EXPERIÊNCIAS ‘QUASE MORTE’: SOBREVIVENTES DA COVID-19
A Covid-19 não tem apenas um término trágico, mas sim o recomeço de uma vida inteira pela frente.
A Covid-19 pode ter sido o fim, a desesperança, angústia e luto para várias famílias, mas, para outras, significa esperança e renascimento.
APRESENTAÇÃO
“Experiências quase morte: sobreviventes da Covid-19” é um livro-reportagem sobre pessoas que foram infectadas, intubadas e sobreviveram a Covid-19, e sobre profissionais da saúde que lutaram arduamente e diariamente em combate à doença, em Campo Grande, nos anos de 2020, 2021 e 2022. São 11 entrevistados, sendo três de pacientes, quatro de familiares dos pacientes, uma de médica pneumologista, duas de fisioterapeutas e uma de enfermeira.
O primeiro capítulo descreve o contexto geral da pandemia de março de 2020 a novembro de 2022, como número de contaminados, internados, mortos e curados; faixa etária dos contaminados e mortos; picos da pandemia; situação em hospitais; medidas de biossegurança; medidas decretadas pelas autoridades; vacinação; intubação; entre outros.
O segundo capítulo contém a história de luta e superação de pacientes e seus familiares durante o adoecimento, intubação e recuperação. O último capítulo reúne entrevistas de profissionais da área da saúde, que demonstram e detalham processos clínicos, experiências e traumas da pandemia. As entrevistas trazem histórias de dor, sofrimento, tristeza e angústia que se transformaram em superação, renascimento e fé.
O motivo da escolha deste tema é expor que existe vida após contrair um vírus mortal. São relatadas histórias de superação, esperança, renascimento e fé de pessoas que lutaram e sobreviveram à Covid-19. Infelizmente, milhares morreram, mas felizmente a maioria sobreviveu. O trabalho busca mostrar que a Covid-19 não é apenas um fim triste e sim o recomeço de uma vida inteira pela frente. Pessoas que ‘nasceram de novo’ após serem entubadas, vivem uma vida com mais intensidade, amor e empatia pelo próximo.
O tema é de meu interesse, pois vi de perto pessoas que são um verdadeiro milagre, após adoecerem e incrivelmente se recuperarem da Covid-19. A escolha se deu também em razão de eu ter acompanhado a pandemia de perto como a responsável pelo levantamento semanal dos dados da Covid-19 no meu estágio no jornal Correio do Estado, de Campo Grande (MS). O tema me chamou atenção pois tenho curiosidade em ouvir depoimentos de pessoas que ficaram “cara a cara” com a morte, além disso, gosto de escrever e contar histórias sobre o lado milagroso da Covid-19: o de quem sobreviveu à essa doença com alto índice de letalidade.
CENÁRIO PANDÊMICO
No fim do ano de 2019, às vésperas das comemorações natalinas e de réveillon, uma doença “nova” surgia em Wuhan, no leste da China, cidade localizada a 1.177 quilômetros de Pequim, capital do país chinês. O surto da doença começou em um estabelecimento que comercializava frutos do mar e animais vivos. O que ninguém esperava é que a enfermidade se tornaria pandêmica em um curto intervalo de tempo e afetaria a população mundial socialmente, economicamente, politicamente, mentalmente, psicologicamente e culturalmente.
A Covid-19, vírus SARS-CoV-2, avassalou e amedrontou a classe alta, média e baixa; ricos e pobres; brancos, negros, pardos e indígenas; homens e mulheres; bebês, crianças, adolescentes, adultos e idosos e natos e estrangeiros, em todo planeta. Direta ou indiretamente, ninguém saiu ileso desta pandemia.
A Covid-19 é uma Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) que afeta o sistema respiratório do ser humano. Os sintomas são parecidíssimos com os da gripe: febre, tosse,
dor de garganta, dor de cabeça, cansaço e desânimo. Já os sintomas dignos de preocupação são dificuldade para respirar e pressão no peito. Segundo Cavalcante e Dutra (2020), a transmissão da doença ocorre pelo ar, contato pessoal próximo – beijos no rosto, beijos na boca, apertos de mão ou até mesmo conversa olho no olho – e por meio de superfícies e objetos contaminados – talheres, copos, dinheiro, maçanetas, botões de elevadores e corrimões, por exemplo.
Pessoas com comorbidades, ou seja, que possuem doenças pré-existentes, são sensíveis e têm maior risco de desenvolver um quadro mais grave da Covid-19. Idosos, fumantes, hipertensos, diabéticos, obesos, asmáticos, renais crônicos, hepáticos crônicos, cardiopatas, portadores de câncer e imunossuprimidos são pessoas do grupo de risco que podem ter complicações no quadro clínico de Covid-19.
A população sul-mato-grossense ficou assustada quando os primeiros casos de Covid-19 começaram a surgir no estado. Uma mulher de 23 anos e um homem de 31 testaram positivo para a doença, na tarde ensolarada e quente de 14 de março de 2020, sábado, em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul. A quantidade de testes positivos aumentava a cada dia, e ao passar do tempo, o medo de pegar a doença foi tomando conta dos sul-mato-grossenses.
Não demorou muito e a matança chegou ao Estado. Em 31 de março de 2020, uma idosa de 64 anos, residente no
município de Batayporã, cidade localizada a 309 quilômetros de Campo Grande, morreu de Covid-19. A notícia da primeira vítima em Mato Grosso do Sul foi manchete em jornais online e impressos e o assunto principal em telejonais e radiojornais. Em paralelo, veículos de comunicação internacionais noticiavam que centenas de pessoas morriam vítimas de Covid-19, diariamente, na Itália. Com isso, sul-mato-grossenses tinham medo e receio de sair na rua pelo fato da doença ter a marca de “matar em poucos dias”.
Dia após dia, testes positivos e mortes dispararam e o estado entrou em alerta. Como forma de preservar a vida do campo-grandense, medidas de biossegurança passaram a ser adotadas para conter a proliferação do vírus da Covid-19, como uso de máscara, distanciamento social, isolamento domiciliar e higienização das mãos com álcool 70% água e sabão. Outra medida adotada pela Prefeitura Municipal de Campo Grande foi suspender compromissos que aglomeravam pessoas, com o objetivo de incentivar o distanciamento social e a quarentena. Com isso, pessoas tiveram que ficar “presas” em casa, sem frequentar trabalho, escola, faculdade, estágio, comércios, bares, restaurantes, festas e shows.
De acordo com o decreto municipal número 14.189, de 15 de março de 2020, a prefeitura da capital suspendeu aulas; realização de eventos privados e públicos; funcionamento de Centros de Convivência de Idosos, Centros de Referência de
Assistência Social e perícias médicas realizadas pelo município. Portanto, as obrigações diárias, como trabalho, escola, faculdade e estágio passaram a ser ministrados a distância, através da internet. Aliás, internet e tecnologia foram grandes aliadas durante este período. O homeoffice (trabalho em casa, em inglês) e a educação a distância (EaD) se tornaram necessidade do dia para a noite e foram as soluções encontradas para dar continuidade aos estudos e trabalho, mesmo que por trás de um computador.
Para evitar aglomerações em espaços abertos ou fechados e barrar a proliferação do vírus, a prefeitura de Campo Grande definiu por meio do decreto número 14.380, de 14 de julho de 2020, a paralisação total de atividades econômicas e sociais, consideradas não essenciais, por dois fins de semana, no período de 18 a 31 de julho de 2020. Com isso, foram fechados aos sábados e domingos bares, restaurantes, lanchonetes, lojas, conveniências, comércio, academias, shoppings, salões de beleza, escritórios, entre outros. A exceção foi para serviços de saúde, farmácias, drogarias, supermercados, mercados, hipermercados, açougues, padarias, feiras, postos de combustíveis, serviço de delivery, funerária, hotelaria, igrejas e atendimento veterinário.
A prefeitura da capital também decretou em 25 de março de 2020, o toque de recolher das 20h às 5h no município. Com isso, tornou-se proibida a circulação de pessoas em
estabelecimentos, parques, praças e ruas. Pessoas que desrespeitaram o toque de recolher tiveram seus veículos apreendidos e foram conduzidas de maneira forçada pelas autoridades municipais. O intervalo do toque de recolher foi encurtado a medida em que casos e mortes diminuíram das 21h às 5h, 22h às 5h, 23h às 5h ou 00h às 5h.
Com medo da “doença nova”, as pessoas passaram a usar voluntariamente máscara facial, equipamento de proteção individual (EPI) que tampa nariz e boca. Ao decorrer dos dias, com o aumento de casos e de mortes, o uso da máscara passou a ser obrigatório em locais fechados em Campo Grande, de acordo com o decreto n. 14.354, de 18 de junho de 2020, da prefeitura da capital. A exceção foi para prática de atividades físicas, crianças menores de quatro anos e pessoas com deficiência intelectual ou transtornos psicossociais.
