiares; também nos informa de que tinha dois irmãos mais novos, vítimas de crises agudas de melancolia; e que a sua irmã fez duas tentativas de suicídio, ao que parece inspiradas por histeria.

A falar de si próprio, confessa que era uma criança introvertida; que teve dificuldade em aprender a ler; que parecia pouco dotado, e os seus irmãos até lhe chamavam «o pateta». Remata o relato das suas limitações acrescentando isto: «Apesar de uma imaginação muito viva mas estéril, e de um perpétuo recolhimento sobre si mesmo, era incapaz de compreender a necessidade de fazer uma regular e sistemática aprendizagem de uma qualquer profissão. Voltou-se durante algum tempo para a música e terminou com idade avançada (vinte e quatro anos) os estudos do liceu clássico.» Oskar Panizza ainda acrescenta ao seu retrato as singularidades de um sonambulismo que aos doze anos, durante um ataque se sarampo, fazia-o — como Xavier de Maistre — viajar «à volta do seu quarto».

Lippert, um pastor que o conheceu de perto e veio a ser seu tutor depois de o considerarem louco, afirma que ele e os seus irmãos começaram por ser educados de acordo com o catolicismo paterno. Mas que o pai Panizza nos seus instantes finais (o que aconteceu quando Oskar tinha apenas dois anos de idade), disse à senhora Panizza que os educasse de acordo com o seu desvio religioso. Isto acontecia num estado da Baviera cioso da sanidade espiritual das suas crianças e que as não queria submetidas à aberração de uma seita com o direito de enfrentar a inquestionável autoridade de Roma. A senhora Panizza, impedida de protestantizar os seus filhos, viu-se incitada a exportá-los para a Prússia, nessa época inimiga da Baviera e tolerante para com as diversas opções cristãs. Mas como esta audácia a ameaçava «com toda a espécie de coriscos», diz a este respeito Jean Bréjoux, e até com a prisão, foi a Munique (afirma-se que fez o caminho a pé), onde obteve do rei uma

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autorização «muito especial» para educar na Baviera os seus filhos de acordo com a sua religião protestante. Foi tanta a brandura do rei, que os direitos maternos venceram.

Oskar e os seus irmãos puderam permanecer em Bad Kissingen e ter uma infância modelada contra as directrizes romanas da religião oficial; puderam ser educados por uma mãe que lhes transmitia, com paciência e método, a sua feroz hostilidade ao catolicismo. Esta mãe (escritora falhada que deixou um grande número de impublicáveis manuscritos) também foi um importante incentivo ao interesse que Oskar desde muito cedo mostrou pela literatura e, sem nunca se esquecer das suas raízes huguenotes, dotou-o de um excelente domínio da língua francesa.

A senhora Panizza decidiu que este filho, com as suas qualidades intelectuais, estava a calhar numa carreira eclesiástica; mas Oskar — desde muito cedo rebelde — contrariava-a imaginando-se com grandes êxitos numa carreira de cantor profissional. No entanto, ele próprio inconstante, ele próprio volúvel, com vinte e cinco anos resolveu que estudaria medicina. Oskar Panizza chegou a ser médico, e a sua tese de doutoramento como psiquiatra até obteve a bonita classificação de summa cum laude. Mas só foi «médico de loucos» durante dois ou três meses por reconhecer que havia em si outra vocação que a tudo se sobrepunha, embora muito menos lucrativa, a de escritor.

A literatura impôs-se a meias com grandes liberdades de uma vida licenciosa, ou seja, de uma deriva nocturna que o fazia frequentar os antros menos recomendáveis da cidade. O futuro autor de O Concílio de Amor, que escolheu a sífilis como seu tema central, foi atingido por uma doença venérea de manifestação

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cutânea (o português científico costuma referi-la como «infecção luética»), que embora tratada segundo as boas regras da época dotou-o com uma persistente gemma na tíbia direita, resistente às mais enérgicas doses de iodeto de potássio.

Dificuldades materiais obrigaram-no a esquecer-se um pouco da literatura, das suas noites libertinas, e regressar durante dois anos à medicina — agora num asilo de alienados da Alta Baviera. Mas teve problemas de saúde, informa ele no seu texto autobiográfico, e diferendos de ordem disciplinar e científica com o seu chefe, aqueles que o fizeram renunciar à estabilidade do seu posto. Se exceptuarmos os raros casos onde voltou a intervir como médico, a partir deste desaire entregou-se com exclusividade à literatura — que «nunca mais», afirma ele, «e desde a época que a seguir viveu em Paris, lhe saiu debaixo dos olhos.»

Em certa medida, foi sob a influência de uma depressão afectiva no asilo de alienados, com a duração de quase um ano, que nasceu a recolha poética Düstre Lieder (Canções Sombrias) onde se reconhece a influência de Heine. Oskar foi então para a Inglaterra; foi empregado do British Museum e até escreveu os poemas que publicados em livro se chamaram Londoner Lieder. Mas Londres era um tédio; tinha afinal de regressar à sua Alemanha, de continuar a ser poeta no seu país, de estudar na língua alemã as literaturas estrangeiras — uma ocupação que se revelou, reconhece ele, «o melhor dos derivativos contra a psicopatia que o espreitava.»

Não tardou a surgir o prosador de contos fantásticos à Edgar Poe, o conferencista de «Génio e Loucura», onde um elegante e sofisticado tom de esquerda fez um crítico chamar-lhe «socialista de fraque», o autor de um relato a que ele chamou «O Crime de

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Tavistock Square» e motivou, por referências explícitas ao onanismo (trate-se embora de um onanismo vegetal), uma queixa por ultraje aos bons costumes, a que o tribunal não deu seguimento. Em 1893 Panizza voltou a mostrar-se com um novo livro de contos à Edgar Poe, mas logo a seguir autor do ensaio A Imaculada Concepção dos Papas, «escrito num tom muito sério e destinado a estender aos papas, com todas as consequências embriológicas, antropológicas e teológicas, o dogma da Imaculada Concepção proclamado pelo papa Pio IX.» Uma denúncia fez a polícia apreender a obra em todo o território alemão. Seguiram-se violentas críticas na imprensa, tanto do lado católico como do lado protestante, que alertavam os leitores contra a aquisição do livro.

«O amor não pode ser dominado», escrevia ele; «é a summa lex e a suprema voluntas. Não pode regular-se o amor por um decreto feito em Postdam.» Esta firme convicção mostra muitas das suas implicações na peça teatral de 1894, O Concílio de Amor, onde fica a saber-se sob a forma de um mistério medieval modernizado que a sífilis aparecida na Itália no fim do século XV, fatalidade chegada de um amor indiferente aos decretos de Postdam, não conseguia escapar a uma determinação divina que resolvia castigá-la, bem como aos deboches do papa Alexandre VI (de seu verdadeiro nome, Rodrigo Borgia.)

A edição foi impressa na Suíça, por o autor pensar que este desvio geográfico impediria actuações judiciais na Alemanha. Panizza enganava-se; a obra não só foi apreendida e destruída, mas o autor condenado a um ano de prisão efectiva, cumprida em Nuremberga e depois em Amberg. A peça fez ruído e causou admirações; admirações privadas, por os admiradores recearem embaraços com

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a Justiça. E embora Panizza tenha escrito uma extensa defesa lida no tribunal de Munique, a sua retórica não o livrou de um ano de prisão integralmente cumprido. A liberdade de expressão é um direito das sociedades civilizadas que deve ser inquestionavelmente defendido. Mas é claro que o Panizza protestante, adepto de uma concepção divina mais espiritualizada e que proibia a sua representação através de imagens, ao satirizar um Céu divulgado pela versão humanizada, cenografada e iconizada, que o Vaticano e as suas pinturas mostram e aconselham à fé dos seus fiéis, mexia naquela Alemanha católica num ninho de vespas. As ironias que tomam como alvo a Igreja, que parodiam os seus oficiantes e o seu funcionamento sujeito aos defeitos humanos, são uma coisa; ironizar mais acima, trazendo para o palco personagens com uma evidência terrestre onde o Deus supremo é visto em estado de decadência, onde são atribuídas atitudes mundanas àquela Maria que o catolicismo amplia em importância para lá de todas as palavras da Bíblia, é outra coisa e convenhamos que a ferir no intocável uma respeitável fé, neste caso a católica.

