TREMA! revista de teatro
TREMA!_golpe
p — 1
EDIÇÃO DO golpe
ANO 2
#7
AGOSTO 2016
QUAL É A CENA
DO G LPE?
espetáculo "nós" do grupo galpão — foto: guto muniz
p — 2
pergunta
TREMA!1/4 "O golpe jurídico, parlamentar e midiático que o Brasil sofreu nos últimos meses com o afastamento da presidenta da República Dilma Rousseff encontra, na sua maquinaria abjeta, um espelhamento com uma cena de forte carga dramática da peça 'Nós', do Grupo Galpão, com direção de Márcio Abreu. Sete atores dividem o palco em torno de uma grande mesa. Cortam legumes, preparam uma sopa, falam sobre a vida. Entre absurdos e casualidades, dividem os pequenos espantos do cotidiano, do estar-juntos. A personagem interpretada por Teuda Bara transita de modo natural nesse encontro, até que alguns dos seus companheiros começam a insinuar que a sua saída do convívio com eles se torna iminente, inadiável. Com a falsa diplomacia dos que se sabem agindo com torpeza, induzem uma saída que apele ao seu 'bom senso', ao melhor estilo polido e canalha que diria 'vai ser melhor para você', 'poupe-nos de agir com firmeza'. Num crescente, a situação se desenrola em uma cena de alta tensão – a cena do golpe – quando, sem mais apelos à linguagem que poderia escamotear a violência do gesto, a personagem de Teuda é agressivamente expulsa da cena, chutada, enxotada. Como mostra resistência, é derrubada e rolada para fora do palco, até cair em um alçapão. A porta bate com força e um silêncio culpado toma conta do ambiente. O impeachment para alguns, golpe para todos, é assinado"
João Paulo Rabelo e Txai Ferraz v i a Fa c e b o o k @ t r e m a p l ata f o r m a
TREMA!_golpe
p — 3
colaboradores desta edição
Silvano Mello
LEONARDO LESSA
Tem se dedicado ao humor
Ator e gestor cultural, natural de Belo
gráfico desde 2007,
Horizonte/MG. Integrante fundador,
desenvolvendo seu trabalho nas
desde 2004, do Grupo Teatro Invertido.
áreas de cartum, charge e
Entre 2008 e 2014, foi coordenador geral
caricatura. Durante esse
do Galpão Cine Horto, Centro Cultural
período, recebeu 51 premiações
do Grupo Galpão e, entre 2015 e 2016,
JEAN wyllys
em concursos, incluindo países
foi diretor do Centro de Artes Cênicas da
Nasceu em Alagoinhas, Bahia, em 1974.
como Irã, Síria, Turquia, Espanha,
Funarte, do Ministério da Cultura do Brasil.
Deputado federal eleito pelo PSOL-RJ
Itália, Ucrânia, Israel, Azerbaijão,
(mandato até 2018), é formado em
México, Romênia, Rússia e EUA.
jornalismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e obteve o título de mestre em Literatura e Linguística
Biagio Pecorelli
pela mesma universidade. Parceiro
Poeta, ator e artista-pesquisador do
dos movimentos LGBT, negro e
Programa de Pós-graduação em Artes
de mulheres, participa de ações
Cênicas da ECA/USP. Desenvolve, desde
contra a homofobia, a intolerância
2015, pesquisa de doutorado sob
e o fundamentalismo religioso, o
orientação do Prof. Dr. Antônio Araújo
trabalho escravo, a exploração sexual
(Teatro da Vertigem). Como poeta, lançou,
INEZ VIANA
de crianças e adolescentes, e as
em 2014, o livro “Vários ovários” (Edith).
Atriz, diretora e autora. É diretora,
violências contra a mulher. É escritor,
Como ator, trabalhou, em São
Márcio Bastos
desde 2010, da Cia OmondÉ (RJ),
com quatro livros publicados, além de
Paulo, no Teat(r)o Oficina. Atualmente,
Jornalista pernambucano. Atuou
que fundou com mais oito atores,
apresentador e curador do programa
dirige e atua no grupo A MOTOSSERRA
como crítico de teatro no Jornal
acumulando até hoje cinco peças em
“Cinema em outras cores”, no Canal
PERFUMADA, com quem estreou, em 2015,
do Commercio e na Folha de
seu currículo, incluindo “Nem mesmo
Brasil. Em 2005, venceu o programa
a peça “Aquilo que me arrancaram foi a
Pernambuco. Colaborador do site
todo o oceano”, indicada ao Prêmio
“Big Brother Brasil”.
única coisa que me restou”, de sua autoria.
www.jconline.com.br/terceiroato
Questão de Crítica pela direção.
Site: http://jeanwyllys.com.br.
CARTÕES | CONVITES PAPELARIA | SACOLAS REVISTAS | TAGS LIVROS | FOLDERS ENCARTES | RÓTULOS PANFLETOS | TABLÓIDES
IMPRIMIR O QUE VOCÊ TEM DE MELHOR, É O NOSSO COMPROMISSO. Av. Norte Miguel Arraes de Alencar, 3311 Rosarinho | Recife | PE | 52041-080 Fone: (81) 3366.9000 |www.brascolor.com
p — 4
TREMA!_golpe
p — 5
E D ITORIAL
Recentemente de passagem pelo Recife, a presidenta afastada
A edição do Golpe vai além do desenho atual brasileiro. Passa por
Dilma Rousseff fez uma analogia didática do momento pelo qual
momentos de recessão e conflito no México, entre os séculos 19
passamos no país: ela comparou a democracia a uma árvore. “Na
e 20, por exemplo, até um pincelamento da ditadura militar brasi-
ditadura, o golpe nesta árvore é um machado na base, que a der-
leira em 1964, através da peça “Nem mesmo todo o oceano”, cujo
ruba de uma vez, sob violência. Mas existe uma outra situação.
processo de criação é exposto aqui por Inez Viana, do OmondÉ
Imagine que essa árvore seja tomada por um monte de parasitas
(RJ). Também traz o olhar panorâmico do encenador José Celso
desde a raiz. E é isso que estamos vivendo agora”, disse ela defron-
Martinez, em entrevista exclusiva feita pelo poeta, ator e pesqui-
te de milhares de pessoas na Praça do Carmo.
sador Biagio Pecorelli, que já participou, inclusive, do Teat(r)o Oficina. Por isso mesmo, a conversa é fluida e revela um Zé Celso à
Nesta edição, a TREMA! aproveita para que possamos ver mais de
vontade em seus pensamentos, traçados em linhas não lineares.
perto como esses parasitas estão atuando, e como a cultura e a
Ele fala deste momento de uma forma crítica, mas sem deixar de
arte se posicionam politicamente diante disso, trazendo ques-
olhar para trás, para um passado do qual foi testemunha ocular, e
tões, lupas e até inseticidas possíveis a esse momento de pragas
de lado, reconhecendo pontos positivos do agora. “Pra mim, foi
no Brasil... O nosso colaborador Jean Willys, deputado federal
uma benção este golpe, em certo sentido, porque eu vi movimen-
baiano (PSOL), escreveu um bê-a-bá para quem ainda duvida que
tar coisas que eu já vi outras vezes em minha vida, e que eu não via
um golpe possa se dar nos termos em que estamos vivendo: “É
mais... Vi jovens se encontrando com outros, vi conversas quentes,
importante esclarecer que o que eu e muitos chamamos de ‘golpe
porque tava uma espécie de ‘zumbizismo’”, diz Zé, logo nas pági-
parlamentar’ ou de ‘golpe institucional’ − que não é o mesmo que
nas que abrem nossa edição a seguir.
um golpe militar, que é feito com violência e suspendendo totalmente a legalidade, mas, sim, uma manobra ilegal para derrubar
É justamente trazendo diferentes pontos de vista que procura-
um governo democraticamente eleito e tomar o poder de forma
mos abordar o tema de cada edição. Não é diferente com esta. E,
ilegítima − não é o instituto do impeachment em si, mas este im-
então, para você qual é a cena do golpe?
peachment em particular, com as características que ele tem e da maneira em que está sendo conduzido”, explica ele, traçando ainda comparações com a série “Game of thrones”.
p — 6
Recife, agosto de 2016
#GOL P E L E ITU RA V I SUAL Silvano Mello
TREMA!_golpe
p — 7
ENTREVISTA
josé “aquele que acrescenta”, “acréscimo do Senhor” ou “Deus multiplica”. O nome José tem origem no hebraico Yosef, que quer dizer “Ele acrescentará”
zé celso na peça "pra dar um fim no juízo de deus" – foto: jennifer glass
p — 8
A
que foi raspando, faltou só pouquinho. Então, o que aconteceu? fala desse monstro-mito do teatro brasileiro foi feita
Imediatamente, começaram a tramar. Inclusive eu acho que o
para ecoar a todos os ventos, em todos os sentidos.
grande escritor desta novela agora é o Cunha, porque Cunha são
No país inteiro, nunca precisamos tanto da voz de José
os evangélicos, ele é mancomunando com todos esses. Com a
Celso Martinez Corrêa, o criador e disseminador, no Brasil, de
eleição da Dilma, a direita botou muitos evangélicos e corruptos.
um teatro único, revolucionário, subversivo, que atende pelo
O pior Congresso que a história do Brasil já teve. O espetáculo
nome de Oficina. Teatro que se faz junto, coletivamente, em
que eles deram no dia 17 (de abril de 2016, votação do impeach-
processo, experimentação. Nós da revista, através do poeta,
ment na Câmara dos Deputados), um show de boçalidade [risos],
ator e pesquisador Biagio Pecorelli, temos a honra de fazer
de ignorância.... “Porque Deus, porque Deus” e a gente ao mesmo
ecoar essa fala. Em tempos de golpe, muitos golpes precisam
tempo fazendo “Pra dar um fim no juízo de Deus”. Para com isso,
ser dados de cima do palco, da garganta desse mestre que é
cara! É uma estrutura de poder, eles conspiraram. Inclusive, todas
diretor do Teatro Oficina (SP) e continua galopando por aí,
as pessoas que fazem parte deste espetáculo, os juízes, os ad-
sem perder a inquietude política e artística, e a adoração por
vogados, os neoliberais, o Sérgio Moro, por exemplo, todos eles
Pernambuco. Confira abaixo a nossa edição para essa con-
se formaram nos Estados Unidos. Enfim, homem formado pelo
versa memorável.
sistema da CIA, um juiz deste tipo e que introduziu esta prática louca de ‘cabuetagem’. Na minha geração, isso era absurdo! Esses caras, inclusive, estão correndo risco... E então a mídia entrou na
Zé, que texto é esse que está sendo encenado neste Brasil de agora?
história, porque a direita toda estava interessada em derrubar a Dilma, antes de ela fazer o primeiro dia de governo...Os anunciantes da Folha, do Globo, da Globo começaram a investir na
JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA Esta é uma encenação que come-
mídia e se começou a novela que já tinha acontecido em 1964...
çou faz tempo, desde o dia da vitória da Dilma, porque a direita
Mas era uma construção descarada, que todo mundo vê, quase
passou raspando... Começou com o ressentimento do persona-
como um ensaio aberto. Em 1964, quando fomos pegos, foi uma
gem do Penteu, que é o Aécio... O Aécio, inclusive, é um perso-
surpresa, ninguém esperava o golpe... No dia do meu aniversário
nagem que já tínhamos adivinhado quando escrevemos “Bacan-
(30 de março), fui comemorar com (Augusto) Boal, a Nara Leão
tes”, exatamente na época em que o Tancredo Neves morreu (21
fazia um show numa boatezinha ali, e, de repente, a cidade es-
de abril de 1985). O Tancredo era um homem super legal, era de
tava toda ocupada... Então agora a dramaturgia, a mídia, foi se
um partido mais reacionário, mas era também ligado ao PTB, às
encarregando disso e este centrão também, formado pelo Cunha
causas sociais, foi contra a ditadura, não era tipo Sarney, era outra
e confirmado depois do golpe. Penso até em escrever uma peça
coisa. Então, a morte dele foi um acontecimento, dizem que teve
sobre a tragédia de Dilma. Isso tudo, na realidade, foi uma ideo-
macumba no Maranhão pro outro entrar... Foi um espetáculo...
logia dos poderosos que não se conformaram com o que acon-
Então, o Marcelo (Drummond, ator e diretor) estava ilustrando
teceu... O outro personagem, que foi o Lula, abriu um pouco atra-
os textos de “Bacantes” e começamos a recortar as figuras dos
vés da aliança com José de Alencar, senão não teria sido eleito
jornais. Cadmo era o Dr. Ulisses (Guimarães), o próprio Tancredo...
jamais... Abriu-se a ditadura com um conchavo, o Lula foi eleito
Aí esse Penteu entrou em fúria, em ressentimento, em ódio, por-
por um conchavo. Porque a estrutura de poder no Brasil é burra,
TREMA!_golpe
p — 9
zé celso na peça "pra dar um fim no juízo de deus" – foto: gabriela cerqueira
férrea, o espetáculo que ela dá é de coisa colonizada, sob o tacão
Verdade Única: na minha frente, tinha o Gilmar Mendes, o Moro...
do imperialismo... Veja nesta época de burrice a ascensão dos
Era uma farra, virou uma chanchada que eu não fazia há anos,
musicais norte-americanos, com peça de começo, meio e fim,
uma chanchada política! Eu me liberei totalmente como chan-
enlatada, prontinha, feita e a preços caríssimos... E as multidões,
chadista, eu virei Dercy Gonçalves. Eu sei há muito tempo que o
as classes médias, que têm poder aquisitivo, enchendo aquilo...
Artaud é como a Dercy Gonçalves, ele fala como o Grande Otelo,
Essa gente toda tem uma cultura, tem uma ideologia, uma estru-
porque ele fala como uma bicha afiada... Como aquela bicha que
tura, um teatro.
fala no Carnaval, depois que aquela que era do Jornal Nacional
fica tagarelando. Essa peça foi feita no momento de muita peNaquele domingo em que a Câmara de Deputados votou
núria, com sangue, porra e cocô. E isto tem tudo a ver com Ar-
pelo processo de impedimento da presidenta Dilma, o Oficina
taud, porque o Artaud vai no inconsciente da época, ele fala que
estava em Brasília apresentando “Pra dar um fim no juízo de
o artista revolucionário tem que mergulhar no inconsciente da
Deus”. O que Artaud tem para dizer a nós brasileiros, a nós artis-
época. Quando se caga em cena, eu vejo aquelas pessoas todas
tas brasileiros num momento como esse?
com os cus delas cagando como se fosse um mar de merda. Porque o Artaud, no teatro, no duplo dele, constrói um personagem
ZÉ CELSO A peça dele “Pra dar
que cospe as palavras, “esporreia”
um fim no juízo de Deus”, ou
as palavras, que come também as
seja, pra dar um fim na ideia
coisas, e digere, ele é um antropó-
pessoas, nos homens, nas
“Penso até em escrever uma peça sobre a tragédia de Dilma. Isso tudo, na realidade, foi uma ideologia dos poderosos que não se conformaram com o que aconteceu...”
mulheres... Coisas totalmen-
Zé Celso
única que acha que você tem direito de se meter na vida alheia, no pau, no cu, nas
fago. Não tem diferença entre ele e o Oswald (de Andrade) nesse sentido. Porque a anatomia do corpo que ele preconiza é um retorno ao índio do corpo.
te absurdas... Por mim, incluFala mais dessa relação entre
sive, não tiraria nunca essa peça de cartaz, foi um sucesso em Brasília extraordinário. Nós
Artaud e Oswald...
costumamos usar máscaras, máscaras do Temer... No julgamento, então, eu não fui julgado. Antigamente, era o Brecht que julga-
ZÉ CELSO Tanto
va o ator. Agora, não; agora era Tribunal dos Juízes Golpistas da
eles têm uma coisa na poesia e na palavra, que você tem que
p — 10
Oswald, tanto Nelson Rodrigues, tanto Artaud,
trabalhar... O teatro ainda é muito dominado pelo raciocínio... As pessoas raciocinam, mas o raciocínio o que é? Parece que ela tá lendo o texto. As palavras poéticas, na realidade, são mantras, porque elas têm em si mesmo força, tipo uma palavra como Poder... Você deve inspirar e dizer uma palavra como... [Zé inspira] Ordem e Progresso... Ordem e Progresso... Ordem e Progresso.... Ordem e Progresso [risos]. Eu já penso logo em desordem, porque Ordem imagina-se tudo organizado em torno de um centro, e Progresso, desenvolvimentismo... Não existe, se você não põe em cena a palavra. O Artaud é sempre uma coisa radical... Você tem um raciocínio e pendura as palavras do raciocínio num varal, aí você corta todos os fios que prendem o varal, então as palavras se libertam e você tem que reencontrar as palavras, na respiração, porque naturalmente você chega ao que leva ao fluxo da peça, ao objetivo da peça, na libido, na respiração, na abertura total de todos os sentidos, no desregramento de todo sentido, como dizia Rimbaud... Tiram-se as regras do sentido e vira só sentidos. Artaud e Oswald respiram e falam... falam... falam... falam... [Zé repete a palavra projetando o seu falo para frente e para trás]. As palavras são feito cocôs, esporradas, penetrações, cada palavra. Genet diz que a arte é um crime, tem que ser realizada como um crime, por isso deve ser exata. Em junho de 2013, em meio a toda aquela efusividade do povo nas ruas, nós reencenamos no Oficina “Acordes”, de Brecht, como um ato político e artístico, para “acordar” a cultura e a esquerda. Em 2016, foi o Golpe que nos acordou, Zé?
cartaz da peça "pra dar um fim no juízo de deus"
ZÉ CELSO Apareceu uma nova esquerda no sentido de movimento... Quando teve o negócio do MinC, eu senti que o coma não era sobre a cultura, o coma era no Estado. Imediatamente, eu senti uma cultura nova começando, quem saiu do coma foi a cultura, o Estado está em coma... Queira ou não queira, a esquerda hoje é composta por veados, travestis, transexuais, negros, índios, mulheres, homens, homens que não são o Homem, que são gente,
trecho do estatuto da associação de energias e trabalhos de comunicação sem fronteiras-uzyna-uzona
que estão querendo vida... Toda esta pauta maravilhosa tá na nossa mão que tá vendo este espetáculo... É o momento! O Mar-
ZÉ CELSO “O rei da vela” praticamente foi um processo vindo de
celo (Drummond) tem feito o “Navalha na carne” para ocupar
1958. Mudou e teve uma revolução com 1967... Foi a entrada de toda
trincheira, não ficar fechado... Eu sofro pra caralho por não estar
uma juventude em 1968, que tinha a cultura do corpo, naturalmen-
em cena... Pra mim, foi uma benção este golpe, em certo sentido,
te. Ela não nasceu com slogan político, nasceu como aqui e agora,
porque eu vi movimentar coisas que eu já vi outras vezes em
com percepção. Então, não tinha diferença entre palco e plateia,
minha vida, e que eu não via mais... Vi jovens se encontrando
não tinha problema em tocar nas pessoas, e aquilo foi considera-
com outros, vi conversas quentes, porque tava uma espécie de
do uma agressão. Em “Roda viva”, eu trouxe de volta uma coisa im-
“zumbizismo” depois de 2013. Nossa, no teatro foi difícil... E, de
portantíssima que era o coro, como o teatro grego era, como um
repente, nestes dias, tenho visto pessoas com vontade de se re-
time de futebol. Essas pessoas naturalmente emergiram em 1968,
ver e eu fiquei com vontade de novo de ver pessoas, ficar mais
porque foi um ano muito importante, que começou no mundo em
amigo da (Marilena) Chauí... Ela me disse: “Eu fiquei muito triste”.
1967, aliás. Foi a maior revolução que aconteceu na Terra, porque,
E eu: “Que nada! É uma alegria olhar o que está acontecendo! É
inclusive, acabou com as revoluções de Estado, entrou no caminho
uma nova luta! Você é importantíssima neste momento, tem que
da liberdade, da imaginação, da arte e em todo lugar do mundo teve
ir em todos os lugares”.
repressão. Foi uma revolução cultural... Então, quando saímos de “O
rei da vela”, éramos outras pessoas, não éramos mais os mesmos. Nos anos 1960, o teatro foi protagonista na luta contra a dita-
Não tinha que fazer resistência, tinha que encontrar uma outra via,
dura. O Oficina – primeiro com “O rei da vela”, em seguida com “Roda
tanto que as peças que mandávamos nunca eram proibidas, eles
viva” e “Galileu Galilei” – promoveu uma grande transformação que
não entendiam... “Roda viva” censuraram depois de estar em car-
ultrapassou, literalmente, o palco. Do estético ao político, o que pode
taz, “O rei da vela”, idem, eles não entendiam. “Gracias señor” foi
o teatro num momento como esse que estamos vivendo no Brasil?
uma coisa que escrevemos cheio de texto e quase não tinha texto.
TREMA!_golpe
p — 11
ENTREVISTA É muito importante numa situação como esta re-existir, agressão
ZÉ CELSO Fizemos o “Galileu”, o “Rei da vela” e “Pequenos bur-
direta fica no mesmo lugar. Acho que poderia ter uma constituinte
gueses” no Santa Isabel. E antes fizemos um passeio pela cida-
pra valer, mas uma constituinte com representantes dos secunda-
de. Eu fazia o Galileu, eu era arrastado pela rua como o Gregório
ristas, dos “patos” – aquele babaca narigudo, Paulo Skaf, uma índia
Bezerra e ia pelos bairros todos chamando e entrando no tea-
da Amazônia, um xamã, um cientista, uma coisa que não é político,
tro. Era de graça, era uma glória a sensação, inesquecível. Éra-
porque esta política não tem talento, esta política acabou, esta po-
mos 22 pessoas viajando e uma pessoa só contratada. Os outros
lítica tem que ter uma revolução
22 se revezavam na produção
cultural por ela. No “Roda viva”,
e fazíamos peças nos grandes
o coro era mais importante que
teatros e trabalhos clandestinos do que viria a ser poste-
do teatro tradicional, houve um
“Queira ou não queira, a esquerda hoje é composta por veados, travestis, transexuais, negros, índios, mulheres, homens, homens que não são o Homem, que são gente, que estão querendo vida”
conflito enorme entre os repre-
Zé Celso
foi pelo Agreste]. Entrávamos
o protagonista. Quando foi proibido o “Roda viva”, com o AI-5, e os atores do espetáculo entraram no “Galileu Galilei” com os atores
riormente o “Gracias señor”, no teatro, no silêncio... Depois da temporada, fomos para o Sertão [Zé se confunde, a viagem
sentativos e a regimália, porque o
na cidade e íamos para o ce-
coro tomava o poder...
mitério, aí todo mundo ia ver... Levantávamos do túmulo e começávamos ações... De repente,
E hoje?
para entrar numa cidade [trata-se de Mandaçaia, distrito de Brejo da Madre de Deus], os moradores precisavam molhar até
ZÉ CELSO Hoje o teatro está muito forte de novo, as pessoas estão
o joelho, então baixou a ideia de juntar todo mundo e fazer
indo ao teatro, estão sentindo a necessidade de estarem juntas...
uma ponte. Uma ponte de pedra / entre nós e você / esta ponte se
Isso é sintoma, mas está junto na diversidade que a gente é.
chama Conselheiro / e vai ser atravessada pelo Brasil inteiro [can-
tarola]. Uma coisa assim... Aí, tinha umas pessoas mais apresNessa busca por um “coro de protagonistas”, como aquele
sadas, mesmo o Renato (Borghi), que foram encomendar um
que você teve em “Roda viva”, você trabalha com um leque bas-
caminhão, pra fazer transporte de pedras. A gente atolou o rio
tante amplo de jovens atores e atrizes, de várias regiões do Brasil,
e ficou um caminho de pedras [risos], mas conseguimos atuar
inclusive. O que dizer dessas novas gerações?
com o povo todo trazendo as pedras.
ZÉ CELSO Em 1968, existia um clima de busca, como em todos os
Depois disso, só nos anos 1990. Em 1992, você, Marcelo
anos 1960 no teatro. Todos eram muito estudiosos, disciplinados.
Drummond e Raul Cortez apresentaram “As boas”, de Genet, no
Hoje, por exemplo, eu fico escandalizado quando um ator ou um
Teatro do Parque (atualmente fechado!).
músico falta a um espetáculo. Eu não compreendo porque venho de uma época de fé cênica absoluta, que dá resultado, sem isso
ZÉ CELSO Nossa! Mas não foi o Raul... Pra Pernambuco foi um ou-
não tem resultado. Pessoas que gostavam de ensaiar e não viam
tro cara. Eu fazia a madame, fizemos de meia-noite no Teatro do
o processo de ensaio como entediante, porque estavam criando
Parque. Era cruel, meia-noite não ia muita gente. Algumas pessoas
neste processo.. Quando há comentários, gostaria que não se sen-
viram, outras não; depois, sim, quando fomos com “Pra dar um fim
tissem criticadas no seu ego... Nos anos 1960, era um prazer grande
no juízo de Deus”, em 1998, no Teatro Apolo, foi maravilhoso... Ti-
ir ao estúdio do (Eugênio) Kusnet
nha que ser um sucesso, porque
ver atores de várias companhias
era a época de Chico Science.
fazerem as cenas que tinham di-
Um ano antes ele tinha morri-
mesmo, o teatro nos obriga a nos
“O teatro é muito cruel conosco mesmo, o teatro nos obriga a nos reconciliar com muito rigor. Se a gente não chega à caveira que a gente é, se não chega ao caos, a gente não retorna nada ao teatro”
ger?! E tava tudo incendiado com
reconciliar com muito rigor. Se a
Zé Celso
o Chico Science. Era já um miolo
ficuldade e todos comentavam do ponto de vista de Stanislavski. Todo mundo pesquisava, porque o teatro é muito cruel conosco
do e tinha a Soparia, a Comadre Florzinha, Otto, conheci o Lírio (Ferreira), tinha uma agitação cultural maravilhosa... Cadê Ro-
gente não chega à caveira que a
de tudo que aconteceria depois
gente é, se não chega ao caos, a
com o cinema, era outra acolhi-
gente não retorna ao teatro.
da, outra relação humana, artaudiana... Não sei, aquelas pessoas,
aquele momento revolucionário, aquela revolução natural que Zé, em Pernambuco, o Oficina esteve pela primeira vez em
1971, durante as “Utropias”, quando vocês viajaram em comunida-
teve em Pernambuco pra nós foi de uma importância enorme que depois incorporamos em “Os Sertões”.
de pelo Brasil e fizeram vários “te-atos” no Recife e no Agreste pernambucano (Caruaru, Garanhuns, Brejo da Madre Deus, Santa Cruz do Capibaribe e Fazenda Nova). Como foi isso? p — 12
Em 2000, vocês voltaram com “Cacilda!”. Em 2007, com “Os Sertões”. E a última vez foi em 2010, com as “Dionisyacas”...
ZÉ CELSO Aí foi o momento do apogeu nosso (2010). Aquele lugar
lado que tinha uma porção de garotinhos e quando íamos pro
tinha tido uma chuva enorme e muitos desabrigados. E tinha uma
lado deles, pareciam um bando de peixinhos fugindo. Até o chefe
sala que era pra oficinas, então doamos a sala para os desabriga-
do tráfico ficou pelado, eu fui lá e passei a mão na bunda dele, ele
dos e o espetáculo foi montado como oficina com os desabri-
olhou pra mim e ficou meio puto [risos]... Lá foi “Taniko”, “Cacilda”,
gados e as pessoas de Recife e Olinda. A oficina ficou absoluta-
“Bacantes”. Foi dose, né?
mente aberta e veio todo o povo de Recife, Olinda, Peixinhos... Foi a glória do teatro popular, do teatro de multidão. Tá gravado,
E quando o Oficina volta a Pernambuco?
tem todo o material e tem cenas memoráveis... Tiramos a roupa de Cláudio Assis e ele ficou felicíssimo. Na hora em que entrou
ZÉ CELSO Quando chamarem de novo, porque teatro é assim, tem
Dionísio, entrou Marcelo, parecia que todos conheciam este deus,
que chamar. No ano que vem, vai ter “O rei da vela”, aí é inevitável, vão
o público ficou alucinado... A peça provoca uma transformação
nos chamar de novo, quer tenha golpe ou não. Não importa, mas se
muito grande nas pessoas, é uma orgia. Eu lembro que tinha um
quiser chamar agora, nós estamos aí! Eu adoro Pernambuco.
"pra dar um fim no juízo de deus" – foto: gabriela cerqueira
TREMA!_golpe
p — 13
pergunta
TREMA!2/4 "A cena do golpe é a ingenuidade e a mediocridade do raciocínio do brasileiro e da brasileira médio(a). Acharam que poderiam acabar com a corrupção apenas indo às ruas, levados como gado pelos veículos de comunicação oligárquicos. Achavam que se tratava, de fato, de manifestações espontâneas. Não vislumbraram e, ainda não vislumbram, o monstro político que está destruindo o país"
Thiago Andrade v i a Fa c e b o o k @ t r e m a p l ata f o r m a
p — 14
TREMA!_golpe
p — 15
ARTIGO
p — 16
D I AS
M E L HORE S V I RAO ?
JEAN WYLLYS jwyllys@globo.com
S
ucesso editorial em todo mundo e fenômeno de audiência na
ao convencer a nobreza de que dar um mínimo de dignidade aos
tevê, “Game of thrones” (adaptação coerente de “As crônicas
trabalhadores e mais pobres não era necessariamente um mal ne-
de gelo e fogo”, de George R.R. Martin) pode ser interpretado
gócio. O ex-presidente petista deixou o trono amado pelas massas
como uma alegoria dos conflitos políticos que, com alguma varia-
e fez sua sucessora. Acontece que durante o primeiro reinado de
ção e coloridos locais, atravessaram a história da humanidade e nos
Dilma, os ventos do inverno começaram a soprar mais fortemente,
trouxeram até aqui. É baseado nessa interpretação e tomando em-
sinal de que o tempo de prosperidade havia se esgotado. Então, a
prestado parte do vocabulário dessa obra de ficção que começo a
parte mais rica da nobreza – preocupada com a distribuição dos
analisar a crise política em que o Brasil mergulhou ainda antes de o
recursos disponíveis em tempos de escassez invernal – decidiu que
golpe parlamentar em curso afastar a presidenta eleita, Dilma Rous-
não fazia mais sentido manter uma rainha que continuasse se preo-
seff, e elevar, ao comando da república, uma camarilha de corruptos,
cupando com a vida dos plebeus (é como diz o dito popular, “fari-
demagogos, fisiologistas e fanáticos.
nha pouca, meu pirão primeiro”).