Até 25 de outubro de 2022, o vírus infectou 582.005 sul-mato-grossenses. Desse número, 26.689 (5%) têm de 0 a 9 anos; 47.297 (8%) de 10 a 19 anos; 111.409 (19%) de 20 a 29 anos; 130.897 (22%) de 30 a 39 anos; 108.614 (19%) de 40 a 49 anos; 78.918 (14%) de 50 a 59 anos; 46.139 (8%) de 60 a 69 anos; 21.890 (4%) de 70 a 79 anos e 8.632 (1%) de 80 a 89 anos.
Os municípios do Estado com maior número de casos são Campo Grande (330 mil testes positivos); Dourados (53.385) e Três Lagoas (32.226). Em Mato Grosso do Sul, o re-
corde de casos confirmados ocorreu em 1º de fevereiro de 2022, quando 4.902 pessoas testaram positivo em um único dia.
O índice de recuperados no Estado foi expressivo. Dos 582.005 contaminados, 570.135 foram curados, ou seja, 97,9% das pessoas se recuperaram em Mato Grosso do Sul. Porém, a Covid-19 tirou a vida de 10.843 pessoas em Mato Grosso do Sul até 25 de outubro de 2022. Desse número, 1% tem de 20 a 29 anos; 5% de 30 a 39 anos; 11% de 40 a 49 anos; 18% de 50 a 59 anos; 22% de 60 a 69 anos; 23% de 70 a 79 anos; 16% de 80 a 89 anos e 4% 90 anos ou mais. Atualmente e lastimavelmente, são 10.843 famílias que choram a perda de seus entes queridos. O recorde de mortes ocorreu em 12 de junho de 2021, quando 73 pessoas perderam a vida em um único dia. O expressivo número de mortes fez cemitérios organizarem fila de espera para funeral e enterros no primeiro semestre de 2021. O pico de mortes passou, mas famílias vivem o luto da perda de seus entes diariamente.
É possível comparar o vírus como um furacão que, por onde passava, deixava caos, destruição, mortes e tristeza. Nos hospitais não foi diferente. Com aumento dos casos, mortes e internações, os hospitais ficaram superlotados. O pico e recorde de internados ocorreu em 8 de junho de 2021, quando 1.339 pessoas encontravam-se hospitalizadas, em um intervalo de 24 horas, em Mato Grosso do Sul.
As equipes médicas, medicamentos e recursos eram insuficientes para atender tamanha demanda de pacientes. Eram muitos pacientes para poucos médicos. Leitos foram duplicados e, mesmo assim, leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) ainda tiveram que ser improvisados e a ala clínica se transformou em UTI. Remédios do “kit intubação”, como sedativos, analgésicos e relaxante neuromuscular, estavam em falta nas distribuidoras primeiro semestre de 2021, devido ao uso frequente.
O Hospital Regional de Mato Grosso do Sul (HRMS), referência no tratamento da Covid-19, atendeu 7.781 pacientes de 2020 a 2022. Desses, 5.559 receberam alta e 2.219 morreram. Os profissionais da área da saúde que trabalharam no HRMS, na linha de frente em combate a Covid-19, também não saíram ilesos: dos 2.151 servidores infectados, oito faleceram. Na Santa Casa de Campo Grande, maior hospital de Mato Grosso do Sul, dos 222 pacientes atendidos, 45 precisaram de intubação em algum momento do tratamento e 57 perderam a vida para a doença.
O ano de 2021 começou com notícias boas e esperança, pois uma luz era vista no fim do túnel: a vacina. Não demorou muito e na tarde chuvosa de 18 de janeiro de 2021, por volta das 15 horas, 156 mil doses da Coronavac desembarcaram do avião da Força Aérea Brasileira (FAB), no Aeroporto Internacional de Campo Grande (CGR).
O “pouso da esperança” foi em homenagem às milhares de vidas perdidas no estado. Foi emocionante e histórico. A vacinação contra Covid-19 teve início no dia seguinte, em 19 de janeiro de 2021. De acordo com dados do vacinômetro, site que divulga números oficiais e em tempo real do processo de vacinação, 88,65% da população sul-mato-grossense está vacinada com uma dose e 79,48% imunizada com duas doses ou mais, até 28 de outubro de 2022. Ao todo, 5.957.708 doses foram aplicadas, sendo 2.259.125 da primeira, 1.970.209 da segunda, 1.181.178 da terceira, 282.922 da quarta e 257.938 da dose única.
O avanço na vacinação é responsável pela queda no número de testes positivos, internações e mortes por Covid-19. Aliás, foi impressionante o ‘antes’ e o ‘depois’ dos hospitais, após a vacinação. Após melhora da pandemia, o uso de máscara deixou de ser obrigatório em todos os ambientes abertos e fechados de Campo Grande – inclusive em ônibus, hospitais e unidades de saúde e hospitais –, de acordo com o decreto número 15.357, de 25 de agosto de 2022, da prefeitura da capital. Após a desobrigatoriedade do uso da máscara, o campo-grandense até respirou melhor (literalmente). Decreto da prefeitura de Campo Grande, número 14.858, de 18 de agosto de 2021, revogou o toque de recolher e fechamento de atividades não essenciais, após a melhora da pandemia.
A intubação é um dos recursos médicos finais no combate à doença. É o procedimento que pode estabilizar o quadro de falência respiratória causada pelo vírus da Covid-19. Segundo Cremonesi e Halpern (1990), o procedimento é considerado de risco e pode trazer complicações clínicas para o paciente, como fraturas ou luxações na coluna cervical, lesões de lábios, ferimentos na língua e nariz, traumas dentários, deslocamento de mandíbulas e lesões e perfurações das vias aéreas e esôfago. Algumas pessoas intubadas com Covid-19 falecem em decorrência do quadro clínico delicado, mas, felizmente, outras são extubadas e sobrevivem ao vírus. Nas páginas a seguir, três pacientes relatam “a volta por cima” após dramas semelhantes vividos durante a pandemia. Teresinha, Arlete e Edgar são a prova viva – literalmente – de que casos dados como irreversíveis são sim possíveis e por isso estão aqui para compartilhar sua experiência quase “morte”. Mais que isso, elas relatam a transformação que a doença trouxe para suas vidas.
TRÊS FACES DA SOBREVIVÊNCIA
Existe vida, mesmo após contrair um vírus mortal. Experiências de dor, sofrimento, tristeza e angústia se transformaram em esperança e fé. A luta pela vida, contra um vírus letal, simboliza a força, garra e coragem de pessoas que ficaram à beira da morte. O novo coronavírus pode ter representado o fim e luto para algumas famílias, mas, para outras, simboliza a superação e renascimento. A forma de viver e enxergar o mundo tornou-se melhor que antes da doença. Pessoas que “nasceram de novo” e contam suas experiências de quase morte, agora vivem como se não houvesse amanhã.
Teresinha Gomes de Almeida Bairros, 63 anos, nasceu em 31 de agosto de 1959, aposentada, viúva, mãe de quatro filhos, avó de nove netos, paranaense e evangélica. “Dona Teresinha” – como gosta de ser chamada – é branca, tem cabelo castanho claro e olhos castanho-escuro, 1,48 metros de altura, nariz adunco, lábios finos e usa óculos.
Arlete Arinos Catoci, 62 anos, nasceu em 28 de agosto de 1960, aposentada, casada há 42 anos com Antô-
nio Carlos Catoci, mãe de três filhos, avó de cinco netos e evangélica. É morena, tem olhos e cabelos castanho-escuro, tamanho curto, 1,63 metros de altura, nariz achatado e lábios médios.
Edgar das Neves Pereira, 53 anos, nasceu em 25 de dezembro de 1968, é cinegrafista, casado com Deanie Valesca Arte Ortiz há 26 anos, pai de duas filhas, sul-mato-grossense e evangélico. É moreno, careca, barbudo grisalho, usa óculos, 1,87 metros de altura, tem olhos castanho-escuro, nariz achatado e lábios carnudos.
Teresinha, Arlete e Edgar são pessoas diferentes, mas têm algo em comum: fazem parte dos 570.135 infectados pela Covid-19 em Mato Grosso do Sul, que adoeceram, foram intubados e hoje estão vivos para contar suas experiências de “quase morte”. A proximidade com a morte os fez enxergar a vida com outros olhos. Os olhos foram dilatados para o futuro e contraídos para o passado. O passado ficou para trás, junto com experiências desagradáveis de “quase morte”. Dali para frente, o que interessava é o futuro. Futuro de uma trajetória inteira pela frente, com novas oportunidades e chances de viver intensamente.
“A Covid-19 foi pior do que os dois cânceres que eu tive”
Teresinha Gomes de Almeida Barros, 63 anos, aposentada Dona Teresinha renasceu pela terceira vez. Foi diagnosticada com câncer no retroperitônio – neoplasma localizado atrás da cavidade abdominal, entre o pâncreas, rins e intestino – em 2017. Em 19 de fevereiro de 2021 foi infectada pelo Covid-19 e foi diagnosticada com um tumor no timoma – neoplasia situado entre os dois pulmões. Ou seja, teve câncer e Covid ao mesmo tempo.