Numa época em que a influência religiosa, mais ou menos por toda a Europa, tinha um excessivo e desagradável peso no funcionamento e nas leis dos governos, houve escritores com a tentação literária de incomodar satiricamente essa força que lhes era hostil; Portugal mostrou em 1885 o seu maior cometimento neste campo com A Velhice do Padre Eterno de Guerra Junqueiro, onde o Vaticano é apelidado de «o bordel da Igreja».

A igreja católica permite a representação formal de entidades a quem é dada, no seu período celeste, a forma e os vestuários da tradição humana; chega a mostrar no tecto da Capela Sixtina

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a Essência Suprema, que nunca teve forma terrestre e física, representada por Miguel Ângelo como um velho com cabelo e barba brancos, ou seja, alguém que se sujeitou, como os humanos, à passagem e ao desgaste do tempo. Os beneficiados pelas aparições terrenas de Maria descrevem-lhe o vestuário terrestre com conhecidos pormenores da costura humana 1. Para Panizza, a lógica destas representações humanizadas pressupõe, como verdade implícita, seres celestes com as qualidades e os defeitos do estado humano. Na sua peça trata-os, por isso, como tal.

É evidente que o comportamento da Igreja dos nossos dias incita muito menos a encenações teatrais provocatórias desta obra de Panizza. Quando Jean-Jacques Pauvert a «redescobriu» em 1960, numa época em que a civilização europeia fazia grande questão das suas audácias, houve diversas representações em países da Europa e teve em 1969 um assinalável êxito em Paris, com cenários de Leonor Fini e encenação de Jorge Lavelli. Reeditá-la hoje com o seu saboroso e já inofensivo sarcasmo é pelo menos relembrar, numa época que se compraz a restaurar inquietantes retrocessos moralistas e conservadores, o direito à liberdade de expressão.

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É conhecido o texto que o réu Panizza leu no tribunal de Munique e foi publicado com o título «A Minha Defesa»:

1 E não só. Lúcia, por exemplo, uma das videntes de Fátima, ao ser interrogada pelo cónego Formigão, aliás Visconde de Montelo, disse que a Senhora tinha nas orelhas «umas argolas pequenas». (Episódios Maravilhosos de Fátima, p. 14).

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Senhores Jurados, Como não sou jurista, não saberei pronunciar-me levando em conta a forma, nem pretendo ter ares de competir, neste caso, com um tribunal alemão. De acordo com o que me informaram em privado célebres juristas, pessoas competentes, eles têm uma opinião radicalmente oposta. Há, de facto, neste caso uma contradição flagrante com um parágrafo muito claro do Código Penal alemão, segundo o qual ninguém pode ser perseguido na Alemanha por um acto cometido em país estrangeiro e que não é reprimido nesse país. O meu defensor encarregar-se-á de discutir este ponto. Naquilo que me toca, só poderei considerar o lado puramente humano, o lado artístico e estético do caso. E como vós, meus senhores, não sois juristas e só deveis julgar-me sob um ponto de vista puramente humano, penso que não estaremos, no que diz respeito ao ponto de partida do nosso exame, muito afastados uns dos outros, e o nosso entendimento será muito rapidamente atingido.

Creio que vou fazer-vos compreender melhor as intenções que tive ao escrever a peça que nos ocupa expondo-vos de uma forma breve como este projecto me ocorreu.

Senhores, sabeis como apareceu no final do século XV, primeiro na Itália e depois na Alemanha, uma doença com forma epidémica que exercia no corpo humano as mais terríveis devastações. Parece que ao princípio não se propagou por contactos sensuais; mas depois espalhou-se quase exclusivamente por essa via, atingindo todas as classes, desde alto a baixo, da sociedade. Chamaram-lhe sífilis. Para dizer a verdade,

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não se sabia de onde vinha. A impressão que causou nos espíritos foi enorme. As crónicas da época estão cheias de assustadoras descrições que se referiam à devastação causada, tanto no físico como no moral. Não havia remédio e nem valia a pena fugir dela. Esta doença era, num certo sentido, pior do que a «peste negra»; com a peste conhecia-se o andamento da epidemia e era possível escondermo-nos numa terra que tivesse sido poupada; com a sífilis, ela apareceu quase simultaneamente em todo o lado. E como acontece sempre, quando se tem pouco para uma explicação científica, encontrou-se para o mal uma explicação celeste: acreditou-se na época que a sífilis era um castigo divino. E como foram rapidamente descobertas as suas ligações com o comércio sexual, declarou-se que Deus infligia este castigo aos homens para punir as suas aberrações, os seus excessos sexuais, e daqui o nome alemão Lustseuche 1. E assim foi que encontrámos um cronista, Ulrich von Hutten, uma das mais eminentes personalidades da época, escritor de combate e poeta, a escrever em 1519 o seguinte: «Aprouve a Deus enviar ao nosso tempo doenças que não eram, ao que muito bem sabemos, conhecidas pelos nossos antepassados. E os que têm a responsabilidade de tutelar as Santas Escrituras disseram que a sífilis era enviada pela cólera divina e Deus assim punia a nossa pecaminosa vida e a atormentava.» Pus esta passagem como exergo da minha obra para indicar, desde logo, quais eram as minhas intenções, ou seja, que não procurava de forma alguma a blasfémia nem a grosseria, mas queria fazer

1 Doença da luxúria. (N. do T.)

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compreender a particular situação em que se encontravam nessa altura os homens; situação que, na minha qualidade de antigo médico, em especial me interessava.

Senhores, imaginai agora que a partir deste dado, conhecendo a evolução desta terrível doença e procurando chegar historicamente a um ponto da situação, se caía neste espantoso facto: a corte onde piores excessos sexuais se praticavam era — de longe! — a corte do papa! A personalidade que se entregava às mais loucas, às mais incríveis orgias, era o papa Alexandre VI; e que em Florença, apesar de ela ficar a algumas léguas do lugar onde ele residia, um pregador da estirpe de Savonarola todos os dias lhe lembrava os seus ignominiosos pecados. Imaginai ainda que este papa, como todos os da sua divindade imbuído da grande pretensão de ser «Filho de Deus», «Vigário do Cristo», «Deus na terra», de ter relações directas com o Deus celeste, não receava distribuir a púrpura cardinalícia a alcoviteiros, mantinha em Roma as suas amantes e tinha acabado por mandar prender Savonarola, desembaraçando-se assim de um incómodo pregador — que até lhe tinha recusado um chapéu de cardeal! Tudo isto a acontecer com a pavorosa doença a devastar toda a Itália, com o povo, os eruditos, os teólogos a dizerem que ela era enviada por Deus para punir a impudicícia dos homens! E que estava sentado no trono de São Pedro um papa, chefe supremo da cristandade, que recebia, segundo a doutrina romana, «ordens directas de Deus», e que esse homem era o pior dos debochados, para quem a palavra impudicícia não passava de uma zombaria! Fazei agora a transposição deste tema para a época

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actual, pejada de cepticismo e falta de fé; fazei com que todos estes elementos históricos se congreguem nas mãos de um homem moderno, que tira deles um projecto artístico e possui — talvez para sua desgraça — o sentido da sátira; pois bem, pergunto-vos eu como é que pintaríeis, vós próprios, a Trindade? Como é que veríeis as divindades celestes que nestas circunstâncias enviavam à terra a sífilis para castigar a humanidade?

