TREMA! Revista - Edição do Negro [09]

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EDIÇÃO DO negro ANO 2 #9 MARÇO 2017

TREMA! revista de teatro




itorial # NE G RO L E I TU RA V I SUAL Criola


ed-

R E C I F E , M A R Ç O D E 2017

A necessidade de um movimento de resistência negro persisti-

desse feminismo negro também se façam possíveis, com bolsas de

rá, enquanto ainda houver injustiça social causada pelo racismo. A

financiamento e cessão de postos em universidades, por exemplo.

nona edição da TREMA! Revista, voltada para as visões de mundo

No artigo “O não-dito branco”, a professora de Prática de Ensi-

e os modos de existência de corpos negros em sociedades racis-

no de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coorde-

tas, chega às mãos de vocês, leitoras e leitores, em um momento

nadora do Grupo Intelectuais Negras, Giovana Xavier, problematiza

de mudança no que diz respeito à visão social mais ampla de como

justamente como mulheres negras, quando inseridas em circuitos

os negros e brancos interagem no País: já não acreditamos no tão

acadêmicos, são vistas por pessoas (principalmente mulheres)

falado mito da democracia racial brasileira.

brancas. “A interpretação de que nascemos para servir norteia as

Mas não só isso. O que as mulheres negras e os homens negros têm nos mostrado, há não muito tempo, é que a discrimina-

ações de boa parte da população branca no País, independentemente da classe que ocupam”, escreve.

ção e opressão sofridas por eles são, antes de tudo, epistêmicas. Ao

As complexidades do universo social, da vida e das visões de

contrário do que chegamos a pensar, o problema do racismo não se

mundo dos afro-descendentes no Brasil que se identificam como

resolveria apenas com políticas de “inclusão social”, mas também a

“povos de axé” ganham interpretações no artigo de Fernanda Júlia,

partir de uma abertura social para uma compreensão mais ampla

diretora do Núcleo Afro-Brasileiro de Teatro de Alagoinhas (NATA).

sobre o universo social, as vidas e as visões de mundo dos negros.

Ao relatar como se constituiu o processo criativo do espetáculo

Muito diferentes, aliás, daquelas tidas por indivíduos que se forma-

“Exu – A boca do universo”, a diretora também esmiúça o significa-

ram segundo um repertório eminentemente europeu e que cresce-

do do controvertido Exu na religião do candomblé. Quebrando as

ram usufruindo dos privilégios encarnados na pele branca.

inadequadas interpretações de inspiração católica de que um orixá

Como nos aponta a socióloga norte-americana Patricia Hill

é como um santo que cumpriu uma missão na Terra – criando uma

Collins no artigo “Sem garantias”, que abre esta edição, “mulheres

epistemologia própria, como interpretaria Patricia Hill -, Fernanda

negras e grupos marginalizados semelhantes eram os ‘fatos’ ou da-

Júlia nos conta que Exu é, na verdade, um elemento dinâmico, um

dos a serem manipulados por outras pessoas, usando moldes pre-

princípio que participa forçosamente de tudo. Sem ele, a vida não se

concebidos sobre os problemas sociais”. Moldes preconcebidos que

desenvolveria, porque é ele que faz tudo acontecer.

perpetuavam a própria opressão epistêmica.

As experiências de um homem negro, gay, candomblecista

Collins nos mostra que, na academia, o feminismo negro chega

e periférico são abordadas no solo autobiográfico “Luzir é negro!”,

para desmantelar as premissas a partir das quais as próprias mu-

cujo processo criativo é contado por Marconi Bisco, ator do Teatro

lheres negras eram analisadas, criando uma “teoria crítica” à “teo-

de Fronteira. Os aprendizados em terreiro mostram-se fundamen-

ria tradicional”. No entanto, ela aponta como as reflexões sobre

tais no processo criativo do coletivo. Por último, o ator, diretor de

feminismo negros na academia também não deixam de bailar “a

teatro e pesquisador Eugênio Lima reflete sobre o racismo no tea-

delicada dança de provar-se conhecedor dos termos do conheci-

tro, inspirado por um polêmico debate que mediou no ano passado

mento ocidental enquanto se tenta superar os contornos do co-

sobre a acusação de que a peça “A mulher do trem”, de Os Fofos

nhecimento ocidental em si”, para evitar o risco de serem taxadas

Encenam, era racista.

de muito pessoais, muito políticas, não muito científicas ou apenas

Com esta edição, reafirmamos o compromisso da TREMA!

irracionais. Ou seja, como o feminismo negro na academia tam-

Revista com a justiça social e com todos os movimentos e lutas so-

bém oscila entre quebrar as grades de uma epistemologia europeia

ciais que buscam tirar existências da invisibilidade, quando invisí-

e manter-se dentro dela, a fim de que as condições de existência

veis, e da opressão, quando visíveis. O movimento negro é um deles.

