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ano: 2012 . nr 23 . mês: Junho . director: António Serzedelo . preço: 0,01 €
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Vários foram os autores e organizações que, em diversas ocasiões, ao longo de mais de três décadas, sublinharam a importância do papel desempenhado pelas mulheres saharauís quer na construção dos acampamentos de refugiados em Tindouf, como na luta pela independência. O conflito existente originou a divisão da população saharauí, de um lado do muro construído por Marrocos, ficaram os que permaneceram no Sahara Ocidental ocupado, do outro, os que fugiram para o sudeste argelino. Em ambos os casos, a mulher tem um papel preponderante na luta pela libertação. Temendo a invasão de Marrocos e Mauritânia, em 1975, a população civil iniciou um processo de fuga rumo a leste, ao deserto. Enquanto os homens lutavam no Exército de Libertação do Povo Saharauí (EPLS), mulheres, crianças e idosos instalaram-se no maior deserto quente do mundo, onde a extremidade das temperaturas origina difíceis condições de vida, “não havia nada (…) as mulheres, através das suas melfas (traje típico) ação e construção dos acampamentos, muitas vezes, sem qualquer apoio masculino, criaram os seus filhos sozinhas e, cedo, os viram partir para países como Líbia, Argélia ou Cuba, para concluírem os seus estudos. Adaptaram-se, sentiram a morte de cada mártir, readaptaram-se ao regresso dos homens, aos tempos de “paz”. Do ponto de vista público e político, a União Nacional de Mulheres Saharauís tem uma visibilidade internacional notória e, dando a conhecer o conflito existente e o papel desempenhado pelas mulheres na sociedade saharauí. Relativamente à ocupação de cargos políticos, existem actualmente cinco ministras em vinte e um ministérios, sendo que no que se refere à administra-
ção dos acampamentos, as responsáveis por cada bairro são geralmente mulheres. Do ponto de vista profissional, representam uma maioria esmagadora nas escolas, jardins-de-infância e cargos administrativos. Do ponto de vista da formação, existem diversos centros onde as mulheres acedem a vários tipos de formação. A mulher mantém bem saliente o seu “papel de cuidadora” (Caratini 2006, 8), apresentando-se como um elementochave dentro de casa. É frequente existirem casas em que, por diversas razões, o homem está total ou parcialmente ausente, tal como os delegados da Polisário noutros países, militares ou porque simplesmente houve um divórcio, “o meu pai só está cá [nos acampamentos] um mês por ano (…) a minha mãe [para mim] é tudo, mãe e pai”, comentou um jovem. Autores como Sophie Caratini, entre muitos outros, defenderam que a revolução Saharauí permitiu a ascensão social das mulheres, que adquiriram “um status praticamente sem igual no mundo árabe” (2006, 9). Rita Marcelino dos Reis Antropóloga
Ilustração Dinis Carrilho
As cuidadoras dos acampamentos
“A cultura, sob todas as formas de arte, de amor e de pensamento, através dos séculos, capacitou o homem a ser menos escravizado”. André Malraux O Teatro Estúdio Fontenova levou à cena no passado mês de Maio, o texto do consagrado autor catalão José Sanchis Sinisterra “O Cerco de Leninegrado”. O espectáculo contou com a encenação de José Maria Dias e as interpretações de Graziela Dias e Sara Costa. Esta criação é baseada nas memórias de duas mulheres que vivem entrincheiradas num velho teatro em que o peso do tempo se abate sobre as suas fundações, lutando e nunca se rendendo, combatem a demolição anunciada do espaço que encarnou muitas das alegrias, lutas e tristezas que foram a sua existência. Para o encenador, este “Teatro” «é uma metáfora para tudo o que se desmorona e que tem o fim anunciado por imposições tecnocratas e economicistas.» Em contraponto à “espuma dos dias”, José Maria Dias afirma a intenção da «envolvência da partilha e da aproximação de todos nós aos tempos perigosos e difíceis que atravessamos, em que se desmorona o estado social e tentam apagar as memórias e desfazer os sonhos e as utopias.» Para tal, «o Teatro Estúdio Fontenova apelou à comunidade em
FOTO DE PEDRO SOARES “O CERCO DE LENINEGRADO”
O Teatro é uma arma!
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geral a participar no processo criativo de um espectáculo. Participação que consistiu na angariação e cedência de um objecto (ele mesmo memória ou símbolo de uma memória), que foi o ponto de partida para o ambiente cénico do espectáculo.» O texto de Sinisterra escrito em 1994, infelizmente não carece de actualidade, principalmente pela forma como as Artes e a Cultura têm vindo a ser tratadas nestes últimos tempos pelos governantes deste cantinho à beira-mar plantado. Poderia muito bem ter sido um grito de rebeldia em forma de palavras de um autor português no meio da política de terra queimada a que assistimos, tal a sua contemporaneidade.