Mas ainda quero apresentar-vos as coisas sob outro ângulo. Senhores, em todas as épocas e em todos os países nunca deixou de dar-se ao Divino um lugar no domínio das artes. E quando se trata de representar o Divino, o supra-terrestre, ficamos sempre reduzidos às imagens quotidianas da nossa própria experiência, uma vez que não podemos fugir-lhes. Mas apesar de haver pintores, poetas, escultores, que procuraram sempre na terra os modelos das suas encarnações do Divino — as madonas de Dürer são louras alemãs, as de Murillo espanholas com olhar de fogo; o próprio Dante, na sua grande e sublime epopeia encheu com italianos o seu reino transcendental, os mistérios franceses da Idade Média davam ao diabo o temperamento gaulês — houve ainda assim alguns, como Klopstock, avisados de que deviam representar Deus renunciando às formas sensíveis; que não deviam ultrapassar o estado das formas intelectuais abstractas e os puros efeitos, tratando-se de formas verbais.

Mas, Senhores, não ireis por certo contradizer-me: a sátira é uma forma de arte tão válida como qualquer outra; o «pathos» tem tanto direito de cidadania como o «melos», e o «soccus»

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não tem menos justificação do que o coturno1. Quando um autor resolve escrever uma sátira, uma sátira divina, vê-se como qualquer outro artista reduzido aos modelos humanos. Tem de transpor para os Deuses as extravagâncias grotescas que observa nos homens. Creio que fiz-vos compreender com suficiente elevação como a sífilis, a explodir no Ocidente, foi um tema eminentemente satírico em relação ao papa dessa época; qual foi a opinião dos seus contemporâneos quanto à origem divina da doença e como a conduta do papa teria uma fatal repercussão sobre a forma como Deus era concebido. Senhores, não ireis por isso espantar-vos se n’O Concílio de Amor a descrição do Divino é o que é — embora eu lhe reconheça cores muito acentuadas.

Senhores, talvez façais a objecção de que só é permitida a pintura do sublime quando se trata do divino, e a pintura do cómico proibida. Mas, Senhores, tereis por outro lado de concordar comigo que não é esse o ponto de vista do artista. Fosse esta lei sempre respeitada, e nunca teria sido escrita uma única sátira sobre os Deuses nem sobre os homens; porque as sátiras sobre os homens sempre foram punidas mais severamente do que as sátiras sobre os Deuses. Nem os Diálogos dos Deuses de Luciano nem as comédias de Aristófanes teriam visto alguma vez a luz do dia; o inglês Wright nunca teria escrito a sua História da Caricatura nem o alemão Flögel a sua História do

1 O «pathos» é a configuração plástica dos corpos; o «melos» é a expressão sob a forma musical; «soccus» é uma palavra de origem grega que significa «calçado rústico»; «coturno» é um borzeguim até ao meio da perna, aqui a representar uma forma elegante de sapato. (N. do T.)

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Cómico Grotesco. Até acontece que a sátira, a vis comica, sempre foi um dos mais poderosos factores de progresso no domínio intelectual. Baste-me lembrar-vos a enorme influência que Rabelais exerceu na França, na época da República, com uma espirituosa verve que educou por assim dizer o espírito dos actuais Franceses; ora, os seus ataques, despidos de toda a deferência para com o Divino, foram impressos com o privilégio do rei. Citar-vos-ei ainda as temerárias companhias de satíricos alemães na época dos Fischart e dos Reuchlin.

Senhores, ireis talvez objectar-me que todo o artista deve suportar as consequências das leis do seu próprio país sobre a criação artística. E será certamente por isso, Senhores, que aqui estou à vossa frente. Mas ireis por certo reconhecer que a sátira é no homem um dom inato, e não será possível eliminá-la.

Senhores, na pintura do Divino, a nossa época moderna de forma alguma incita ao sublime! Quem pintaria hoje os gigantescos quadros religiosos de Hess e Cornelius? O nosso tempo mais nos inclina para o cepticismo e para a crítica. Muita gente quererá ver nisto um retrocesso. E noutros tempos sucedia o mesmo; a religião cristã conheceu várias épocas em que voltou a haver uma profunda descrença e um cepticismo extremo. A reprovação e a sátira surgiram quando a Igreja impôs as piores exigências aos corações — e às bolsas — sobretudo entre as pessoas cultas. Quando se fundaram as primeiras comunidades metodistas no primeiro terço do século XVIII, a Inglaterra teve uma dessas épocas. O caricaturista inglês William Hogarth foi o artista que mais perseguiu o seu tempo com impiedosas sátiras. Aqui tendes uma das

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suas gravuras mais célebres, que surgiu com o título Credulity, Superstition and Fanaticism: a cena representa o interior de uma igreja durante a missa; em baixo, entre as pessoas que rezam — como se o artista quisesse revelar à luz do dia os mais secretos pensamentos humanos — há um vaivém de alusões, sensuais e voluptuosas visões da pior espécie; e do alto do púlpito o pregador troça, com a mais grotesca das formas, das graças da Igreja. Apesar disto, nos seus comentários às águas-fortes de Hogarth o nosso Lichtenberg declara: «Mr. Walpole pretende que a gravura do nosso grande artista é a mais vigorosa sátira que o seu cinzel alguma vez produziu. Mesmo que haja neste elogio, de certa forma, um pouco de exagero, ainda assim parece que esta é, entre todas as gravuras de Hogarth, a que mais merece ser pendurada nas paredes de todas as casas. Basta-nos vê-la para sentirmos um arrepio e uma sensação de pavor; no entanto, tudo ali é verdadeiro.» Quis no entanto o acaso que esta reprodução, que eu ponho a circular nas vossas mãos num formato reduzido mas muito notavelmente conseguida, tenha sido feita e editada em Munique. E que eu saiba, Senhores, nenhuma gravura de Hogarth foi alguma vez confiscada.

Apesar disto, Senhores, tratando-se de sátira religiosa, como os Ingleses se mostram brandos e inofensivos se os compararmos com os frívolos Franceses, nossos vizinhos do oeste! A Revolução Francesa foi uma das épocas em que o Divino se fez um preferencial alvo de sarcasmos. Tinha-a precedido um longo período de livre-pensamento; e, na pátria de Voltaire, a repulsa que a gente da Igreja e o cristianismo inspiravam

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deveu-se em parte a uma verdadeira idiossincrasia que se dirigia a todas as religiões patenteadas, a uma religião que não tinha conseguido impedir o povo de ser, por um lado tiranizado, e por outro espoliado. Foi nesta época que nasceu o célebre «Esmaguemos o infame!». O infame era o cristianismo. Uma expressão que teve origem em Frederico II (veja-se a sua correspondência com Voltaire). Ora, Senhores, foi nesta época, em 1799, que apareceu «A Guerra dos Deuses», uma obra saída da pena de Parny, um dos primeiros poetas franceses, aquele a quem Voltaire chamava O Tibulo francês, e um dos poemas mais frívolos que alguma vez se escreveram. Provocou na França uma enorme sensação e foi acolhido com tempestades de «bravos». E só passados trinta anos sobre o seu aparecimento, durante um período de reacção política, é que ele foi proibido. Não obstante, foi até hoje muitíssimas vezes impresso; tanto o podemos encontrar espalhado por toda a França, como nas nossas melhores livrarias alemãs. Senhores, perante esse poema, O Concílio de Amor só pode tapar com vergonha o seu rosto! Este poema é particularmente frívolo por nenhuma das suas partes nos fazer ver, com clareza, que objectivo o leva a ridicularizar de tão incrível forma as personagens divinas. E, Senhores, com isto sublinho a diferença entre a obra de Parny e o livro hoje submetido ao vosso julgamento estético. Creio que a forma, n’O Concílio de Amor, está implícita no tema, a representação sem máscara contida no próprio problema. Na Itália desse tempo a sífilis era uma coisa que aterrorizava. Deus tinha-a enviado como castigo, numa altura em que o pior dos debochados que podemos imaginar, e a história

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conhece, era o seu próprio vigário. No entanto, no caso de Parny apenas se tratava de um exercício puramente formal do espírito, de petulância frívola e facécias gaulesas. Senhores, comparando-me com Parny afirmo-me, sem me emocionar, no direito de parecer que brinco aos moralistas! Ora, aqui tendes esse Parny, e apenas para vos ser dada a seu respeito uma breve ideia:

Os Deuses do Olimpo estão reunidos à volta de um banquete onde o humor é jovial, quando Mercúrio, o mensageiro dos Deuses, aparece esfalfado e anuncia a chegada próxima de uma nova raça de Deuses. Susto e indignação. Delibera-se o que é conveniente fazer. Minerva, a deusa da Sabedoria, faz notar que a mais antiga e verosímil raça dos Deuses todos os dias surge aos humanos mais dispensável, mais inútil. Jesus mete-lhe medo. Nesta altura Júpiter diz:

(Peço desculpa, Senhores, por citar-vos algumas passagens bastante vigorosas, mas pertencem ao âmbito da pequena exposição histórico-literária que vos convidei a escutar.)

…Vejam lá isto! Poderá Deus ser Um pobre-diabo, filho de um pombo, nutrido num estábulo e morto na cruz?…

Mas que Deus tão caricato!…

Mandam Mercúrio ver do que realmente se trata. E ele está pouco depois de volta para declarar: «Sim, são mesmo Deuses, os que se dirigem ao Céu.» Nova fúria, novo desespero. Mas enquanto se emitem as mais extravagantes propostas

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— irem ao seu encontro, expulsá-los do Céu, etc. — Júpiter faz das tripas coração: envia-lhes um mensageiro e convida-os — e aqui temos uma coisa bastante francesa — para jantar. As nossas divindades cristãs aproximam-se com a sua escolta de santos. E jantam com os Deuses do Olimpo. A Trindade está ali simbolizada por um velhote gotoso que ao colo traz um pequeno cordeiro e aos ombros um pombo. O cordeiro dá balidos e o pombo arrulha; quanto ao velho, quer fazer um discurso mas não consegue que uma única palavra lhe saia da boca; ri-se com um ar embaraçado e acaba por ir sentar-se à mesa:

Passa uma hora e os convidados chegam.

Seriam três ou apenas um?

Três num só, espero eu que compreendam.

Imaginai-o como um venerável pai

De fronte serena, com ar pouco comum,

Nem feio nem bonito mas viçoso p’rá idade

E muito bem sentado na garupa de uma nuvem.

Com barba branca e um bem redondo arco

Posto na cabeça que ele mantém inclinada;

Com um tafetá que é da cor dos céus

Como retoque do que traz vestido;

Descem-lhe do ombro pregas mui compridas

Que flutuam e correm para lá dos pés.

Do braço direito voa até ao esquerdo

O sagrado pombo com a sua auréola

A mostrar brancura ao longo das penas,

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Que todo se emproa como um orador.

Ao colo um cordeiro, cordeiro muito belo

Bem lavado e assim tão fresco, e assim tão delicado,

Com uma fita cor-de-rosa bem posta no pescoço,

E a tirar daquela auréola o melhor para o seu brilho.

Assim viam os três, mas numa só personagem,

E uns passos mais atrás aquela Virgem corada,

Que aos Deuses alinhados, só para vê-la passar,

Erguia modesta o envergonhado olhar.

Os santos e os anjos no limiar da porta

Findavam a parada, sabendo como brilhavam.

O Senhor do Olimpo recebia os convidados

Fazendo-lhes cumprimentos com a sua cara torta.

Bem queria o Venerando dar-lhe a sua resposta

Mas só tinha desde há muito uma linguagem morta.

Com uma vénia foi a rir-se, andando p’ró seu lugar,

Com o seu cordeiro a balir, muito gentil no seu ar,

Com o pombo todo espírito, entre os da sua família,

Abrindo o bico divino e a piar só em falsete

Alegorias celestes que só hebreus entendiam.

Todos se olharam espantados, quando o ouviram falar.

Eram todos percorridos por um murmúrio confuso, Por muitos risos trocistas entre muitas vozes surdas.

E aquele Espírito Santo, que era tudo menos tolo, Incomodado corava mas nada, nada, dizia.

Houve bravos muito longos, um forte ruído de palmas,

E toda a enorme sala, muito excitada tremia.

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Depois da Santa Trindade chegam anjos, mártires e a Virgem Maria. As deusas do Olimpo acham-na enfastiante, desajeitada, mal penteada e sem chique:

Vejam lá bem! Tão sem graça e tão sem jeito!

Como tem um ar banal, que penteado mal feito!

Apesar de a sua beleza ter qualquer coisa de campónio, o elemento masculino do Olimpo acha-a atraente quanto basta para se sentir obrigado a fazer-lhe a corte. Os Deuses enumeram-lhe os encantos físicos em termos que não me atreverei a reproduzir aqui, mesmo em francês. Depois do jantar, os convidados rodeiam o proprietário (I Canto.) Maria, por um acaso, vai ter ao gabinete de Vénus. E não resiste, curiosa, ao desejo de enfeitar-se com os preciosos trajos que ali vê. Entra nesse mesmo instante Apolo. Inflama-se quando descobre aquela mulher com sedutoras vestes… e Maria acaba por sucumbir aos tumultuosos avanços do Deus das Musas!

Estou em crer, Senhores, que ireis renunciar sem custo à análise dos nove Cantos. Mas estamos, como podeis ver, perante a mais frívola produção da poesia francesa. E a confirmar o que eu há pouco disse, ou seja, que a poesia quando quer representar o supra-sensível reduz-se ao conteúdo, às formas da experiência humana. Quando queremos representar no Divino o sublime ou o ridículo, pedimos sempre que o mundo terrestre nos empreste o que lhe é habitual. Em Parny, as divindades cristãs falam e actuam como nos salões franceses do século passado.