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colaboradores desta edição

MARCONI BISPO é professor de teatro formado pela

GIOVANA XAVIER

Universidade Federal de Pernambuco.

é professora da Universidade Federal do

Integra o grupo Teatro de Fronteira, a

PATRICIA HILL COLLINS

Rio de Janeiro (UFRJ), coordenadora do

Ong Auçuba – Comunicação e Educação

é professora universitária do

Grupo Intelectuais Negras e autora do

(na comunidade da Mangabeira/

Departamento de Sociologia da

blog “Preta Dotora na Primeira Pessoa”.

Recife) e a diretoria do Afoxé Omô

University of Maryland, nos Estados

Nilê Ogunjá (na comunidade do Ibura/

Unidos. Autora de livros como

Recife). Realizou o curso técnico de

“Black feminist thought: knowledge,

canto popular no Conservatório

consciousness, and the politics of

FERNANDA JÚLIA

Pernambucano de Música, onde

empowerment” e “Race, class, and

é Yakekerê (mãe pequena)

também deu os primeiros passos em

gender: an anthology”, a teórica social

do Ilê Axé Oyá L´adê Inan, na

teoria musical. Iniciado no candomblé

tem se preocupado com questões

cidade de Alagoinha (Bahia).

para Iemanjá Sessu desde 2010, é um

como raça, gênero, classe social,

Possui bacharelado em direção

Egbomy, um irmão mais velho.

sexualidade e nação.

teatral pela Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (FBA) e é mestre em artes cênicas

CRIOLA

pelo Programa de Pós-Graduação

EUGÊNIO LIMA

é grafiteira, explora cores e

em Artes Cênicas (PPGAC) da UFBA.

é ator, diretor de teatro, coreógrafo, DJ

elementos bem brasileiros nos

Também é diretora fundadora do

e pesquisador. É membro fundador do

seus grafites. Além disso, faz da

Núcleo Afro-Brasileiro de Teatro de

Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, da

arte urbana a sua luta política para

Alagoinhas (NATA), fundado em 17

Frente 3 de Fevereiro e da Banda Cora.

fortalecer as mulheres negras.

de outubro de 1998.

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"le dejeuner sur l’herbe: trois femmes noires", 2010 — mickalene thomas

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sem

GARANTIAS PATRICIA HILL COLLINS

MARIANA RUSU (tradução)

collinph@umd.edu

marianarusu@gmail.com

Q

uando eu entrei na academia na década de 1980, havia uma

como objetos centrais do meu projeto. Meu objetivo era simples:

grande falta de mulheres afro-americanas e também de in-

busquei escrever o tipo de livro que minha mãe seria capaz de ler.

tepretação das nossas experiências, ações e perspectivas.

Eu presenciei o dano feito por políticas excludentes que conside-

Ao contrário, ideias estereotipadas sobre as mulheres negras que

raram minha mãe como inerentemente inferior a quase qualquer

perpetuavam a cultura popular também moldavam a educação

outra pessoa. Não tinha ideia de quem leria o livro e certamente

superior. As imagens de mães negras bem acolhedoras, serven-

não avaliei o seu mérito por métricas contemporâneas de catego-

tes domésticas sorridentes, jezebéis atiradas e trabalhadoras do

rização, classificação e avaliação. Esperei e escrevi “Pensamento

campo – me refiro aos campos de algodão aqui, não no sentido

feminista negro” após obter a posição tenure 2, não antes. Como

etnográfico da palavra campo – há muito alimentaram a represen-

primeiro membro da minha família que se formou na universi-

tação das mulheres negras, servindo aos interesses de múltiplas

dade, os riscos de desperdiçar o capital cultural da minha suada

instituições sociais. 1

graduação eram enormes.

Na escrita do livro “Pensamento feminista negro” (do in-

No “Pensamento feminista negro”, busquei não apenas co-

glês “Black feminist thought”), busquei falar a verdade sobre estas

locar as experiências das mulheres negras no centro da análi-

relações de poder ao tomar a vida e ideias das mulheres negras

se — ao incluir aquelas que estavam ausentes — mas também e, mais importante, ressaltar a intepretação do universo social das

1 O texto em questão foi publicado no periódico britânico Ethnic and Racial Studies, em uma edição que reunia outros cinco ensaios apresentados em um simpósio que comemorou os 25 anos da publicação de “Pensamento feminista negro”. O simpósio contou com ensaios de mulheres negras acadêmicas dos Estados Unidos, Reino Unido, Suécia e Brasil. Referência do artigo original: COLLINS, Patrícia. No guarantees. Ethnic and Racial Studies 38 (13): October, 2015, p. 2349-2354.