curso e ideias que os “outros” que nos O espectáculo oferece-nos um exploram. Então, o Teatro tem de ser toque humanidade profundo, princiuma arma para ser partilhada, entre palmente pelas excelentes actuações os mais velhos e os mais novos, e até de Graziela Dias e Sara Costa. As suas nas ruas se preciso for. personagens poderiam Não há idade para lutar facilmente cair na coOs por uma causa justa. média fácil e na cariO espectáculo recatura, estereótipos “Fontenova” lembra-nos que o que em que muitas vezes se conseguem desta conquistámos sejam retratam os mais velhos forma relembrardireitos laborais ou de nós. Tal não sucede. nos a acção das acesso à cultura não As duas mulheres, ape- palavras de Zeca nos foram oferecidos sar das vicissitudes que Afonso «para de mão beijada. É um lhes trouxe o envelhecer, “pauzinho na engretêm memória mesmo se ser cidadão é nagem” deste sistema quando esta às vezes necessário muito falha, seja a sua ou a co- mais que meter um que nos oprime e nos diz sermos apenas lectiva, têm consciência voto numa urna». números na contadaquilo que tentaram bilidade que nos fazem crer que construir e ousaram sonhar, têm a é a Vida. dignidade dos passos trilhados em Os “Fontenova” conseguem destempos adversos no caminho que ta forma relembrar-nos a acção das é a Utopia. palavras de Zeca Afonso «para se ser São personagens que têm a cacidadão é necessário muito mais que pacidade de rir de si próprias não meter um voto numa urna». dos mais fracos e que afrontam os Para terminar, uma nota aos poderosos apesar de todas as suas programadores culturais, o Teatro lacunas. Pelo meio a magia na persoEstúdio Fontenova está a tentar fanagem de Sara Costa, que vai ficando zer estrada com “O Cerco de Leninemais jovem com o passar do tempo, e, grado”, aproveitem e partilhem este rejuvenesce à medida que aumenta a espectáculo com as populações que sua percepção de que é preciso voltar servem. a cerrar fileiras, com os “nossos” os mais pobres e esquecidos pela socieVão ao Teatro pela vossa Saúde! dade, porque alguns dos que foram dos “nossos” aparecem-nos vestidos Leonardo Silva de igual e a comungar o mesmo disSub-director Jornal O Sul
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A corrupção alimenta a crise Assim, se por um lado, há resgates “A corrupção alimenta a crise”, financeiros e económicos em curso, diz-nos a ONG alemã “Transparency”, por outro, todos já temos a noção no seu recente relatório “Dinheiro, clara, é preciso resgatar a Democrapolítica, e poder, perigos de corrupção cia, face à partidocracia, que tomou na Europa”. Nele se diz que Espanha, hoje conta do Estado. Grécia, Itália, e PortuMas ninguém o faz… É gal são casos claros de (..) é preciso o grande esquecimento. como a ineficácia, falta Sabemos, claramente, de transparência, leis resgatar a que muitas instituições pouco claras, abusos Democracia, face à representativas do Estae corrupção não estão partidocracia, que do foram tomadas por bem controlados, ou se- tomou hoje conta interesses privados, corquer convenientemente do Estado. porativos, ou por sectosancionados. Tudo paíres económicos, muito ses a braços com sérias afastados dos interesses dos cidadãos questões financeiras, e da dívida soe do Bem Comum. Sectores como o berana. O relatório acrescenta que o sistema financeiro (bancos), Banco de financiamento dos partidos políticos Portugal (reguladores), Parlamento não está bem regulado nestes países (partidos),poder judicial (tribunais), e por isso, é fonte de uma enorme Tribunal Constitucional (eleição corrupção, que prejudica a econodos juízes), Autonomias (Madeira), mia. Nem sequer os códigos de boas Governos (com pouca ou nenhuma condutas servem, porque estão cheios legitimidade), Partidos (envolvidos no de buracos, convenientemente feitos, jogo da alternância), todos são palcos para permitir escapadelas.
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Av. Luísa Todi 239 Setúbal 265 536 252 • 961 823 444
garrafeiratody@hotmail.com
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02 NA VIGIA
de luta intestinas ou interesses que põem em causa a Democracia, ao serviço do Bem Comum. E o pior é que, embora se saiba tudo isto muito bem, as mudanças necessárias não estão ainda na agenda política, uma vez que os que precisam de ser reformados, seriam as principais vítimas dessas mudanças. Daí que ponham todos os entraves possíveis a quaisquer alterações, para que não sejam levadas a cabo, com muitos argumentos jurídicos, éticos, políticos, etc, para se justificarem. Assim, o Estado de Direito está cada vez mais transformado num Estado de Partidos, cujo único objectivo é a alternância partidária para conquista do Poder, para depois distribuírem prebendas e benefícios às suas clientelas. A “Transparency” diz: “o financiamento dos partidos políticos está mal regulada, ou então, tem tantos buracos, feitos propositadamente…”. Agora, que estamos a assis-
tir a tentativas de redefinir o Estado Social, devido a uma Europa que se calculou mal, pelo menos a partir da criação do Euro, também devíamos definir, em nome dos interesses da Cidadania, os limites da Partidocracia que envenena, duramente, a nossa economia. É o momento de nos indignarmos!... Não é necessária uma nova Constituição, basta identificá-los, um a um, os buracos democráticos, isolá-los e libertá-los da Partidocracia, para se progredir muito mais rapidamente, em termos de igualdade e distribuição da riqueza pela Cidadania. “A corrupção alimenta a crise”, diz-nos a ONG alemã “Transparency”, no seu recente relatório “Dinheiro, política e poder, perigos de corrupção na Europa”. António Serzedelo Editor do programa de radio Vidas Alternativas anser2@gmail.com)