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Senhores, ficareis talvez a pensar que o autor de O Concílio de Amor se arma em moralista! Pretenderá ele desculpar-se, citando passagens ainda mais picantes de um poema francês? Não, Senhores, faço com uma consciência tranquila a distinção entre esta obra e a minha. Denegri propositadamente as divindades cristãs por estar a vê-las no espelho do século XV, por as contemplar através das lunetas do papa Alexandre VI. Senhores, temos implícita no nosso intelecto a representação do Divino. Na verdade, nem vós nem eu podemos saber o que lá no alto se passa. Se as nossas representações do Divino forem sublimes, é porque são sublimes no nosso intelecto; se forem ridículas é porque elas, de igual forma, são lá ridículas. E se um papa debochado faz passar do sublime ao ridículo a nossa representação do Divino, a operação é feita no nosso intelecto sem nada ter a ver com o que se passa superiormente a nós no domínio transcendental. Eu posso ter atacado o Divino, mas não ataquei a sobrenatural centelha que todos os homens têm incubada no seu coração; ataquei o Divino que se tinha feito, com Alexandre VI, uma verdadeira caricatura. Mas voltemos ao nosso autor francês; vós, Senhores, possivelmente ireis responder-me que na Alemanha nunca se representou o Divino de tão grotesca forma; que só a leviandade dos Franceses e a falta de respeito dos Ingleses permitiram uma barbaridade deste género. Correndo o risco de reter-vos mais alguns instantes, terei de ler-vos algumas passagens do poeta popular suábio Sebastian Seiler (1714-1777). São extraídas da peça humorística O Caso Lúcifer, que teve o dom de muito divertir Goethe. Estamos aqui num domínio muito diferente,

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

o da poesia em dialecto suábio. Mas ireis ver que a cor permanece intocada. O primeiro acto começa com um coro dos anjos:

Danza, schpringa, pfeifa, singa, seand im Himmel alte Ding. Bei Schalmeia

Juhui schreia, dass oim schier der Sack verschpring.

Hupfa, danza, d’ Läus und d’ Wanza über d’ Schträhla schüttla — ra, Schträhl und Kämpel naus zum Tempel, wenn man schreiet Hopsasa!

Dançar e saltar, Assobiar e cantar, No céu é vulgar para a sua gente.

Ao som de uma flauta

Há gritos: Ei malta!

Até haver peidos pelo baixo-ventre.

Com pulos e danças

Saltam piolhos e alguns percevejos,

Como se ali houvesse pente ou um almadraque.

Saí desse templo sem olhar para trás

Se ouvirdes gritar: Dá agora um traque!

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O argumento da peça é este: capturar Lúcifer rebelde impenitente, e levá-lo ao tribunal de Deus. Acabam por fazê-lo quando o surpreendem num lugar que a boa sociedade não nomeia. O Arcanjo São Miguel dá uma volta à chave, e lá temos o Lúcifer prisioneiro. Hanswurst (o polichinelo alemão) confere-lhe na ocorrência um forte apoio. Ambos se apresentaram perante Deus Pai com a notícia:

SANKT MICHEL :

Luschtig, Gott Vater! Ebbas Nuis!

Verschreaket itt, wenn ich mein Buffer aschniss. Luzifer ischt g’fanga!

Ich will nun gaun saga, wia’s ischt ganga.

são miguel:

Ora bom-dia, Deus Pai! Sabei esta novidade!

E não deveis assustar-vos com o peido desta pistola. Temos o Lúcifer preso!

E posso agora contar-vos como isso é a realidade!

Terminado o relato, Deus Pai recompensa-os com um copo de vinho:

GOTT VATE R :

Michel! gang in Kealler!

Doa hoascht Rheinwein, Muschkateller, Mosler, Neckarwein, Burgunder,

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In die Flascha ganze Plunder; Velteliner und Tiroler seand au guate Magasohler, wemma schpeit, oder wenn dar Mag verheit, Sag nun, was witt saufa?

deus pai :

Desce, Miguel, vai à cave!

Tens lá vinho do Reno e um vinho moscatel,

Tens um vinho de Moselle, tens Neckar e tens Burgonha,

Tens um grande regimento todo feito de garrafas

Com vinho de Valteline e um vinho do Tirol

Para um estômago bem aviado

Se lhe der para vomitar

Ou se outra doença houver no seu bucho avariado.

Mas, diz lá, o que vais tu neste momento emborcar?

Mas é tão azedo, o vinho que lhes oferecem, que nem São Miguel nem Hanswurst conseguem bebê-lo. Decidem obrigar Lúcifer a engoli-lo, castigando-o assim pelos seus numerosos delitos. E pedem a Deus Pai para fazê-lo:

GOTT VATE R :

Meinethalba, will’s probira!

Lassa g’schwind zua mar rein f ühra.

Hanswurscht! gang naus, suscht muass ih lacha; Ih muass gaun eanschtliche G’sichter macha!

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deus pai :

Se é essa a tua vontade, eu vou fazê-la cumprir!

Trá-lo até aqui, sem entrave.

E tu, Hanswurscht, põe-te a milhas; porque só me fazes rir

Ele deve ver-me sereno, e apenas com ar grave!

Lúcifer é introduzido na cena.

LUZIFER :

Bardaun, Gott Vater, Bardaun!

Gealtat, ar kennt mich schaun?

GOTT VATE R :

Wohl redle kenn dich, aber jetz b’sinn dich!

Was hoascht ang’fanga?

Wia weit bischt ganga?

LUZIFER :

Bardaun, Gott Vater, Bardaun!

GOTT VATER :

Halt’s Maul! I kenn dich schaun!

Sankt Michel hoat mir eaba gean an guata Rat, dass da g’wis kommst in die graischt Noat.

Gugg dötta as seall Glas Wein, vom Sai ischt as? Jetz glei trinks nein!

Noah lass ih für äll deine ussam Hana, dass ar wearat krumm und lahm uf älla Viera, oder müesset gar wia d’Hund krebbiera!

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lúcifer :

Eu peço perdão, Deus Pai, pela minha grande asneira!

Mas não me conheces tu, desde há muito e de ginjeira?

deus pai :

É claro que eu te conheço, muito bem e de ginjeira

Mas presta mais atenção!

Diz-me lá: o que fizeste?

A que ponto te atreveste?

lúcifer :

Eu peço perdão, Deus Pai, pela minha grande asneira!

deus pai :

Cala-me lá essa boca! Conheço-te bem, de ginjeira!

Acabou o São Miguel de dar-me um bom conselho:

Vou fazer-te vomitar à custa desta mistela.

Vês tu este vinho em copo

Que aqui está, vindo do lago? Enfia-o nessa goela!

E mais outro eu vou tirar, saído da mesma torneira

Esse que eu vou destinar aos que tens à tua beira.

Que ele vos torça bem as tripas, que ele vos ponha a andar de gatas;

Faça esticar o pernil como aos cães de quatro patas!

Mas Lúcifer repele o vinho porque até sabe, diz ele, onde encontrar um melhor.

LUZIFER :

Botz dausat Sakerment! und älle sieba Elament!

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Dar Tuifel holl s’Michels sei G’schmoiss, dös wainsch ih, so wahr ih Luzifer hoiss!

lúcifer :

Pelos santos sacramentos!

E pelos sete elementos!

São Miguel vá pr’ó diabo, com todos os que ele quiser, E que isso seja tão certo como eu ser o Lúcifer!

Deus Pai então ordena que precipitem aquele fedorento diabo no inferno.

SANKT MICHEL :

Maarsch, du Höllehund, Maarsch!!

LUZIFER :

Leackat mar mitanand im Aarsch!

são miguel:

Para lá mando-te eu; cão do diabo, vais tu!

lúcifer :

A todos darei a beijar este meu olho do cu!

O diabo sai. Os anjos, que permaneceram em cena, entoam um coro em louvor do Deus Pai.

