3 minute read

Guilhermina Funileiro

Next Article
A ilustradora

A ilustradora

Guilhermin Funileiro

Como era linda, meu Deus! Não tinha da neve a cor, Mas no moreno semblante Brilhavam raios de amor. A cativa, Luiz Gama

Advertisement

Tia Lina era risonha. Antes da chegada das freiras da congregação de Chambéry para trabalharem na administração das repartições hospitalares da Irmandade da Santa Casa, em 1872, era Lina e a enfermeira Júlia Espada quem recepcionavam as crianças que eram deitadas na Roda dos Expostos, instalada em julho de 1825. Com carinho dava os primeiros cuidados, ela não teve filhos, por isso, exercia a sua maternidade com os bebês e as crianças enjeitadas. Junto com o capelão do hospital, visitava diariamente os doentes internados nas enfermarias masculina e feminina, que viviam superlotadas. A cada paciente levava uma palavra de conforto. Acostumou-se a conviver com a morte. No início era terrível olhar para os falecidos, com o tempo aprendeu a lidar com a situação e prepará-los para o enterro e a passagem para a ancestralidade. No pescoço usava um rosário de contas de lágrimas de Nossa Senhora e um colar de contas brancas, uma herança

27

que trouxe da sua terra, a ele acrescentou um crucifixo de prata ganhado de Júlia. Na cabeça amarrava um lenço à moda africana. Tinha uma orelha mutilada, aconteceu na viagem transatlântica a bordo de um bergantim português: no porão do negreiro, apertado e fétido, os africanos brigavam pela falta de espaço e pelo desespero por não saber o quê aconteceria com as suas vidas. Estava Lina em um canto, perto de outras meninas, quando um homem a atacou e começou a mordê-la. Estava faminto e já não governava a sua razão. Cinco homens correram para ajudá-la, mas ela teve parte da orelha direita arrancada a dentadas. Tinha 12 ou 13 anos. Não gostava de comentar o assunto, causava-lhe dor e tristeza. Lina, cujo o verdadeiro nome era Tafui (traduzindo significa “Glória de Deus”), era conhecida no Brasil como negra da “nação Mina” ou “da Costa da Mina”. Possuía estatura média, olhos pequenos, rosto redondo, era magra e ágil. No peito trazia duas marcas: à esquerda as iniciais de um proprietário feita a ferro e fogo, após o batismo católico e realizado no armázem enquanto esperava ser embarcada no tumbeiro, e à direita uma tatuagem característica da sua tribo, que marcava à sua entrada na vida adulta (ocorrida após a primeira menstruação). Foi embarcada, com mais 400 cativos, no porto da Feitoria da Mina, da atual cidade de Elmina, no Gana, litoral da África Ocidental. Lembrava-se de ver uma grande construção que não sabia nominar (era o castelo e forte de São Jorge), onde bandeiras coloridas flamulavam enquanto o medo coletivo dos africanos irradiavam diante dos maus-tratos e humilhações sofridas.

O desembarque do navio deu-se no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. Ela pensou que não iria sobreviver, apesar de todo sofrimento, acreditava ser uma vitória estar viva após experiência tão violenta. Esperança nunca lhe faltou. Passou por um trapiche onde foi obrigada a se exibir encima de uma mesa de madeira, foi examinada por vários potenciais compradores. Como era uma moleca, seu preço era menor. Acabou arrematada por um casal. Depois de aprender algumas palavras em português, foi enviada para a rua, junto com outra escravizada, sua conterrânea, para ser uma “negra de ganho”. Vendia guloseimas no tabuleiro. Conheceu bem as ruas da corte. Entrou em contato com outros africanos. Foi acostumando-se àquela vida de cativa urbana. No começo, durante a sua mobilidade, costumava pintar o seu rosto com tinta branca como fazia na sua tribo, deixando transparecer a sua origem perante os outros africanos. Tal atitude não era bem vista pela sociedade e as autoridades. Foi reprimida, e começou a andar “com a cara limpa” para não apanhar e sofrer castigos piores. Apesar de tantos desgostos e consternações, seu coração continuava limpo. Comentou com a sua companheira de vendas que pressentia que em breve faria uma nova viagem. Seu presságio estava certo, um parente paulista dos seus senhores chegou à corte. Membro da Irmandade da Santa Casa, foi encarregado de adquirir duas africanas jovens para o trabalho de serventes no Hospital de Caridade. O proprietário falou de duas molecas que havia adquirido há dois anos, elas eram “mansas, de boa conduta e trabalhadeiras”, ele poderia

29

as vender por um preço menor em benefício da Santa Casa de São Paulo, pois era um cristão praticante. “A caridade acima de tudo!” E foi assim que as africanas Guilhermina e Desidéria chegaram a cidade de São Paulo.

This article is from: