UM RUFIA NAS ESCADAS 2023

Page 1

TEXTO JOE ORTON

UM RUFIA NAS ESCADAS

ENCENAÇÃO MIGUEL LOUREIRO

© João Ribeiro
22 FEV- 5 MAR

CIRCUNSTÂNCIAS ORTON

Lembro-me que o meu primeiro encontro com Orton foi através do Grupo de Teatro Hoje / Teatro da Graça à Voz do Operário. O Rufia foi lá encenado em 1982, em 84 o Loot (Comédia de Horrores, na versão de Carlos Fernando) e por fim, em 1986, o Mr. Sloane. Quando o Ivo Alexandre me convidou para encenar esta adaptação para palco da versão radiofónica de The Ruffian on the Stair de 1966, eu já sabia ao que vinha. Uma espécie de cruzamento entre o universo sexualizado, viscoso e húmido de Genet mas sem a poesia cénica deste, antes uma estrutura de farsa burguesa convencional mais devedora a Feydeau no reconhecimento de um território doméstico, suburbano, embora sujeito à corrosão britânica do humor negro de Orton. Diálogos epigramáticos, dead-ends narrativos, pontuações exotéricas à trama central, reviravoltas bruscas e nonsense abundante. Eis Orton, provocador, até à morte, atacando no seu teatro os pilares clássicos da ordem pública: a Polícia, a Família, a Igreja.

Em Um Rufia nas Escadas, que pede emprestada a fábula ao romance escrito a meias com o amante, Kenneth Halliwell (seu futuro assassino também), The Boy Hairdresser, deparamo-nos com dois misfits, Mike, assassino a saldo, e Joyce, ex-prostituta, numa tentativa de via conjugal; e o surgimento de um terceiro elemento (tal como em Sloane, um mecanismo clássico de Orton), Wilson, cabeleireiro e “viúvo” do irmão, despachado por Mike, e com quem mantinha vida amorosa num acordo incestuoso. Cadáveres, chá, caixões, armas, padres, cinismo, fetiches, donas de casa, chulos e sexo. São estas as circunstâncias recorrentes deste teatro livre, breve, violento e cru. Agradeço à Companhia Dois do Ivo e da Anabela o prazer de o praticar, muitas vezes ao arrepio de fundamentalismos puritanos que começam a instalar-se nos nossos teatros.

Viva Orton!

Fotografias ©José Pires

ORTON, AINDA?

Um sofá no meio do palco, porta à esquerda e à direita, janelas. O teatro de Joe Orton baseia-se no cenário da comédia de salão, com as suas estatuetas, jarras de flores, escadas, andares de cima, bules de chá e portas de cozinha. As suas cenas estruturam-se a partir das entradas e saídas justificadas em cena: portas que se abrem, campainhas que tocam, automóveis que se aproximam e se afastam como no final de O Nosso Hóspede. Orton não dispensa nenhum dos adereços do cenário da comédia de boulevard que fez o negócio do West End e da Broadway. Até a lareira lá está - e os biombos para as actrizes mudarem de roupa em cena.

O famoso episódio da prisão de Joe Orton por ter trocado as capas dos livros que ia solicitando às bibliotecas públicas é uma cena-mãe de todo este seu processo a que chamaremos pop para não chamarmos pós-moderno: Orton gosta das instituições, aceita-as, mas diverte-se, como qualquer miúdo, a pintar-lhes bigodes na cara, a pôr cornos na testa. Precisa da estrutura convencional da peça-bem-feita, três actos, exposição, crise, desenlace, precisa de personagens com características fortes com que possa desenhar o seu inferno sarcástico e escatológico.

Não é por acaso que Terence Rattigan, o mais famoso dos autores das peças bem feitas que, entre os anos 40 e 50, fizeram estremecer os corações do West End (O Profundo Mar Azul que ao

Portugal dos anos 60 trouxeram Tônia Carrero e Paulo Autran) saudou a qualidade teatral de O Nosso Hóspede. Não é por acaso que actores tão convencionais como Kenneth Williams, Leonard Rossiter ou o genial Ralph Richardson aceitaram entrar em peças de Orton, nelas brilharem e as defenderam mesmo quando fracassaram na bilheteira. É que o seu teatro é teatro tal como os outros, teatro-teatro de levantar o pano e ficar por ali. Também por cá foi estreado pela Laura Alves...

“A construção de Orton é admirável” dizia-me no outro dia Enda Walsh quando lamentávamos o progressivo esquecimento a que a sua obra se reduz sobretudo nos teatros anglo-saxónicos. “Não sei se poderá voltar” concluía John Tiffany.

É que aquilo que Orton fez à comédia de trocadilhos, meter veneno dentro dos bombons, insinuar desejo, fazer levantar-lhe o pirilau é agora o que a televisão, sobretudo britânica e pós Monthy Python vem fazendo nas suas séries de comédia.

Nada mais significativo do que o facto de Mark Ravenhill (o de Shopping and Fucking) ter sido recentemente convidado para adaptar para uma série de televisão (Clube de Cavalheiros) o argumento que Orton escreveu para os Beatles e que nunca chegou a ser filmado.