Senhores, como podeis ver, é completamente diferente o efeito deste quadro! Se o compararmos com o fino manjar de

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Parny, é uma pouca-vergonha suábia. Note-se que nenhum povo, seja ele alemão, francês ou inglês, perde uma oportunidade de meter a sua religião a ridículo. E para o fazer todos recorrem às formas e às cores que os rodeiam. Basta Klopstock escrever a sua Messiada, para ser mais do que certo que no meio popular aparece, para descanso dos nossos ouvidos, uma Offenbachiada celeste. E quanto às carrancas e figuras grotescas que ornamentam os pórticos das nossas igrejas, todas são sátiras e epopeias cómicas de âmbito religioso. E Sebastian Seiler? Quem era ele? Seria um qualquer cantor ambulante, desses que fabricam as suas graças equívocas de acordo com os sobejos de um bom jantar ou de um copo de vinho? Ou um desses «modernos» do século XVIII, com esperança de ganharem fama com um escândalo literário? Não; era um pregador, cónego do convento suábio das Regregantes de Obermarchthal. E tinha tão difundida a sua reputação como pregador, que em todos os cantos da Alemanha subia ao púlpito, segundo o costume da época. Esteve na Francónia, na Morávia, até pregou em Viena perante a imperatriz; chamaram-lhe «o Cícero suábio» mas foi, sem dúvida, atacado muitas vezes por causa das suas peças, e teve a agitarem-se contra ele as autoridades eclesiásticas. No entanto, quando o cardeal Von Rodt, seu superior e bispo de Constância, foi pessoalmente a Obermarchthal durante uma viagem de inspecção, ele fez-lhe a representação de uma das suas peças, e não só foi aprovado com aplausos mas ouviu que era estúpido e errado o juízo dos seus adversários! Depois disto as obras de Seiler foram muitas vezes impressas e muito amadas em Wurtemberg,

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como aconteceu com o seu Primo da Suábia. A edição que tenho nas mãos está ornamentada com desenhos de Nisle, o bem conhecido ilustrador de Hebel. E na cena que vos li pode ver-se Lúcifer com trajo de almotacé de aldeia, botas de cano revirado e grandes botões de prata, com as duas grandes asas amarradas atrás das costas; São Miguel tem na cabeça um grande casco agaloado e usa a farda dos granadeiros de Napoleão; Deus Pai está sentado numa poltrona, vestido com um roupão; tem os pés descalços metidos em chinelos deformados e na cabeça uma touca nocturna coroada com estrelas; atrás de si há esculpido no espaldar o famoso «olho divino», o bem conhecido símbolo da Trindade; e ao lado da poltrona um escarrador.

Senhores, como podeis ver, o humor e a sátira são dois aspectos da natureza humana que não sabemos suprimir; e até no domínio religioso encontram justificação, elevação, entusiasmo.

Achais esta época mais disposta a deixar os rigores da lei fazerem o seu jogo? Senhores, apareceu há meio século A Vida de Jesus de David Friedrich Strauss. E todos sabeis que foi um livro encarecido nos meios cultos e se fez, de certa forma, ponto de partida para o cepticismo religioso na Alemanha. Nos dias de hoje bastará que eu pronuncie o nome de Harnack, autor do livro A Profissão de Fé Apostólica, que apesar de rejeitar como anti-histórico o sobrenatural nascimento do Cristo tem-se espalhado por todos os meios com mais de cinquenta edições. Senhores, apesar de eu, protestante, me dirigir a uma assembleia que é, como se calcula, de maioria

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católica, autorizar-me-eis por certo a trazer aqui elementos que deixem a minha obra esclarecida a uma luz completamente diferente daquela que convém aos olhos de um católico; todos vós sabeis, tão bem como eu, que foram nos nossos dias suspensas no Império Alemão dezenas de pastores protestantes por a sua consciência não lhes permitir pronunciar a tradicional fórmula do baptismo onde se torna manifesto que o Cristo nasceu de uma forma sobrenatural; e que outros pastores batem à porta dos sínodos, a implorar a sua ajuda e desejosos de que haja tolerância na nossa geração de pouca fé. Senhores, apesar disto podereis acreditar que esta época encontre razões para citar perante o tribunal uma obra que pode, na sua sátira religiosa, comparar-se com outras que noutros tempos existiram?

Senhores, apelo ao vosso respeito pela liberdade, tendo em conta o país onde o meu livro foi publicado. De facto, este livro não foi publicado na Alemanha, mas na Suíça. Todos os autores alemães com qualquer coisa no coração que não pode ser impressa na Alemanha, costumam recorrer ao estrangeiro. Os cirurgiões ingleses com vontade de praticar a vivissecção vão à França, porque ela é proibida na Inglaterra, e depois de fazerem essas operações regressam ao seu país. A nenhum deles ocorreria que um qualquer tribunal inglês os perseguisse, uma vez que se trata de um acto cometido no estrangeiro, onde ele não é punido. Se tratardes um livro impresso no estrangeiro como um livro impresso na Alemanha, porque infringe as leis alemãs, estais a deturpar as intenções do autor e a atacá-lo num

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ponto onde ele é incapaz de se defender; estais, numa palavra, a tratá-lo com injustiça.

Senhores, apelo ao vosso inato sentimento de justiça e solicito a minha absolvição.

O grupo de jurados de Munique ouviu com paciência a longa defesa do acusado, mas não quis ficar convencido. Agarrou-se ao artigo 166 do Código Penal, encontrou-lhe noventa e três blasfémias, e condenou Panizza ao ano de prisão que ele cumpriu até ao fim. Só em murmúrio e em privado se ouviram vozes a indignar-se com esta severidade da Justiça; mas continuou a haver uma inegável simpatia pública pelos escritos que enfrentavam com coragem a corrente religiosa-moralista tutelada pelas leis. Lia-se por todo o lado Feuerbach, Max Stirner, David Strauss e Bruno Bauer.

O cárcere minou a saúde física e mental de Oskar Panizza. Todos o acharam na sua nova liberdade pálido e magro, hesitante e com soluço fácil, a mostrar que tinha perdido uma grande parte da sua energia. Mas isto não o impediu de escrever em 1896 o texto «Adeus a Munique», uma brochura com audácias e acusações incómodas que o fizeram alvo de uma nova ordem de prisão — mas esta inútil porque Panizza vivia agora em Zurique, ao abrigo das severidades jurídicas do Império Alemão e decidido a adquirir a nacionalidade suíça.

Longe da Alemanha, o escritor publicou Psychopatia criminalis, uma sátira onde a raiva persecutória dos procuradores Alemães era vista como um vírus, uma «doença política» destinada a atacar inexoravelmente todo o povo alemão.

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Panizza ainda pôde dirigir em Zurique um jornal e publicar estranhos artigos onde começaram a revelar-se os primeiros e mais significativos sinais do que viria a ser apelidado, de uma forma pouco científica, «desintegração mental». E como se isto não bastasse, no Outono de 1898 a polícia de Zurique expulsou-o do cantão (uma ordem com efeitos práticos em toda a Suíça) por ter contratado uma menor de catorze anos e ter feito dela a sua Alice (é impossível não nos lembrarmos de Lewis Carroll) numa série de fotografias onde podia admirar-se nua a sua graça infantil.

Sem Alemanha e sem Suíça, Paris foi a solução que Panizza encontrou; mas viveu lá num grande isolamento social e intelectual, com grandes dificuldades pecuniárias, e viu-se obrigado a regressar à Alemanha onde o processo não prescrito, motivado pelo texto «Adeus a Munique», fê-lo suportar quatro meses de uma pena de prisão que era pela sentença judicial mais extensa, mas foi encurtada por o seu comportamento, avaliado agora pela ciência psiquiátrica como «paranóia crónica», ter-lhe concedido a condição de «irresponsável». Estas vicissitudes germânicas fizeram-no decidir que só falaria francês — e voltaram a mostrar-lhe, como lógico e inevitável, o seu regresso a Paris.