Os governos exercidos pelo então presidente Lula concilia-
Essa parte da nobreza iniciou, então, e com apoio dos meios
ram nobres e plebeus (estes últimos são a maioria da população),
de comunicação de massa, uma crise política cujo objetivo era tirar
TREMA!_golpe
p — 17
ARTIGO Dilma Rousseff do Trono de Ferro e sentar, nele, um dos seus. No es-
tar ou institucional.
forço para derrubá-la, tudo serviu de arma à nobreza oposicionista:
É importante esclarecer que o que eu e muitos chamamos
as inegáveis incompetências da rainha, sua falta de traquejo com o
de “golpe parlamentar” ou de “golpe institucional” − que não é o
idioma comum, sua identidade de gênero, o envolvimento de al-
mesmo que um golpe militar, que é feito com violência e suspen-
guns dos seus conselheiros em esquemas de corrupção e a aplica-
dendo totalmente a legalidade, mas, sim, uma manobra ilegal para
ção dos recursos do reino em políticas para os mais pobres; mas
derrubar um governo democraticamente eleito e tomar o poder
serviu de arma à nobreza oposicionista principalmente a disposição
de forma ilegítima − não é o instituto do impeachment em si, mas
de alguns dos supostos aliados da rainha em traí-la e sabotá-la deli-
este impeachment em particular, com as características que ele
beradamente (é o caso do corrupto Eduardo Cunha, agora afastado
tem e da maneira em que está sendo conduzido. O impeachment
da corte e amargando a solidão e a decadência política dos dias que
está previsto na Constituição e é, portanto, um recurso legítimo
antecedem a sua esperada prisão).
para circunstâncias de extrema gravidade institucional, desde que seja usado de acordo com o que ordenam a Constituição e a lei
***
1.079/1950, que o regulamenta. O que acontece é que temos um processo de impeachment
Nas últimas eleições presidenciais, apoiei e fiz campanha para Lucia-
cujo pedido foi muito mal formulado e não cumpriu os requisitos
na Genro, que foi a candidata do meu partido, o PSOL. No segundo
da lei, pois não há crime de responsabilidade cometido pela pre-
turno, votei e apoiei Dilma porque havia duas opções: ela ou Aécio.
sidenta que o justifique. O pedido usa como desculpa uma série
Nos sistemas eleitorais com segundo turno, como é o caso do Brasil,
de acusações sem base jurídica, por decisões administrativas que
há dois momentos diferentes que impõem escolhas diferentes. No
nós podemos discordar, mas que não constituem crime e são, de
segundo turno, todas as pessoas que votaram em algum dos candi-
fato, praticadas por governadores e prefeitos sem qualquer ques-
datos ou candidatas que não passaram para essa segunda fase do
tionamento, assim como foram praticadas pelos presidentes an-
processo eleitoral têm que escolher entre as duas opções que foram
teriores; um pedido que foi acatado por um bandido que, como já
escolhidas na primeira fase pela maioria da população. E isso é de-
disse, amarga a solidão e a decadência dos dias que antecedem a
mocrático; a gente tem que aprender a jogar o jogo da democracia.
prisão e que foi afastado do mandato e da presidência da Câmara
O governo Dilma me decepcionou, sim, eu não achava que ela
Federal por causa de corrupção − é público que Cunha usou o pe-
fosse fazer o governo que eu gostaria (se achasse isso, teria apoiado a
dido de impeachment da presidenta para chantagear ao mesmo
Dilma já no primeiro turno), mas esperava que houvesse pelo menos
tempo o governo e a oposição de direita, na tentativa de se salvar
algumas mudanças. Não houve e o remédio escolhido para debelar
da cassação no Conselho de Ética, que acabou acontecendo, mo-
a crise econômica – a adoção do programa neoliberal dos tucanos
tivada por uma ação do PSOL e da REDE.
– aprofundou-a. Contudo, eu não me arrependo de tê-la escolhido no segundo turno, pois não tenho dúvidas de que um governo de Aé-
***
cio Neves teria sido muito pior (e o que o governo golpista de Michel Temer apoiado e sustentado pelo PSDB é a prova disso!). De fato, a
Há muitos interesses por trás desse processo. O PMDB – que não
conduta antidemocrática de Aécio Neves – que desde o dia seguinte
tem (e não teve nas últimas décadas) nenhum candidato presi-
às eleições, buscou um terceiro turno – reafirma que acertei ao votar
dencial com alguma chance de vencer uma eleição, mas foi alia-
contra esse homem naquele segundo turno.
do de todos os governos, quis tomar o poder por assalto. Cunha – que está prestes a ser preso por corrupção – usou o impeach-
***
ment como forma de chantagem para se proteger e como moeda de troca com a oposição de direita para não ser cassado, além de
Eleita em segundo turno, a presidenta Dilma viu sua popularidade
se vingar da presidenta por esta ter desarticulado esquemas de
despencar meses depois. Em parte pelos seus próprios erros (ado-
corrupção dos quais era beneficiário, como fica claro na delação
tar o programa econômico dos tucanos e elevar o vice-presiden-
premiada do senador Delcídio do Amaral.
te, Michel Temer, à condição de seu articulador político, para citar
O PSDB – que não aceitou perder o segundo turno das úl-
apenas dois), em parte pelo boicote do Congresso, em especial da
timas eleições e saiu igualmente derrotado nas três anteriores –
Câmara dos Deputados (sob comando de Eduardo Cunha, inimigo
quis usar esse processo para chegar ao governo como sócio de
pessoal da presidenta), e ainda em parte pela fortíssima campa-
Temer e Cunha. As elites queriam um governo fraco e totalmente
nha golpista da oposição de direita e de parcela da grande mídia,
dependente delas para impor uma agenda econômica ainda mais
que, desde o dia seguinte às eleições, fizeram de tudo para que ela
neoliberal, com mais ajuste e mais perda de direitos para os tra-
não pudesse governar.
balhadores, como vem fazendo o presidente golpista Michel Te-
A popularidade muito baixa sem dúvidas contribuiu sensi-
mer, que, num deboche, ousa chamar seu programa de governo
velmente para a perda de governabilidade. Porém, Dilma Rousseff
de “Ponte para o Futuro”. E todos os fascistas, fundamentalistas
continuava tendo legitimidade, porque esta é outra coisa: numa
religiosos e reacionários que são aliados dessa gente queriam a
democracia, a legitimidade é dada pelo voto popular, de acordo
chance de atentar contra as liberdades individuais e os direitos de
com as regras do jogo estabelecidas pela Constituição. Sua legiti-
minorias sexuais, étnicas e religiosas que lhes despertam inveja ou
midade, contudo, foi desrespeitada e atropelada por um processo
desafiam sua estupidez motivada.
de impeachment em curso que é, na verdade, um golpe parlamenp — 18
Por trás desse golpe, também há ataques sexistas a Dilma,
TREMA!_golpe
p — 19
ARTIGO que, desde o primeiro mandato, é alvo de injúrias e insultos pro-
sob a liderança de Michel Temer, deixa claro que o ajuste que
feridos por seus opositores na Câmara Federal e também na im-
estão fazendo é ainda mais duro para os trabalhadores. Em ter-
prensa. Ela foi frequentemente difamada e xingada com palavras
ceiro lugar, estão avançando com a agenda conservadora e con-
impublicáveis, de cunho sexista, mesmo quando esteve no Con-
trária aos direitos humanos que começou a ser impulsionada na
gresso Nacional para entregar a mensagem aos congressistas – um
Câmara Federal desde que Cunha conquistou a presidência da
rito da democracia que é repetido a cada nova legislatura. Mesmo
casa: estatuto do nascituro contra os direitos sexuais e repro-
nessa ocasião, ela foi vaiada e insultada por parlamentares da opo-
dutivos das mulheres, estatuto homofóbico contra as famílias,
sição de direita – algo que nunca aconteceu com nenhum homem
“cura gay”, “orgulho hétero”, mais criminalização da juventude,
presidente. Fernando Henrique Cardoso saiu da presidência com
dos mais pobres e dos usuários de drogas, revogação do esta-
8% de popularidade, ou seja, bastante impopular, e a imprensa
tuto do desarmamento etc.
nunca o insultou por isso. *** O impeachment da presidenta Dilma Rousseff nada tem a ver com a corrupção sistêmica que gangrena as instituições da república e que é fruto da maneira como nosso sistema político foi constituído, dependente desde sempre do financiamento empresarial de campanha. Eu sou crítico desse sistema e luto contra ele por dentro! O PSOL, por exemplo, não aceita doação empresarial de campanha e nenhum deputado do nosso partido foi eleito com dinheiro de empresas. Eu fui eleito com mais de 144 mil votos por meio doações exclusivas de pessoas físicas do Brasil inteiro, através de financiamento coletivo na internet. Nós temos autoridade moral para condenar o tipo de coligação que levou o PT ao poder, mas que hoje é responsável por sua ruína. Desde a nossa redemocratização, o sistema político brasileiro vem funcionando por meio do chamado presidencialismo de coalizão. O que quer dizer que o PT teve que fazer um consórcio com as oligarquias políticas para poder governar e foi ingênuo suficiente de acreditar que essas oligarquias não o trairia em algum momento. Sob os governos petistas – sejam os governos Lula e principalmente o governo Dilma –, os esquemas de corrupção começaram a vir à tona. Durante muito tempo no Brasil, esses esquemas foram tratados de forma subterrânea, sem o conhecimento da população e sem que as instituições de combate à corrupção, como o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, tivessem autonomia para enfrentar os esquemas de corrupção. A operação LavaJato, em si, é muito importante. Ela serviu para descobrir o que nós do PSOL denunciamos há muito tempo: que boa parte da política brasileira é financiada fundamentalmente pelas empreiteiras e isso está destruindo a nossa democracia. O fato de os diretores das empresas que pagaram propinas e financiaram ilegalmente as campanhas da maioria dos partidos terem sido presos e de as investigações terem permitido mostrar como todo esse esquema funcionou é altamente positivo. Mais da metade do Congresso Nacional brasileiro está envolvido em escândalos de corrupção ou responde na justiça por algum outro crime, até mesmo crime de homicídio e de tortura. Esse Congresso Nacional – especialmente essa Câmara Federal – não estava nem está qualificado para impedir o mandato da presidenta. Essa gente tem uma agenda que é um escândalo. Em primeiro lugar, enterrar a Lava Jato, para que as investigações não ameacem sua liberdade. Em segundo lugar, aprofundar o ajuste fiscal e as medidas antitrabalhistas: se o governo Dilma foi muito ruim nesse sentido, o governo golpista do PMDB-PSDB-DEM, p — 20
***
previna os atos de corrupção e proteja o dinheiro público da roubalheira geral, que não foi inventada pelo PT, como os demago-
O que nós faremos será enfrentar essa agenda no parlamento, nas
gos e hipócritas gostam de afirmar, e não se limita apenas a ele, ao
ruas e nas redes, ainda mais forte, porque será a agenda de um go-
contrário (PSDB, DEM e PMDB são comprovadamente os partidos
verno ilegítimo, nascido de um golpe contra a democracia. Não vai
mais corruptos do Brasil!). Mas só isso não basta.
ser fácil, mas não vamos nos calar e estaremos unidos com os movi-
E o Estado deve assumir um compromisso concreto na de-
mentos sociais para defender os direitos humanos de todos e todas.
fesa dos direitos humanos de todos e todas, da igualdade e das liberdades individuais, acabando com todas as formas de discriminação e opressão. É um resumo muito breve e simples do que
também de uma reforma administrativa e de uma legislação que
eu entendo ser um programa para o Brasil do futuro.