Durante o tratamento da Covid-19, ficou 33 dias no hospital, 17 deles intubada, e perdeu 14 quilos. No tratamento oncológico, enfrentou 60 sessões de radioterapia. Exemplo de luta e superação, não desistiu da vida em nenhum momento, pelo contrário, sempre teve muita vontade de viver. Ela é um “verdadeiro milagre”, como diz sua filha, Suzana de Almeida Ajala, maquiadora, 37 anos.
Apesar dos avanços da medicina, o câncer ainda carrega o estigma de uma doença terminal e de difícil cura. Porém, para Teresinha, a crueldade do câncer não “chega
aos pés” da brutalidade da Covid-19. Sua reação é pelo fato de ter ficado muito tempo sozinha no hospital, sem ver a família e poder ir para a casa.
Com sorriso de “orelha a orelha”, Teresinha é grata a Deus pela terceira chance de viver. Sua experiência de “quase morte” a fez refletir que não se deve deixar nada para depois, pois a vida muda do dia para a noite: em um belo dia estava bem, rindo, conversando, comendo, dirigindo. E na semana seguinte, intubada. “Então, porque deixar para amanhã o que se poder fazer hoje?”, indaga. Ela vive e aproveita o hoje. O amanhã a Deus pertence. Come o que tem vontade, faz o que quer fazer e visita quem não vê há anos, tudo em um só dia. Não deixa nada para amanhã.
Após a doença, diz estar pronta para o que “der e vier” e não tem medo de mais nada, nem de um possível câncer que possa reaparecer, muito menos de morrer.
– Aprendi que ninguém morre sem chegar o dia, ninguém morre na véspera. Porque a vida é de Deus, é ele quem deu a vida e é ele quem vai tirar.
Viveu altos e baixos e não é “qualquer coisinha” que a abalará novamente, como disse. A doença lhe mostrou que sempre deve estar disposta a enfrentar os obstáculos de cabeça erguida, olhando para frente e com otimismo. E o mais importante: não desistir de viver, sonhar e realizar.
A fé é sua grande companheira para enfrentar os problemas. A pandemia fez com que sua conexão com Deus se tornasse ainda mais forte. Após a cura, frequenta mais a igreja, ouve louvores em casa, ora várias vezes ao dia, lê a bíblia e é devota à Ele.
Outra lição foi a de se colocar em primeiro lugar. Teresinha precisou estar à beira da morte, por três vezes, para aprender a dizer “não” para as pessoas, quando necessário. Antes de adoecer de Covid-19, sempre fazia de tudo pelos outros, mesmo que contra sua vontade. Agora não se sente mais receosa em dizer “não”. Faz o que está ao seu alcance, se não estiver, pede desculpas e diz que não vai fazer.
– Se eu posso fazer, eu falo “sim”, se eu não posso, eu não vou me esforçar. Eu jamais vou fazer alguma coisa para agradar alguém, primeiro eu, depois os outros.
De acordo com ela, as lições deixadas pela Covid-19 melhoraram sua forma de viver em 100% e hoje é mais feliz, alegre, radiante, realizada e decidida.
“O ardor do fogo não chegou aos pés dos danos da Covid-19”
Edgar das Neves Pereira, 53 anos, cinegrafista
Edgar renasceu duas vezes: foi vítima do fogo e da Covid-19. Há alguns anos, se envolveu em um incêndio e teve 20% do corpo queimado. Queimou o rosto, braço, peito e orelha após uma garrafa de álcool explodir em sua mão. Teve queimaduras de primeiro, segundo e terceiro graus. Por incrível que pareça, hoje não há uma sequer cicatriz deixada pelas chamas. As marcas e queimaduras não tiveram relevância perto do novo coronavírus.
O cinegrafista foi a primeira pessoa a ser intubada com a Covid-19 em Mato Grosso do Sul. Logo quando a doença chegou no estado, teve o desprazer de ser um dos primeiros a ser infectado. Era uma doença desconhecida, de países do outro lado do mundo e vista apenas na televisão. Ele pegou o vírus em um almoço entre amigos, pois um convidado, que também participou da confraternização, havia acabado de chegar dos Estados Unidos da América
(EUA), país em que a doença estava bem avançada. Mal poderia imaginar que, em breve, a doença estaria em seu corpo. Quando os primeiros sintomas surgiram, nem passava pela sua cabeça que poderia ser Covid-19. A suspeita era dengue.
– Era começo de ano, março, chuvarada e aqui no bairro, tem muito caso de dengue. Então a gente pensou que era dengue mesmo.
Em meados de março de 2020, a doença ainda desconhecida e ele serviu de cobaia para os profissionais da área da saúde. Os médicos não sabiam qual procedimento fazer e qual remédio dar. Os testes de Covid-19 realizados em Mato Grosso do Sul eram limitados e tinham que ser enviados para São Paulo para análise. Com isso, o resultado demorava mais de dez dias para ficar pronto.
– Fui um experimento nas mãos dos médicos. Acabei sendo meio que uma cobaia, porque ninguém sabia ao certo o que usar. Ninguém sabia o que era aquela doença ao certo, que tipo de medicação tinha que aplicar, qual eficácia no organismo.
Apesar da gravidade, o calor do fogo e o medo da “doença desconhecida” não foram motivo para que se entregasse à morte. A esposa e as filhas foram a força para mantêlo vivo. Sabia que ainda não poderia “partir dessa para outra melhor”, pois a esposa e a filha precisavam dele e estavam
esperando por ele.
Não foi apenas Edgar que tirou lições da doença. Ela deixou aprendizados para a família toda. Ele precisou dar de cara com a morte duas vezes para perceber que o que realmente importa não está no trabalho, no banco ou estacionado na garagem.
– Ver minha esposa e filhas todos os dias, jantar e almoçar com elas, vê-las andando pela casa parece ser algo tão simples, mas na verdade é o que de mais valioso temos na vida.
Após ter o marido de volta, Deanie Valesca passou a enxergar a vida em um tom diferente. Briga menos com as filhas, implica menos com Edgar e diz mais “eu te amo”. Faz menos serviços de casa, passa mais tempo com a família, ri mais e se estressa menos. Come o que tem vontade e acima de tudo: não deixa nada para amanhã.
– Estar ao lado de quem a gente ama é algo tão comum e simples e ao mesmo tempo tão valioso. Não tem dinheiro que pague isso. O que seria de mim e das minhas filhas se o Edgar não estivesse aqui hoje? A casa iria perder a graça, o sabor da janta não seria o mesmo e a vida perderia totalmente o sentido.
“Eu ia morrer, mas eu voltei pelos meus netos”
Arlete Arinos Catoci, 62 anos, aposentada
Arlete possui uma das comorbidades mais letais e perigosas para quem é diagnosticado com Covid-19: Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC). A DPOC é um grupo de doenças pulmonares (bronquite e enfisema) que bloqueiam o fluxo de ar e dificultam a respiração. A falta de ar é constante na vida de quem possui DPOC, se manifestando até mesmo quando o doente está em repouso. Cigarro, exposição à poeira, poluentes do ar e vapores químicos contribuem para o surgimento da doença.
Para agravar ainda mais seu quadro clínico, Arlete possui diabetes e neuropatia diabética. Não é à toa que seu marido se refere a ela como “guerreira”, pois não é para qualquer um ficar 49 dias no hospital, sendo 27 intubada, 10 com a traqueostomia, e 40 dias seguidos sem tomar banho, além de perder 18,5kg.
As comorbidades resultaram em uma intubação complicada e cheia de sustos para a família, mas Arlete não se deixou abalar. Os netos eram a principal fonte de inspiração para que fosse forte e lutasse com unhas e dentes contra a doença. É avó de Fernando, 6 anos; Alan, 8; Benício, 8; Nicolas, 13 e Leonardo Vitor, 19. Somente homens. Neles, encontra forças para viver, seguir em frente e não olhar para trás. Graças aos meninos, é uma pessoa melhor e uma mulher realizada. E, por causa deles, está viva. Ela também dá a vitória e parabeniza os médicos, enfermeiros e fisioterapeutas por estar viva, mas, os cinco meninos foram pessoas-chave para o sucesso e sua recuperação.
– Eu sou apaixonada pelos meus netos e vivo por eles. Mimo todos eles. Eles vêm me visitar e eu faço tudo o que eles me pedem. Eu não poderia morrer. Se eu morresse, como eles iriam ficar sem mim? Eu voltei por eles.
A Covid-19 foi uma “escola” para Arlete. Ela aprendeu algumas coisas e reaprendeu outras. A lista de aprendizados traz itens importantes, como: se arriscar, não ter medo de viver, ajudar o próximo, ter mais empatia, ouvir mais e falar menos, abraçar mais e dizer “eu te amo”. Antes de ser infectada, sempre teve vontade e planos de viajar. Agora, se arriscou e finalmente tirou as viagens do papel. Foi visitar parte da família em Rondônia. O espírito de solidariedade surgiu e passou a ter o hábito de ajudar quem
mais precisa: pessoas em situação de vulnerabilidade social.