Foi neste Paris melancólico que ele próprio começou a considerar-se louco. Ouvia incomodativos apitos e atribuía-os a um conluio entre o governo alemão e detectives franceses, a uma estratégia «sabiamente calculada para lhe desarranjar o sistema nervoso», com todos os artifícios necessários para «lhe irritar os nervos auditivos»; uma estratégia que também sabia incutir-lhe no espírito uma falsa atracção pelo casamento, uma vontade de contrair matrimónio que não estava de forma alguma nos seus

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planos e era desaconselhável a alguém com uma sífilis não resolvida pela ciência. Estes ruídos começaram por atingi-lo, vindos da casa que ficava à frente da sua, mas acabou por ouvi-los quando passeava na floresta de Montmorency, emitidos pelas árvores. Foi este Panizza desorientado, insuportavelmente ferido por apitos e assédios, que tomou a decisão de regressar à Suíça (onde já estavam judicialmente perdoadas as suas práticas pedófilas) e instalar-se à beira do lago Leman. Mas tempos depois sentiu vontade de regressar a Munique. E Munique restabeleceu a sua desagradável relação com «os apitos».

Uma desesperada consciência do seu estado mental levou Panizza a querer internar-se voluntariamente num asilo de alienados; ficaria assim provado, através de exames de uma medicina especializada, que os seus incómodos se deviam a um distúrbio mental e transcendiam o que outros médicos continuavam a querer ligar a causas menos graves, físicas e psicológicas. Mas as novas observações clínicas a que foi sujeito não encontraram motivos para o pretendido internamento.

Num quarto alugado, Panizza cedeu a uma exasperada solidão. Ouvia apitos com uma intensidade e uma persistência insuportáveis. E decidiu suicidar-se. No dia 9 de Outubro de 1904 escreveu um apressado testamento, dirigiu-se a um local retirado do Jardim Inglês, escolheu uma árvore, começou a executar os preparativos para o seu enforcamento mas a coragem faltou-lhe, fazendo fracassar o salto decisivo do alto da árvore a que já tinha subido.

«O doente que nas últimas vinte e quatro horas não tinha comido», diz no seu texto autobiográfico, «regressou a casa profun-

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George Grosz, O Funeral (Dedicado a Oskar Panizza), 1917-1918.

damente envergonhado. No dia 19 de Outubro recorreu a uma derradeira estratégia, ridícula se a compararmos com a anterior mas não ineficaz se a avaliarmos pelas suas consequências; nesse dia, a caminho da biblioteca pública e durante um passeio solitário em Oberföhring e nos seus arredores, foi vítima de inegáveis apitadelas. Voltou para casa, despiu-se, e naquele dia de bom tempo, por volta das cinco horas resolveu circular em camisa pelas ruas Sterneck, Maria-Theresia e Leopold. Tinha a esperança de ser preso e de que o mandassem, com a suspeita de debilidade mental, para um estabelecimento público onde seria examinado por especialistas; conseguiria assim o que três meses antes não tinha conseguido no asilo da Alta Baviera. A sua manobra resultou. Foi agarrado e levado para a casa mais próxima, onde se identificou ao polícia como Ludwig Fromann, estenógrafo em Wurtzburgo. Chamaram uma ambulância, o doente foi transportado para as instalações da polícia e transferido, depois de um exame rápido pelo médico do distrito, para o pavilhão dos alienados do hospital.»

Panizza passou ali os dezassete anos que lhe restavam de vida. Foram encontrados no seu diário poemas com títulos expressivos, como «A Doença Secreta», «Um Poeta que Viveu em Vão», e escritos que se tinham feito cada vez mais confusos até não passarem de uma inextricável mistura de mitos, lendas e textos bíblicos, sem lhes faltar a companhia de uma explícita pornografia. Panizza morreu no dia 28 de Setembro de 1921. O seu funeral, destituído de todas as formalidades, nada teve da desvairada e tumultuosa imaginação que o pintor George Grosz nos mostra no seu quadro O Funeral (Dedicado a Oskar Panizza).

Apresentação 

O pastor Lippert, seu tutor nesses anos de asilo, limitou-se a cumprir o que ficava escrito num dos seus últimos poemas:

Devem plantar-me no túmulo o cipreste austero, Nenhuma rosa, porque a vida para mim austera foi…

Apresentação
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A.F.

PREFÁCIO DE ANDRÉ BRETON

Mesmo que nos debrucemos pouco sobre o abismo do Mal, enquanto problema ele fere com precaridade a corda a que os homens se agarram para ali descer e, se possível, subir. Tocar-lhe no fundo nunca é mais do que ter contacto com a pegajosa multiplicação e sentirmos horror sem poder, sob os raios de um candeeiro vacilante, definir-lhe limites nem convencermo-nos da sua necessidade sem recorrer a um capcioso artifício. Esse artifício baseia-se na imposição da ideia de Pecado, original ou não, com a qual não saberemos espantar-nos o bastante e afligir-nos por ela poder ser vulgarmente admitida como admissível e suficiente razão, apesar do que deixa subsistir quanto a gritante iniquidade: por um lado, a monstruosa desproporção entre um pretenso delito ancorado no imemorial, no mítico e, bem feitas as contas, no indeterminável (como consequência da ambiguidade simbólica), por outro, a sua repressão sob a forma das piores penas corporais e outras, infligidas ao conjunto da humanidade sem discernimento nem recurso. Por certo, este gosto pela vendetta desvairada e sem riscos não podia deixar de encontrar mais zelosos apologistas do que os ministros de uma religião que tendeu cada vez mais a confundir o seu deus com o instrumento do seu suplício, ao qual atribui um sentido de «resgate» que sirva de

exemplo, e às calamidades um sentido de «provações» que precisamos de tomar como peremptória marca da solicitude divina.

O fundo do abismo: porquê o Mal?… Estão conjugados nesta interrogação, que parte deles à maneira de um turbilhão de fogo e matérias incandescentes, todos os Grandes — tanto os de um lado como os do outro — todos os que se viram lá precipitados, quer tenham trazido até à superfície, mesmo que isso seja impossível, um ramo florido (o amor, por não haver inteligência da vida), quer um não menos belo ramo totalmente destruído. A alguns deles foi a imposição dogmática que lá os mergulhou, os incitou a ir vê-lo pessoalmente e, custasse o que custasse, a oferecer a tudo isto uma solução que comprometesse a sua própria consciência. Aos outros foi a fealdade deste Mal, chamado a condicionar a vida, que os acometeu de repente fazendo-os virar-se para sempre contra um dogma que pretende fundar sobre a existência deste Mal, e o seu reflexo em nós, a liberdade humana e deste modo encontra o meio de necessitar dela. Eles não são forçosamente os menos grandes corações. Entre estes e aqueles só a estreiteza de espírito poderia querer impor uma ordem de precedência. É exactamente a mesma nuvem esquadrinhada por relâmpagos que nos traz, chegada a sua ocasião, Dante e Milton, Bosch e Swift, alguns gnósticos, Gilles de Rais e Sade, Lewis e Maturin, o Goethe do Segundo Fausto e o Hugo das últimas recolhas, Lequier, Nietzsche, Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud.

Oskar Panizza
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A poesia, que neles indistintamente se compraz, não permite que se divida em duas partes os tons levados ao diapasão da tempestade. Antes de termos podido pensar em reconsiderar, de haver a possibilidade de podermos debruçar-nos sobre as nossas posições anteriores, eles projectam-nos para o coração do drama essencial.