"comemoração da eleição indireta de tancredo dando fim à ditadura militar" – foto: célio azevedo - agência senado
Uma reforma política seria o primeiro passo para reconstruir a institucionalidade, democratizando a democracia. Precisamos
TREMA!_golpe
p — 21
pergunta
TREMA!3/4
"Para mim, a cena do golpe foi quando várias mulheres levaram flores para Dilma, logo depois que saiu a votação da Câmara dos Deputados (do impeachment). Elas foram ao Palácio do Planalto e Dilma desceu a rampa para abraçá-las. Isso, pra mim, foi muito forte. Eu conheço, inclusive, algumas mulheres que se prenderam ao gradeado do palácio como ato de resistência, para não deixar que o golpe acontecesse"
Carol Almeida j o r n a l i s ta
p — 22
TREMA!_golpe
p — 23
apontamentos da plataforma
VAI ter golpe, vai ter lucha PEDRO VILELA vilelaproducao@gmail.com
M
arcado pelo prevalecimento das grandes propriedades
ses que se destacaram na oposição dos regimes estabelecidos
de terra e pela ausência de liberdades democráticas, o
durante a década de 1910: Emiliano Zapata e Francisco “Pancho
povo mexicano esteve inserido, entre os anos de 1876
Villa”. Estes se opuseram primeiro ao governo de Madero, que
e 1911, em um dos mais longos períodos ditatoriais de sua
assumiu após a renúncia de Porfírio; segundo, ao governo de
história. O regime estabelecido por Porfírio Díaz foi marcado
Victoriano Huerta; e, por último, ao de Venustiano Carranza.
pela valorização da entrada do capital estrangeiro com o ob-
Do outro lado, encontramos a figura central do General
jetivo de exploração dos recursos minerais e vegetais, tendo
Álvaro Obregón, um dos maiores perseguidores das forças re-
sua classe latifundiária assumido para si as ideias da burguesia
volucionárias de Villa e Zapata, tendo, após anos de confrontos,
norte-americana e europeia.
derrotado os camponeses na Batalha de Celaya – considerada
“Tierra y Libertad” tornou-se o lema da Revolução Mexicana junto à sua luta emblemática pela revalorização da cultura indígena e pela reforma agrária. Tinha à frente dois camponep — 24
o maior confronto militar na história da América Latina até a guerra das Malvinas, 1982. Poucos imaginariam que um mero soldado que esteve
durante mais de uma década sob comando de
bre mexicana, como do imaginário cultural do
Obregón seria o responsável, anos depois, por
país: a máscara de luta livre. Sabe-se que, nos confrontos, muitas ve-
mudar, para sempre, o mundo do entretenimento no México: Dom Salvador Lutteroth.
zes é posta em jogo a máscara ou a cabelei-
Após a dissolução dos conflitos revolucio-
ra dos lutadores. Quem perde é submetido
nários e de tentativas frustradas de sobre-
a deboche público, ficando ao descoberto
vivência, Lutteroth decidiu colocar em prá-
sua verdadeira identidade. Perde-se, então,
tica um antigo sonho: implementar a lucha
o ar de mistério e anonimato que muitas
livre no México. Aproveitando que nos Esta-
vezes conservaram durante um longo tempo. Os que perdem a cabeleira também são
dos Unidos alguns lutadores e articuladores
objeto de escárnio por parte de seu adversário
mexicanos diziam estarem sendo boicotados,
vencedor, além do público, que transforma seus
ele cria a EMLL (Empresa Mexicana de Lucha Livre), tendo na noite do dia 21 de setembro de
[1]
problemas em gargalhadas. A história mostra que, durante mais de três dé-
1933 realizado a primeira luta oficial entre o campeão
cadas, estes lutadores tornaram-se os maiores astros do
mundial do peso médio ligeiro, Yaqui Joe, contra o califor-
cinema mexicano, tendo sido utilizados como personagens
niano Bobby Sampson, ex-campeão norte-americano. No mesmo ano, com a ajuda do professor Gonzalo Aven-
para diferentes filmes. A primeira obra, intitulada “La bestia
daño, funda a Escola de Luta Livre, dando origem à formação
magnífica” (“A besta magnífica”, tradução livre) e filmada por
de uma série de profissionais que integraram o imaginário do
Chano Urueta, traz um melodrama sobre as condições em que vivem os lutadores. O pesquisador Juan Villoro, em seu
povo mexicano por décadas, tendo a figura de El Santo
ensaio “Haz el bien sin mirar a la rubia”, afirma que
como um dos lutadores mais celebrados da his-
o êxito destes filmes esteve ligado com a du-
tória, marcado por um espírito de selvageria e
pla condição dos heróis: podiam ser vistos na
excesso de rudez em suas apresentações.
Arena México e no espaço irreal do cinema.
Sendo considerado por muitos como um espetáculo simplesmente violento, com
Poucas vezes a cultura popular teve repre-
resultados arranjados previamente, obser-
sentantes tão próximos. A mesma pessoa
va-se que, ao analisarmos com pouco mais
que te dava autógrafo nas lutas durante a
de atenção a Escola de Luta Livre, podemos
semana enfrentava desafios extraterres-
perceber características que individualizam
tres nos filmes dos domingos. O “cinema
o esporte, fazendo-a comungar com o uni-
de lutadores” teve seu auge nos anos 1960
verso do entretenimento e navegar por prin-
e 1970, período no qual foi possível assistir a figuras como El Santo [1], Blue Demon [2] e
cípios da teatralidade e da espetacularidade.
Mil Máscaras [3].
O ponto inicial a ser destacado é a busca pela construção de uma “personalidade” que indi-
[2]
vidualiza os lutadores e os relacionam com o público.
A LUTA HOJE
Assim, a vestimenta torna-se importante objeto identitário dos performers. Data de março de 1934, por exemplo, a primeira vez em que apareceu, em sua programação, um lutador a quem
Nesta última década, vemos importantes mudanças na estrutura des-
não se ia ver o rosto. Don Chon, redator do periódico La Afi-
te esporte, fruto da profunda crise econômica que o país vem vivendo
ción, realizou a resenha correspondente em 2 de março de 1934:
nos últimos anos. A primeira diz respeito à transição de um estilo de luta intitulado de “velha escola” para um mais moderno, ca-
“Para a programação do próximo domingo na Arena
racterizado por evoluções aéreas, com forte presença de
México, foi feito um evento singular de lucha libre,
acrobacias. Com apresentações menos “violentas”, o
no qual se enfrentou David Barragán, o Lutador
esporte vem adquirindo importante espaço na gra-
Olímpico e um lutador mascarado, que como
de de programação das televisões mexicanas, o
atua na cidade de Nova York, se apresentará
que alimenta ainda mais sua popularidade.
coberto por um capôs, pois deseja guardar
Outra mudança diz respeito às questões
incógnita caso seja vencido”. A partir da forte relação com a cul-
sociais que vinham sendo levantadas. Dentro
tura asteca, marcada pela utilização de
do contexto de um esporte predominante-
máscaras, em comunhão com a enorme
mente machista, percebemos uma atual dis-
visão de Don Salvador Lutteroth Gonzá-
cussão em torno de gênero nesta ação. Em
lez, que valorou grande expectativa ge-
primeira instância, percebe-se um aumento
rada pelo lutador, a adaptação de perso-
de mulheres lutadoras, como se objetivassem
nagens incógnitos foi retomada em outros combates. Assim, a partir desse momento, criase um dos maiores referenciais não só da lucha liTREMA!_golpe
referendar um discurso de que luta não é algo só [3]
para homens. Em segunda instância, abre-se espaço para além das características usuais que os performers p — 25
apontamentos da plataforma sempre guardam, a partir de duas grandes tendências que se enfrentam: os bons contra os maus (técnicos contra rudes), lançando luz para outra “nomenclatura” surgida desde os anos 1940, mas que só atualmente vem sendo ampliada, os lutadores “exóticos”. Estes se configuram pelo uso de vestimentas que ultrapassam a utilização das máscaras, investindo em plumas, enfeites no cabelo, roupas colantes e coloridas, além de lutarem maquiados, manifestando uma espécie de representação dramática da feminilidade mexicana e uma crítica ao machismo dentro de sua sociedade. O maior nome da atualidade é Cassandro, com 27 anos de carreira e cassandro, el exotico – foto: epa/ian langsdon
que se autodenomina o “Liberace da luta livre”. Ao lado de nomes como Pimpinela Escarlate e Mayflower, estas figuras assumem um papel de destaque na reconfiguração do imaginário imposto pelos heróis/lutadores. A antropóloga Heather Levi, autora do livro "O mundo da luta livre: Segredos, revelações e identidade nacional mexicana", define que os “exóticos” enviam uma mensagem forte à sociedade. “A ideia de que este homem extravagante e afeminado pode dominar um heterossexual revoluciona os termos do que é ser gay. E do que significa ser homem e masculino.” Difícil definir se esta abertura de discurso vem sendo regida pela força do mercado e a necessidade de se atrair um público maior, ou se existe real interesse
scarlet pimpernel – foto: epa/ian langsdon
por discussões de pertinência atual. O que está além é percebermos que a revolução não concretizada no início do século XX – na qual forças conservadoras continuaram a controlar o país, seja economicamente, seja em seu Zeitgeist – agora pode estar sendo encaminhada para um outro viés, dentro de um esporte tido como paixão para milhões de mexicanos. Ainda que a reforma agrária esteja longe de ser resolvida nesse país, a sociedade mexicana, marcada pelo machismo, misoginia e extremo catolicismo, e cuja grande parte condena a homossexualidade, se depara com Cassandro. E ele nos avisa: “Vai ter Luta!” E o que hoje pode ser lido como exótico, talvez possa em breve assumir para si uma nova nomenclatura.
princesa sugehit – foto: @carlospress
p — 26
TREMA!_golpe
p — 27
ARTIGO
o estado da
ARTE
ocupa minc rj | #ocuparock com stereophant, nove zero nove, canto cego e setor bronx — foto: fernando valle
p — 28
LEONARDO LESSA ileonardolessa@gmail.com
N
GOLPE
o dia em que inicio a escrita deste texto, a primeira ocu-
de um
pação realizada em um equipamento do Ministério da
Brasil, o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff ger-
Cultura do Brasil completa um mês. Essa foi uma resposta
ou uma reação em cadeia que, em menos de uma semana, fez
imediata de alguns segmentos das Artes e da Cultura ao gov-
crescer o movimento das ocupações em equipamentos cul-
erno interino de Michel Temer e ao conjunto de medidas que
turais do governo federal.
jurídico, midiático e parlamentar em curso no
o inauguraram em 12 de maio de 2016, dentre elas, a extinção
A Frente Nacional de Teatro, organização horizontal que
sumária do Ministério da Cultura (MinC). Como consequência
reúne artistas teatrais de todo o país, representou uma das
TREMA!_golpe
p — 29
ARTIGO
ocupa minc sc | ocupação realizada na sede de floripa — foto: eduardo valente
principais forças dessa articulação nacional. Simbolicamente,
abril de 2016, no Rio de Janeiro, reuniu no palco da Fundição
no dia 26 de maio de 2016, data em que deu posse ao seu mi-
Progresso parte dessa diversidade, colocando a liderança indí-
nistro da Cultura, já fruto de um recuo frente à pressão para a
gena maranhense Sônia Guajajara e o rapper Renegado, nascido
manutenção do MinC, o governo ilegítimo e provisório também
na periferia de Belo Horizonte, ao lado dos cantores Chico Buar-
constatou que as ocupações haviam chegado às 27 capitais e a
que, Beth Carvalho, do ator Wagner Moura, dentre outros. Mes-
algumas cidades do interior brasileiro.
mo em se tratando de um segmento tão multifacetado e, por
Essa mobilização não tem precedentes na história da Cul-
muitas vezes dividido, no contexto dessa mobilização não hou-
tura brasileira. Nunca antes, de forma tão ágil e, principalmente,
ve protagonismo centralizado em uma ou outra área da Cultura.
capilarizada, o segmento cultural pôs em marcha uma ação de
A despeito de algumas vozes dissonantes, o segmento cultu-
resistência a um governo, coordenada em todo o território na-
ral segue sendo umas das importantes forças de resistência ao
cional e que não arrefeceu em função da desistência do man-
GOLPE , pois “o que está em jogo é precisamente a dissociação
datário interino de extinguir o Ministério da Cultura. E isso cabe
entre cultura e cidadania, que é, no limite, o maior legado de Gil
destacar reiteradas vezes, para que a “grande” mídia brasileira,
e Juca”, como afirma Francisco Bosco, presidente da Funarte na
cega e surda aos cenários que vão além do Rio de Janeiro e de
segunda gestão de Juca Ferreira, em artigo publicado no jornal
São Paulo, não invisibilize a maior potência de toda essa movi-
Folha de S.Paulo, em 12 de junho de 2016.
mentação: seu caráter verdadeiramente nacional.
O caráter participativo e mobilizador dos processos de
Ainda que tenha tomado um vulto surpreendente, a articu-
construção das políticas culturais inauguradas no Governo Lula
lação dos trabalhadores da Cultura em defesa da democracia não
são também um importante legado desse período e, inegavel-
teve início somente após a consumação do GOLPE , com o afasta-
mente, tiveram efeito catalisador em toda essa reação. O extre-
mento de Dilma. Ao contrário, desde que foi deflagrado o proces-
mo autoritarismo do ato de extinção do MinC através de medida
so de impedimento da presidenta, sucessivos atos culturais foram
provisória, editada nas primeiras horas do governo ilegítimo, re-
realizados pelo país. Mesmo aqueles de natureza mais ampla, como
velou não só sua total desconsideração pela área, mas também
os organizados pelas frentes de esquerda: Povo sem Medo e Brasil
seu modus operandi diametralmente oposto ao que vinha sendo
Popular, tiveram, na sua dianteira, artistas e agentes culturais.
experienciado nos últimos anos. Fato é que a pressão fez com
Se restava dúvida quanto à perspectiva diversa e inclusiva
que essa temeridade fosse revista. Entretanto, mesmo que res-
das políticas culturais implementadas pelos ministros Gilberto
taurado o lócus da Cultura no arcabouço institucional do Governo
Gil e Juca Ferreira, ela se dissipou no levante das inúmeras vo-
Federal, processos vitais para a estruturação das políticas públi-
zes que se insurgiram em defesa de sua continuidade e contra
cas nesse campo jamais poderão ser restaurados sem o retorno
um projeto político que tenta se impor à população sem a legi-
da normalidade democrática no país; trocando em miúdos: sem
timidade do voto. O ato Cultura pela Democracia, no dia 11 de
a queda do Governo Michel Temer.
p — 30
ocupa minc rj | ocupação realizada na sede do rio de janeiro — foto: mídia ninja
O ESTADO e a arte
ainda necessário que haja um efetivo reconhecimento por parte daqueles que estão na centralidade do poder em âmbito federal,
O paradoxo entre a intensa participação dos artistas na defesa da
do grande ativo social, econômico e cidadão que representam as
continuidade do mandato de Dilma Rousseff e o reconhecimento
artes brasileiras. A postura engajada dos artistas e agentes cultu-
da inexistência de um conjunto estruturante de políticas públicas
rais, ao se manifestarem com veemência em defesa do Estado de-
federais para as artes brasileiras não pode deixar de ser encarado
mocrático, ainda não encontra eco na mesma proporção em suas
na disputa democrática por políticas de Estado. Ainda que as pers-
políticas e, principalmente, em suas estruturas institucionais.
pectivas não sejam animadoras, uma vez que o futuro do governo
Para tanto, é também premente que se faça um profundo
eleito é incerto e pode ser selado com a deposição definitiva da pre-
“raio x” da instituição que hoje representa as artes no governo
sidenta nos próximos meses, faz-se necessário que toda essa mo-
federal: a Fundação Nacional de Artes – Funarte. Superficialmen-
bilização se reverta também no aprofundamento de pautas claras
te rotulada como desatualizada e ineficaz para responder às suas
para a transformação urgente desse contexto que, mais uma vez, só
atribuições dentro do escopo de ações do MinC, seria demagógico
poderá prosperar com a retomada do ambiente democrático.
empreender quaisquer esforços para sua transformação sem, ao
A construção da Política Nacional das Artes (PNA) foi um dos
mínimo, trazer a público as condições de precariedade a que estão
processos centrais de formulação de políticas estruturantes que es-
submetidos seu corpo de servidores e cargos comissionados para
tiveram em curso na segunda gestão de Juca Ferreira. Até a abrupta
darem conta dessa tarefa. A oportunidade de dirigir por 14 meses
interrupção do mandato de Dilma, a PNA foi tomada como ponto de
o Centro de Artes Cênicas dessa Fundação na gestão de Francis-
partida para o início de um novo ciclo de políticas a serem desen-
co Bosco e, paralelamente, integrar o Comitê Executivo da Política
volvidas pelo MinC e também representou uma tentativa de repa-
Nacional das Artes, foi também espaço para vivenciar na prática
ração a uma das maiores lacunas deixadas pelas gestões Gil e Juca.
essa contradição:
Nas palavras do próprio ministro, em discurso escrito para o lançamento da PNA em 9 de junho de 2015: “Estamos aqui em nome do
Como prospectar e implementar políticas duradouras e
diálogo e da participação, convencidos de que ainda carecemos de
estruturantes para o circo, a dança e o teatro brasilei-
uma política vigorosa para as artes no Brasil”.
ros, tendo como correlato institucional um Centro que
Além de investir em um conjunto de formulações que, no
“espreme” três linguagens completamente autônomas
caso da Política Nacional das Artes não puderam se concluir , é
no “guarda chuva” das artes cênicas, com uma mesma e
1
insuficiente estrutura administrativa e, mais ainda, sub1 O relatório das atividades no período de março de 2015 a maio de 2016 do processo de construção da Política Nacional das Artes (PNA) está disponível no link http://culturadigital.br/pna/destaque/politica-nacional-das-artesapresenta-relatorio-de-atividades/
TREMA!_golpe
metendo seus quadros a baixíssimos salários? Como dar um caráter verdadeiramente nacional às pop — 31
ARTIGO líticas desenvolvidas, se o rebaixamento dos cargos da
mesmas áreas, contemplando somente 342, com o orçamento
Funarte, inclusive em relação ao próprio MinC, impede
direto de R$ 26.500.000,00, recursos advindos, em sua maioria,
que gestores de outros estados do país mantenham-se
do Fundo Nacional de Cultura 4 . A disparidade entre o orçamen-
dignamente no Rio de Janeiro?
to investido via renúncia fiscal e aquele destinado ao fomento direto, em desacordo com a demanda apresentada pela socie-
Essas duas questões pontuais, determinantes no dia a dia ime-
dade – praticamente igual para os dois mecanismos –, também
diato da gestão do Centro de Artes Cênicas, revelam tão so-
traduz o desprestígio a que se submetem as políticas formu-
mente a ponta de um iceberg mergulhado em águas turvas.
ladas pela Funarte. A equiparação orçamentária entre as duas
Dados alarmantes fornecidos pelo Fórum da Cultura, que con-
modalidades de fomento: renúncia fiscal e fundo nacional de
grega as diversas associações de servidores do Sistema MinC,
cultura, previsto no projeto de lei 6.722/2010 Procultura, que
expõem o quão precarizada está essa categoria: em dezembro
tramita a passos lentos no Senado, pode ser também decisiva
de 2014, quase 50% dos servidores tinham mais de 50 anos de
para a reversão desse quadro. A aprovação do Procultura pode
idade, 70% dos concursados pediram exoneração em vista da
corrigir não somente as distorções da Rouanet, já exaustiva-
baixa remuneração e 50% do quadro funcional do ministério
mente debatidas ao longo da última década, mas também dar à
era composto por funcionários terceirizados e de cargos comis-
Funarte capacidade orçamentária de responder à altura a gran-
sionados. Dar visibilidade à luta travada por décadas pelos Ser-
de demanda apresentada pela sociedade por seus mecanismos
vidores da Cultura e, mais ainda, evocar novas frentes de mo-
de fomento direto.
bilização da sociedade para somar esforços na transformação dessa realidade é estratégico nesse momento.
A fragilidade institucional das políticas para as artes no interior do governo federal também traz sérias consequências
Na mesma medida, é também importante trazer à tona
para a realidade profissional dos artistas brasileiros. Com sua
como tal contexto impacta negativamente no cumprimento de
baixa capacidade de formulação e articulação com outros entes
tarefas básicas da Funarte em relação à gestão e execução das
públicos, a Funarte tem sido historicamente incapaz de fazer
políticas públicas de fomento às artes do MinC. Exemplo disso
avançar pautas legislativas estruturantes para os segmentos. O
é o total distanciamento das áreas finalísticas da instituição,
debate sobre a atualização de marcos legais, um dos eixos sob
ou seja, dos centros responsáveis pelas linguagens artísticas,
os quais se debruçaria a Política Nacional das Artes em sua fase
no acompanhamento dos projetos inscritos na Lei Rouanet.
de implementação, precisa ser encampado com veemência
Os quadros técnicos diretamente ligados a essas áreas atual-
pela instituição. Só assim será possível garantir, de forma mais
mente não possuem qualquer atribuição relacionada à trami-
sistemática e dinâmica, a aprovação de leis específicas para a
tação desses processos junto ao Pronac – setor ligado à Direção
regulação das artes brasileiras em seus mais diversos aspectos,
Executiva –, o que, sob nosso ponto de vista, aparta o corpo
especialmente nos campos trabalhista e previdenciário.
formulador da instituição do mecanismo. Se considerarmos os
A batalha em defesa da democracia e contra o GOLPE tem
dados de 2015 , em que o Pronac da Funarte analisou 73% do
servido também como plataforma para o empoderamento
total de projetos apresentados, é compreensível que, sem uma
de minorias que veem direitos conquistados em risco e, mais
estrutura interna robusta e qualificada, tamanho contingente
ainda, só reconhecem a possibilidade de mais avanços com a
não possa ser absorvido.