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Portugueses no Holocausto terá sido o número de vítimas Em anos recentes, a biblioda matança perpetrada pelas grafia sobre a questão do Hoparanoias de Hitler e Estaline locausto e os judeus em Pornas chamadas terras sangrentas tugal veio a enriquecer-se com onde se incluem a Polónia, os investigações de inegável intepaíses Bálticos, a Bielorrússia, a resse: José Freire Antunes em Ucrânia e a parte da Rússia que “Judeus em Portugal” recolheu esteve sob a bota nazi. o testemunho de 50 homens e É facto que a partir de junho mulheres (Edeline, 2002); Irene de 1940 um conjunPimentel escreveu o to de personalidades importante “Judeus Com a de renome mundial em Portugal durante passou por Portugal a II Guerra Mundial” ocupação da a caminho de outras (Esfera dos Livros, Grécia, os nazis paragens, reis, po2006); um investi- iniciaram a líticos, escritores, gador com pergami- deportação em cientistas, músicos. nhos, Avraham Mil- massa, os judeus Mas os judeus de gram deu à estampa clamaram pelos origem portuguesa outro livro de grande muito cedo encaqualidade “Portugal, seus direitos mas minharam-se para Salazar e os Judeus” Salazar proibiu Portugal. A autora (Gradiva, 2010). Isto a revalidação regista os casos da a par de memórias dos passaportes família Cassuto, a fade alguns dos refu- e certificados de mília de Ruth Arons e giados, como será o nacionalidade Nella Maissa, recorcaso do impressivo da as instituições relato de Fritz Teppi- portuguesa. judaicas que procuch “Um refugiado na ravam mitigar o sofrimento dos Ericeira” (Mar das Letras, 1999). refugiados bem como a ação de Esther Mucznik, uma estudiosa vigilância da polícia política. E das questões judaicas, acaba de com esta moldura que ajuda a publicar “Portugueses no Hocompreender melhor o drama locausto” (Esfera dos Livros, dos judeus refugiados em Por2012) que veio trazer luz sobre histórias ainda mal conhecidas tugal, a autora oferece-nos um do grande público. A autora deestudo sobre os portugueses em dica este seu trabalho a todos os Amesterdão, ficamos a conhecer portugueses que morreram no a comunidade portuguesa e como Holocausto, vítimas dos crimes quase todos eles, mesmo invonazis e, entre todos eles, aos descando a sua origem portuguesa, cendentes de portugueses expulforam assassinados nos campos sos devido à sanha inquisitorial de concentração. Como escreve que avassalou o país no início a autora, a quase totalidade da do século XVI e que se refugiacomunidade dos judeus de oriram em Amesterdão, Istambul gem portuguesa na Holanda (4 ou Salónica. mil homens, mulheres e crianças) Em jeito de enquadramento, pereceram no Holocausto e eram a autora descreve a ideologia radescendentes dos antigos judeus cial do nazismo e como foi praque se refugiaram em Amesterticada desde que a Adolf Hitler dão em finais do século XVI. ascendeu ao poder. Se a escalada Tratava-se de uma comunidaantissemita se tornou uma rede que gozava de uma vitalidade alidade na fase ascendente do excecional que vivia arreigada nazismo, é a partir do momento aos valores tradicionais judaicos. em que se ocupou a Polónia, e Basta recordar que em 1675 foi mais tarde a Bielorrússia, Ucrâinaugurada a famosa sinagoga nia e uma parte da Rússia que que se tornou no símbolo da idalevou a uma mudança drástica de de ouro do judaísmo sefardita no conceito da Solução Final, na Holanda, como se escreve: “Sio extermínio do povo judeu. tuada em pleno coração do bairro A autora compendia os dados judaico, a iniciativa da sua edifimais salientes da execução desse cação coube ao rabino Aboab da plano que levou à matança de Fonseca, nascido em Castro Daire cerca de 6 milhões de judeus, de uma família de cristãos-novos número horrível que só será sue batizado com o nome de Simão perado pelo de 14 milhões que da Fonseca. O rabino Aboab jun-
“PORTUGUESES NO HOLOCAUSTO”
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to geográfico, a autora recorda tou a si um comité de fundadores a importância da comunidade cujos nomes indicam claramente judaica de Salónica, um dos a sua origem portuguesa: Isaac de centros judaicos mais imporPinto, Samuel Vaz, David Salom tantes do mundo: “Os fugitivos de Azevedo, Abraham de Veiga, de Espanha e Portugal trouxeJacob Aboab Osório, Jacob Isram consigo uma rael Pereyra e Isaac brilhante cultura Henriques Coutinho”. intelectual, o espíDurante a guerra a si(...) os rito de iniciativa, o nagoga foi saqueada. judeus de origem gosto do risco, um Durante a ocupação portuguesa sólido conhecimento nazi, as autoridades muito cedo técnico e a sua rede judaicas procuraram de relações ligando adiar a deportação encaminharam-se países e continende judeus de origem para Portugal. tes. Portugueses portuguesa, em vão. ilustres como Amato Lusitano, Paralelamente à destruição da Joseph Caro, Gracia e Joseph vida, também os ocupantes fizeNasi, deixaram a sua marca em ram tudo para aniquilar as instiSalónica, contribuindo para a tuições da comunidade religiosa. sua prosperidade, nas ciências, Devido a um legalismo inflexível, na literatura, na tipografia, no Salazar não deu ouvidos aos rocomércio e na indústria. No inígos das autoridades judaicas. cio do século XX, cerca de 80 Passando para outro pon-
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mil judeus povoam a cidade”. No início da I República, autoridades diplomáticas portuguesas em Istambul e Salónica emitiram certificados provisórios de inscrição consular portuguesa a cerca de 400 famílias judaicas. O regime de Salazar não acolheu bem e sempre suspeitou da legalidade desta nacionalidade. Com a ocupação da Grécia, os nazis iniciaram a deportação em massa, os judeus clamaram pelos seus direitos mas Salazar proibiu a revalidação dos passaportes e certificados de nacionalidade portuguesa. São acontecimentos sombrios em que detentores de nacionalidade portuguesa irão ser assassinados em campos de concentração. A investigação transfere-se depois para os judeus registados nos consulados portugueses, em França, destaca-se o comportamento de José Brito Mendes pela sua coragem a salvar vidas e registam-se os nomes de militantes de esquerda portugueses que irão ser executados pelos seus ideais. Impressionante é voltarmos a ler o que se passou na tragédia húngara, nomeadamente em 1944. A autora refere o comportamento nobre de diplomatas como Sampaio Garrido que correndo todos os riscos protegeram judeus e não judeus das perseguições políticas e raciais. Ao contrário de Aristides Sousa Mendes nem Teixeira Branquinho nem Sampaio Garrido foram vítimas de Salazar pela sua generosidade em querer defender a vida de vítimas inocentes. Trata-se de um levantamento meritório, a autora reuniu dados importantes sobre descendentes de portugueses que acabaram nas câmaras de gás, temos aqui um bom inventário de coragem e humanismo envolvendo diplomatas e mesmo a infanta Maria Adelaide de Bragança. Mais uma obra que contribui para a clarificação do acolhimento dos refugiados, da diplomacia portuguesa e de embaixadores e cônsules que não hesitaram no heroísmo anónimo, ficamos com uma ideia mais nítida de como a espiral devoradora do nazismo atingiu ancestrais e portugueses que eram judeus. Beja Santos Docente Universitário
