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Cabocla do Pará

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“O eco da primeira palavra fica sempre no coração.” Provérbio africano

Maria do Pilar era da província do Pará. Tinha cabelos lisos, pele morena e baixa estatura. Chegou a São Paulo na companhia da família de Luiz Machado, proprietário de uma chácara para os lados do (atual) Cambuci. O acesso dava-se pelo Caminho do Mar e por lá passavam muitos tropeiros e viajantes. A casa que habitavam tinha as paredes caiadas de branco, mas estavam amarelas de velhas. O chão era de tábuas, estava encardido, foi poucas vezes raspado. A varrição era feita apenas uma vez por semana. O piso da cozinha era de terra batida e cheio de buracos, estava sempre enlameado. As “secretas”(espéciedepenicos)ficavamdoladodeforadolar, atrás de umas trepadeiras. Duas escravizadas se revezavam no esvaziamento das tinas aonde eram depositados as “imundices” (urinas e excrementos) e outros refugos da casa. Tocar violão e cantar era o que melhor Maria do Pilar sabia fazer, além de tratar da sua sinhá. Gostava de apanhar flores ecolocá-las nas tranças do cabelo. — Pilar, Pilar, Pilarrrrrrrrrrrr... - chamava a sua patroa a qualquer momento e exigia ser atendida imediatamente. Não era fácil a vida naquela chácara.

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Havia um ótimo pomar e um belo jardim à frente da casa, cuidados pelo negro Castilho. Caprichoso em sua ocupação. As roupas da sua sinhá deviam ser lavadas, passadas e engomadas por Pilar. Uma vez por semana ela acompanhava a escravizada Nita até o rio Tamanduateí para essa atividade. Levavam o sabão feito em casa e cordas, amarravam-nas nas árvores para a secagem, ou então, estendiam as roupas sobre a grama. O trabalho era duro, bater, ensaboar, enxaguar e torcer cada peça. E em meio ao trabalho, as lavadeiras almoçavam, conversavam, brigavam, bebiam, cantavam e dançavam. Depois de secas as roupas, Pilar as dobrava com esmero e as ordenavaemumcesto forrado comflores odoríficas. As lavandeiras eram conhecidas por serem briguentas e desbocadas, para manter a ordem e a moral, um guarda sempre passava à cavalo pelas margens do Tamanduateí. Infelizmente nesses pontos também eram comuns acontecerem crimes contra essas mulheres, como estupros e mortes. Maria do Pilar sentia muita dificuldade em carregar as pesadas trouxas até a chácara. De tantas reclamações, Castilho foi encarregado de buscar as trouxas. Ele era um negro alto e robusto. Há tempos Castilho estava de olho em Pilar. Gostou do jeito da caboclinha. Ele até tentou jogar seu charme, contudo a moça não correspondia e o desdenhava. — Já disse a vosmecê que não gosto de negro escravo. Paracasar-meprefiro ummelhorpartido! –esnobavaPilar. Castilho sentiaaquelas palavras flecharemo seucoração com o mais puro fel.

O patrão havia adquirido uma propriedade no Caminho para a Mooca. Era preciso limpar o terreno e preparar a base para a construção de uma casa e um pasto para a criação de cavalos, bois e vacas. Castilho e outro escravizado foram designados para o trabalho. Construíram um casebre para dormir na temporadaqueficariamlá. Maria do Pilar não saía da sua cabeça. A qualquer desculpa, ele voltava para chácara. Entrava pela porta da cozinha e perguntava à Nita sobre a caboclinha do Pará. — Vassuncê aqui di novo, Castilho? Num é possíver! O sinhô num vai gostá di ti vê aqui. Isqueci a Pilar. Ela num é moça pro seu bico, é prutigida da patroa e vassuncê sabi disso homi di Deus! – dizia Nita. Ele estava disposto a fugir com Pilar, caso ela aceitasse. Ele se esmerava para trazerflores, frutas e o que estivesse ao seu alcance para mimar sua inspiração. Cansada da perseguição, um dia Pilar atirou o conteúdo da“secreta” nacarade Castilho. Ele ficouali parado, imundo e indignado. A jovem contou à sinhá sobre o ocorrido. Ela deu muita risada e respondeu que Castilho era o seu melhor escravo, “obediente, trabalhador e manso”. Depois daquela “brincadeira”, ele não a aborreceria mais, com toda a certeza, ela ponderou. Ele realmente cessou nas investidas. O tempo passou e o trabalho na outra propriedade ia de vento em popa. O sr. Luiz Machado um dia resolveu levar a sua esposa, Nita e Pilar para conhecerem a nova chácara. Elas foram todas alegres para o passeio. Era a chance que Castilho precisava.

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Ficou decidido que seria armada uma barraca para passarem a noite no lugar. Foi feita uma fogueira e pediram para Pilar cantar e tocar modinhas e canções da sua terra. Machado permitiu que seus escravizados tomassem cachaça à vontade. Era dia de festa! À noite enquanto todos dormiam, Castilho pegou Pilar e a levou para o matagal perto do rio. Amarrou um pano em sua boca e a violentou. Foi tão horrível! Ele descontou toda a sua ira pelo desprezo da jovem. Ela sofreu uma hemorragia. Foi deixada ali mesmo. Castilho advertiu que se ela o denunciasse, a mataria. Regressando ao novo sítio, acordou o outro escravizado, seu cúmplice. Começaram a gritar e chamaram o patrão. — O que houve, Castilho? — Num sei, sinhô, ouvi as pisada di arguém. Intraram aqui na chácara. Será qui robaram quarqué coisa? Os homens acenderam duas tochas e começaram a seguir as pisadas. O outro africano ficou para cuidar das mulheres. Um cachorro os seguiu. Encontraram umas telhas quebradas e umas madeiras espalhadas pelo terreiro. Receoso que o meliante estivesse por ali, Machado começou a atirar para o alto. Ninguém mais conseguiu dormir e veio o raiar do dia. Um homem montado no seu cavalo trazia Pilar na garupa. Ela inventou que havia sido raptada à noite e violentada na margem do rio. Sua saia estava toda ensanguentada. Machado mandou que ela fosse levada ao Hospital de Caridade à Rua da Santa Casa. Ela permaneceu internada alguns dias até a hemorragia