restauração da ordem democrática no Brasil. Os trabalhadores
2
Ainda sobre a Lei Rouanet, considerada por muitos agen-
da Arte e da Cultura já demonstraram que estão ombreados a
tes culturais o principal mecanismo de financiamento à Cultura
esses segmentos. Por isso, o aprofundamento do debate sobre
do país, cabe também relativizar sua importância se considera-
as relações do Estado com a arte, suas políticas e instituições,
da a demanda de artistas e produtores pelo fomento direto do
é também forma de arregimentar mais forças de mobilização e
Estado, ou seja, através de editais com seleção pública, sem a
visibilidade para que não haja retrocessos e, vencido o combate
mediação da iniciativa privada, como acontece através da cap-
contra os inimigos da democracia, sigamos articulados em de-
tação via renúncia fiscal. No contexto atual, os prêmios reali-
fesa de mais direitos!
zados pela Funarte são os únicos mecanismos federais dessa natureza destinados ao segmento das artes. Entretanto e contraditoriamente, os prêmios são demandados pelos realizadores em quantidade de projetos praticamente igual à renúncia fiscal, porém com orçamentos infinitamente inferiores. Em 2015 3 , foram apresentados à Rouanet 4.430 projetos nas áreas de artes visuais, circo, dança, música e teatro, dos
L u ta q u e se g u e .
quais 2.177 obtiveram captação com a iniciativa privada, perfazendo o montante de R$ 890.400.000,00. No mesmo ano, os prêmios da Funarte receberam 4.494 inscrições de projetos das
2 Disponíveis no http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet
4 Dados levantados pelo Setor de Políticas de Fomento do Centro de Artes
3 Idem.
Cênicas da Funarte em junho de 2016.
p — 32
TREMA!_golpe
p — 33
ocupa minc rj | ocupação realizada na sede do rio de janeiro — foto: mídia ninja
p — 34
pergunta
TREMA!4/4 "A cena do Golpe foi o contragolpe que os artistas deram ao ocupar os prédios do MinC em todo Brasil"
Adriano Abreu v i a Fa c e b o o k @ t r e m a p l ata f o r m a
TREMA!_golpe
p — 35
p — 36
TREMA!_golpe
p — 37
NOTAS DE PROCEDIMENTO
“Nem mesmo I nez V iana inezviana@yahoo.com.br
D
ois anos depois, em 2002, (re)li o romance e tive a sensação de que uma parte triste e recente de nossa história, que se passava como pano de fundo da narrativa, ainda se mantinha obscura e sem nenhum interesse que se voltasse à tona, se divulgasse, como um tabu. Con-
tinuava lá, presa, nos porões da ditadura. Então, tive a ideia. A primeira vez em que tomei contato com o livro foi através da escuta. Tinha passado por uma operação de descolamento de retina e precisei ficar 25 dias de bruços, com a cabeça para baixo. Era impressionante ouvir aquele relato, praticamente o dia todo, sobre como a falta de informação ou a alienação de uma pessoa pode transformar, de forma irreversível, a sua vida. Isso se deu em 2000. E eu também, naquele momento, passava por uma transformação muito grande em minha vida e tinha que me adaptar a um novo jeito de enxergar. Mesmo a ideia tendo me visitado várias vezes, só 10 anos depois, junto à Cia OmondÉ, tive a oportunidade de retomar aquela história, contida num livro de 754 páginas, e que havia suscitado em mim inúmeras perguntas, sobretudo, como o Brasil conseguiu ficar sob uma ditadura militar durante 23 anos. Como tudo havia começado? ***
Outubro de 2012. Cheguei à sua casa pontualmente às 21h. Um vinho tinto numa mão e na outra o livro. O seu livro. O que ele tinha escrito e eu resolvera que ia adaptar para o teatro. Enfim, voltava o meu entusiasmo de falar sobre os anos de chumbo. E depois descobri, o dele também.
p — 38
todo o oceano” fragmentos da encenação
Pelas 22h, entramos no assunto. Ele me contou que quando tinha 16 anos, foi preso, por alguns dias (ainda não havia o hábito da tortura), e reconheceu um médico que entrara na cela para cuidar de um colega ferido que, há tempos atrás, tirara de seu rosto um quisto sebáceo. Ele ficou tão constrangido, que se escondeu ao fundo da cela, onde uma sombra cobria o seu rosto. Mal podia imaginar que anos mais tarde, aquele médico o inspiraria a escrever o fabuloso romance “Nem mesmo todo o oceano”... ***
“Como você pensa em adaptar esse romance para o teatro?” , perguntou-me, de repente, Alcione Araújo. Os romances-em-cena criados pelo diretor Aderbal Freire jogavam luz sobre uma nova possibilidade de se trazer uma história em sua forma literária para o teatro. O ator narrava e vivia, ao mesmo tempo, um personagem; até mesmo um cenário. O código era estabelecido de imediato com o público, e isso trazia uma liberdade e uma cumplicidade para ambos os lados, pouco vistas na cena. A barreira da dramaturgia havia sido quebrada para sempre, e tudo poderia ser montado. Eu queria essa referência, esse código, do ator narrar e ser, mas ia além. Os atores não interpretariam apenas um personagem, mas passariam por todos, principalmente, pelo personagem principal, o médico legista, que acabava se tornando um torturador por usar sua ciência não para salvar, mas
TREMA!_golpe
p — 39
NOTAS DE PROCEDIMENTO
"nem mesmo todo oceano" — foto: arquivo
para estender a dor e o sofrimento do outro. O curioso é que ele
Ele mencionou que, em 2014 seriam relembrados os 50 anos da dita-
não tinha nome.
dura (do Golpe de 1964), mas que seria mais interessante estrearmos em agosto de 2013. Achava um pouco difícil termos tempo de agilizar
“Queria que todos os seis atores tivessem a chance, em al-
a produção e fazer a adaptação em seis meses, mas não disse nada.
gum momento, de passar pela trajetória do médico, para
Marcamos um terceiro encontro, para quando ele voltasse de
não haver pré-julgamento”, disse eu. “Faça como quiser,
umas curtas férias, mas ele nunca se deu. Alcione faleceu no dia 15 de
só quero que seja uma tentativa de se fazer uma obra de
novembro de 2012, cinco dias antes do nosso encontro marcado. Se o
arte”, disse o Alcione.
destino colaborou, não sei, mas conseguimos estrear o espetáculo no dia 2 de agosto de 2013, em meio às manifestações contra o aumento da
Achei aquilo tão lindo! Tão pertinente... Eu não iria buscar o acer-
passagem de ônibus em São Paulo – que se estenderam para todo o país.
to, mas o risco. Iria contar uma história de forma original, sem ne-
Há três anos estamos rodando com esta peça e ela parece ser cada
nhum outro recurso que não fossem os atores e o texto. Não havia
vez mais atual, sobretudo agora, onde fomos interceptados por um go-
cenário, embora tínhamos duas cadeiras de ferro, e o figurino era
verno golpista, ilegítimo, que se apoia na corrupção e no fascismo.
um só para cada e a luz era o que tínhamos de mais sofisticado.
"Nem mesmo todo o oceano" fala de alienação. É uma ficção
Enquanto o público está entrando, os seis atores estão em
que conta a trajetória de um jovem mineiro que se torna um médico
cena, jogando uma bola de meia com as mãos. E ficam aí quase o
legista na época da ditadura. Por sua incapacidade de perceber o que
tempo todo da peça, passando a “bola” uns para os outros. Foi-se
acontecia ao redor do mundo, torna-se um torturador, sem nunca ter
criando um organismo para um estar na cena do outro, e fazer o
pensado ou entendido de política.
personagem que o outro estava fazendo. O código estabelecido com o público, desde o começo, é crucial para que ele acompanhe
“A maior parte da população sempre esteve do lado ex-
a história e não se perca dos personagens.
cluído da sociedade, afastada pelo apartheid econômico,
Também optamos por não caracterizar personagens femi-
social e cultural, da mesma forma que os negros assistiam
ninos ou mais velhos, por exemplo. Se eu digo que meu nome é
às missas confinados numa área cercada da igreja. O que
Domitila, já fica estabelecido, sem precisar ter um trejeito exterior.
poderia mudar esse quadro seriam políticas públicas me-
O estado está sempre à frente do gênero.
nos perversas que permitissem escolarizar e formar cidadãos e profissionais, além de uma distribuição de renda
***
menos perversa. Se esse avanço não se efetivar, o país terá duas culturas conflitantes numa mesma geografia, se já
Tivemos um segundo encontro , onde expus um roteiro de lugares
não as tem. E os enfrentamentos, via violência urbana, vão
contidos no romance e uma ordem não cronológica das situações.
se ampliar” – Alcione Araújo.
p — 40
"nem mesmo todo oceano" — foto: juliana hilal
TREMA!_golpe
p — 41
crítica
"nem mesmo todo oceano" — foto: juliana hilal
Um lembrete doloroso da nossa incapacidade de olhar para tras
p — 42
Márcio Bastos maarciobastos@gmail.com
B
rasil, 2016. O clima de ódio que vinha se intensificando desde as eleições de 2014, quando Dilma Rousseff foi
reeleita presidenta do país com 54 milhões de votos, vai ganhando contornos mais claros e sombrios. A divisão direita/ esquerda volta a ficar clara, violenta. Coxinhas, mortadelas. Eu. O outro. A coisificação daquele que discorda da sua linha de pensamento e as consequências que culminaram não no debate, mas na agressão. Uma agressão por vezes física, mas primordialmente ideológica intensificada pela imprensa que muito lembra outro momento já vivido pelo país, como tão bem mostra o espetáculo “Nem mesmo todo o oceano”, da Cia OmondÉ (RJ). Se alguém dissesse, há não muito tempo, que o Brasil viveria um novo golpe de Estado em 2016, muito provavelmente se daria uma risada, se diria que nossas instituições podem até ser corruptas, mas que isso seria improvável, dada a experiência que vivemos menos de meio século antes, dado nosso acesso à informação. Não, não aconteceria. Aconteceu. Como isso foi possível? Que ambiente políticosocial permitiu a abertura de um processo de impeachment contra uma presidenta democraticamente eleita?
TREMA!_golpe
p — 43
"nem mesmo todo oceano" — foto: silvana marques
Quando foi apresentado no Recife, no final de março/início de
nar Domitila. Ia. Mas não se sentia parte daquilo. Seus objetivos
abril deste ano, o espetáculo já sentenciava o que estava por vir.
continuavam o mesmo: se formar, conseguir um emprego, cons-
É impossível ver o que se passa em cena e não fazer uma conexão
tituir família. Papai, mamãe, filhinhos, amém. Nosso protagonista
com o tempo presente. O ontem que é hoje. A encenação na Cai-
é um “homem de bem”, não quer o mal do próximo, não busca
xa Cultural da capital pernambucana, em uma coincidência quase
interferir na vida alheia e quer apenas desfrutar daquilo que as ins-
irônica, aconteceu no dia 31 de março, 52º aniversário do Golpe.
tituições lhe venderam, desde cedo, como ideais. Casa, carro novo
Adaptação do livro homônimo escrito por Alcione Araújo, a
na garagem, amém. É potente e desconcertante observar como as
peça faz um retrato multifacetado e longe de verdades pré-con-
situações se repetem e o texto de Alcione Araújo, brilhantemente
cebidas sobre o período pré-Golpe de 1964 e os desdobramentos
adaptado por Inez Viana, que também dirige o espetáculo, enfati-
da instauração da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985), que aju-
za essas questões sem seguir pelo caminho óbvio.
da a esclarecer as turbulências pelas quais passamos atualmente.