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CULTURA 03
Recordações de areia Naquela praia onde o mar não chega Tinduf ficou para trás e os quatro jeeps progridem através da estrada pedregosa, deserto adentro. Desembarcámos há pouco em terra argelina, contudo, embora sem termos passado uma fronteira propriamente dita, avançamos agora em território administrado pela RASD, República Árabe Democrática Saharaui. Um singelo posto de controlo marca uma invisível linha divisória. A enorme extensão de solo árido que se estende à nossa frente leva o nome de Hamada, o Deserto da Morte. O mesmo que, 35 anos atrás, várias dezenas de milhar de homens, mulheres e crianças atravessaram, a pé, de burro, de camelo, em viaturas precárias, improvisadas, fugindo do invasor marroquino. O mesmo que a Argélia cedeu a cerca de 180 mil refugiados que actualmente se repartem por quatro acampamentos, Smara, El Ayun, Awserd e Dahjla, os mesmos nomes das quatro principais cidades do Sahara Ocidental ocupado. Da nossa caravana, um dos veículos vai em breve cortar à esquerda para Smara, o mais povoado de todos os acampamentos. Os outros três seguirão viagem por mais três a quatro horas até ao último reduto, a mil milhas de qualquer lugar habitado: Dahjla. Ali, 30 mil pessoas lutam pela sobrevivência, assegurada em mais de 90% por bens alimentares e água potável trazidos pela ajuda humanitária internacional. “Dá-me uma gotinha de água/ Dessa que eu oiço correr/Entre pedras e pedrinhas…”. Quase inconscientemente, os trinta e muitos graus de temperatura e a secura do ar trazem às gargantas lusas o ‘cante’ alentejano. A paisagem, essa, não ostenta azinheiras nem sobreiros. As raras acácias espinhosas que víamos há pouco, aqui e ali foram desaparecendo à medida que rumamos a leste. Ainda nem bem percorremos uma vintena de quilómetros e somos obrigados a parar: um dos caixotes repletos de medicamentos que transportamos acaba de se despenhar da pick up onde segue a carga, espalhando o seu conteúdo na estrada. Um pequeno incidente depressa solucionado e no qual felizmente apenas se perdem algumas lamelas de comprimidos. O essencial do que trazemos vai intacto: uma grande dose de entusiasmo, muita curiosidade e energia q.b. , para além de material escolar e desportivo e um de conjunto de painéis solares que se destina ao hospital do acampamento. Montado este equipamento, será possível à incubadora ali existente passar a
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04 ASSOCIATIVISMO
funcionar 24 horas por dia salvando Lebsir, que nos dá as boas-vindas assim a vida a muitos prematuros. a Dahjla, acolhendo-nos com água Em Dahjla, 75% da população tem fresca e o tradicional chá na sua sala menos de 35 anos, o que significa de reuniões. Só o tempo de acertar que já nasceram ali, longe do seu agulhas. Fica marcada a reunião de país de origem, que não conhecem. trabalho para amanhã, domingo, às O sol está prestes a diluir-se 9 da manhã. Estamos todos estoiraatrás de nós quando alcançamos dos das quase 24 horas de viagem o posto de vigia que marca a entramas não há tempo a perder. Todos da de Dahjla. Dois ou três militares temos muito que fazer e sabemos trocam umas palavras que a semana passa com o motorista - uma num instante. AmaNos campos interacção rápida e nhã seguiremos para muito pouco burocrá- de refugiados as ‘haimas’, as enormes tica, sobretudo se le- saharauis dois tendas onde vivem as varmos em conta o que terços da população ‘nossas’ famílias, mas nos será dito daqui a tem menos de 35 como estas não fopouco pelo governador anos, o que equivale ram atempadamente da willaya (município): alertadas da nossa a dizer que duas em não podemos esquecer chegada, a primeira que, apesar do cessar- cada três pessoas noite será passada fogo que vigora desde não conhecem o seu no chamado ProtoSetembro de 1991, “o país. colo, uma construção país está em guerra”. destinada a receber Nos próximos dias, porém, não convidados importantes. É ali que nos voltaremos a lembrar disto, ‘moram’ as equipas dos Médicos a não ser daqui a quase uma seSem Fronteiras e outras organizamana, quando nos deslocarmos, ções que regularmente se deslocam juntamente com algumas centeaos acampamentos para efectuar nas de activistas pela paz e pelos campanhas sanitárias. É ali também direitos humanos ao denominado que iremos ser recebidos na próxi“Muro da Vergonha”, que separa ma quinta-feira para um almoço os territórios ocupados do Sahara comemorativo da inauguração da livre. Para já, no meio da areia, das Escola 10 de Maio. Para já, a grande tendas e das construções de adobe, sala forrada a tapetes apenas contém alguns sofás quadrangulares o que impera é a alegria das criancoloridos. Há vários quartos com ças que nos recebem com acenos colchões, uma cozinha, uma copa, e sorrisos. Cedo percebemos que e instalações sanitárias com dois não somos os únicos forasteiros chuveiros, lavatório e sanitas turcas. por ali. Mas nem por isso a nossa Um ‘hotel de cinco estrelas’ tendo presença passa despercebida… Os em conta o nosso cansaço e aquilo grupos de jovens que dão colorido para que vínhamos mentalmente ao omnipresente tom de terra do preparados. acampamento interrompem as suas Toda a estadia será pontuada animadas conversas e jogos de bola por esta sensação de expectativas para nos ver chegar. ultrapassadas. Mas as aparências É o próprio governador, Salem