– Passei a colaborar, em forma de alimentos, com quem mais precisa. Quando vejo uma família passando fome, dou arroz, leite, pão, macarrão e sal. É doído ver alguém passando necessidade, e, se não quero isso para mim, também não posso deixar que isso aconteça com os outros.
A pandemia forçou o isolamento social e as pessoas foram obrigadas a evitar beijos, abraços, apertos de mão e contato pessoal próximo. Arlete ficou sentida que não pôde mais “amassar” seus netos de beijos e abraços.
– Quando eu sai do hospital e cheguei em casa, fui recebida com muito carinho pela minha família. Fiquei emocionada quando vi meus netos após tantos dias desacordada. Foi abraço atrás de abraço e beijo atrás de beijo. Nunca mais quero ficar longe deles.
O susto que Arlete deu no marido, filhos e netos fez com que cuidassem ainda mais da saúde da idosa. De acordo com Antônio, visitas regulares ao médico passaram a fazer parte de sua rotina. Ela mudou seus hábitos de higiene e o álcool gel passou a ser o item mais importante de sua bolsa.
– Nós já cuidávamos muito bem dela, e, agora, mais do que nunca, vamos vigiar pela saúde dela mais ainda. Doença aqui em casa não tem poder mais.
Sinais da Covid-19
Os sintomas que os três pacientes tiveram foram semelhantes, intensos e avassaladores. Teresinha teve tosse, desânimo parecido com depressão, falta de apetite, cansaço, dor nas pernas e dor no corpo. O mais preocupante para ela foi a febre de 42ºC, que a fez delirar e ir imediatamente para o hospital. Quando chegou, estava com 70% do pulmão comprometido e 70% de saturação. Os primeiros sinais de Edgar foram diarreia, febre e dor no corpo. De início, achou que fosse dengue, pois já teve a doença três vezes e os sintomas eram semelhantes. Teresinha chegou no hospital com 35% do pulmão comprometido e 65% de saturação.
Em uma bela noite, Arlete foi ao culto louvar a Deus. Na volta para casa, trouxe a Covid-19. Os sintomas começaram em 18 de novembro de 2020. Decidiu procurar atendimento médico na noite seguinte e fez um teste, o qual positivou. Horas antes de testar positivo, dividiu o jantar com o marido na mesma colher. Ele fez o teste, mas não foi diagnosticado com a doença.
Sem melhora, Arlete foi internada no dia 24. Os médicos alertaram à família de que ela precisava ficar no hospital mais alguns dias, pois seu caso era grave. Priscila Arinos
Catoci, 34 anos, filha de Arlete, passou dias de angústia e desespero quando soube que, mesmo com todos os cuidados hospitalares, a mãe não estava bem. No dia 28, foi intubada no Hospital do Coração – Clínica Campo Grande e o chão de Antônio e Priscila desabou com a notícia.
Durante o coma induzido, pegou infecção bacteriana, precisou receber sangue, pois sua imunidade estava baixa, e fez hemodiálise devido às complicações no rim. Teve escaras no bumbum e ficou de bruços para aliviar o pulmão. Em um certo momento, foi extubada, mas foi intubada novamente pois não reagiu bem.
Enquanto esteve intubada, tinha pesadelos com um homem de capa preta e vermelha, velas pretas e vermelhas e um pêndulo. Aflita e assustada, Arlete revelou que ficou 72 horas lutando contra aquele inimigo. Conta que o pêndulo prata marcava o tempo e ficava descendo e subindo. Toda vez que o objeto descia, Arlete quase se entregava à morte. Além disso, o “diabo” queria que ela dormisse e quando pegasse no sono tinha a impressão que iria falecer. Foi uma guerra espiritual, cujos vencedores foram Arlete e Jesus Cristo. O diabo, perdedor, define a ex-paciente.
– O diabo perguntava para mim aonde está o meu Deus e queria que eu o negasse por toda lei. Quando o pêndulo chegava lá embaixo, eu quase me entregava, mas ele subia e eu resistia.
Diferentemente dos outros hospitais, Arlete, mesmo intubada, não ficou isolada e sua família ia visitá-la todos os dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A visita era feita mediante medidas de biossegurança, como uso de capote hospitalar, bota, máscara, luva, touca e faceshild. Antônio ficava triste em ver a amada naquela situação, mas ao mesmo tempo aliviado em poder vê-la e tocá-la, pois muitas famílias não tiveram essa oportunidade. Com lágrimas nos olhos, o marido relembra como foi a cena agoniante na UTI. – Eu tocava nela. Eu chegava perto dela e ficava do lado dela, mas ela estava desacordada e cheia de aparelhos. Ficava muito em prantos lá e chorava muito. A gente querendo falar com ela e ela desacordada.
A família de Edgar e Teresinha não tiveram o mesmo “privilégio” da visita. A filha de Teresinha, Suzana, ficou 33 dias seguidos sem ver a mãe, e Deanie Valesca ficou 38 dias sem ver o marido. A saudade não cabia no peito de ambas.
Teresinha também pegou Covid-19 na igreja, assim como Arlete. Ela começou a sentir os sintomas em 26 de fevereiro de 2021, foi internada em 2 de março e intubada no dia 6 no Hospital Santa Casa de Campo Grande, na área pública. Foi extubada no dia 21 e saiu do hospital em 4 de abril, domingo de Páscoa.
Na tarde de 26 de fevereiro, Suzana notou que sua mãe estava mal e imediatamente a levou para o hospital. O atendimento foi imediato, pois Teresinha fez acompanhamento no setor de oncologia. Com aparência de desespero, a filha contou que assim que Teresinha chegou no hospital, já foi internada, pois o caso era grave. Após demonstrar preocupação, Suzana abriu um sorriso de gratidão ao dizer que a mãe foi muito bem atendida pelos profissionais da saúde. De acordo com ela, até parecia que estavam pagando e que a mãe estava na ala particular do hospital.
– São todos excelentes. Bons médicos, enfermeira, psicóloga, assistente social, são muito atenciosos. Não tenho do que reclamar.
O histórico de câncer e o tumor próximo ao pulmão contribuíram para que o quadro clínico da paciente se tornasse delicado. Sem melhora, Teresinha foi intubada em 6 de março. Inquieta ao saber que a mãe estava em perigo, a moça pensava nela o tempo todo, enquanto atendia clientes em seu salão de beleza. Não via a hora de ir embora do salão para acompanhar o boletim médico que saia diariamente às 15 horas. Sabia que caso fosse divulgado algo grave, iria passar mal na frente dos clientes.
Ao longo da intubação, Teresinha pegou três bactérias, todas no pulmão. Teve febre, convulsão, pressão e saturação baixas, bradicardia e sobrecarga no rim. A maioria dos
boletins médicos informava que o estado dela era gravíssimo e que corria risco de morte. O seu pior dia no hospital foi 17 de março, quando os médicos disseram que talvez não resistiria àquela noite. Descontraída e de cabeça baixa, Suzana revelou que a situação era tão delicada, que chegou a ficar de bruços, na posição de prona, todos os dias, pois o tumor de Teresinha era próximo ao pulmão.
– Aplicavam noradrenalina nela para o coração não parar de bater, era uma dose muito alta. Depois que intubou, só foi piorando. Só vinha “risco de morte” e “paciente sem melhora”, no boletim.
Antes ou depois da pandemia, a maquiadora sempre foi muito delicada e cuidadosa com a mãe. Quando Teresinha chegou em casa, era monitorada 24 horas pela filha. Ela dormia ao seu lado, no mesmo quarto, para garantir que estivesse respirando bem e sem febre. Transportava sua mãe em cadeira de rodas pela casa, fazia comida e a alimentava de uma em uma hora, com torradas, frutas e mingau. Dona Teresinha havia emagrecido 14 kg e, graças ao empenho da filha, conseguiu repor o peso.
– O médico falou para mim que era para cuidar porque a maioria dos pacientes estava morrendo depois da alta, e a família não via. Dava parada cardíaca, parada respiratória e não viam. Eu não dormia, cuidava da nossa mãe 24 horas. Ela dormia já com o oxímetro na ponta do dedo. Eu
fazia mingau de fubá, comprava torradinha, cortava e descascava pitaya, porque ela perdeu muita massa muscular.
O quadro clínico de Edgar piorou da noite para o dia, assim como Teresinha e Arlete. Ele começou a sentir os sintomas em 18 de março de 2020. Ficou 38 longos dias no hospital, 22 intubado e 12 com a traqueostomia; perdeu 25 quilos. Tem hipertensão e diabetes, comorbidades de risco grave para o paciente.
A família do cinegrafista decidiu levá-lo à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Vila Almeida no dia seguinte, onde os médicos e enfermeiros não deram muita atenção para o caso, pois ele não estava com falta de ar, sintomachave da Covid-19. Então, receitaram paracetamol e aconselharam a voltar para casa. Em casa, só piorou. O quadro evoluiu para falta de ar e ele retornou para a UPA no dia 23, com dificuldade para andar e muitas dores. Aflita e gaguejando, a esposa relembra detalhes do momento em que Edgar estava no pronto-socorro.
