Emmanuel Rhoides, A Papisa Joana segundo o texto de Alfred Jarry

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tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes

Para Jarry, a heroína patafísica. A lenda menos lendária das religiões do Cristo.

Emmanuel Rhoides A PAPISA JOANA

Emmanuel Rhoides A PAPISA JOANA segundo o texto de Alfred Jarry

Emmanuel Rhoides A PAPISA JOANA

segundo o texto de

ALFRED JARRY


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A PAPISA JOANA segundo o texto de A L F R E D J A R RY


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Emmanuel Rhoides A PAPISA JOANA segundo o texto de A L F R E D J A R RY

tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes


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TÍTULO ORIGINAL: LA PAPESSE JEANNE ( H PAPISSA IWANNA )

© SISTEMA SOLAR, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: UMA GRAVURA DO SÉCULO XVII ALUSIVA À PAPISA JOANA 1.ª EDIÇÃO, JULHO 2014 ISBN 978-989-8566-51-5

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DEPÓSITO LEGAL 377956/14 EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA


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Em 1865 a literatura grega — não havia Nikos Kazantsaki e não havia Kavafis — só era além-fronteiras um sabor antigo. Orgulhava-se muito do distante Homero, acrescentava-o com a mão cheia dos que lá brilham no seu prestígio clássico, mas parecia incapaz de sobressaltos que chegassem a notícia no que era conhecido como centro do mundo culto nesse século. Emmanuel Rhoides foi uma surpresa quando «a sua Papisa» surgiu numas quantas línguas da Europa (com atraso de mais de dez anos, podemos hoje admirar-nos) e acolhida num êxito inconsciente do escândalo que a Igreja Ortodoxa Grega tinha levantado longe, com o ruído da excomunhão do autor, da condenação da obra, da guilhotinagem dos exemplares que se arriscavam à sua divulgação. Apesar disto, uma França que olhava muito para si própria e pouco ouvia rumores gregos foi capaz de imaginar o fenómeno Rhoides como fraude. Via na tradução francesa anónima de 1878 um estratagema do editor Maurice Dreyfous que encobria um nome nacional — ora Edmond About, ora Frédéric Sarcey. E houve indignações maiores; mais evidente a de Barbey d’Aurevilly, católico mal-humorado que talvez quisesse como direito apenas seu escrever romances incómodos para a religião católica (por exemplo, Un prêtre marié ou Une histoire sans nom) e publicou em Le Constitutionnel um artigo contra esse anónimo compatriota, autor do falso original grego que se chamava A Papisa Joana. Envoltas pela sua


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sintaxe elegante ocorreram-lhe as invectivas que eram nessa época prova exigida à energia do jornalista polémico. Só em 1881 uma segunda edição da mesma tradução anónima desfez estas bem firmadas ilusões de fraude. Sabedor na Grécia da polémica de Paris, Emmanuel Rhoides mandava ao editor francês uma fotografia, uma carta, e respondia com serenidade aos insultos de Barbey d’Aurevilly: «Depois de o senhor negar a existência de Joana VIII, também nega a minha e acusa os inimigos da lei de terem inventado um senhor Rhoides grego “para fuzilar a Igreja pelas costas como um refém”. Isto põe-me num grande embaraço. Por um lado não consigo declarar-me culpado daquilo a que o senhor chama “obra celerada”; e por outro só honestidade me obriga a não recusar um testemunho a quem mo pede, e lavar-me da acusação de ter querido atirar sobre a “pátria de Fídias” a responsabilidade de uma má acção cometida por alguém que o senhor afirma ser “natural de Paris e do século XVIII”. […] O seu direito à ignorância parece-me muito menos fundamentado quando o utiliza para afirmar que “entre os testemunhos que garantem a existência de um papa-mulher nenhum é virgem de ignomínia; todos são suspeitos, quando não desonestos.” Falando apenas de testemunhos católicos parece-me que Santo Antonino, arcebispo de Florença, o papa Pio II, o abade Petrarca, o investigador Bernard Gay, Thierry de Niem, e sobretudo Jean Gerson ilustre chanceler da Universidade de Paris, chamado Doctor Christianissimus, mereceriam ser tratados com maior amabilidade. Podem ter-se enganado; mas é a primeira vez que vejo alguém chamar-lhes gente suspeita, vergonhosa e desonrada. […] E ainda: “Para remexer sobre uma tábua apodrecida esta lenda imunda cem vezes morta e remorta in-folio, in-quarto e in-octavo foi preciso uma cabeça in-