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mulheres negras. Não tive dificuldades em conseguir bolsas de estudo que estudaram ostensivamente mulheres negras – tudo

2 Nota do tradutor: a palavra inglesa tenure se refere a um emprego permanente de professor em instituições de pesquisa ou universidades.

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o que fiz foi identificar os problemas sociais no Estado e começar a trabalhar. Gravidez na adolescência, lares despedaçados, mães solteiras e dependentes de subsídios geraram uma gama de informação a respeito das mulheres negras, mas sem compreender suas vidas e suas visões de mundo. Tópicos completos de grande pertinência para as mulheres afro-americanas, que eu conhecia, estavam simplesmente em falta. Mulheres negras e grupos marginalizados semelhantes eram os “fatos” ou dados a serem manipulados por outras pessoas, usando moldes preconcebidos sobre os problemas sociais. Eu não poderia escrever uma historia neutra ou “objetiva” sobre as conquistas das mulheres negras que poderiam ser inseridas em estruturas interpretativas pré-existentes, que não eram nem neutras nem objetivas. Ao contrário, as premissas em si deveriam ser desmanteladas esperançosamente pelas próprias mulheres afro-americanas. Em “Pensamento feminista negro”, eu desafiei o tratamento das mulheres negras como objetos de conhecimento ao valorizar as mulheres afro-americanas como agentes do conhecimento. O problema não era saber se a mulheres negras po-

audre lorde, escritora americana de descendência caribenha, feminista lésbica e ativista na luta feminismo afro-americano

deriam falar, mas, sim, escavar, legitimar e analisar o que as mulheres afro-americanas já haviam falado.

plicavam tudo em suas vidas – desde suas relações de amor, aos

Uma vez que mulheres afro-americanas viviam vidas hetero-

empregos que elas poderiam obter, até aos sonhos que elas eram

gêneas, as dimensões das visões de mundo que elas expressaram

permitidas a sonhar. Era pouco provável que soluções baseadas

através de livros, testemunhos, poesias, ficção, ensaios, canções, ca-

apenas em raça ou em gênero gerassem algum resultado. As cons-

sos jurídicos, sermões e dissertações eram similarmente comple-

truções das opressões intersectivas ou interseccionalidade consti-

xos. Ainda, apesar dessa heterogeneidade, diversos temas centrais

tuíam uma ideia importante dentro do feminismo negro.

distinguiam os pensamentos feministas negros. Primeiramente,

As alegações do livro “Pensamento feminista negro” de que

mulheres negras falavam sobre opressão, se recusando a esconder

a opressão, a agência epistêmica, a justiça social e as relações de

como a crueza das relações de poder do racismo, sexismo, explo-

poder intersectivas constituem um discurso base para o feminis-

ração de classes e heterosexismo afetavam as pessoas na base.

mo negro podem ter sido algo novo e provocativo para acadê-

Segundo, ao reivindicar uma voz, mulheres negras exercitavam a

micos, mas estas ideias não eram novas. A raça, a classe, o gênero

agência epistêmica na face da opressão epistêmica que, há mui-

e a estrutura sexual, alcançados pela coleção Combahee River em

to, as silenciavam. Não mais ao sentar-se à mesa e jogar de acordo

1977, não caíram do céu. Mas estas ideias podem ser ligadas às

com as regras do jogo epistemológico manipulado. Em terceiro, o

indagações de Sojourner Truth, “Não sou uma mulher” (do inglês,

compromisso com a justiça social está no coração da resistência das

“Ain’t I a Woman”) ou ao majestoso volume de 1892, “Uma voz

mulheres negras à opressão. Na linguagem cotidiana, nada mais “te

que vem do Sul” (do inglês, “A voice from the South”), por Anna

liberta”; ao invés, você se fortalece quando sua batalha por liber-

Julia Cooper. As afirmações da coleção também prefiguraram as

dade particular faz parte de projetos de justiça social mais amplos.

