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Na Freguesia do Ó

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A ilustradora

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Os crus dissabores que eu sofro são tantos, São tantos os prantos, que vivo a chorar, É tanta a agonia, tão lenta e sentida, Que rouba-me a vida, sem nunca acabar. Maria Firmina dos Reis

Dona Gertrudes Maria da Silva descendia do bandeirante Manuel Preto, e disso tinha muito orgulho. Era proprietária de uma boa chácara denominada “América” na distante Freguesia do Ó, terras do além Tietê. Era benemérita da igreja de Nossa Senhora da Expectação do Ó (construída em 1796), santa de devoção de seu mais famoso antepassado. Para dar conta do trabalho agrícola da sua propriedade, d. Gertrudes possuía 25 escravizados. Fazia questão que todos os cativos se unissem em matrimônio, “pois o concubinato é um pecado mortal!”, acreditava a senhora. Estimulava e escolhia os pares. Francisco era um crioulo nascido e criado na “América”, portanto, “cria da casa”. Ao completar 18 anos, d. Gertrudes entendeu que era o momento de uni-lo à uma negra adquirida recentemente, Joaquina Maria da Luz, africana da Guiné (vinda do porto de Cacheu, pertencente à atual Guiné-Bissau).

Francisco gostou de Joaquina, mas a recíproca não foi verdadeira. O casamento aconteceu no oratório particular de d. Gertrudes, em 1819. Anualmente, porque a viagem era complexa, d. Gertrudes e alguns dos seus escravizados seguiam viagem até a Matriz da Sé. Era preciso atravessar o Tietê e as matas que davam acesso ao núcleo central urbano. Ela seguia viagem na sua liteira carregada por quatro escravizados. No ano de 1819 foi a vez de Joaquina acompanhá-la. Elas permaneceriam uma semana hospedadas em casa de uma parente sua, moradora da Rua de São Gonçalo. Joaquina ficou à disposição de sua senhora. Precisava ir buscar água no chafariz de São Gonçalo (na atual Praça João Mendes). Em contato com outros escravizados, conheceu Luiz Guiné. Foi paixão à primeira vista. E aquela cena se repetiu durante aquela semana. Ao ser questionada pela dona pela razão da demora em voltar do chafariz, respondia que existiam filas e as negras faziam muita confusão. Sendo ela de fora, a jogavam para o fim da fila. Tudo lorota! Pensou em fugir com Luiz, contudo, a vida de fujão não era fácil. Era perigoso ser capturado e aí sim a situação pioraria para o escravizado, como a de outro cativo da chácara “América”: Jonjoca, apanhou tanto e teve uma orelha arrancada pelo capitão do mato a pedido de d. Gertrudes. Chegou a hora de regressar à Freguesia do Ó. Joaquina passou a ter asco do marido. Só pensava em Luiz Guiné. Francisco a tentava agradar de todo jeito. Forçava as relações sexuais. Joaquina não correspondia e passou a provocá-lo.

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Falou com a senhora que desejava a separação. A anciã a olhou com severidade e questionou aquela decisão. Alegou que Francisco a maltratava e dizia impropérios. Estava roubando aguardente e se embriagando. D. Gertrudes ficou desconfiada, entretanto, conhecia Francisco e ele sempre teve um bom comportamento. Mandou chamar o escravo para ouvir à sua versão. Ele negou tudo, revelou que Joaquina não estava querendo cumprir com os seus deveres conjugais. A velha deduziu que ela poderia ter um amante. Mandou investigar. Não achou nenhum sinal. Chegou 1820. O casal seguia aos “trancos e barrancos”. Nova viagem até o centro seria feita. Joaquina acompanharia a sua senhora. Francisco não a queria deixar ir. Implorou à d. Gertrudes que não a levasse, esta respondeu que ela iria sim e seria muito bem vigiada. Joaquina ganharia as ruas novamente ao ter que buscar água para a patroa e fazer compras. Voltou a encontrar Luiz Guiné. Cansada e cheia de esperanças resolveu escapulir. Às escondidas pegou um cordão de ouro da sua proprietária, escondeu-o dentro da ânfora. O casal tomou o Caminho da Mooca, correram muito. Ao desconfiar da fuga da escravizada, d. Gertrudes avisou um dos seus capangas e mandou que fosse à sua caça. Os dois escravizados andaram durante muitos dias embrenhados nas matas. Alcançaram as terras do atual bairro do Ipiranga. Um caboclo deu guarida aos dois. Joaquina entregou-lhe o cordão de d. Gertrudes. Ficaram ali acoitados. O caboclo conversou com um conhecido que escoltou Luiz e

Joaquina para um rancho pros lados do Jabaquara, ali estariam seguros. Com imensa raiva e sentindo-se lesada, d. Gertrudes entrou com um processo no Tribunal Eclesiástico com a acusação de fuga e separação ilícita de Joaquina. Ela representava o autor do pedido, o seu escravo Francisco. As testemunhas eram pessoas que habitavam sua chácara e três escravos antigos. Todos alegaram que além de adúltera, Joaquina Maria da Luz era feiticeira e não cumpria os preceitos da igreja. A devassa arrastou-se por meses. Foi expedida uma ordem para que Joaquina e o seu amante fossem recolhidos à cadeia caso fossem capturados. Luiz Guiné não adaptou-se à vida no rancho, queria voltar para a cidade. Ninguém sabia que ele era o amante de Joaquina. A deixaria lá, inventaria uma desculpa e nunca mais voltaria. Ela acabou descobrindo o plano. Quis voltar com a sua paixão. Era um perigo! Na viagem de volta descobriram-se doentes. Haviam contraído varíola. Caminharam o quanto puderam, alcançaram a freguesia do Brás. Foi um homem forro que ao vê-los caídos próximos a uma chácara, providenciou que fossem transportados até o Hospital de Caridade. Um médico os examinou e constatou que eram “bexiguentos” e os mandou para o Hospital dos Lázaros, no Guaré (atual bairro da Luz). Os dois acabaram-se identificando ao conversar com d. Lina e o cirurgião-mór, a polícia foi acionada. A parente de d. Gertrudes disse que nem de longe queria saber de uma “bexiguenta” por perto. De qualquer maneira, mandou um dos seus escravizados

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avisar a prima na distante Freguesia do Ó. No Lazareto, junto aos morféticos, pelas faltas de higiene e assistência permanentes do lugar, Luiz e Joaquina acabaram falecendo. Os cadáveres envoltos em esteiras foram enviados para serem sepultados no cemitério da Glória em 15 de fevereiro de 1821. Ela tinha 20 anos e ele 27. Quando d. Gertrudes chegou ao núcleo central, foi informada por sua prima que um guarda trouxe a notícia do falecimento de Joaquina. Francisco acompanhava a sua senhora. Ficou incrédulo, a malvada tinha falecido? Pediu licença e foi chorar escondido de todos. Saiu para a rua e perguntou a uma transeunte como chegava ao tal cemitério. Ele foi até lá e encontrou João Coveiro, ele o levou até a cova da falecida. Francisco se ajoelhou e abriu o berreiro. — Joaquina ocê num valia nada, mas sô apaixunado por ocê. Nunca mais vô querê sabe di outra muié. João observou a cena, balançou a cabeça e saiu.

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