– Meu marido estava com muita falta de ar e de repente roxeou inteiro, a boca dele roxeou e ele caiu duro no chão, inconsciente. Foi um desespero.
Edgar teve que ser encaminhado de ambulância para o Hospital Regional (HRMS). Dentro do veículo, pedia orações para famílias e amigos através do WhatsApp. Neste momento, as filhas Esther Ortiz Pereira, 23 anos, e Giova-
na Ortiz Pereira, 24 anos, estavam em prantos, preocupadas com o pai. Giovana passou mal ao vê-lo naquele estado e também precisou de atendimento médico.
No hospital, Edgar passou por uma série de exames. Disse, de maneira aterrorizada, como a gasometria arterial é um exame extremamente doloroso e perguntava para si mesmo se era melhor ter morrido, pois nenhum ser humano merece passar por tanta dor.
– Eles faziam duas vezes por dia um exame que era para acompanhar a oxigenação do sangue, que é um exame que é um inferno. É um que enfia uma agulha pela veia, para tirar sangue da artéria. Meu Deus do céu, era de chorar. Era apavorante porque aquela agulha pegava no nervo.
Na tarde do dia 25, por volta das 18 horas e 30 minutos, os médicos informaram Edgar que o estado dele era grave, devido a febre e quadro de pneumonia. A Covid-19 já havia afetado 75% do pulmão e a saturação estava muito baixa. Um enfermeiro pediu para que arrumasse suas coisas pois iria levá-lo para outra ala. No corredor do hospital, a caminho do outro setor, observou que as pessoas arregalaram os olhos direcionados para ele, com olhar de medo, e cochichavam: “é aquele ali”, como se fosse um “bicho de zoológico”. Todos sabiam que ele estava infectado com a Covid-19. Logo depois, os enfermeiros avisaram que iriam intubá-lo e ele ficou desesperado.
– Eu sabia o que era intubação. Fiquei apavorado, mas a equipe tentou me acalmar dizendo que era o melhor para mim. Veio a anestesista, contei até três e não vi mais nada.
Os sentimentos da esposa eram de medo e incerteza, pois nunca tinha ouvido falar sobre intubação. De cabeça baixa e com olhos cheio de lágrimas, ela afirmou que em certo dia via essa situação em outro país e de um dia pro outro, teve que viver isso dentro de sua própria família.
Os primeiros dias de intubação foram de piora sucessiva e no sétimo dia o estado foi de grave para gravíssimo. O rim também foi afetado, mas Edgar não precisou fazer hemodiálise. Durante a intubação, teve escaras no cóccix, cotovelo, dedo e cabeça. Sem sucesso, os médicos diziam que o estado dele era grave e que fizeram tudo o que podiam. Desacreditados, os profissionais alertaram à família que se ela crê em milagres, a única opção que restava era pedir por um.
Sustentáculo divino
Desesperadas e sem ter mais o que fazer, as três famílias encontraram suporte em Deus para implorar pelo impossível. As famílias de Egdar, Teresinha e Arlete são evangélicas, portanto, orações, jejum e promessas foram as
formas de clamar aos céus por um milagre.
Os dias em que Arlete esteve intubada foram agoniantes para a família. Era choro atrás de choro. Desespero atrás de desespero. As notícias de mortes veiculadas na mídia entristeciam Priscila mais ainda. A jovem repreendia pelo “sangue poderoso de Jesus Cristo” todo e qualquer tipo de fatalidade que viesse a ocorrer com sua mãe. Aliás, vigias de oração em prol da vida e cura da idosa é o que não faltaram no dia-a-dia da família Catoci.
O quadro clínico de dona Teresinha também não era muito diferente do de Arlete. Mas, em nenhum momento Suzana perdeu a esperança. Mesmo com todos os boletins trazendo risco de morte, a filha acordava três horas da madrugada, todos os dias, para orar pela mãe. Além disso, ela passava o dia orando: limpava casa orando, lavava louça orando, varria a casa orando, trabalhada orando e fazia comida orando.
Angustiada, ela fala para Deus, na noite de 20 de março, que não queria sua mãe fosse para o céu. Então, diz que Deus a respondeu com as seguintes palavras: “hoje eu estou mandando o meu exército de anjos para tirar aquele espírito de morte que está rondando a sua mãe”. A partir daquele momento, com um sorriso estampado no rosto, a filha diz que não teve dúvidas de que sua mãe seria curada.
– Eu orei no gramado e pedi para Deus me mandar
uma resposta sobre a minha mãe. Quando eu abri o olho, tinha um beija-flor na minha frente. Aí eu tive certeza que ela não ia morrer. O beija-flor foi uma resposta de Deus. A oração de Suzana foi atendida mesmo! No dia 21, Dona Teresinha começou a morder o tubo, foi extubada imediatamente pelos médicos, saiu da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e foi deslocada para a enfermaria. Em apenas um dia, Deus realizou dois milagres. Teresinha recebeu alta em 4 de abril, domingo de Páscoa. Este dia histórico para a família Almeida foi de muitas comemorações, tanto no hospital quanto, em casa. A família levou cartazes no hospital e também colou no vidro do carro frases como “Eu venci a Covid-19”. Quem passava por eles, batia palma e buzinava. Além disso, o domingo de Páscoa teve almoço em comemoração à vida de Teresinha e ao renascimento de Jesus Cristo.
“O meu nome foi parar na lista de oração do Papa Francisco”
Edgar das Neves Pereira, 53 anos, cinegrafista
Deanie Valesca entregou a vida do marido nas mãos de Deus, e, apesar da situação delicada, não perdeu a fé em nenhum momento. Estava crente que Edgar iria sobreviver e seria curado, pois tinha uma paz enorme em seu coração. Nem ela sabia o porquê estava tão tranquila em uma situação em que o marido estava à beira da morte. Estava tão forte e firme que tinha pessoas que que tinha consolar, ao invés do contrário.
– Eu não via no meu coração nenhum desespero dele morrer. Era uma possibilidade, mas não era algo que eu ficava me prendendo. Só sabia que ele não ia morrer porque ainda não era o tempo de ele morrer.
Em conversa íntima de mãe e filhas, Esther, com muitas lágrimas nos olhos, indagou a mãe sobre como seria se o pai dela morresse. Firme e forte, sua mãe disse: “o seu pai não vai morrer, minha filha. O seu pai é de Deus. Deus é o dono da vida dele e Deus é quem vai determinar se ele
vai morrer ou não. Eu acredito que ele não vai morrer. Mas se o Criador falar que sim, não tem nada que a gente possa fazer. É uma decisão de Deus e a gente vai tem que aceitar”. Com lágrimas e soluços, mãe e as duas filhas iniciaram uma oração em prol da vida de Edgar. As três se ajoelharam para que a oração tocasse o céu.
Pessoas do Estados Unidos, Itália, Japão, Argentina e Israel acordavam às duas horas da madrugada, cada um na sua casa, para orar por Edgar. O nome dele chegou até a lista de oração do Papa Francisco.
Não foram apenas Deanie, Esther, Giovana e outras pessoas ao redor do mundo que conversaram com Deus durante a intubação do cinegrafista. Edgar também diz ter falado com Deus durante todo o tempo que esteve intubado. Seu corpo e mente foram para outra dimensão: estava sonhando quando se viu diante de uma porta dourada, grossa, grande e alta, de 30 metros.
– Eu só via a porta, mas não via dos lados. E a porta se abriu e não dava para ver do outro lado porque era muito claro. Eu fui entrando. Tinha muita paz. Mas fui entrando para o outro lado e tudo sumiu e senti que uma mão me puxou para trás. Daí acordei e comecei a escutar vozes. Abri o olho e não estava entendendo o que estava acontecendo porque eu estava amarrado, cheio de aparelhos e tubos em mim.
Prestes a ser extubado e horas antes de sair do coma induzido, o cinegrafista desconfiou que ia morrer, mas viu que ainda não era a sua hora. Edgar acordou “do nada”, abriu o olho e viu a movimentação da equipe médica ao seu redor.
Mais uma vez, a oração teve poder! Felizmente, Edgar foi extubado em 16 de abril de 2020 e foi direto para a traqueostomia. A sensação da família foi de outro mundo, algo difícil de explicar. Era uma mistura de sentimentos: vitória, gratidão a Deus, felicidade e esperança. Edgar ainda não entendia muito bem o que estava acontecendo, pois estava sob efeito de remédios fortíssimos, mas, ficou muito feliz quando ouviu a voz da mulher e das filhas. Sob melhora e boa perspectiva dos médicos, foi remanejado para a enfermaria em 28 de abril, onde ficou três dias. Após reencontrar as filhas e a mulher e ainda ter o privilégio de receber banho da esposa – após 40 dias sem tomar banho –, a evolução do quadro clínico disparou de estável para bom. A partir de então, recebeu alta, deixou o hospital no dia 30 e foi direto para casa, onde foi recebido por uma mini comemoração das filhas. A festa caseira tinha enfeites, cartazes e balões.