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digna mergulhar, sob o céu azul da Grécia, no esterco das mais negras bibliotecas alemãs e reunir os detritos de crónicas ignaras e mentirosas.” Tudo isto é pouco exacto. […] No seu artigo o senhor pinta o autor deste desafortunado livro dando-lhe os traços de “um pedante com uma cabeleira de textos, empoado com poeiras, uma lagarta de biblioteca, um roedor de detritos que afecta por hipocrisia um ar superficial, um tartufo da frivolidade, etc.” Este retrato não é fiel. Quando cometi há doze anos este livro eu não tinha chegado aos vinte e cinco. Aquilo que o senhor toma por obra de um ódio longamente meditado pouco mais poderá ser do que um devaneio de colegial. Sem me deixar fascinar com as traduções, as reimpressões e os artigos elogiosos de que este romance foi alvo, mesmo na França, eu próprio lhe chamei em plena conferência pública pecado de juventude e sou o primeiro a reconhecer as suas imperfeições e as cruezas do seu estilo. Lendo o seu artigo senti-me muito contente por ter finalmente encontrado alguém com a mesma opinião que eu. Não posso no entanto impedir-me de ficar um pouco espantado por tão severo juiz, o único que foi para mim severo, ser o autor de La vieille maîtresse e de uma memória justificativa de La charogne de Baudelaire, obras que sou forçado a conhecer, caro Senhor, na minha qualidade de “roedor de detritos” e de “lagarta de biblioteca”». Emmanuel Rhoides tinha deixado de ser em Paris um escritor inventado para obter a sua voz de grego autêntico, e no meio da polémica surgiam pormenores biográficos: tinha nascido nas Cíclades, já iam quarenta e um anos, e não eram alheios à sua erudição os privilégios de um filho de embaixador que vivera em Génova, estudara literatura, história e filosofia em Berlim, levara a sua curiosidade arqueológica ao Egipto e aos restos da civilização


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dos faraós: tudo evidências de um bom tempo mais tarde enegrecido com o desastre financeiro dos Rhoides, o suicídio de um irmão importante como sustentáculo da família arruinada, a sua demissão do lugar de director da Biblioteca Nacional da Grécia (por causa de panfletos políticos que incomodavam o poder de Atenas), aquela esclerose dos tímpanos que nenhum médico conseguiu travar antes da surdez. Em 1904 a morte levou-o em pobreza e nostalgia; e cortava-o, sexagenário, da Grécia terrena que ele tanto tinha querido amar. A Papisa Joana («romance histórico», como lhe chamou) continua a fazê-lo pai do melhor texto ficcionado até hoje escrito sobre o que parece supremo embaraço para uma regra central da religião de Roma e causa de uma das agitações que entretiveram os meios literários do século XIX. Acrescentou-lhe dois títulos, nenhum deles ficção (Parerga em 1885 e Ídolos em 1893), hoje nas penumbras da literatura grega embora reconhecidos como brilho forte da sua erudição. A controvérsia que mantinha a Papisa Joana entre o esforço de negação do Vaticano e as referências que parecem dar-lhe uma verdade histórica, entusiasmara os seus tempos de Berlim, onde era fácil aceder à maior parte da documentação medieval que a constrói. A lista católica dos papas reconhece um Leão IV na cátedra desde 847 até 855, e a suceder-lhe um Bento III que ocupou nesse mesmo ano o seu lugar e nele se manteve até 858; mas há vozes — muitas e impertinentes — que em palavras de crónica instalam, desde 855 até 857, uma mulher disfarçada de papa João VIII no mais alto da Santa Sé e com tempo de pontífice meticulosamente medido em dois anos, cinco meses e quatro dias. O escândalo público da revelação do seu sexo teria posto um fim a esta Joana que foi indevidamente chamada Sua Santidade. (O único papa que a