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iludem! Por detrás da generosa hospitalidade com que somos recebidos, existe um enorme espírito de sacrifício. Nos próximos dias iremos compreender o quanto a comunidade se sente grata pela nossa presença e a forma discreta como nos dão o melhor de si próprios e como se privam para nos proporcionar todo o conforto de que são capazes. Em troca, pedem apenas que falemos ao mundo sobre o seu povo e a sua luta. Meia-noite e já quase todos adormeceram debaixo da lua. O calor convenceu a maior parte dos viajantes a optar por levar os colchões lá para fora. Mas o jantar tardio e a excitação da viagem impedem ainda os últimos resistentes de pregar olho. Distinguem-se vozes na escuridão. Umas falam espanhol, outras hassania, a variação local do árabe. De tempos a outros o som de um motor denuncia a passagem próxima de um carro. Alguns param. Duas mulheres vêm andando na nossa direcção. Envergam as tradicionais melfas, longos panos coloridos que as saharauis usam para se cobrir da cabeça aos pés. A mais nova não hesita: “Buenas noches. Hablas español?”. Apresenta-se: “Soy Lemira y esta es mi madre”. Rapidamente percebemos que vêm precisamente à nossa procura. Demasiado entusiasmadas com o anúncio da chegada dos portugueses, vêm ver se da comitiva faz parte algum dos viajantes que hospedaram no ano passado. Mas o João adormeceu exausto e nem a animada conversa que decorre mesmo a seu lado o faz despertar. “Quereis vir já?”, oferece a jovem. “É só pegarem nas vossas coisas, está ali o meu pai, no jeep”… Fica para amanhã, agradecemos. Já passa das dez horas quando nos reunimos com o governador. Em Dahjla ficamos rapidamente a saber que os planos e os horários são ‘flexíveis’. Há que ter em conta um sem-número de imponderáveis. Destacar-se-á porém uma evidência: um elevado sentido de organização comunitária que se manifesta em variadíssimos aspectos do quotidiano, da resolução de necessidades básicas à imensa consciência política que se sente omnipresente, desde a mais tenra idade. Não é fácil coordenar projectos individuais e colectivos do grupo. Há pessoas que vieram com missões específicas para cumprir, acções de formação previstas, dados que têm de ser recolhidos. É preciso fazer render o tempo, sem esquecer que entre o meio-dia e a cinco da tarde o calor intenso não permite trabalhar. Horas que aproveitamos para conviver com as nossas famílias. Observar os gestos do quotidiano, a repartição das tarefas.
Provar algumas iguarias, como a carne de camelo, o cuscus integral feito à mão e os saborosos legumes crescidos numa estufa comunitária. E beber litradas de água e de chá. Os viajantes bem sentem – ou dizem sentir – a falta de umas imperiais ‘estupidamente geladas’ mas ali não há bebidas alcoólicas. É em torno do chá que as línguas se desatam e se recebem as visitas. Um ritual mil vezes repetido, mas que não cansa a vista dos viajantes fascinados. É feito – quase sempre pelo homem da casa – num tabuleiro redondo de metal onde são pousados a chaleira e os pequeninos copos de vidro. A água é aquecida num fogareiro a carvão e o chá é vertido dezenas de vezes de copo para copo, a meio metro de altura, até criar uma espuma abundante. Cada chá são na realidade três copos. Reza a lenda que o primeiro é amargo como a vida, o segundo doce como o amor, o terceiro suave como a morte. São três da tarde e os adultos dormem quase todos a sesta. Lá fora, a temperatura deve rondar os 40ºC. Lemira está a pintar os pés e as mãos da Vanessa e da Rita com henna. Sara e Senia, as irmãs mais novas, entretêm-se com o verniz fucsia que lhes demos. Falamos da chuva e do bom tempo. Sara admira-se com Rita: “Como?! Não gostas de chuva?!!” Os olhos arredondam-selhe de espanto: “Eu adoro”… É disso que os jovens nascidos nos campos sentem mais falta. De tudo o que é molhado. Da praia e da piscina. Da lama. Muitas delas já tiveram oportunidade de conhecer o mundo para lá da secura arenosa dos acampamentos onde moram ao abrigo do programa espanhol denominado “Férias em Paz”. Graças a este projecto, dezenas de crianças saharauis deslocam-se anualmente durante os dois meses mais quentes a várias localidades de Espanha, onde são recebidos por famílias voluntárias. E ali podem conhecer aquilo que lhes corre nas veias mas que os olhos nunca viram: o mar. Nos campos de refugiados saharauis dois terços da população tem menos de 35 anos, o que equivale a dizer que duas em cada três pessoas não conhecem o seu país. Talvez por isso a consciência política desperte tão cedo. As crianças já parecem nascer a saber fazer o ‘V’ de vitória com os dedos. Todas frequentam a escola e um número esmagador de entre elas tirará um curso superior. Mas a grande maioria voltará depois para os confins do deserto onde não resta grande coisa para fazer se não esperar. Pelo dia em que da gigantesca praia onde moram se possa ver o oceano perdido há mais de 35 anos. Myriam Zaluar Jornalista
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ASSOCIATIVISMO 05 "Marrocos pratica uma política de extermínio da população Saharaui"
João Falcão-Machado O Sahara Ocidental é um conflito duradoiro e ao mesmo tempo silenciado. Como explica esta situação da já apelidada “a última foi criada por Marrocos, que se colónia africana”? nega a continuar com o procesAhamed Fal, delegado da so. Com esta atitude, Marrocos Polisario em Portugal - Recenenquadra-se, uma vez mais, fora temente comemorou-se o 39º da legalidade internacional. aniversário da Frente POLISARIO J.M -Gdeim Izik (Movimento de Liberé considerado por tação de Saguia el A comunidade muitos como o perHamra y Río de Oro). cursos do movimenSão 39 anos de resis- internacional é to conhecido como tência e de luta pelos responsável pel a “Primavera Árabe”. direitos legítimos do tragédia que vive O que significa isso? Povo Saharauí pela o povo saharauí: A.F - Gdeim Izik é autodeterminação e a expressão máxima a determinação, di- Marrocos ocupa do repúdio à ocureitos estes que são ilegalmente um pação marroquina. reconhecidos pela território ... Efectivamente, conscomunidade internatituiu o começo de um protesto cional e que