Emocionado e com os olhos cheios de lágrimas, revelou que os médicos disseram que ele sairia do hospital “no saco preto”, ou seja, morto. Mas, por um milagre e após
correntes de oração pelo mundo, saiu vivo e “pronto para outra”, disse em tom de brincadeira.
Teresinha foi privilegiada, pois não teve sequelas da Covid. Edgar não teve a mesma sorte. Saiu do hospital como uma criança: não andava, não comia, não falava e usava fralda. Desaprendeu a comer, andar, falar e dependia da do auxílio da família para fazer as necessidades fisiológicas. Cansaço excessivo, perda dos movimentos nas pernas, perda de visão, dor no estômago e ânsia de vômito constante completavam o quadro. Por ficar muito tempo deitado em uma maca, perdeu os movimentos das pernas. O tubo orotraqueal não afetou as cordas vocais e nem a voz, mas danificou três dentes dele.
Tratou as sequelas em casa, com fisioterapeuta e fonoaudiólogo. Para recuperar o movimento das pernas, foram necessárias três sessões de fisioterapia por semana, por três meses seguidos. Para reaprender a comer, fez tratamento com fonoaudiólogo uma vez na semana por um mês. Além de fazer curativo nas escaras duas vezes por dia em casa, também frequentava o setor de feridas do HRMS uma vez por semana, durante quatro meses, para fazer curativo na pele. Se esforçou e deu seu melhor no tratamento. Foi “puxado”, mas a vontade de viver e de voltar à ativa era maior.
Arlete, recebeu o melhor presente que poderia no Natal: foi extubada, em 25 de dezembro de 2020. Passou o Natal no hospital, onde sentiu o cheiro de pernil e peru assados, arroz à grega e melancia. Ficou com vontade de comer pratos típicos natalinos, mas infelizmente não podia. Em nenhum momento perdeu o olfato e paladar. Viu fogos da janela e agradeceu a Deus por estar acordada na data comemorativa.
O presente de Natal de Priscila e Antônio foi ver a idosa consciente. Uma mistura de emoções passou pela cabeça de Priscila quando relembra o dia em que a mãe foi extubada. “Que felicidade foi ver minha mãe fora daquele tubo. Foi o dia mais especial da minha vida, nunca vou esquecer”, afirmou com lágrimas de alegria e emoção. Mas, parte da felicidade de Priscila se transformou em susto quando a mãe acordou e achou que estava em um asilo. E o pior: Arlete achava que Priscila a tinha colocado em um asilo.
– Não sabia que eu estava no hospital, não me lembrava de muita coisa. Pensei que minha filha tinha me colocado no asilo. Toda vez que ela ia lá eu não gostava, ficava de cara feia e ela ficava muito triste. Era um olhar fulminante de raiva, de quem queria matá-la, quando a filha ia visitá-la no hospital. Então, em poucos minutos, a felicidade de Priscila se transformou em chateação, pois a mãe achava
que a filha a tinha deixado em um asilo.
Os dias na enfermaria também não foram fáceis para Arlete. No dia 29 de dezembro, deu um susto para a equipe hospitalar e familiares. Ela ficou frente a frente com a morte após uma rolha de secreção entupir a traqueostomia. No incidente, ficou alguns minutos sem respirar e precisou ser ambusada. Após momentos de desespero, a fisioterapeuta do hospital conseguiu aspirar a rolha e a idosa voltou a respirar.
Em 5 de janeiro de 2021, Arlete foi liberada da traqueostomia e, para a felicidade, conseguiu respirar espontaneamente. Priscila é grata a Deus pela cura da mãe e pelo milagre que foi feito na vida da matriarca. Emocionada e “pulando de alegria”, a filha relembra o momento em que ouviu a voz da mãe.
– Pensa na alegria de ouvir a voz linda da minha mãe, porque com a traqueostomia, ela não conseguia falar. Foi um dos momentos mais especiais e únicos da minha vida. O dia da vitória para Arlete, do renascimento para Priscila e de gratidão para seu amor, Antônio, ocorreu em 12 de janeiro de 2021, quando a paciente recebeu alta do hospital. A idosa foi recebida com festança, gritos e aplausos do corredor da enfermaria até o estacionamento do hospital.
Em casa, ela estava livre da Covid-19, mas não das sequelas e remédios. Fez sessões de fisioterapia por seis meses para reaprender a andar e sessões de fonoaudiologia por
quatro meses para reaprender a comer e a falar.
Quando a vacina chegou em Mato Grosso do Sul, Dona Arlete não via a hora de tomar a “dose da esperança”. Tomou, nada mais, nada menos que quatro doses, três de Coronavac e uma de Pfizer. Recebeu a primeira em 15 de março, a segunda em 16 de abril, a terceira em 28 de setembro e a quarta em 19 de junho de 2022. Mesmo após a terceira dose, foi diagnosticada com Covid-19 pela segunda vez, em 10 de fevereiro de 2022, mas agora com sintomas leves, como dor de garganta e coriza.
Apesar de ter ficado entre a vida e a morte, Edgar não queria se vacinar, mas tomou duas doses da marca AstraZeneca. Ele não acredita na eficácia da vacina.
– Eu não acredito nessa vacina. Não acredito que em tão pouco tempo alguém possa desenvolver uma vacina que realmente vá fazer efeito. Minha esposa tinha saúde boa antes de tomar a vacina e hoje em dia vive gripada. Eu tomei por causa dos meus pais, pois ficaram preocupados porque eu quase morri.
O cinegrafista pegou Covid-19 duas vezes. A segunda vez foi em março de 2022 e teve garganta inflamada e rouquidão. Desacreditado do imunizante, mais uma vez questionou “se a vacina fosse boa, a gente nem pegava outra vez. Quantas pessoas morreram com três doses?”.
Teresinha não seguiu a mesma linha de raciocínio de Edgar e se vacinou. Ela pegou Covid-19 pela segunda vez em 2022, e, graças a vacina, teve sintomas leves.
HERÓIS EM COMBATE
Graças aos profissionais da saúde, os 570.135 sobreviventes têm história para contar. Médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, psicólogos, nutricionistas e farmacêuticos são os responsáveis pelas 570.135 vidas salvas em Mato Grosso do Sul. No cumprimento do ofício de salvar vidas, milhares deles também se tornam vítimas.
De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores na Área de Enfermagem de Mato Grosso do Sul (SIEMS), há 14.208 profissionais em Campo Grande, sendo 4.405 enfermeiros, 8.706 técnicos em enfermagem e 1.097 auxiliares. Do total, 1.026 (7,2%) foram infectados com a Covid-19: 257 enfermeiros, 755 técnicos de enfermagem e 14 auxiliares. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde (Sesau), infelizmente, um enfermeiro e seis técnicos em enfermagem foram a óbito, na Capital.
Na classe médica, os números também foram drásticos. Segundo o Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional de Mato Grosso do Sul (CREFITO-MS), há aproximadamente 1.400 profissionais na capital e dois fa-
leceram vítimas de Covid-19. Em Campo Grande, atuam 4.229 médicos nas mais diferentes especialidades e 22 faleceram vítimas da Covid-19. De acordo com o Sindicato dos Médicos de Mato Grosso do Sul (SinMedMS), este número pode ser maior pois nem todos os óbitos foram computados no sistema da entidade.
A Secretaria de Estado de Saúde (SES-MS) investiu
R$ 410 milhões no combate à pandemia. O sistema de saúde em Campo Grande inclui vários hospitais, mas o atendimento ficou concentrado no Hospital Regional de Mato Grosso do Sul (HRMS), considerado referência contra a doença. Infelizmente, dos 2.151 servidores do HR infectados, oito perderam suas vidas na missão de salvar outras vidas. A saúde física e mental desses trabalhadores também chegou ao seu limite.
Heróis da saúde
A médica pneumologista, Mariana Costa Marques, sempre sonhou em ser médica. Desde o ensino médio, imaginava sua rotina em um hospital, cuidando de seres humanos e salvando vidas. Após anos de estudos, seu sonho se realizou em 2009, quando viu seu nome na lista de aprovados do curso de Medicina da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Sua matéria preferida na faculdade era Fisiologia, que estuda o sistema respiratório. O interesse por essa especialidade foi tão intenso que cursou Clínica Médica e Pneumologia na pós-graduação.
Mariana não tinha como imaginar que a área que escolheu para sua pós-graduação seria tão solicitada no futuro. Uma doença pandêmica, que causa inflamação generalizada no pulmão, estava a caminho. Quando soube da existência do vírus através de notícias veiculadas na mídia, já previa que, caso a doença chegasse no Brasil, iria “fazer um estrago” e os sistemas de saúde, tanto particular, quanto privado, não suportariam.
Apesar da gravidade da doença, não mediu esforços para atuar na linha de frente em combate a Covid-19 e realizar o sonho de menina: salvar vidas. A jovem trabalhou em uma UTI de um hospital particular de Campo Grande, no ano 2020, e ficou horrorizada com tantas mortes, sobretudo de jovens. A porta necrotério não parava fechada de manhã, à tarde, à noite e de madrugada. Eram dezenas de óbitos por dia. Pessoas, que eram o amor da vida de alguém, partiam e, consigo, partiam o coração de quem ficava e a esperança dos médicos.