É na televisão que a desordem catastrófica de Orton encontrou lugar. E

4

nos palcos do teatro há muito tempo que não víamos um sofá bem no centro e portas a abrir e fechar. O teatro de Joe Orton ainda é possível nos teatros? Alguém que queira a ordem da sala de estar ainda lhe aceita o infernal enxofre? E vice-versa: alguém que desistiu da visão do mundo da burguesia com os seus casamentos e rendas ainda aceita sentar-se diante de uma sala de estar?

Se na Alemanha assistimos a um renascimento das suas peças é também porque na convenção germânica, o explícito ganha terreno. Mas pode Orton ser explícito? Ou o seu jogo não é precisamente entre o não-dito e o excessivamente dito? Aguentam-se as suas personagens com os rabos à mostra que são a tendência unívoca do teatro alemão? Ou perdem assim a sua perfídia?

É que é de perfídia que se trata, uma perfídia deliciosamente pop. Corresponde a certos movimentos do seu tempo, aos avanços de Billy Wilder pela mais ordinária comédia (Beija-me Idiota), às latas de sopa Campbell, aos cartazes de cinema revisitados por Paladino, às tentativas de aceitar as imagens do mundo burguês com os seus esconderijos e mortais ratoeiras?

Foi essa a deriva inicial de Almodovar. Em filmes como À Beira de Um Ataque de Nervos, lá temos a sala de estar, as portas, os comportamentos excessivamente burgueses dentro de um código que é esquartejado e retalhado até ao riso final. Mas também Almodo-

var se vem afastando deste meta-teatro à medida que Douglas Sirk ou Ingmar Bergman lhe dominam o pensamento. Falamos de corrosão, de veneno, de ácido, de tanta amargura em Joe Orton: é esquecer-lhe a ternura. A ternura com que olha para a envelhecida Kath, tão sozinha, tão presa, tão frustrada, tão sonhadora; e como o seu desejo atravessa o palco numa ingenuidade fresca, tão tocante. É com certeza um dos grandes papéis inventados para uma actriz madura, regido pelos tempos dos estereótipos, pelas obrigações do género (a que não falta a cena de sedução com o deshabillé), mas onde paira uma imensa melancolia, uma frustração como a das heroínas sedentas de Tennessee Williams. A melancolia das vidas esquecidas dentro deste também jardim zoológico que não será de cristal, mas de papel de parede comprado em saldos.

Ainda é possível este discurso de Orton? Ainda nos fala de hoje? Ou os seus pressupostos mataram-no? Agora que já não há a visão do mundo que todas as noites subia à cena no boulevard ainda conseguimos encontrar a perversão nesta caçada infernal?

Ou parece que não, que foi tudo tão longe, noutro século?

* Texto retirado da revista semestral Artistas Unidos, novembro de 2004, número 12, pág. 27 (redigido segundo a antiga grafia)

5

A COMPANHIA

A DOIS foi fundada em 2014 e tem como diretores artísticos Ivo Alexandre e Anabela Faustino. Desde o início da sua formação tem desenvolvido atividades de criação teatral, apostando na pesquisa, experimentação e divulgação dos mais diversos universos teatrais, explorando dramaturgias contemporâneas, nacionais e estrangeiras. Fernando Arrabal, Jacinto Lucas Pires, Tennessee Williams, Mary Jones, Eugène Ionesco, Samuel Beckett, são alguns dos autores já apresentados pela companhia, cujas obras têm sido ponto de partida para a discussão e problematização acerca de realidades que se podem revelar para além do que é imediatamente apreensível.

Distribuição de personagens em Um Rufia nas Escadas

Joyce – Anabela Faustino

Mike – Ivo Alexandre

Wilson – João Reixa

Estudo para a cenografia de Um Rufia nas Escadas. André Guedes, jan. 2023

22 fevereiro a 5 março 2023 teatro / estreia

UM RUFIA NAS ESCADAS

TEXTO JOE ORTON ENCENAÇÃO MIGUEL LOUREIRO

Sala Mário Viegas quarta a sábado, 19h30; domingo, 16h Duração: 1h10 (aprox.); M/12 €12 (com descontos)

Texto: Joe Orton; Tradução: Joaquim Pena e Tiago da Câmara Pereira; Encenação: Miguel Loureiro; Interpretação: Anabela Faustino, Ivo Alexandre e João Reixa; Desenho de Luz: Rui Monteiro; Cenografia: André Guedes; Figurinos: Ana Simão

Coprodução: DOIS, Casa das Artes de Famalicão, Companhia de Teatro de Almada, Teatro Aveirense e São Luiz Teatro Municipal

Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Mediação de Públicos Téo Pitella Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Catarina Ferreira, João Romãozinho, Marta Azenha Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Cláudio Marto, Ricardo Campos, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Rui Lopes Operação Vídeo Filipe Silva Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Camareira Rita Talina Bilheteira Diana Bento, João Reis, Pedro Xavier

teatrosaoluiz.pt

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.