importantes contribuições de Toni Cade Bambara, Angela Davis,

Por fim, e ainda relacionado ao tema, mulheres negras identificavam

Beverly Guy Sheftall, Bonnie Thornton Dill, Kimberlé Crenshaw e

como as complexidades de sistemas de poder intersectivos com-

muitos outros que impulsionaram a expansão do entendimento

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Dado este contexto de mudanças, estou surpresa que o “Pensamento feminista negro” ainda seja impresso e que novos leitores continuem a apreciá-lo. Eu estou especialmente interessada nos ensaios publicados aqui 3, porque o grupo brilhante de estudiosos deste simpósio está fundamentalmente comprometido com a integridade dos estudos a serviço da justiça social e lembram o meu próprio compromisso. Eles refletem campos disciplinares, contextos nacionais, estágios da carreira docente, locações sociais escolares e comunidades ativistas distintas. Quais temas se destacaram no livro “Pensamento feminista negro” para eles nos contextos das realidades contemporâneas? Como estas ideias podem ajudar a construir uma fundação contemporânea para estudos futuros à serviço da justiça social? Em “Pensamento negro é importante: Patricia Hill Collins e a longa tradição da sociologia afro-americana” (do inglês “Black Thought Matters: Patricia Hill Collins and the Long Tradition of African American Sociology”), Gurminder K. Bhambra identifica a delicada dança de provar-se conhecedor dos termos do conhecimento ocidental enquanto se tenta superar os contornos do conhecimento ocidental em si. das ideias centrais do pensamento do feminismo negro na aca-

Esta posição, invocada pelo conceito de “dupla consciência”

demia. Um feminismo negro comprometido com a justiça social

de Du Bois, moldou uma sociologia afro-americana que necessita

nunca esteve confinado à academia: nunca foi seu propósito ser

permanecer legitimada dentro da sociologia dominante, mas ela

apenas um outro discurso acadêmico.

também sabe que não pode prosperar entre as práticas discipli-

Eu forneço este contexto porque escrevi “Pensamento femi-

nares da sociologia. Estes debates ressurgem disfarçados com um

nista negro” antes das análises contemporâneas de como a lógica

novo vocabulário. Alguns colegas me pediram para explicar a di-

do neoliberalismo mudou dramaticamente os contornos da edu-

ferença entre o estudo tradicional de raça e etnia no contexto da

cação superior. Dentro desta lógica, a menos que trabalhos como

sociologia e o campo emergente da teoria crítica de raça. A distin-

“Pensamento feminista negro” possam ser rapidamente produzidos,

ção está na abordagem não pronunciada ao racismo - o primeiro

negociados para obtenção de tenure, promoção, recursos de pes-

coopera e o último visa destruí-lo.

quisa ou outro valor mensurável dentro das relações de mercado,

Bhambra está absolutamente correto que eu carreguei uma

eles possuem pouco valor. Eu escrevi o livro antes da mudança da

sensibilidade, adquirida a partir da minha fundação em pensa-

maré na indústria do conhecimento em que qualquer um pode se

mento social e político afro-americano, para dentro da compli-

autointitular especialista em qualquer coisa. Popularidade pode ser

cada tarefa de conceituar e escrever o “Pensamento feminista

a regra da internet, mas eleger a verdade é difícil. Escrevi o livro antes

negro”. Ainda, as lições aprendidas de um corpo estabelecido do

da tendência dos anos 1990 de anexar o prefixo pós a entidades que

pensamento político social negro têm duas implicações adicio-

aparentemente se foram ou se acabaram — pós-racialismo, pós-

nais. Primeiro, ser avaliado como sendo muito crítico pode abrir

-colonialismo, pós-estruturalismo e pós-modernismo. Quem realmente acredita que estamos além das relações de poder injustas do racismo, sexismo ou colonialismo, sugeridas pelo prefixo pós? TREMA!_negro

3 NT.: A autora se refere aqui aos outros ensaios publicados na edição comemorativa dos 25 anos de “Pensamento feminista negro”.

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conhecimentos subordinados, tais como o pensamento feminista

mas? Mais importante, quem decide?

negro para a censura e eliminação. Eufemismos comuns ao nível

Eu também apreciei um outro ponto importante do artigo

de abundância crítica: é acusado de ser muito político, ser apenas a

de Dotson. Dotson nomeia algo que há muito me perturba na teo-

opinião de uma pessoa, não ser científico o bastante ou apenas ir-

ria social, a saber, as estratégias utilizadas para suprimir o poder

racional. Aqui o desafio é assumir uma posição crítica enquanto se

epistêmico das mulheres negras. As experiências das mulheres

manter vigilante sobre proteger as condições que tornam o traba-

negras devem ser reinterpretadas como sendo tão universais que

lho possível. Segundo, o pensamento social e político afro-ameri-

não há mais necessidade de referir-se às particularidades das suas

cano reconheceu, há muito, que crítica sem criação de alternati-

vidas, uma abordagem que gera o ímpeto de mover-se “além” das

vas é insuficiente. Para as pessoas da base, uma dieta contínua de

mulheres negras. Alternativamente, as experiências das mulheres

análises abstratas que as dizem o quão oprimidas elas realmente

negras são interpretadas como sendo tão particulares ou únicas

são pode ser mais debilitante do que simplesmente não saber da

que contêm pouco valor abrangente.