Nesta nave batida pelas mais altas vagas, onde as mais escuras não são as que menos resplandecem, é tempo de Oskar Panizza ser reconhecido. A orquestra que nos ocupa não deixa de necessitar, em relação à pintura que ele ataca, de algumas estridências que só o seu instrumento é capaz de fazer soar. Perante o Mal e a sua tentativa de justificação no plano teológico, Sade e Lautréamont erigem o homem empertigado, a atirar flechas em todos os sentidos da exaltação sexual, intelectual, para dissipar os logros e quebrar os entraves seculares. Antes de mais, mantêm a imprecação e o desafio, com o humor a servir-lhes apenas de supremo recurso quando a tensão prolongada que eles exigem não poderia ser-nos causa de ruptura. Pelo contrário, com Panizza — bem mais do que o seu compatriota Christian Dietrich Grabbe — quem conduz o jogo é a zombaria, varrendo ao mesmo tempo todas as auréolas com uma única borrasca saturada de sal. Desde o início ela agarra-se às personificações do «sagrado» que um grande número dos nossos contemporâneos persiste em venerar e é muito raro existir entre os incrédulos que se crêem no dever de infringir este tabu. Na defesa que o autor de O Concílio de

O Concílio de Amor
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Amor apresenta da sua peça perante o Tribunal Real de Munique ele argumenta o seu direito com os precedentes desta via, mas não conseguirá desarmar a maior razão de queixa: a de ele dispor de muitos outros recursos e ter chegado muito mais longe do que os seus antecessores. Convenhamos que leva muito abruptamente o espírito de revolta a um determinado período e desafia interdições que presumivelmente ainda fazem nos nossos dias os espectadores terem uma reacção que imporia o abaixamento do pano antes de terminar a primeira cena.

A descoberta de génio, com uma natureza que faz apaixonar quanto possível a atmosfera, determina aqui o ponto ultra-nevrálgico onde se faz jogar — bastante perto de nós no tempo, para sentirmos um pouco que nos diz respeito — a relação de «consequência», dada religiosamente por estabelecida, entre o erro humano e a cólera divina expressa sob a forma de flagelos que se abatem sobre a terra. E porque o amor também é por excelência o que pode arrancar o homem às misérias da sua condição, era do mais lancinante interesse situar a acção neste ponto preciso, onde o testemunho dos cronistas quer que a vingança do céu o tenha tomado como alvo para o conspurcar. Era tentador ao mais alto ponto, a partir dos móbiles humanos, os únicos que podemos captar, desembaraçar os fios — nos andares superior e inferior (?) — que podiam urdir uma tão abominável maquinação. Que o desejo e o prazer estivessem longe de ser todo o amor, e ao dar-lhes toda a licença o homem

Oskar Panizza
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se desfizesse do amor enquanto princípio único de transmutação, provavelmente chave do maravilhoso. O desejo e o prazer ainda assim não serão uma parte menos integrante do amor; nada consegue que a carne deixe de ser una; e a sentença que os atinge, introduzindo-lhes para sempre a suspeita, não chegue mesmo ao amor. Não é demais os soberanos, que a nós próprios demos, serem nesta ocasião intimados a comparecer. O escândalo não está na chocarreira deliberação que Panizza lhes concede; está por completo no veredicto que nós queremos ou toleramos que eles tenham proferido.

Sob os escombros que ele amontoa, uma planta insiste em crescer e ficamos com a certeza de que a sua raiz permanece saudável e mais não é do que a simpatia. Esta simpatia, onde reside a profunda energia da peça, fixa-se irresistivelmente sobre o Diabo. E se isto acontece é porque só ele, em toda a colecção de imagens, permanece empreendedor e eficiente. Mesmo que ele — a pedido — medite contra nós a mais assustadora das armadilhas, aquilo de que somos feitos não deixa de ficar fascinado pelo seu pensamento, como se ele fosse nosso e transformado em prata de lei. E como os seus meandros também se decalcam sobre os nossos, somos acessíveis às queixas e às suas reivindicações, por mínimas que elas sejam, em função da sua inegável capacidade. O Diabo nunca nos surgiu mais próximo, ao dominar com todos os prestígios da inteligência um olimpo tão deslustrado. No que toca a dedução e a cômputos, obriganos a reconhecer a sua perícia. A tradição que o apresenta como

O Concílio de Amor
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votado a executar as baixas tarefas do Criador mostra-o aqui, o mais possível, à altura da empreitada. E consegue além disto tocar-nos com os seus desaires e até com as suas fraquezas, ao ponto de nos imaginarmos no Gotha, embora o cometimento que vemos consumar-se bastasse para consagrá-lo como Príncipe da astúcia e o arconte deste mundo.

O Eterno Feminino em Panizza conserva todo o seu atraente valor mesmo que seja necessário, como em Goethe, que a atracção se opere na direcção ascencional. Desde Maria até às diversas criaturas a que o Diabo faz um apelo, incitando-as a levantar-se uma após outra do campo dos mortos, todas se rivalizam em inconsciência — com a comovente excepção de Heloísa — e chegam a ser quase um obstáculo. Quanto a estas últimas, a persistente sedução que exercem está ao nível das devastações que fizeram. O Diabo não saberia mostrar muita dificuldade em escolher entre elas a sua parceira — a que tivesse uma beleza aliada à mais gratuita das perversidades — para realizar dentro dos limites prescritos esta obra-prima de perdição: a Mulher ainda mais atraente do que nociva, mesmo na sua carne, como que ausente de si própria e a associar todas as glórias da noite ao seu sumptuoso trajo de trazer por casa.

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últimos títulos da colecção Sistema Solar

Os meus Oscar Wilde, André Gide

As aventuras de uma negrinha à procura de Deus, George Bernard Shaw

Meu irmão feminino – «Noites Florentinas», Marina Tsvietaieva

Jean-Luc perseguido, Charles Ferdinand Ramuz

O filho de duas mães, Edith Wharton

A armadilha, Emmanuel Bove

Um jardim na margem do Orontes, Maurice Barrès

Erotika Biblion, Conde de Mirabeau

A minha amiga Nane, Paul-Jean Toulet

Paludes, André Gide

O bar dos dois caminhos, Gilbert de Voisins

Sol, D.H. Lawrence

Cagliostro, Vicente Huidobro

As magias do Ceilão, Francis de Croisset

Má sorte que ela fosse puta, John Ford

Chita – uma memória da Ilha do Fim, Lafcadio Hearn

A mulher 100 cabeças, Max Ernst

A dificuldade de ser, Jean Cocteau

O duplo Rimbaud (com um preâmbulo de Benjamin Fondane), Victor Segalen

A vida apaixonada da grande Catarina, Princesa Lucien Murat

Casa de incesto, Anaïs Nin

Morte de Judas seguido de O ponto de vista de Pôncio Pilatos, Paul Claudel

Os domingos de Jean Dézert seguido de contos, Jean de la Ville de Mirmont Ser ou não ser – Três histórias, Honoré de Balzac

Babilónia, René Crevel

O encontro (uma história incerta), Henri de Régnier

Carmilla, Sheridan Le Fanu

Mulheres na vida, Guy de Maupassant

O plantador de Malata, Joseph Conrad

A mandrágora, Jean Lorrain

A biografia de Vénus, deusa do amor, Francis de Miomandre

Viagem ao país dos Tarahumaras, Antonin Artaud

O nevoeiro de 26 de Outubro e outras lições de abismo, Maurice Renard

Salomé, Salomés…, Gustave Flaubert, Oscar Wilde, Guillaume Apollinaire e ainda Mário de Sá-Carneiro, Eugénio de Castro, Fernando Pessoa

Battling Malone, Pugilista, Louis Hémon

Kyra Kyralina, Panait Istrati

Codine, Panait Istrati

Carmen seguido de Lokis, Prosper Mérimée

Jésus-La-Caille, Francis Carco

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