cessar. Pilar chorava bastante e sentia dores. D. Lina tentou puxar o assunto. O caso foi levado à justiça. Isso aconteceu em janeiro de 1832. Castilho sentia-se orgulhoso do seu feito, estava vingado. Nunca mais permitiria que uma mulher o humilhasse. Pilar passou a não mais lavar roupas no rio, permaneceu debaixo das vistas da senhora. Tinha pânico quando Castilho seaproximavaparalheentregarumaflor. — Vassuncê é tão bunita, minina Pilar. Põe essa fulô nus cabelo. Balança as trança! – pedia Castilho. Ela esboçava um sorriso e por dentro temia ser atacada novamente. Meses depois seu vestido começou a ficar apertado. Sua senhora achou que ela estava comendo demais e precisava maneirar. As mudanças no seu corpo denunciavam uma gestação. Quando descobriu, Pilar ficou atordoada. Não, não desejava aquele bebê! Nita conhecia uns preparados abortivos. Conseguiu as ervas, e deu à Pilar. Ela tomou, mas o resultado esperado não ocorreu. A criança teve que nascer. Castilho, emborasecontivesse,sabiaqueofilhoeraseueestavavaidoso. Os gritos de Pilar ecoavam pela casa. Foi um parto difícil. Nasceu uma menina gorda e mestiça. A mãe nem quis ver o seu rostinho. A senhora aconselhou que Nita a deixasse na Roda dos Expostos naquela noite. Castilho quis entrar na casa para ver o bebê. O sr. Machado não permitiu e o mandou voltar ao trabalho. Naquela noite, Nita, o bebê colocado num cesto, e o patrão montaram em seus cavalos e subiram pelo Caminho

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do Mar. Enquanto Machado segurava uma tocha, Nita desceu do cavalo e foi até à Roda da Santa Casa. Deixou a menina, fechou a porta cilíndrica e tocou o sino. O barulho acordou d. Lina que foi até lá recolher a enjeitada. No dia seguinte, Castilho foi perguntar novamente pela criança. A resposta que recebeu foi de que o bebê nasceu morto com o cordão umbilical enrolado no pescoço. O Sr. Machado tratou de levar o anjinho para ser enterrado no cemitério. Sem pedir licença, Castilho saiu às escondidas e subiu em direção à Rua da Santa Casa. Coincidentemente, naquele momento, estava acontecendo um enterro de anjinho. Ele acreditou que era a sua filha. De joelhos adentrou a capela dos Aflitos e chorando pedia à santa perdão pelo seu erro. Sua filhinha é que pagou por aquele pecado. Machado passava montado em seu cavalo quando flagrou Castilho no portão do cemitério. Quissabercomqueordemeleteriaidoatélá.Asituaçãoficou estranha. Ele foi apanhando dali até chegar na chácara. A enfermeira Júlia Espada decidiu adotar a menina. Uma vizinha sua, que não tinha filhos pediu à Júlia para ficar com o bebê. Ela possuía uma boa condição financeira e era viúva. Acabou por criar a menina que foi batizada como Francelina Amélia. A menina cresceu feliz em seu novo lar, aprendeu as primeiras letras, a costurar, a bordar entre outras prendas femininas. Amava música, a mãe contratou uma senhora alemã para lhe ensinar a tocar piano. Tendo um ótimo ouvido, achou um violão em casa e passou a tocá-lo. Francelina era muito esperta.

Dez anos se passaram. A mãe adotiva de Francelina morreu de repente e não deixou testamento. A garota foi confiada à Júlia Espada. Foi triste. Habituada ao conforto e aos mimos da falecida mãe, agora a menina teria que se conformar com a pobreza e dividir a casa com pessoas desconhecidas a quem a enfermeira dava guarita. Seis meses depois, as pernas de Francelina Amélia começaram a inchar demais. A situação só piorou, ela foi internada no Hospital de Caridade e diagnosticada com hidropisia. Acabou por morrer em sete de março de 1843. Maria Pilar continuou a viver com os Machado, assim como Castilho. Uma doença uterina fez com que a mulher padecesse por alguns meses. Uma forte hemorragia fez com que a levassem ao Hospital de Caridade. Foi quando revelou a verdade sobre o estupro ocorrido há dez anos atrás. O escravo africano foi conduzido à Cadeia e sentenciado. Ummêseumdiaapósamortedasuafilha,Pilarveioa óbito. Foi enterrada no cemitério da Glória. A família compareceu ao velório. Nita conversou com d. Lina. Falou que há dez anos havia deixado na Roda uma menina mestiça e ela usava uma corrente com um medalhão com a imagem de N. Sra. da Conceição, pertencente à Nita, pois julgou ser uma “prova de identificação” caso Pilar se arrependessedo abandono, poderiavoltareresgatarafilha. E justamente Lina é quem retirava as crianças da Roda. Ela lembrou-se do caso porque a menina foi adotada pela vizinha da enfermeira. E o medalhão ela sempre usou no pescoço. Pensava ser um presente de sua mãe adotiva. Com as

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informações cruzadas e confirmadas, Nita começou a chorar e não pôde acreditar que a menina Francelina Amélia fora enterrada tão pouco tempo antes de Pilar. — São cousas davida, Nita! –afirmoutiaLina.

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