opressão. Porque as mulheres afro-americanas fazem parte da

Em “Poder, conhecimento e pensamentos feminista negro —

mesma estrutura do pensamento político e social negro, elas fo-

Contribuições duradouras em direção à justiça social” (do inglês,

ram cruciais na construção da capacidade da comunidade que fez

"Power, knowledge and black feminist thought's enduring contribution

tal pensamento possível. Construir alternativas tem sido central à

toward social justice"), a ativista feminista brasileira e estudiosa Ana

práxis do feminismo negro.

Claudia Pereira identifica três temas centrais para ela. O engajamen-

Em “Herdando a epistemologia negra de Patricia Hill Col-

to de Pereira com o feminismo negro contemporâneo no Brasil,

lins” (do inglês, “Inheriting Patricia Hill Collins' black feminist epis-

como parte de uma justiça brasileira mais ampla e de uma iniciativa

temology”), Kristie Dotson usa o “Pensamento feminista negro”

de diáspora de justiça social, tem como paralelo meu próprio envol-

como uma ferramenta para escavar expressões contemporâneas

vimento com o desenvolvimento político das comunidades afro-a-

destas relações de poder/conhecimento. Sociólogos afro-ameri-

mericanas nas décadas de 1970 e 1980. Eu escrevi “Pensamento fe-

canos podem ter os mesmos empregos que nossos colegas, mas

minista negro” no contexto de um movimento social cujas pessoas

também podem estar conectados a tradições políticas e intelec-

e ideias transitavam para dentro da academia.

tuais que transcendem nossas disciplinas de treinamento ou de

Pereira trabalha em um contexto similar no Brasil, no qual as

emprego. Como filósofa feminista negra com uma especialidade

mulheres negras brasileiras contemporâneas lutam para ter aces-

em epistemologia, Dotson reconhece que herdou uma tarefa dife-

so às universidades e às posições acadêmicas. O feminismo negro

rente e mais difícil do que seus colegas. O “Pensamento feminista

nos Estados Unidos e no Brasil pode ter ganhado visibilidade em

negro” talvez tenha colocado para frente a alegação radical de que

diferentes períodos de tempo, mas esta distinção ressalta simila-

a epistemologia é central para as relações de poder e que centrar

ridades e aguça as distinções para o entendimento do feminismo

as mulheres negras como agentes de conhecimento produziria

negro dentro de um contexto transnacional.

novos conhecimentos, assim como foi feito fora do campo da filo-

Enquanto as iniciativas de justiça social estejam longe de se-

sofia. Ao contrário, Dotson constrói, nos argumentos epistemoló-

rem novas no Brasil, o feminismo negro é relativamente recém-

gicos do “Pensamento feminista negro” com uma visão interna da

-chegado. Os três temas centrais de Pereira podem servir como

filosofia, uma localização social que a permite analisar a estrutura

referências importantes para um movimento social jovem e ener-

epistemológica do “Pensamento feminista negro” no contexto de

gético que esteja em processo de se definir. Porque o público alvo

seu projeto mais amplo de injustiça epistêmica.

de Pereira consiste em grupos heterogêneos de mulheres negras

Epistemologia, como se verifica, não é um tema esotérico, es-

no Brasil que estão ativamente envolvidas em moldar a trajetória

quecido nos cantos da filosofia. Mas se encontra no coração do poder.

do próprio feminismo negro, os temas que ela ressalta podem ter

Quando se trata de poder epistêmico, Dodson identifica um ponto

valor especial na construção de um movimento social. As feminis-

crucial: ter o poder autorizado de julgar ambos, aqueles que contam

tas negras brasileiras estão negociando como as semelhanças e

como conhecedores legitimados bem como o conhecimento que

as diferenças funcionam em um contexto social que as colocam

eles produzem é uma ferramenta fundamental de hegemonia.

simultaneamente em aliança, mesmo que distinta, com o movi-

Independentemente de quem esteja julgando, este po-

mento negro e com a maioria do movimento feminista branco.