Dos 30 meses de pandemia, Mariana trabalhou oito no hospital. Foi um trabalho pesado, árduo e “esforços em vão”. Em vão porque as doses a mais de noradrenalina para
o coração não parar de bater ou sessões a mais de hemodiálise, não surtiam mais efeito. Não adiantava. O coração e o rim estavam fracos e não havia remédio ou procedimento hospitalar que revertesse a situação. Apesar do empenho da equipe, o paciente acabava falecendo.
A experiência traumática em fazer de tudo para salvar vidas e ao mesmo tempo presenciar várias pessoas morrendo foi o estopim para Mariana se ausentar da UTI-Covid. A pneumologista gostaria de ter trabalhado e contribuído por mais tempo, mas sua saúde mental não deixou. O emocional chegou ao seu limite.
– É como se a gente trabalhasse, desse o nosso melhor, mas nada disso resolvesse. Tinha vezes que eu saia do hospital e chorava dentro do carro indo para casa. Foi traumatizante, por isso eu não suportei.
As notícias veiculadas na televisão, rádio, internet ou jornal impresso não eram sensacionalistas. A situação da pandemia realmente era crítica. Leitos clínicos se transformarem em leitos de UTI, não havia ventilador para todos, faltavam remédios, houve fila em cemitérios para enterrar pessoas, pacientes foram transferidos para outros estados, por falta de vaga.
Nos momentos de picos, gestantes e idosos com comorbidades foram amparados pela lei federal número 14.151/21 que prevê afastamento das atividades por serem
do grupo de risco. A quantidade de enfermeiros era insuficiente em meio à imensidão de pacientes. Houve contratações temporárias nos diversos hospitais e instituições de saúde. A carga horária continuou a mesma, mas com o adoecimento dos profissionais, o trabalho aumentou. De acordo com o SIEMS, hospitais de Campo Grande não ofereceram a estrutura necessária para o bom desempenho do trabalho dos enfermeiros. Faltaram remédios, agulha, seringa, algodão, atadura, entre outros materiais. O problema foi encaminhado para o Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS).
O suor de salvar vidas era derramado junto a lágrimas de sobrecarga e exaustão. Afastar-se de casa, dos familiares e dos amigos, por medo de espalhar o vírus, não foi uma opção e sim uma necessidade. A saudade da família, somada à sobrecarga de trabalho, exaustão física e emocional e más condições de trabalho adoeceram a alma dos profissionais. Muitos desenvolveram depressão, síndrome do pânico e síndrome de burnout.
Quando a enfermeira Kassiane da Fonseca Rodrigues se especializou em Terapia Intensiva pela Universidade Anhanguera, nem imaginava que passaria os piores momentos da sua vida dentro de uma UTI. A profissional atuou na linha de frente em combate à Covid-19, de julho de 2020 a fevereiro de 2022, na UTI da ala pública do Hospital Santa
Casa de Campo Grande.
De acordo com a profissional, foram meses difíceis em que médicos e enfermeiros se tornaram a família temporária dos pacientes que chegavam ao hospital. Chegavam fragilizados, sensibilizados, desesperados, com medo de morrer e com receio de nunca mais verem a família. Era de chorar quando eles pediam para a equipe médica anotar um último desejo ou jurar que não ia deixá-los falecer. Eles tinham medo de os enfermeiros, médicos e fisioterapeutas serem as últimas pessoas que eles vissem antes de morrer. Comovida, Kassiane pegava nas mãos dos enfermos e tentava acalmá-los com orações e chamada de vídeo com a família. Mas, infelizmente o quadro clínico de alguns pacientes piorava do dia para a noite e precisavam ser intubados.
O trabalho era intenso, constante e a equipe não tinha tempo para beber água, sentar, comer ou ir no banheiro durante as seis horas seguidas de plantão. O trabalho intenso causou três infecções urinárias e um calo no nariz – devido ao uso de máscara – em Kassiane. Segundo a profissional, o pior não era o trabalho intenso, mas o trabalho “em vão”, porque apesar de todo o esforço, as pessoas não sobreviviam. Tinha dia que iniciava com seis pacientes intubados e ao final da tarde desciam cinco para o necrotério. Era uma sensação de impotência de trabalhar, trabalhar, trabalhar e
nada dar certo. As dezenas de mortes diárias no hospital traumatizaram a enfermeira, a ponto de ver sacos pretos de lixo na rua e associar a pessoas mortas.
Os 19 meses de luta na terapia intensiva foram difíceis, árduos e cansativos para Kassiane. Abatida. De cabeça baixa e com lágrimas nos olhos, ela descreve que o medo da morte tomava conta da UTI e que o psicológico da equipe estava extremamente perturbado.
– Eu me mantive forte o dia todo no hospital, mas chegava em casa e chorava sozinha no chuveiro para o meu marido e minhas filhas não verem.
A não bastar o sofrimento de ver pacientes falecerem, ela ainda sofria preconceito por ser enfermeira. Kassiane e seu marido foram excluídos da confraternização da empresa em que ele trabalha, pelo fato dela lidar com pacientes graves todos os dias e correr o risco de contaminar quem trabalhava junto com seu marido. Extremamente chateada, disse que pelo fato de ter a missão de salvar vidas, precisou lidar com pessoas egoístas que deixaram sua família de lado porque estavam com medo de serem contaminados pelo casal.
– Me senti como se fosse um bicho com uma doença leprosa. Isso foi bem chato, porque de certa forma as pessoas que batiam palma para gente ao mesmo tempo nos discriminavam.
Mas, felizmente, a enfermeira venceu a guerra e saiu
ilesa, pois nem ela e nem sua família foram infectados com o vírus até hoje. Ela é extremamente grata a Deus pela proteção divina e pela oportunidade em salvar vidas.
Apesar do seu empenho, não houve bonificação salarial. O reajuste de salário acompanhou apenas a inflação e não o trabalho árduo e gradativo dos profissionais de enfermagem. Os salários foram pagos em dia.
Como forma de valorizar a classe e reparar os danos deixados pela pandemia, o SIEMS criou o projeto “Não sofra só”, em parceria com o MPMS, com o objetivo de fornecer atendimento psicológico gratuito a profissionais de enfermagem que precisaram de amparo emocional. O programa atendeu 500 enfermeiros, técnicos e auxiliares, proporcionando-lhes incentivo profissional e recuperação mental, emocional e psicológica, por meio de sessões de terapia virtuais.
A doença avassaladora
O novo coronavírus dominou o mundo e destruiu 10.843 sonhos em Mato Grosso do Sul. De acordo com a pneumologista, a doença é transmitida por um vírus que causa uma inflamação generalizada no pulmão, a qual pode
evoluir para fibrose1. Durante a inflamação pulmonar, há extravasamento de líquido que dificulta a passagem do ar. Geralmente, os primeiros dez dias de infecção são os mais críticos. Pacientes graves, que não conseguem respirar espontaneamente e com saturação abaixo de 90%, precisam ser intubados. O ideal é manter a saturação acima de 94%. A intubação é o procedimento que pode estabilizar o quadro de falência respiratória causada pelo vírus da Covid-19. Intubação orotraqueal é a introdução de um tubo da boca até a traqueia para que haja ventilação mecânica nos pulmões. A máquina faz o papel do pulmão e envia oxigênio para o paciente. O doente pode ficar intubado por até 14 dias, caso contrário, corre risco de desenvolver estenose de traqueia2. Após 14 dias, a equipe médica diminui a sedação e tenta extubar o paciente. Caso ele reaja bem, é extubado. Caso não reaja bem e ainda dependa da ventilação artificial, é feita a traqueostomia, cirurgia a qual um cano é inserido na garganta para o paciente continuar respirando com a ajuda e aparelhos. Existem casos graves em que o paciente não consegue sair do tubo orotraqueal e ir para a traqueostomia, e, então, é preciso intubá-lo novamente.
Segundo Cremonesi e Halpern (1990), as consequências da intubação para o paciente são fraturas ou luxações
1 Segundo a pneumologista, fibrose é quando certa área do pulmão para de funcionar 2 Estenose de traqueia é quando ocorre estreitamento traqueal, dificultando a passagem de ar nos pulmões
na coluna cervical, lesões de lábios, língua e nariz, traumas dentários, deslocamento de mandíbulas e lesões ou perfurações das vias aéreas e esôfago. De acordo com a pneumologista, infecções hospitalares também são problemas oriundos da intubação. Os medicamentos que o paciente toma enquanto está em coma induzido são corticoide para desinflamar o pulmão; clexane para diminuir o risco de trombose; sedativos para mantê-lo desacordado e analgésico para aliviar a dor. Diferentemente do tubo orotraqueal, o paciente pode ficar com a traqueostomia por tempo indeterminado. Caso o paciente com traqueostomia esteja grave, ele permanece desacordado e inconsciente. Caso o paciente esteja estável, ele permanece acordado e consciente. De acordo com a médica pneumologista Mariana Costa, a diferença entre tubo orotraqueal e traqueostomia é que o tubo é um aparelho inserido pela boca, mais invasivo e perigoso; já a traqueostomia é inserida na garganta e menos invasiva.
A responsabilidade do fisioterapeuta enquanto o enfermo está intubado, é auxiliar no desmame ventilatório3, manter as vias aéreas sem secreção, promover o desmame do O2, fortalecer o músculo inspiratório, cuidar da musculatura periférica, executar manobras respiratórias, monito3 Segundo o fisioterapeuta, desmame ventilatório é processo de transição da ventilação artificial para a espontânea
rar a saturação e movimentar os membros do enfermo. Os procedimentos hospitalares que o fisioterapeuta realiza no paciente, durante a intubação, são fortalecimento muscular inspiratório, fortalecimento muscular periférico de membros superiores e inferiores, mobilização articular, eletroestimulação neuromuscular, aspiração traqueal, oral e nasal, ajuste de parâmetros ventilatórios e ajuste de O2.
Já o papel da enfermagem, enquanto o paciente está intubado com Covid-19, é alimentá-lo por meio de sonda, aspirá-lo, higienizá-lo, trocar fralda, cortar unha, aparar cabelo e barba, depilar virilha e tórax, introduzir a sonda de urina e administrar a medicação.
Os procedimentos precisavam ser rápidos, cronometrados e sintonizados. Antes de manejar o paciente, cada membro da equipe médica deveria saber sua função, por exemplo, quem iria erguer o enfermo, limpar, aplicar a sonda e trocar o lençol. Caso o grupo não estivesse sincronizado, o paciente corria o risco de sofrer uma parada respiratória, mesmo estando com o ventilador. Colocar o paciente de bruços, ou seja, na posição prona, ajuda-o a respirar e melhora seu quadro clínico. A prona facilita a dilatação dos alvéolos pulmonares da parte debaixo que estão comprimidos. A supina, que é a posição de barriga para cima, impede que áreas posteriores do pulmão sejam bem ventiladas. Portanto, o doente é colocado de
bruços para que o ar chegue até a parte posterior do pulmão.
O período de incubação da Covid-19, que é o tempo de infecção do vírus e o início dos sintomas, varia de um a 14 dias, ou seja, a partir do momento em que a pessoa é infectada pelo vírus, ela tem de um a 14 dias para manifestar os sintomas da doença. Já o período de transmissão, que é o tempo que a pessoa pode transmitir a doença para outra, ocorre de sete a dez dias.
Por essa razão, a médica pneumologista, Mariana Costa, afirma que não há problema em visitar um paciente intubado fora do período de transmissão da Covid-19, pois não há risco de transmitir a doença para terceiros. Pacientes com longo tempo de internação podem receber visitas tranquilamente, pois não há possibilidade de passar a doença para familiares ou amigos. Existem doentes que ficam muito tempo internados pois, durante a intubação, pegam infecções secundárias. São complicações da Covid-19 e não o vírus em si.
Graças aos equipamentos de segurança individual (EPIs), como touca, luva, capote, máscara N95, óculos e face shield, Mariana não foi infectada com a doença, mesmo lidando com enfermos todos os dias. Mas, ela foi infectada com Covid-19 no início de 2022, após tomar as três doses da vacina.
Muitas vezes a família não está preparada para receber, em casa, um paciente grave que recebeu alta. De acordo com a médica pneumologista, o período de recuperação, é delicado e deve ser acompanhado por profissional capacitado na área de fisioterapia. Quando o paciente sai do hospital, os sintomas que ainda perduram são a dispnéia4 e fraqueza muscular generalizada causados pelo tempo acamado. Muitas vezes, necessita de assistência e acompanhamento prolongado, em casa, para voltar a realizar as atividades diárias. As sequelas mais comuns da doença são fibrose pulmonar5 , falta de ar frequente, cansaço, queda de cabelo e perda de memória, paladar e olfato.
Semelhante a Mariana Costa, o fisioterapeuta Bruno Rutkawskas Aleixo da Silva também tem uma “paixão” pelo sistema respiratório. Pós-graduando em Fisioterapia Cardiorrespiratória, é o profissional indicado para amparar pacientes pós Covid, aqueles que foram infectados, intubados, sequelados pela doença e que necessitam de auxílio hospitalar em casa. Trabalha, desde março de 2020, com pacientes de vírus ativo – casos leves e moderados que não necessitaram de internação hospitalar – e pacientes pós Covid. Realiza atendimentos domiciliares, em estilo homeca-
4 De acordo com o fisioterapeuta, dispnéia significa faltar de ar 5 Segundo a pneumologista, fibrose pulmonar é uma cicatriz no pulmão que compromete a troca de ar
re, para dar o suporte necessário para que o paciente supere as marcas deixadas pela doença.
As sessões de fisioterapia, no pós-Covid, são importantes pois fortalece o que foi enfraquecido, reabilita a força do paciente, devolve-lhe a capacidade de realizar atividades simples do dia-a-dia e evita lesões pulmonares permanentes. Os exercícios realizados em sessões de fisioterapia são alongamentos, exercícios de resistência - com uso de molas -, exercícios repetitivos de braços e pernas, treinamento muscular inspiratório e exercícios de expansão pulmonar.
Bruno diz que viu casos irreversíveis se transformarem em possíveis, graças a coragem e persistência dos pacientes em não desistirem no meio do caminho.
Fisioterapeuta há 13 anos, Lucimara Aparecida Silva Paniago Barbosa trata pacientes com sequelas graves da Covid-19 desde abril de 2021. É preciso transmitir força, foco e fé para seus pacientes, para que resistam e suportem a tensão das molas e a dor que os aparelhos causam nos músculos. Dedicada e persistente, acompanhou de perto o pósCovid dos enfermos e ajudou-os a recuperar os movimentos e a capacidade respiratória. Para ela, é uma questão de honra que o paciente termine o tratamento com a energia restabelecida, músculo fortalecido, pulmão “novinho em folha” e capaz de executar as atividades do dia-a-dia, assim como era antes da pandemia. Seu tratamento mais marcante foi o
de seu primo, que ficou surdo de um ouvido e parcialmente do outro, após contrair Covid-19.
O pilates é o tratamento ideal para quem tem sequelas da doença, pois a atividade trabalha com alongamento e fortalecimento, tudo o que paciente pós-Covid necessita. Pós-graduada em pilates terapêutico, afirmou que o pilates passou a ter mais visibilidade após a Covid-19. Em tom de orgulho, exaltou sua profissão e disse que a Covid-19 mostrou a importância da fisioterapia.
A vacinação contra Covid-19 foi um divisor de águas na pandemia. É responsável pela expressiva queda no número de casos, mortes, e internações. A imunização em massa protege o sistema imunológico da população e diminui o risco de contágio. A mudança nos hospitais, antes e depois da vacinação, foi impressionante. Graças a “dose da esperança”, a população não é mais obrigada a usar máscara e pode circular livremente pelas ruas, sem restrição de horário e toque de recolher. Crente na ciência, a médica pneumologista ressaltou que o imunizante foi um fôlego e que hoje a sociedade respira bem melhor – literalmente –.
– O meu recado é: vacinem-se! Tomem a primeira, segunda, terceira e quarta dose. Só a vacinação é capaz de conter essa doença avassaladora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta obra deixa como reflexão que, por mais que uma situação pareça impossível e esteja difícil, é possível vencer os desafios, superar momentos tristes e ainda dar a volta por cima. É preciso força, garra, coragem e persistência para vencer traumas que ficaram marcados na alma. Por mais que as feridas sejam dolorosas, você está vivo e deve lutar para continuar saudável. Dificuldades fazem parte da vida, o segredo é saber superá-los. Está tudo bem fraquejar, deixar-se abalar, mas o importante é seguir em frente, com a cabeça erguida e não desistir.
O futuro é incerto, portanto, é necessário viver intensamente. Por meio do depoimento dos pacientes, é possível refletir questões como “aproveitou seu dia como se fosse o último?”, “vale a pena se desgastar por isso?”, “a vida é curta, então curta” e “não deixe nada para o amanhã o que se pode fazer hoje”. Após terem ficado entre a vida e a morte, os entrevistados dão mais valor a vida e vivem com mais intensidade, amor, prazer e empatia ao próximo. A lição que fica é: coma, beba, abrace, beije, faça, viaje, escute, leia e
perdoe, como se não houvesse amanhã.
A expectativa é que este livro-reportagem seja uma reflexão para pessoas que pensam em desistir e um incentivo para aqueles que tentam superar um momento difícil, com o objetivo de que o leitor termine esta leitura motivado, otimista e disposto a lidar com os problemas de cabeça erguida.
“Dificuldades preparam pessoas comuns para destinos extraordinários”
Vidas partiram e deixaram história. Outras permaneceram e se transformaram, como uma metamorfose NAIARA CAMARGO DE OLIVEIRA