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Igreja reconhece como João VIII viria a ser eleito em 872, desempenhando o lugar até 882.) Desde o século IX muitos textos fazem referência a esta papisa, e só em 1566 surgiu a primeira contestação fundamentada da sua existência. Logo em 857, o ano da sua morte, Sigebert de Gembloux escrevia: «Diz-se que João era mulher, que um dos seus familiares a reconheceu e beijou, e engravidou enquanto foi papa. Há por isto quem não a inclua entre os pontífices.» Entre muitos outros surgem Martinus Polonus, o cardeal Gervais de Riccobaldo de Ferrara (1298), o monge alemão Martinus Himonta (1292), Amalric d’Augier prior da ordem dos Agostinhos (1362), Boccacio em De Mulieribus Claris (1473), o dominicano Alleiftand Kœrner (1485), o chanceler Jean Gerson da universidade de Paris, que a citou num discurso perante o papa Bento XIII, Santo Antonino arcebispo de Florença (1459), Laonicos Chalcondyle de Atenas (1460), Rafael de Volterra (1544), Cornelius Agrippa (1529), Nicolas Gilles (1551), Du Haillan (1577), Frederic Spaheim (1671) — talvez os mais significativos da lista. Tudo isto Emmanuel Rhoides leu, tudo isto comparou. A sua narrativa faz informações dispersas convergirem num centro que organiza ecos de múltiplas origens, e a sua inspiração aglutinadora parece chegar-lhe do texto de Martinus Polonus, capelão de Clemente V, e do que ficou conhecido na sua Crónica de 1267: «Depois deste Leão [IV], João o Inglês da nação de Mayence reinou durante dois anos, cinco meses e quatro dias. O pontificado ficou vazio durante um mês. Morreu em Roma. Diz-se que era uma mulher, que o seu apaixonado a levou durante a juventude para Atenas e se distinguiu ali nas mais diversas ciências, ao ponto de não haver quem pudesse ser-lhe comparado. Foi a seguir para


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O parto da Papisa Joana numa gravura do século XII

Roma, onde ensinou o trivium [gramática, retórica e lógica]; e porque a sua sabedoria e a sua virtude ganharam nesta cidade enorme reputação, elegeram-na papa por unanimidade. Durante o pontificado engravidou, porém, de um dos seus próximos. Ignorando que tinha a gravidez na fase final, diz-se que deu à luz entre o Coliseu e a igreja de São Clemente, numa deslocação desde São Pedro até Laterano. E diz-se também que os papas evitam este caminho como atitude de contestação perante o que ali aconteceu. Não figura na lista dos santos pontífices, quer por pertencer ao sexo feminino, quer pelo escândalo que o caso provocou.»


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A narrativa de Rhoides termina com a morte de Joana a caminho da basílica constantina de São João em Laterano, que era a catedral do papa na sua qualidade de bispo de Roma, e afirma que foi sepultada com o seu filho na rua estreita onde morreu (a via Querceti). Ao seu amante atribui um destino de eremita. Houve, no entanto, sucessivas crónicas que não se juntaram a este final e enfeitaram a sua morte com pormenores variados, ora fazendo-a vítima de um povo irado que a amarrou pelos pés à cauda de um cavalo e a lapidou, ora internando-a num convento até ao fim dos seus dias, ora salvando-lhe o filho e erguendo-o à dignidade de bispo de Óstia. É também inegável que a sua memória pesou sobre factos posteriores ao dia em que ela, irreal ou autêntica, morreu. «Numa certa praça de Roma», diz Martinus Polonus na sua Crónica, «pode ver-se a estátua esculpida em mármore desta mulher com hábito pontifical e do seu filho.» (Outras fontes esclarecem que o pedestal do monumento tinha escrito: Petre, Pater Patrum, Papisse Prodito Partum, um exercício em pês que significa «Ó Pedro, Pai dos Pais, que o Parto da Papisa se Revele»); e em 1413 Teodoro de Niem, secretário de João XXIII, acrescentou: «A estátua que representava uma mulher a dar à luz foi mandada retirar pelo papa Bento III.» Outra inapagável memória está na capela do cardeal Attemps na basílica de Santa Maria em Trastevere, uma das mais belas de Roma e muito visitada pelos mosaicos do seu coro, onde um estranho fresco de Pasquale Cati da Jesi, datado de 1588, mostra-a como presença virtual e inspiradora das decisões do papa Pio IV no Concílio de Trento. Refira-se ainda o extenso friso da catedral de Siena com cento e setenta bustos papais (desde São Pedro até Lúcio


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O fresco de Pasquale Cati da Jesi na basílica de Santa Maria em Trastevere