lhes foram usurpados em todos os países árabes, com por um país vizinho. Marrocos, a diferença que, no Sahara Ociviolando o direito internacional, dental, foi contra uma ocupação invadiu militarmente o território exterior. em 1975, dando assim lugar a um Este acampamento de protesto conflito que se prolonga até aos marcou uma etapa crucial na luta nossos dias. do povo saharauí, foi um desafio A comunidade internacional às forças de ocupação, constituiu é responsável pel a tragédia que uma mensagem para o mundo vive o povo saharauí: Marrocos inteiro de que o povo saharauí ocupa ilegalmente um territóestá disposto a defender os seus rio, saqueando as suas riquezas, legítimos direitos. intimidando a sua população, Gdeim Izik conseguiu romper impondo a lei do terror, meo bloqueio informativo e o isoladiante as prisões arbitrárias, as mento imposto pelas autoridades deportações forçadas, os tribuda ocupação. Pôs a descoberto nais militares, o isolamento e a a verdadeira essência do regiprivação da população saharaui, me marroquino, que respondeu nos territórios ocupados, dos com os métodos mais desumanos, direitos mais elementares, assim massacrando sem distinção de como o isolamento do mundo sexo ou de idade uma população exterior. indefesa. Actualmente há uma susA população saharauí, através pensão das negociações que se deste acontecimento conseguiu desenrolavam sob a égide das Naunficar ainda mais o seu métoções Unidas. Esta nova situação
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FRENTE POLISÁRIO EM VISITA A SETÚBAL
Ahamed Fal, antigo ministro do Ambiente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), o governo no exílio da POLISARIO, Frente de Libertação de Saguia el Hamra e Río de Oro, é desde o início do ano o represente do movimento em Portugal. Sua principal missão: promover informação sobre a situação do seu povo e sensibilizar os quadrantes político e sociais para um processo de autodeterminação e independência, que se arrasta desde 1975, quando Espanha, então potência colonizadora, se retirou do Sahara Ocidental, entregando-o a Marrocos e à Mauritância, traindo promessas iniciais de salvaguardar a vontade do povo saharauí, através da realização de um referendo de autodeterminação.
do de luta, marcando uma linha teja presente no processo de Paz, divisória entre os saharauís e as porque ocorre esta violação sisforças de ocupação. temática dos Direitos Humanos? J.M - Num Magreb onde soA. F - Efectivamente, Marpram vários ventos de mudança rocos pratica uma política de e olhado com preocupação pela extermínio da população sahacomunidade internacional, qual rauí nos territórios ocupados a importância geo-estrategica do do Sahara Ocidental, perante Sahara Ocidental? os olhos das Nações Unidas, A. F - O Sahara Ocidental representada pela MINURSO, encontra-se numa posição geque agrupa mais de 15 nacionaográfica muito importante, ao lidades. A atitude passiva da MIabarcar três regiões no plano NURSO perante este extermínio internacional, quero dizer, Áfridesacreditou as Nações Unidas: ca, Médio Oriente e Europa. É um Marrocos mantêm um bloqueio território com imensas riquezas informativo sobre o território, não permite a entrada imprensa minerais e um banco de pesca dos estrangeira, impede a presença mais ricos e variados do Mundo. das organizações internacionais O conflito do Sahara Ocidental defensoras dos direitos humaparalisa até ao momento a intenos e, desta forma, gração dos países do mantém o território Magreb, que tem de (...) “a mão que num estado de sítio. se edificar obrigaHá alguns países toriamente sobre o pede está sempre que toleram esta porespeito da soberania debaixo da mão lítica de extermínio, de cada um dos seus que dá” sobretudo a França, membros, incluindo cuja atitude é contraa República Árabe ditória com os princípios sobre os Saharauí Democrática (RASD). quais se fundamenta a República O Sahara Ocidental e a RASD Francesa, baseados na liberdade, constituem um elemento estabiigualdade e o respeito dos Direitos lizador em toda a região, e assim Humanos. tem demonstrado ao longo de toJ.M - Um número significativo dos estes anos, na sua contribuide saharauís vive nos acampação na luta contra o terrorismo, mentos de refugiados na zona o tráfico de droga, a emigração de Tinduf, Argelia e dependem ilegal, elementos que Marrocos exclusivamente da ajuda interutiliza para desestabilizar toda a nacional. Com a crise económica região e o sul da Europa. que persiste em todo o mundo, J.M - A repressão marroquina como tal se percute na vida dos é particularmente violenta nos acampamentos? territórios ocupados do Sahara A.F - A crise tem um impacOcidental. Ainda que a ONU es-
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Raul Tavares / Conselho Editorial: Catarina Marcelino • Carlos Tavares da Silva • Daniela Silva • Hugo Silva • José Manuel Palma • Maria Madalena Fialho • Paulo Cardoso / Director Artístico:
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to negativo em todo o mundo, sobretudo nas sociedades mais vulneráveis. A sociedade saharauí, tanto nos acampamentos de refugiados, sofre o duplo impacto de ser refugiada e de ser ocupada. Os saharauís sempre aceitaram a ajuda exterior se esta leva consigo a mensagem da solidariedade e recusaram as ajudas somente de caractr caritativo ou seja, sempre distinguiram entre solidariedade e caridade, porque estamos conscientes de que a caridade humilha, seguindo o refrão africano que diz que “a mão que pede está sempre debaixo da mão que dá”. A ajuda solidária pode diminuir num determinado momento, mas sempre está presente. J.M - Como os saharauís vêem a posição portuguesa perante este conflito? A. F - O conflito do Sahara Ocidental é pouco conhecido em Portugal, devido ao bloqueio qie Marrocos impõe sobre o tema. Não obstante, a postura de Portugal com Timor é uma referência e um exemplo a seguir pelos outros países na defesa da legalidade internacional e do direito dos povos à autodeterminação e à independência. O povo português saberá estar à altura de todos os povos democráticos da Europa na defesa dos direitos de todos os povos, entre os quais o povo saharauí. João Falcão Machado Jornalista 305788/10 /Periocidade: Mensal / Tiragem: 45.000 exemplares / Impressão: Empresa Gráfica Funchalense, SA - Rua Capela Nossa Senhora Conceição, 50 Moralena 2715-029 - Pêro Pinheiro