O romance do escritor mineiro, com mais de 700 páginas, é,
A partir das experiências de um jovem do interior de Minas Gerais,
sem dúvida, um material denso e transpô-lo para os palcos po-
de origem pobre, cuja família não tinha grandes perspectivas para
deria causar entraves, o que não é o caso. A dramaturgia é fluida,
além do destino imposto pela (rígida) estratificação social, a plateia
tem fôlego. O revezamento de personagens é também um ganho
acompanha os efeitos perturbadores dos meandros políticos na
para a encenação. Aliás, a escolha de Inez Viana em compartilhar o
vida dos cidadãos comuns, muitas vezes alheios aos jogos do poder.
papel do protagonista entre os seis atores do elenco reforça essa
É uma narrativa que coloca no seu centro um personagem sintomá-
sensação de identificação com aquele indivíduo.
tico, justamente pela empatia que gera com a plateia. Sem nome, o personagem poderia ser eu, você ou a pessoa da cadeira ao lado.
Narrado a partir do ponto de vista d’Ele, o espetáculo inicia logo com uma indagação/confissão: “para me entender, devo par-
Ele, o nosso protagonista, chega ao Rio de Janeiro com o so-
tir do homem que eu supunha que fosse – alguém incapaz de fa-
nho de se formar em medicina, se livrar do estigma da “pobreza
zer o que fiz –, ou partir do homem que fez o que eu fiz?”, indaga.
que ninguém perdoa ou esquece porque está escrita na cara”. É o
Sabemos, de início, que aquele que nos relata a história fez algo
início dos anos 1960 e o país está em ebulição. No entanto, Ele tem
terrível e acompanhar esse descender moral é uma tarefa quase
apenas um objetivo: se formar, conseguir um emprego, constituir
dolorosa. Estamos todos suscetíveis ao mesmo erro? O que faría-
família. Papai, mamãe, filhinhos, amém. Política é um assunto dos
mos naquela situação? Impossível não se fazer esses questiona-
outros, uma questão da qual ele não participa. Como poderia? Ele
mentos, ainda mais a partir do momento que vivenciamos.
não “entendia” do assunto. Ele não se vê como ser político. Não,
Formado, rejeitado por Domitila (que se apaixona por um
quem faz isso são os outros. Quem vive política são alguns colegas
professor universitário), Ele segue a vida, casa com uma filha tam-
de faculdade (como eles conseguem, em meio a tanta coisa para
bém de militar e pretende seguir sua vida como planejado, afinal
estudar, ir a um comício?).
não há espaços para desvios, para abstrações. Os fatos vão se de-
O cenário político muda completamente: os militares estão
senrolando sem que ele tome partido ou se envolva. O presidente
no poder. O que significa isso? Sua amada, Domitila, filha de mili-
Castelo Branco baixa o Ato Institucional, acabando com os parti-
tar, tem umas ideias estranhas, ela se interessa por cinema nacio-
dos, com as eleições diretas para presidente, diz uma amiga. Ele
nal (inteligentes como “aqueles do Nordeste”), queria ver o show
não tem tempo para pensar sobre isso: precisa estudar. Andando
“Opinião”, com Nara Leão, o Zé Kéti e João do Vale. Coisa de inte-
na rua, se vê em meio a uma manifestação. “Gorilas! Golpistas”, gri-
lectual, pensava. Intelectuais são os outros. Ele era só uma pessoa
tam os jovens. Ele não pode estar ali: não entende a razão daquilo.
comum (o que é uma pessoa comum?). Mas não queria decepcio-
Seu sogro arranja-lhe um emprego e uma das etapas do seu pla-
p — 44
nejamento de vida estaria completa: médico militar. Logo, no en-
julgamento fácil, julgamos como indefensáveis.
tanto, Ele, que sempre quis se manter distante de toda e qualquer
Aliás, esse é um dos maiores trunfos do espetáculo: mostrar
implicação política, se viu no centro dela. Estava no quartel do
que em meio à polarização política existem, antes de tudo, pes-
Exército e sua missão tornou-se avaliar se os presos políticos le-
soas. Indivíduos atormentados por seus próprios demônios, sus-
vados para a tortura ainda estavam aptos a continuar as sessões.
cetíveis a erros, atos monstruosos e atos bondosos. Gente desnor-
Se deparando com o horror materializado, com aqueles jovens
teada em meio a jogos políticos e de poder sobre os quais acham
ensanguentados, muitos deles com sua idade, ele se vê numa en-
que não têm nenhuma influência (e no nosso sistema político,
cruzilhada. Os questionamentos já não podiam ser evitados. “São
nada representativo pouco têm, de fato); gente usada como mas-
subversivos”, “comunistas”. São o outro.
sa de manobra, pessoas postas uma contra as outras, desumani-
Ainda que atormentado pelo que vê diariamente, ele tenta
zando seu semelhante.
se convencer de que está do lado certo. Ora, como poderia estar
Importante que, ao final de alguma sessões, alguns sobre-
do lado errado? Ele conhece seu sogro, seus amigos militares, sabe
viventes da tortura cometida pelo Estado davam depoimentos
que não são pessoas ruins, querem o bem do país (mas como eles
sobre suas experiências, reforçando ainda mais a necessidade de
podiam permitir uma atrocidade dessas?). Ao silenciar (compac-
um espetáculo como “Nem mesmo todo o oceano”, um lembrete
tuar?) a tortura, ele se tornava tão cruel quanto aqueles que infli-
doloroso da nossa incapacidade de olhar no retrovisor e aprender
giam a dor? Ele não queria estar ali, mas estava. Ele não conseguia
com nossa história. Na conversa que presenciei, ficou uma imagem
ir embora. Emprego, família, filhinhos, amém. Lá, depara-se com
que dificilmente esquecerei: dois irmãos, militantes, um preso e o
Domitila, agora presa política. Ele tem domínio sobre o seu cor-
outro atormentado com a prisão iminente, que chegava em casa
po, sobre sua vida. Ele se depara com suas próprias contradições, o
sempre antes de anoitecer. Na residência, só falava baixo, com
algo que existe no seu interior.
medo de tudo e de todos. Manteve esses hábitos mesmo depois
Acompanhamos essas questões sem deixar de nos pergun-
da redemocratização. Poucos anos depois, suicidou-se.
tar: e se fosse eu? O clima de opressão domina a cena. A prisão é
Os Estados totalitários, a repressão, portanto, têm efeitos
não só física, como emocional. Mais uma vez, as soluções cênicas
que vão para além dos imediatos (que, por si só, são devastado-
da Cia. OmondÉ surpreendem por privilegiar a simplicidade e fo-
res). Eles marcam o imaginário coletivo de um povo com a ideia
car exclusivamente na narrativa. O palco nu, cujos únicos objetos
de violência, de repressão dos direitos em prol de seguridade eco-
cênicos são algumas cadeiras, é transformado apenas pelo exce-
nômica-social, ainda que os únicos assegurados sejam os mesmos
lente jogo de luzes (que funciona quase como um personagem),
de sempre: a elite conservadora. E diante de avanços sociais, esses
ganhando dimensões e possibilidades interpretativas ricas, que
ranços tendem a voltar à superfície, como 2016 tem nos ensinado.
funcionam como um lembrete da potência criativa (e transforma-
A peça é um exemplo da potência do teatro e de sua caracte-
dora) do teatro. Todos os recursos são utilizados para evidenciar a
rística indelével de refletir seu tempo, levando ao palco questões
riqueza da dramaturgia, da direção e das atuações.
necessárias, ainda que incômodas. Enquanto país, ainda temos
O excelente elenco formado por Leonardo Brício, Iano Salo-
noções muito incipientes do que é viver numa democracia, ainda
mão, Jefferson Schroeder, Junior Dantas, Luís Antonio Fortes e Zé
mais com nosso histórico de golpes, no passado e no presente.
Wendell domina a cena com uma energia visceral. Ao se reveza-
Obras como “Nem mesmo todo o oceano” são, portanto, essen-
rem em todos os papéis, conferem diferentes camadas a cada um
ciais para lembrarmos que o passado nunca está longe o suficiente
deles, em especial ao protagonista. Tratam o texto com respeito
a ponto de não ser repetido. Mais do que apagar incêndios, é pre-
e conseguem humanizar até aquele sujeito que, na tentação do
ciso evitar o fogo.
TREMA!_golpe
p — 45
EXPEDIENTE
TREMA! revista de teatro de grupo EDIÇÃO DO golpe ANO 2
#7
AGOSTO 2016
Uma edição bimestral da Trema! Plataforma de Teatro
COORDENAÇÃO TREMA! Plataforma de Teatro Mariana Rusu e Pedro Vilela
CONSELHO EDITORIAL Mariana Rusu, Olívia Mindêlo, Pedro Vilela e Thiago Liberdade
EDIÇÃO Olívia Mindêlo
CAPA E PROJETO GRÁFICO Thiago Liberdade
PROPONENTE DO PROJETO Mariana Rusu
COLABORADORES DA EDIÇÃO* Biagio Pecorelli, Carol Almeida, Inez Viana, João Paulo Rabelo, José Celso Martinez Corrêa, Leonardo Lessa, Márcio Bastos, Silvano Mello, Thiago Andrade e Txai Ferraz *As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
PLATAFORMA TREMA! tremarevista@gmail.com tremaplataforma@gmail.com facebook.com/tremaplataforma www.tremaplataforma.com.br +55 (81) 9 9203 0369 | (81) 9 9223 5988
Tiragem: 500 exemplares (por edição) Impresso pela Brascolor ISSN: 2446-886X
Edição do GOLPE | Nº #7 | Ano #2 | Recife, Agosto de 2016
Realização:
Incentivo:
A TREMA! Revista de Teatro de Grupo é uma publicação com incentivo do FUNCULTURA – Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco.
p — 46
TREMA!_golpe
p — 47
ISSN: 2446-886X
1. Ferida, incisão ou corte provocado por instrumento cortante. 2. Pancada com instrumento contundente. = CONTUSÃO 3. [Esporte] Movimento técnico de uma arte marcial, usado geralmente para derrubar, imobilizar ou atingir o adversário (ex.: golpe de judo). 4. Operação, geralmente armada, para tomar o poder político (ex.: golpe militar). 5. [Figurado] Desgraça ou adversidade; sucesso infausto. 6. Cópia, quantidade. 7. [Galicismo] Rasgo, .ato, lance, ímpeto, crise.
p — 48