III), que entre Leão IV e Bento III tinha um com a inscrição Johannes VIII, Fœmenina de Anglia, mandado em 1600 retirar por Clemente VIII e diz-se que alterado para representar o nonagésimo primeiro papa Zacarias. A mais saborosa consequência do pontificado desta papisa é porém a cadeira de pórfiro sedia curules, com o tampo cortado em forma de buraco de fechadura e que pode ser vista, desde os finais


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A sedia curules do Museu do Vaticano

do século XVIII, no chamado Gabinetto delle Mashere do Museu do Vaticano, ao pé de uma janela e sem nenhuma legenda que elucide sobre as suas funções. O incómodo episódio do pontífice João VIII inspirou uma tomada de precauções físicas destinadas a afastar dúvidas sobre o sexo dos papas eleitos. Sentimos-lhe um eco licencioso no Livro IV de Rabelais e vemo-la referida em Historiarum de origine ac rebus gestis Turcarum, IV de Leonicos Chalcondylas (1460): «Depois de acabar o escrutínio, já com o papa eleito elevam-no à dignidade de Chefe da Igreja e mantêm-no no conclave até os outros aprovarem a escolha. Fazem-no então sentar-se numa cadeira com o tampo furado para poderem comprovar, apalpando-o, qual é o seu sexo. Passa por facto verídico que


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uma mulher chegou ao pontificado de Roma, engravidou e deu à luz um filho durante uma cerimónia religiosa, no meio do clero e na presença do seu povo. Por causa disto é feito o exame acima descrito, e toda a dúvida e toda a incerteza são dissipadas. Cada eleitor fica ciente de que o papa é do sexo masculino e exclama: “O nosso papa é um homem!”». Segundo outros, diziam «Habet!» (Ele tem-nos!); e Alexander Cooke, ministro de Deus em Leeds, foi em 1633 mais expressivo com esta frase: «Habet duos testiculos et bene pendentes!» Consta que havia naquele museu uma sedia curules idêntica, e Napoleão trouxe-a para Paris com a intenção de a oferecer ao Louvre; mas nem o museu a tem exposta, nem consta das suas reservas. A papisa também foi parar a uma das cartas do tarô como símbolo da via passiva, de uma actividade mental superior à física e de uma feminilidade poderosa; tem o olhar dirigido para a esquerda, ou seja, para o passado. Num correr de séculos esta transgressora foi enfeite do folclore religioso da religião romana e poucas dúvidas levantou à sua verdade histórica; durante a Reforma chegou a arma de arremesso contra Roma. Jan Hus utilizou-a no concílio de Constança (1414-15), uma das audácias que decidiu o memorável auto-da-fé onde as chamas lhe assaram as carnes ao som de cânticos religiosos que ele próprio entoou. Mas com o século XIX quase a findar — o mais activo tempo de Emmanuel Rhoides — ela estava adormecida; só acordava para a curiosidade de eruditos, como tema de poemas pouco lidos, em óperas cómicas que hoje quase desconhecemos. Ao perturbar esta sonolência Rhoides instalou-se, sem querer, numa desnecessária e emotiva celeuma; desnecessária porque nenhum agravamento fazia e nenhuma irreverência acrescentava ao tantas


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vezes apoiado e desapoiado em vozes anteriores; emotiva porque demolia sem nunca atingir a essência das religiões cristãs. A papisa, que no século XIX teria podido vir a exemplo para defesa dos direitos da mulher aos lugares «masculinos» que lhe estão vedados, só foi em Rhoides (ortodoxo ferido pelos cultos degradados e supersticiosos dos cristãos) um mergulho nas águas medievais onde as religiões do Cristo viveram os mais negros dias da sua história. Fê-lo com ironia e sedução verbal, arrastando até à luz uma das suas lendas ou realidades mais incómodas — o supremo ataque contra a exclusividade masculina defendida pela interpretação autoritária dos textos sagrados. E levou a termo uma cruzada de ironização de bulas e relíquias, de baixas formas de fé que existiam e persistem nos permissivos tiques da religião popular, as que se nomeiam com o pejorativo da palavra «crendices». Talvez com espanto do autor, a recuperação de uma «verdade histórica oculta pelo Vaticano», e através dela o exercício de «uma análise crítica do vinho religioso que na Idade Média os povos do Ocidente bebiam nas bulas dos taberneiros de hábito», acertou em cheio num escândalo. Espalhou-o na letra de muitos exemplares vendidos, fez exaltar ânimos, alvoroçar autoridades, e provou sobretudo que a papisa continuava incómoda e era a lenda menos lendária das religiões do Cristo. * Lawrence Durrell foi entusiasmado pelo livro de Rhoides e publicou em 1954 uma «tradução personalizada» do seu texto; mas já o mesmo tinha em 1898 acontecido a Alfred Jarry, seduzido pelo seu exemplo de suprema transgressão. Joana era a que ludi-


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briava ao mais alto nível a Igreja de Roma; e como se não bastasse, a que sentava um ventre grávido na cátedra de São Pedro. Para ele uma heroína patafísica — obediente às regras da ciência que privilegia (segundo a sua própria definição) «as soluções imaginárias» e «as leis que regulam as excepções». A Joana travestida era a solução imaginária que subvertia o pontificado masculino e regulava a excepção da feminilidade papal. Quando Jarry decidiu traduzir A Papisa Joana já tinha cedido ao tema com o texto de Le Moutardier du Pape, opereta bufa em três actos e em torno de duas ideias: a origem inglesa da papisa (para melhor a «inglesar» chamava-lhe Joan), e o facto de utilizar em público a cadeira-bacio estercorária, a que tinha obrigado alguns papas medievais à consciência por acto da sua natureza humana e a confirmar perante terceiros que embora representantes de Deus estavam sujeitos, como o homem vulgar, às necessidades baixas da defecação. Jarry lamentava que os seus compatriotas tivessem de ler o livro de Rhoides na tradução anónima de 1878, com adaptações a todo o passo consideradas pelo tradutor mais aceitáveis tendo em vista a cultura média do leitor francês. Sentia-se com suficiente domínio do grego moderno para enfrentar as dificuldades da tarefa, mas seria bem melhor submeter o trabalho a alguém com ligação umbilical a essa língua. Lembrou-se então do Dr Saltas, médico de origem grega a quem entregava os cuidados da sua debilitada saúde física. Com trinta e dois anos de idade queimados numa vida de intensa combustão física e próxima da miséria material, servido por maus alimentos e maus alcoóis, exposto a inamistosas frialdades de Paris, Alfred Jarry vivia no que ele próprio chamava «um segundo


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andar e meio», com pé direito que alcançava o metro e sessenta e oito e lhe deixava cal nos cabelos de homem baixo; e onde só podia esquecer, sentado ou deitado, que tinha sobre si uma «tampa de fechar ideias». Em Novembro de 1905 Jarry começou a traduzir A Papisa Joana na casa do Dr Saltas, que mais tarde o lembraria assim: «Desencorajado, desamparado, com uma pobreza extrema e a viver com as maiores privações, passava o tempo na Biblioteca Nacional sem nada produzir que o fizesse ganhar dinheiro. Encontrei-o um dia a sair de lá. Falou-me de investigações sobre a história dos papas e propôs-me que trabalhasse com ele sobre o manuscrito grego de Rhoides. Começámos logo a fazê-lo no dia seguinte, e posso dizer que a colaboração me proporcionou excelentes horas, espantado com o seu espírito, a sua cultura, e o tão seguro conhecimento que tinha do grego. Já estava física e moralmente muito esgotado. Chegava durante a noite à minha casa, muitas vezes com mau tempo, calçado com pantufas ou sapatos rotos, com os pés molhados. Eu tomava todas as precauções para não lhe ferir a susceptibilidade, que era grande, punha debaixo dos seus pés um tijolo aquecido, e depois trabalhávamos. Saiu desta colaboração A Papisa Joana. Foi o seu último trabalho.» Em 1906 e 1907 Jarry foi sucessivamente visitado por maldosas gripes e infecções pulmonares. Rachilde convenceu a Mercure de France a pagar-lhe adiantadamente a edição em livro de Le Moutardier du Pape, quando soube que no meio andar por vezes não havia água. A tradução de A Papisa prosseguiu nos curtos intervalos destes percalços, e terminada esperou pelo editor interessado em publicá-la. Jarry insistia que era importante ele próprio revê-la sob o ponto de vista formal nas primeiras provas tipográfi-


