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Dois inocentes

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A ilustradora

A ilustradora

Doi ino ente

Canta, poeta, a liberdade, - canta. Que fora o mundo sem fanal tão grato... Anjo baixado da celeste altura, Que espanca as trevas deste mundo ingrato. Oh! sim, poeta, liberdade, e glória Toma por timbre, e viverás na história. Maria Firmina dos Reis

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Cristina era uma das vinte crianças da preta Candoca, africana Mina, muito estimada por seu senhor: por aumentar o seu cartel de escravizados consideravelmente. A maior parte dos filhos eram resultados dos relacionamentos com o seu dono. Moravam em um amplo sobrado à Rua do Jogo de bola, travessa da Rua da Cruz Preta (atual R. Quintino Bocaiúva). Quando as crianças alcançavam a puberdade eram vendidas. Candoca não gostava nada daquela situação, mas tinha medo de perder as regalias que tinha naquela casa. Sofria muito a cada partida. Com os últimos filhos, o senhor prometeu que não os comercializaria. Mentiu! Cristina, a “ponta de rama”, foi vendida a um casal de forros, Manoel Rodrigues da Silveira e Francisca Maria da Conceição. Habitavam uma casinha nos baixos da Rua Tabatinguera, no fundo do quintal passava o rio Tamanduateí.

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Trabalhar, trabalhar, trabalhar e sobreviver: era a dura realidade de Cristina. Não saia na rua, passava muito tempo de cócoras a lavar roupas para Francisca e outras freguesas que ela arranjava. Engomava e cozinhava também. Manoel foi até o Juiz de Órfãos e requereu para a sua tutoria duas africanas livres. Embora “livres”, seriam submetidas à labuta forçada. Pela Lei Feijó de 7/11/1831, que proibia o tráfico de escravos trazidos para as terras brasileiras (a famosa lei para “inglês ver”), se fosse provado que o africano tivesse entrado no país após aquela data, com a ajuda de um advogado e de testemunhas, o africano seria encaminhado para a proteção do Estado, e ficaria à disposição para trabalhar e receber um salário. Em seguida, deveria provar o período de trabalho de 14 anos em casas ou comércios particulares, para assim conseguir emancipar-se (livrar-se do poder pátrio) e aí sim, viver livremente... Mas teria que continuar enfrentando o racismo, a discriminação e as faltas de oportunidades. Ele conseguiu levar duas mulheres, Constança e Joana. Elas passaram a trabalhar na condição de “alugadas” para chacareiros no Campo Redondo (atual bairro dos Campos Elíseos). Desejoso de um homem forte, Manoel conseguiu levar Alexandrino, um moçambicano. Manoel era bissexual. Obrigaria Alexandrino a manter relações com ele a troco de algumas regalias e dinheiro. Tudo deveria ser feito no mais absoluto segredo, caso contrário, eles poderiam ser acusados de sodomia pelo Tribunal Eclesiástico. O africano aceitou. Propôs ainda outro negócio: por Alexandrino ser um homem viril poderia ganhar dinheiro

como “reprodutor”. Manoel o alugaria para outros senhores escravocratas para tal finalidade. A cada criança nascida, eles receberiam um valor, que seria repartido entre Manoel e Alexandrino. O negócio parecia vantajoso... e foi! Cristina apaixonou-se por Alexandrino. Não o achava bonito, ele tinha escarificações no rosto e no peito, porém, o seu “porte atlético” (como diríamos hoje) e o seu charme o transformava num deus de ébano!!! O senhor fez vistas grossas ao romance dos dois, embora sentisse ciúmes de Alexandrino. Mas Cristina geraria mais um escravo, ela era uma escravizada. Em menos de um ano, em abril de 1842, Vidal veio ao mundo. Um bebê robusto, nasceu com mais de quatro quilos. Sua dona também teve um menino na mesma ocasião, Jesuíno, nasceu mirradinho e fraquinho. Em primeiro lugar deveria Cristina amamentar Jesuíno, depois que ele estivesse satisfeito, poderia dar de mamar a Vidal. Francisca começou a notar que o seu neném não engordava, chorava demais, enquanto Vidal crescia saudável. Cristina não seguia às ordens da senhora. Pouco ligava para Jesuíno, o que importava era o seu filho. Francisca ameaçou tirar o filho caso ela não amamentasse direito Jesuíno. Cristina andava irrequieta e atrevida. A maternidade a fez mais forte e corajosa, só pensava em uma forma de poder fugir. Uma manhã, Francisca ordenou que Cristina fosse passar o dia e realizar trabalhos domésticos na casa de uma amiga à Rua da Boa Morte. Era preciso deixar Vidal, ele atrapalharia nos serviços. A escravizada pediu para Alexandrino “ficar de olho” na criança.