A Obsessão e o seu Dia Simplesmente, "Sherlock" Custa a crer que esperei um ano. Um ano? Conto mentalmente a minha miséria e acrescento sem hesitação: ou mais, ou mais. Sem dúvida que foi mais. A não ser que tenha sido menos. É provável que tenha sido menos. Não que isso seja particularmente relevante para a questão em causa. Como se sabe, o tempo é relativo. E eu, relativamente falando, sinto que esperei uma eternidade. Senão mesmo um pouco mais. Volto ao ponto. Eis o ponto: o de que só agora tive a oportunidade de me comprazer com a segunda temporada de “Sherlock”. A primeira temporada, de três episódios de 90 minutos cada, passou na BBC em Julho e Agosto de 2010 e ganhou, sem disputa, o prémio BAFTA de 2011 para melhor série dramática. Facto: até relativamente tarde mantive-me indiferente ao assunto. Erro meu. Visto e revisto, percebi do que o mundo falava e porque razão falava. Rendime, e esperei pacientemente por
eu conheço a argumentação. mais. Uma espera que terminou, Corrijo: eu inventei a argufinalmente, em Janeiro desmentação. Versões modernas te ano com a transmissão da de histórias clássicas? Lembro segunda temporada. E já não era Shakespeare – assassinado sem tempo. já vezes sem conta no ecrã –, Falo de “Sherlock” e falo e dispenso um tão evidente bem. Para bom entendedor terror. Mas existem excepções meia palavra basta. Porque, – poucas, pouquíssimas. Confie de facto, não me refiro meraem mim, sou insusmente a uma nova peito: “Sherlock” é adaptação televisiva A questão uma dessas raras e das aventuras de era: seria possível brilhantes. Sherlock Holmes, dar vida a uma A razão para o icónico detective personagem maior tal facto é simples. fluente na “ciência Simples e curta. Moda dedução” criado que a vida numa ffat e Gatiss sempre por Sir Arthur Cooutra vida? se demonstraram nan Doyle em finais como profundos do século XIX. Na conhecedores e admiradores verdade, refiro-me ao Sherlock das histórias criadas por Conan recriado (é essa a palavra) por Doyle. Um pormenor crucial que Steven Moffat e Mark Gatiss faz toda a diferença. na série britânica que adapta Devo admitir que li ainda e actualiza o célebre detective, pouco das ditas aventuras. brilhantemente interpretado Falha minha? Honestamente, por um Benedict Cumberbatch, prefiro não falar disso. Felize com um sempre encantador mente, Moffat e Gatiss nunca Martin Freeman como Doutor sofreram desse injustificável John Watson, seu fiel amigo e problema existencial. Quando companheiro de aventuras, a se encontravam, falavam – e uma Londres do século XXI. ao que parece falavam mesPauso. Sherlock Holmes mo muito – das aventuras de numa Londres do século XXI? Holmes e Watson. Daí ao que Percebo o óbvio cepticismo se seguiria, foi naturalmente na face do leitor. Eu sei, eu sei:
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um passo. O potencial, eles sabiam-no, estava lá. Mas era necessário fazer algo de novo e fresco, assombrados que estavam pelas anteriores adaptações televisivas que, na verdade, sempre lhes haviam parecido demasiado reverenciais e, em certo sentido, estanques. A questão era: seria possível dar vida a uma personagem maior que a vida numa outra vida? A pergunta era astuta, principalmente porque se respondia a ela mesma. Afinal, uma personagem maior que a vida permite-se a viver qualquer vida. O resultado foi simplesmente “Sherlock”. Um Sherlock moderno onde o cenário mudara, mas não, naturalmente, o seu centro gravítico original. Bem vistas as coisas, uma Londres moderna implica não só tecnologia moderna como igualmente o enfado moderno – esse terrível peso de existência que levou, por exemplo, a que este Sherlock se viesse a provar como um ex-fumador com tendência para a recaída. Muito logicamente, Sherlock não se furta a utilizar essa mesma tecnologia (telemóveis, Inter-
net, etc., etc.) para o auxiliar na resolução dos impossíveis casos que acaba por ter em mãos. Mas, independentemente disso, o facto que permanece é que é o seu poderoso intelecto que lhe permite, no fim, solucionar todos os enigmas impossíveis. Isso e a amizade e parceria que mantém com John Watson, claro. Porque, no fundo, esta sempre foi uma história acerca da amizade; uma estranha e em grande medida improvável amizade. Moffat e Gatiss pretenderam ser irreverentes e pouco canónicos na sua proposta de “Sherlock”. Conseguiram-no. Mas sem nunca perder de vista o espírito original do material em que se baseavam. Muitas vezes é necessário que tudo mude para que tudo fique na mesma. E muitas vezes ainda bem que assim é. Agora só falta mesmo uma coisa: que estreie a terceira temporada agendada lá para princípios de 2013. Uma pequena eternidade? Por favor, não vamos falar disso. Tiago Apolinário Baltazar t.apolinariobaltazar@gmail.com
OLHÓ LICENCIADO FRESQUINHO! É APROVEITAR QUE ‘TÁ BARATINHO! Este país não é para jovens. Pelo menos não para jovens que desejem sentir-me realizados profissionalmente e ter o mínimo de independência, o mínimo de desafogo. Tal como recentemente noticiado (denunciado?) em vários órgãos da comunicação social, ao abrigo do programa Estímulo 2012, várias empresas estão a (tentar) contratar licenciados em troca do salário mínimo (ou pouco mais que isso, para que não pareça tão mal). - Olha, finalmente encontrei estágio em Arquitetura! - A sério? Quando começas, quais são as condições? Conta tudo! - Começo para a semana. O horário é flexível, tenho é de fazer umas 10 horas por dia, pelo menos. Pagam o salário mínimo. - Ah... O. K. - Pois... Muitos defendem que «é melhor pouco que nada», e é essa falta de autoestima laboral que nos trouxe (arrastou?) até onde estamos hoje. Qualquer licenciado que que tenha investido tempo, dedicação e dinheiro na sua edução não pode senão ferver por dentro quando lhe atiram umas migalhas, enquanto tentam convencê-lo que aquilo é tudo o que merece em troca de tudo quanto sacrificou.