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cas; mas não chegou a fazê-lo. Quinze dias sem ser visto nos meios que frequentava alertaram Alfred Vallette e Saltas. O meio andar parecia deserto. E a porta arrombada deu acesso ao espectáculo de uma grande solidão e da quase inconsciência de um paralítico de ambas as pernas. No hospital de La Charité soube-se que eram consequências de uma meningite tuberculosa. Morreu a 1 de Novembro de 1907 sem ter a «sua» Papisa publicada. E hoje há as edições que seguem a versão póstuma de 1908, revista por Fasquelle e Saltas, e outras que regressam com mais fidelidade ao manuscrito de Jarry (desconhece-se o paradeiro das suas últimas páginas) tentando ponderar sobre as notas do tradutor feitas à margem, as hesitações que alinharam várias hipóteses para a solução definitiva. Nas línguas inglesa e francesa, este livro de Rhoides está hoje ligado a Durrell e Jarry, que lhe conferiram uma desenvoltura verbal reconhecidamente superior à do texto grego; Durrell com maior liberdade, ignorando as frases de que menos gostava, evitando prolixidades; Jarry mais próximo do autor e a pretender que a sua tradução fosse anunciada como «literal», o que devemos entender apenas como uma «integralidade personalizada», a que consegue passo a passo um melhor francês onde no original há um grego menos perfeito. Rhoides, o autor da Papisa literária por excelência, tem antecessores e sucessores em mais de uma dezena de romances, peças teatrais, ensaios, óperas bufas e cómicas de autores literariamente pouco significativos, com excepções em Achim von Arnim, um clássico alemão menor que a elegeu em 1813 como personagem principal de um romance, e Bertolt Brecht que em 1922 a introduziu na peça teatral Päpstin Johanna.


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No cinema, a presença desta personagem é mais rara e até hoje exterior a mãos e talentos de grandes realizadores. Teve em 1972 o seu momento de maior evidência com Michael Andersen, que dezasseis anos depois de A Volta ao Mundo em Oitenta Dias realizou um Pope Joan de voo baixo, apesar de Liv Ulmann, Olivia de Haviland, Trevor Howard, Franco Nero e Maximilian Schell; e 2009 mostrou-a num filme alemão dirigido por Sönke Wortmann. O filme de Andersen logo à cabeça perguntava: «Heresia ou História?» Ainda lhe não deram resposta os bem guardados arquivos do Vaticano. A.F.


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PRIMEIRA PARTE

Il y a de la différence entre rire de la religion et rire de ceux qui la proffanent par leurs opinions extravagantes. (Pascal, XI Provinciale)

Os poetas épicos começam sempre pelo meio. E o mesmo fazem os romancistas que reivindicam para narrativas em dez volumes o título de epopeia em prosa. E mal o herói encontra ocasião propícia no interior de uma gruta ou de um palácio, num relvado aromático ou num leito macio, conta à bem-amada as suas aventuras Depois de fazer ao amor um razoável sacrifício. É o consagrado método que os críticos recomendam; mas como sou amigo da ordem, prefiro aquele que os poetas cíclicos e os procuradores da República usam quando seguem desde o berço o seu herói ou o malfeitor biografado, acompanhando por ordem cronológica todos os seus passos até à imortalidade ou ao cadafalso. Vou portanto começar pelo princípio. Quem gostar da desordem clássica só terá de ler primeiro as páginas finais do livro, e saltar depois para as do início, um salto que transformará o meu simples e verídico objecto num romance épico.


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O grande Byron teve paciência para escutar as velhas palavrosas de Sevilha e ficar a saber se a mãe do seu herói Don Juan rezava o Pai Nosso em latim, se sabia hebreu ou vestia camisa de pano e meias azuis. Embora eu não deseje tanto para o meu leitor, gostaria pelo menos de dizer-lhe como se chamava o pai da minha heroína. De pergaminho na mão procurei saber que frioleiras a seu respeito escreveram os Heródotos da Idade Média; mas encontramo-lo com vários e numerosos nomes, tantos como Zeus entre os poetas e o Diabo entre os Hindus. Depois de gastar alguns anos a comparar manuscritos, talvez conseguisse esclarecer se o progenitor de Joana se chamava Willibald ou Wallafrid; tenho dúvidas, porém, de que o público viesse a pagar-me o suficiente por esse trabalho. Segui portanto o exemplo dos letrados da nossa época que temem perder tempo com leituras, para lhes sobrar quanto chegue para escrever e não frustrarem os seus contemporâneos nem a posteridade. Isto esclarecido continuo, ou antes, começo a minha história.