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Às escondidas, a pedido da patroa, Alexandrino pegou o seu filhinho e o deitou na Roda dos Expostos, na Santa Casa. Recebeu uma boa recompensa pela execução do serviço. À noite, ao chegar à casa, Cristina foi procurar pelo filho e... nada! Diante de Francisca caiu de joelhos, a olhava com olhos de fúria. Queria saber de Vidal! Seu desespero materno a fez levantar e revidar o silêncio de Francisca. Ela ameaçou avançar para bater na mulher. De chicote nas mãos, a senhora começou a chicotear a escravizada, sem dó e nem piedade. Manoel chegou e encontrou Cristina jogada no chão, toda ensanguentada. Humilhada e machucada, Manoel a levou até o quartinho onde dormia e fechou a porta com um cadeado. Voltou e foi inquirir a esposa sobre o acontecido. Ela revelou a verdade. O consorte ficou louco, como ela mandou para a Roda um bebê escravizado? — Que sandice, esposa! Olha o prejuízo! Eles discutiram durante um longo tempo. Francisca não era boba, ameaçou denunciar as “suas atitudes depravadas para com o Alexandrino”. Manoel engoliu seco a acusação. Não se falaria mais no assunto. Cristina mal conseguindo se mexer na sua esteira, lembrou-se de como sua mãe sofria ao ver cada filho ser levado pelo próprio pai para ser vendida. Ela passou por isso. Seu Vidal era a única alegria da sua desgraçada vida. Alexandrino foi mandado cuidar das feridas de Cristina com sal, vinagre, limão e pimenta. Ela perguntou se ele sabia de alguma coisa. Alexandrino era um túmulo e disfarçava muito bem. Pediu a ela para esquecer Vidal, eles poderiam fazer outros filhos

juntos. Não, ela não queria! O garotinho foi confiado à uma ama de leite contratada pela Irmandade da Santa Casa. Ele faleceu aos nove meses de morte natural. Foi encomendado e sepultado no cemitério em 19 de janeiro de 1843. O desejo de vingança não saía da mente de Cristina. Ela precisou de paciência. Livrar-se de Jesuíno era a sua meta, mas era preciso cautela. Ela continuou o amamentando e o tratando bem. Quando nasceu os seus dentinhos, ele passou a comer papinhas. Francisca nesse intervalo estava grávida novamente, teve uma menina, a quem dava toda atenção e carinho. Seu sonho era ter uma garotinha. Em abril de 1844 Jesuíno completou dois aninhos. Começou a ter constantes diarreias. Sua ama oferecia comida estragada ao menino. Ele chorava, quase não falava. Francisca acreditou que era caprichos do primogênito, ciúmes da irmãzinha. Chegou mesmo a experimentar a comida que Cristina oferecia ao garotinho. Estava tudo certo. A escravizada sugeriu (cinicamente) que levasse Jesuíno a uma benzedeira, podia estar com quebranto. Jesuíno só piorou, seu abdômen ficou inchado. Um médico o consultou e diagnosticou que ele estava com “lombrigas”, como era conhecida popularmente a Ascaridíase. Ele veio a óbito em 17 de julho de 1844, foi encomendado e sepultado na igreja de N. Sra. do Rosário. Seus pais estavam arrasados. Francisca revelou que nunca experimentara dor tão grande como aquela. Cristina a consolava o tempo todo.

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“Agora sim, a justiça estava feita!”, pensou Cristina. D. Francisca sentiu na pele o que é a perda de um filho. Ela não experimentou nenhum remorso. Tempos depois, sua mãe, a preta Candoca conseguiu ser alforriada pelo seu proprietário, ele já estava doente, viúvo e velho. Ela pediu para que ele comprasse Cristina, sabia do seu paradeiro. E assim foi. De volta à casa de sua infância, Cristina foi bem recebida. Agora sua mãe era a dona do lugar. Ela contou sobre o sequestro e desaparecimento do filho. D. Candoca falou sobre a possibilidade da Roda. Elas dirigiram-se até à Santa Casa. O escrivão Jair verificou que em outubro de 1843 um bebê foi deixado na Roda, ele possuía as características descritas por Cristina, era robusto, mestiço e era portador de seis dedos em cada uma das mãozinhas (polidactilia). Jair informou que o menino tinha sido levado pela ama de leite até o Hospital de Caridade, acabou por falecer de morte natural. Que duro golpe para a esperançosa Cristina! Tempos depois, ela encontrou-se com Constança e Joana, as africanas livres tuteladas por Manoel, elas conseguiram a ajuda de um advogado, recém-formado na Academia de Direito, e denunciaram as condições vividas nas mãos do déspota. Durante o dia vinham à cidade para a realização de pequenos trabalhos, à noite eram obrigadas a se recolherem à Casa de Correção, perto do Jardim Botânico (atual Parque da Luz). Cristina as convidou para irem trabalhar em casa de sua mãe, dando guarida e apoio às suas antigas colegas de “infortúnios manoelinos”.

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