der autorizado constrói injustiças no conhecimento em si. Como

Canalizando Dotson, ao reivindicar importantes elos entre co-

apontado por Dotson, “O ‘Pensamento feminista negro’ foi su-

nhecimento e poder, o feminismo negro brasileiro deve combater

primido, às vezes, porque as mesmas pessoas que deveriam se

não apenas o conhecimento que grupos dominantes constroem

beneficiar dele o suprimiram”. Por exemplo, navegar nas águas

acerca do mundo, mas também as relações de poder que tornam

epistemológicas das análises interseccionais do mesmo tipo das

o conhecimento possível. Ao reivindicar múltiplas formas de co-

geradas dentro do feminismo negro é especialmente preocupante

nhecimento, incluída aquela da diáspora africana, elas também

dentro das politicas contemporâneas dos Estados Unidos, que, por

reconfiguram o termo “Intelectual de Mulheres Negras” em ma-

sua vez, parecem inclinadas a reinstalar os homens negros como

neiras que servem ao feminismo negro contemporâneo.

a face legítima da vitimização do afro-americano. A violência feita

Como Pereira aponta, porque o “Pensamento feminista ne-

ao jovem homem negro, em sua maioria associada ao policiamen-

gro” está disposto em multicamadas, ele está passivo a diversas

to em bairros negros, certamente merece a atenção pública. Mas

interpretações e apropriações. Neste contexto, eu realmente

deveria essa atenção ao jovem homem negro vir à custa da jovem

aprecio a interpretação cuidadosa e holística feita por Minoo Ali-

mulher negra? Quem ganha credibilidade ao analisar estes proble-

nia acerca dos maiores argumentos do livro “Pensamento feminis-

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ta negro”. Em “Sobre o ‘Pensamento feminista negro’: pensando

res permitiram a Gines encontrar e ler o “Pensamento feminista

opressão e resistência através do paradigma interseccional” (do

negro”. Tive que trabalhar para criar as condições que tornaram

inglês, “On ‘Black feminist thought’: thinking oppression and resistan-

minha própria produção intelectual possível. Outros tiveram que

ce through intersectional paradigm”), Alinia alcança a essência do

criar as condições que permitiram que Gines florescesse. E Gines,

livro. A sua leitura da opressão, agencia epistêmica, luta por jus-

em si, está numa posição de fazer um trabalho politico e intelec-

tiça social e relações de poder intersectantes relembram a minha.

tual similar — ela agora tem colegas o suficiente de filosofia para

Escrevi o “Pensamento feminista negro” dentro da especificidade

formar um Colegiado de Mulheres Negras Filósofas. Eles publicam

das experiências das mulheres afro-americanas inseridas no con-

trabalhos em todas as áreas da filosofia e suas ações, espero, faci-

texto dos Estados Unidos. Não reivindiquei estar escrevendo uma

litarão a criação de novos públicos para o trabalho da justiça so-

grande teoria que poderia ser aplicada a todos os lugares e tempos

cial. O artigo de Gines não é apenas um presente para mim, mas

da mesma forma. Alinia aborda a estrutura conceitual do “Pensa-

ele talvez também inspire todos aqueles que desejam colocar sua

mento feminista negro” não como uma teoria universal, cujo valor

produção intelectual a serviço da justiça social. A narrativa dela me

se baseia na sua habilidade de “transcender” as especificidades da

lembra do quão importante é cultivar comunidades intelectuais e

vidas das mulheres negras, mas, sim, como uma ferramenta con-

construí-las onde não existirem, lutar por elas quando estiverem

ceitual útil para desbravar pontos de conexão e percepção.

sob ataque inevitável e colocá-las nas mãos daqueles que adora-

Eu suspeito que Alinia capturou muito bem a totalidade dos

riam levá-las adiante.

argumentos do “Pensamento feminista negro” porque ela enfren-

Coletivamente, os ensaios neste simpósio enfatizam a im-

tou desafios similares no seu próprio trabalho. Gostaria que Alinia

portância do mandato intergeracional que acompanha os estu-

tivesse falado mais sobre o seu livro, “Violência contra mulheres

dos a serviço da justiça social. Minha esperança é que, em algum

no Curdistão Iraquiano” (do inglês, “Violence against women in Iraqi

momento, o “Pensamento feminista negro” seja uma peça de

Kurdistan”), mas, como ela não o fez, farei eu. Porque a violência é

uma constelação ainda maior de trabalhos similares. Ainda assim,

um tema central que permeia muitas formas de opressão — deve-

encerro com uma ressalva: enquanto houver as injustiças sociais

-se se esforçar para encontrar uma opressão sem a presença de al-

que catalisaram o feminismo negro, a necessidade do pensa-

guma forma de violência —, entender e resistir à violência constitui

mento feminista negro também persistirá. O feminismo negro

um tema muito saliente no feminismo negro e projetos de justiça

vem sem garantias.