O pai da minha heroína — anónimo, portanto — era «um monge inglês», embora eu não tenha conseguido saber de que província porque a Grã-Bretanha ainda não estava dividida nos condados que fazem hoje a comodidade dos cobradores de impostos. Descendia desses apóstolos gregos que espetaram a primeira cruz na verde Irlanda, e foi discípulo de Scotus Erigena, o primeiro a descobrir de que maneira podem ser inventados de fio a pavio antigos manuscritos, e enganar os eruditos da sua época como Simónidas enganou os doutos berlinenses do seu tempo. Foi tudo quanto a História nos conservou a respeito do pai de Joana.


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A sua mãe chamava-se Judith. Era loura e levava ao campo os gansos de um barão da Saxónia. Na véspera de um festim ele desceu do castelo para escolher o ganso mais gordo, mas cobiçou a pastora e levou-a do galinheiro para a alcova. Quando se fartou dela deu-a ao escanção; o escanção cedeu-a ao cozinheiro; e este a um muito devoto carregador de água que a trocou por um dente do São Guthlac que tinha vivido e morrido santamente no fosso de Mercia, dente que era nessa altura propriedade de um monge. (Como é sabido, até ao século X os monges da Inglaterra estavam autorizados a casar-se1) Judith desceu assim do leito do senhor para o leito do monge grego, como hoje na Inglaterra os chapéus-altos dos tempos do diplomata descem até à cabeça do mendigo; porque neste país, que é favorecido apesar dos muitos que lá morrem de fome e dos muitos que lá chocam o pudor alheio por não terem camisa, o chapéu-alto é considerado como uma salvaguarda da igualdade constitucional e todos o usam — senadores e gatos-pingados, condes e indigentes. Foi uma união feliz. Durante o dia o monge dava a sua volta pelos castelos que em redor existiam, vendendo orações e terços; e voltava à noite para a cela com as mãos humedecidas pelos beijos dos fiéis e o saco cheio de pão, carne, bolo folhado e nozes. Na Inglaterra ainda não havia batatas; só mais tarde, quando a igualdade chegou para ser usada pelo povo livre, é que os criados deixaram de comer boa carne da mesa dos lordes. 1 Até ao século X foi consentido na Inglaterra que os padres se casassem e tivessem concubinas. No entanto, uma estranha contradição proibia-os de acusar a sua mulher de adultério ou de expulsá-la do tecto conjugal. Teriam de tudo suportar da sua parte com uma paciência cristã. (N. de E.R.)


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Emmanuel Rhoides

Mal ouvia no vale o canto longínquo do esposo que regressava, Judith punha a mesa; quer dizer, punha nas tábuas de madeira mal aplainada o prato que aos dois servia, um garfo de ferro, um corno de búfalo a fazer de copo, e atirava para a lareira os ramos secos que iluminariam a ceia. Guardanapos, garrafas e archotes de cera, só os bispos sabiam o que era. Depois da ceia os recém-casados estendiam peles de carneiro num amontoado de folhas secas, e deitavam-se nessas pelagens puxando para cima de si uma felpuda pele de lobo. Quanto mais forte o aquilão soprasse, mais densa caía a neve e mais apertadamente este casal feliz se abraçava mostrando até que ponto se enganavam Santo Antão ao afirmar que o frio enregela o amor, e os antigos Gregos ao representarem o Inverno como um velho misógino. Eram estes os dias dourados que os pais de Joana viviam no meio de meigas carícias, quando uma manhã, sacudia o monge o sono das pálpebras e da barba alguns cabelos louros da sua mulher, surgiram à porta da cabana dois archeiros anglo-saxões de pernas nuas e descalços, com escudos no braço e aljavas cheias de setas nos ombros. Em nome do heptarca Egbert convidavam o dono da casa a segui-los e a abastecer-se com as provisões necessárias para uma longa caminhada. A tremer, o monge pôs o alforge ao ombro, deu a mão direita à sua mulher, agarrou com a mão esquerda no cajado, pôs o breviário debaixo do braço e foi atrás dos carrancudos guias. Durante três dias e duas noites fizeram-se à estrada através de montanhas despidas e vales de urze. Encontraram no cami-


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livros publicados Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, George Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire


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tradução e apresentação de

Aníbal Fernandes

Para Jarry, a heroína patafísica. A lenda menos lendária das religiões do Cristo.

Emmanuel Rhoides A PAPISA JOANA

Emmanuel Rhoides A PAPISA JOANA segundo o texto de Alfred Jarry

Emmanuel Rhoides A PAPISA JOANA

segundo o texto de

ALFRED JARRY


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