SARA SEITA
2012
NR 23
JUN
06 NA VAZANTE
- Então, que tal corre o trabalho? - O anúncio dizia “trabalho”, mas é mais estágio. Pagam subsídio de alimentação e transporte. - Ah... O. K. - Pois... Também há quem critique aqueles que abraçam a precariedade laboral. Tais críticos claramente nunca devem ter sentido a pressão de ter
filhos para alimentar e contas para pagar. Ter princípios é bonito, mas não põe comida na mesa. É indecente que as empresas se aproveitem da fragilidade económica para explorar aqueles que realmente não podem estar sem receber um salário - por mais baixo que este possa ser. Mais indecente se torna esta realidade quando acontece não só sobre as barbas do nosso governo, como com
a sua concordância, dado que se limita a encolher os ombros e deixar acontecer. - Então e como estás a fazer com as despesas da casa? - Não estou. Tive de voltar para casa dos meus pais… - Então… Mas isso implica duas horas e tal de transportes por dia! - É verdade… Já levei duas reprimendas, porque houve dois dias
que cheguei atrasada, por causa das greves…. Como é que este governo pretende impulsionar o emprego e o empreendedorismo se cada medida anunciada parece um prego no caixão onde jaz aquilo que em tempos foi a ambição dos seus jovens? Como é que é possível combater o insucesso escolar tendo em conta a galopante taxa de recém-licenciados desempregados? E depois ainda nos querem “vender” a preço de saldo. Como se fôramos sobras irrelevantes. - Acabou o estágio? Pediram-te que ficasses? - Não, precisam de alguém com carta de condução. Eu ainda não consegui terminar a minha, porque não me pagavam o suficiente. Havia despesas mais prioritárias! - Ah... O. K. - Pois... Parece que por mais que nos esforcemos, não chegamos a lado nenhum. Não é lá muito inteligente atiçar uma colmeia, e é isso que o governo tem vindo a fazer. Há de chegar o dia em que as abelhas irão atacar para defender a sua casa. Ou então a colmeia cairá no chão, vazia: sai mais barato comprar um bilhete de avião que pagar a renda. Vanessa Correia Estudante
Trágico destino de um património
JUN 2012
NR 23
ASSOCIATIVISMO 07
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GRAVURA RUPESTRE SARAHUI, CERCA DE 5000 ANOS
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quecendo ainda a sua literatura, Gravuras rupestres vandalizatanto a tradicional, baseada na das por oficiais da missão de Paz experiência do deserto, como a das Nações Unidas, edifícios que contemporânea, permarcaram a história feitamente desconhede um país deitados O Sahara cida em Portugal. abaixo, segregação Se no caso das dos estudantes saha- Ocidental tem pinturas rupestres, rauís limitando ou im- um importante situadas nos terripedindo o seu acesso património tórios libertados, a a determinados níveis vandalização ocorrido conhecimento. cultural, quer da em 2006 e denunTudo isto o destino material, quer ciada pelos arqueótrágico do patrimó- imaterial, com nio e da cultura de origem deste a pré- logos Joaquim Soler, da Universidade de um país ocupado. história, (...) Gerona, Espanha, e O Sahara OcidenNick Brooks, da Unital tem um importante versidade de East Anglia, Reino património cultural, quer material, Unido foi feita por oficiais em quer imaterial, com origem deste comissão na MINURSO, já a desa pré-história, como as pinturas truição do edificado dentro dos rupestres em Rekeiz Lemgasm e na territórios ocupados do Sahara Cova do Diabo, em Lajuad, até ao Ocidental obedece a uma estratéperíodo colonial espanhol, como gia da força ocupante, Marrocos, o forte de Villa Cisneros (hoje de apagar a memória colectiva Dahjla), passando pela presença saharauí relacionado com tudo o portuguesa, expressa na fortaleza que se refira ao período anterior de Bojador, entre outras. Não es-
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Junho dia.
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dia.
29
• Sábado
Grooveland
Marcão • MPB
Julho dia.
6
Eurico Silva • covers e originais
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dia. à invasão de 1975. Os dois investigadores consQuinteto de Jazz de Setúbal tataram ainda que no caso de Rekeiz Lemgasm houve pinturas dia. que foram arrancadas da rocha, Marcão • MPB desconhecendo-se quem praticou tal roubo e, ainda segundo Soler, durante o período colonial espaComo o apoio do nhol (1884 - 1975) também vários jornal Cultural e de Debates foram os roubos de património feitos pelas forças colonizadoras. Da memória à revolta É preciso ir-se à vizinha Esde Abdurrahaman Budda, abor- no país vizinho, “La Primavera panha para se poder encontrar dando a luta pela independên- Saharaui - Escritores Saharauis numa livraria qualquer obra de cia ou, ainda, “La Maestra que con Gdeim Izik” , é um conjunto escritores actuais me enceñó en una de poemas e relatos que reflecsaharauís, a grande tabla de madera”, tem a dura realidade contemmaioria dos quais de Bahia Mahmud porânea nos territórios ocupaEm Portugal, escrevendo desde o esta riqueza Awah, alguns dos li- dos, com especial incidência no exílio. Em Portugal, vros publicados no acampamento de protesto de literária é esta riqueza literária ultimo ano, são es- Gdeim Izik, nos arredores de El desconhecida. é desconhecida. critas de destaque Aaiún, e destruído violentamente “ E l l a rg o v i a j e que reflectem uma pela polícia marroquina em Nohavia Este”, de Bachir Lehdad, memória pessoal e colectiva, vembro de 2010. recordando a tragédia da fuga que no cativam e nos ajudam a à invasão marroquina há quaJoão Falcão Machado entender um conflito silenciado. se 40 anos, “Tifariti, Mi Tierra”, Jornalista A obra mais recente editada
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