social similares. Este problema social, em particular, é um ponto de conexão entre grupos com histórias muito diferentes, primeiramente porque o tipo de estrutura interpretativa alcançada com o “Pensamento feminista negro” gera uma arquitetura não apenas para o entendimento da violência, mas também à sua resistência. A análise de Alinia de como a violência contra as mulheres é organizada e operada, no contexto de honra distinto ao Curdistão Iraquiano, é oriunda das dimensões do paradigma do “Pensamento feminista negro”, úteis ao seu projeto particular. O vocabulário proporcionado pelo “Pensamento feminista negro”, que ela detalha tão bem neste simpósio, é apenas isto: um vocabulário para conversas futuras entre indivíduos e grupos que estejam engajados em projetos similares. Somos afortunados de ter não apenas uma, mas duas filósofas do feminismo negro representadas neste simpósio. As reflexões de Kathryn Gines sobre os 25 anos de história do “Pensamento feminista negro” examinam a importância de públicos reais, imaginários e em construção para a vitalidade e sobrevivência do feminismo negro. Quando eu escrevi o “Pensamento feminista negro”, os estudantes de graduação que faziam parte dos meus cursos constituíram o meu primeiro publico. Eu também escrevi para públicos imaginários, tais como estudantes de doutorado e jovens membros da academia que também viam as limitações do que nós tínhamos herdado. Mas como eu não tinha ideia que o “Pensamento feminista negro” duraria, eu simplesmente desconsiderei a escrita para audiências ou públicos imaginários que estavam em construção. Em retrospectiva, posso ver que eu estava escrevendo para um publico em construção, no qual Kathryn Gines pertencia. Estou tão feliz que tenha conseguido superar a massiva quantidade de energia e tempo necessária para escrever o livro. Estou igualmente feliz que sua família, mestres, professores universitários e mentoTREMA!_negro

o futuro ainda é feminino

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PERFIL

UM NEGRO NA (O) MARCONI BISPO marconibispo@hotmail.com

marconi bispo – foto: ricardo maciel

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FRONTEIRA

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PERFIL

No meio de uma Encruzilhada só costumamos ver quatro

S

ou Marconi Bispo, 39 anos, ator do grupo Teatro de Fronteira e, em 28 de outubro de 2016, com direção de Rodrigo Dourado, estreamos o mais novo solo autobiográfico deste coletivo, o “Luzir

é Negro!”. No solo, investigamos minha identidade negra, o racismo e suas manifestações em minha vida: um homem negro, gay, candomblecista e periférico. Na escritura e tessitura da autobiografia que originou o espetáculo, estou e sou atravessado pelo fato de ser um filho de santo, um Egbomy de Iemanjá Sessu. [Egbomy: irmão mais velho dentro de uma comunidade de Candomblé, alguém que já cumpriu os sete anos pós-iniciação na religião. Iemanjá Sessu: qualidade-epíteto de Iemanjá que habita as águas mais profundas dos oceanos; muito velha, lenta, reservada e de temerosa rigidez com seus filhos e filhas. Diz-se deste tipo de Iemanjá: aquela que confere e conta pena a pena dos animais a ela sacrificados. Na falta de uma pena, pede novo sacrifício. E volta a contar tudo de novo.] Para falar do grupo e desta sua nova produção, lanço-me, nova-

processo do espetáculo "luzir é negro!" com o diretor rodrigo dourado – foto: acervo

mente, em uma encruzilhada. Maciel na atuação, que estreou em 2014 e ainda está em intensa atividade), bem como na encenação “Olivier e Lili: uma história de amor em 900 frases”, de 2012, onde as memórias pessoais dos ato-

CAMINHO 1: O QUE ESTÁ À NOSSA FRENTE.

res Leidson Ferraz e Fátima Pontes foram imiscuídas ao texto “Les drôles: un mille-phrase”, peça em que a dramaturga e atriz francesa

À nossa frente, não atrás da gente, está o nosso passado. No Tea-

Elizabeth Mazev revive passagens de sua infância, adolescência e

tro de Fronteira, em muitos de seus processos, podemos encarar o

juventude ao lado do encenador e ator Olivier Py.

passado como vivi (ainda aprendo) nos terreiros — como algo que está diante de nós, passível de ser remexido, revivido, encarnado. Artimanha e meneio da memória. Atrás de nós está algo intangível e sobre o qual temos pouco ou quase nenhum controle: o futuro.

CAMINHO 2: O QUE ESTÁ ATRÁS DA GENTE.

Em “Luzir é Negro!”, para começarmos a construção dramatúrgica do espetáculo, Rodrigo Dourado pediu-me que trouxesse, no primeiro

“Pizza, Coca e Crime: o dia em que Pai Ubu Marcola cagou no Brasil”,

dia de ensaio, cinco elementos definidores da minha negritude, como

experimento com dramaturgia e direção de Rodrigo Dourado, trou-

objetos pessoais e/ou rituais, fotografias, passagens da minha vida e

xe para a cena em 2007 uma escrita não-teatral a partir da entrevis-

textos teatrais ou não. Trata-se de um laboratório chamado Linha do

ta de Marcola, líder do Primeiro Comando da Capital (PCC), conce-

Tempo, em que o performer organiza em seu entorno cinco pontos

dida à revista Caros Amigos. Esta foi a primeira montagem do grupo

principais de sua história/trajetória de vida para tratá-los cenicamente.

e estávamos em cena eu e Greyce Braga. Em “Chat”, de 2009-2010,

Diante dele (e de mim), as memórias se apresentavam como coisas

com texto do venezuelano Gustavo Ott, partiu-se de uma drama-

para se buscar, tanger, esculpir, erigir. À frente. Assim foi nos três solos

turgia já existente, assim como foi com “Olivier e Lili...”, em 2012.

autobiográficos, anteriores ao meu, que ele também dirigiu (“Com-

Estes textos não foram tratados como bases sólidas, so-

plexo de Cumbuca”, de 2014, “SoloDiva”, de 2015, de Rodrigo Caval-

bretudo porque o Teatro de Fronteira, já na sua fundação, fler-

canti e Nelson Lafayette, respectivamente; e “Na Beira”, com Plínio

ta com as performatividades contemporâneas e a instabilidade

p­ — 16


caminhos. Os quatro visíveis. Mas, na verdade, são sete.

teriais — são incorporados aos processos e misturados a outros estímulos que, atentos e abertos, cotejamos e cortejamos. [Rodrigo acaba de me ligar para, sorrindo, falar de um telefonema que acabou de receber de um espectador que solicitava informações sobre o “Luzir é Negro!”, pois, em uma das matérias publicadas em um jornal, seu número foi disponibilizado. Um jovem de Jaboatão dos Guararapes, cidade da Região Metropolitana de Recife, quis saber como faz para chegar ao Poste Soluções Luminosas, espaço onde estávamos cumprindo temporada durante todo o mês de novembro de 2016. Em meio à conversa, ele perguntou: “Esta peça é só com um ator negro em cena, né? Mas ele fica nu em cena?”. No que Rodrigo responde: “Não, amigo, fica não”. E o jovem sentencia: “Ah, que pena! Eu queria assistir porque gosto de ver nudez em cena. Achei que essa peça tinha nudez”.] Esta passagem será incorporada ao espetáculo, assim como, nos interstícios do mesmo, estão processo do espetáculo "luzir é negro!" com o diretor rodrigo dourado – foto: acervo

todos os textos que lemos sobre hipersexualização do corpo negro.

dos processos-recursos trazidos para a construção da cena. São poéticas em crise. Mas, para a construção de “Luzir é Negro!”, como foi para os solos autobiográficos citados anteriormente,

CAMINHO 4: À NOSSA ESQUERDA.

começamos a trabalhar sem uma dramaturgia definida. Na sala de ensaios: memórias, roteiros, palavras-chaves, abrir de janelas.

Quem faz parte do grupo Teatro de Fronteira? Muita gente. Estão

Saímos em busca de um futuro que joga com seus atores, em uma

sempre presentes? Não. Em quase dez anos de atividade, amealha-

brincadeira nem sempre fácil de se esconder e se revelar. Não

mos muitos atores, atrizes e técnicos e, só agora, uma década depois

está exatamente à nossa frente o que vamos construir, talvez só

da sua fundação, podemos olhar e reconhecer, entre estes e estas, o

o que queremos dizer. É um risco — quase sempre em nossas

que e quem somos. Importante aqui dizer: laços afetivos e relações

costas, pronto para nos atacar. Essa incerteza mesmo do futuro.

de amizade que duram décadas são estruturantes para a manutenção do grupo e para a cena que se vem construindo a partir da pesquisa feita com o biodrama. O processo de investigação cênica, através do qual as histórias de vida dos seus intérpretes sedimen-

CAMINHO 3: O QUE ESTÁ À NOSSA DIREITA.

tam os espetáculos cênicos, tem orientado o Teatro de Fronteira, cujo nome e poética encontram o seu lugar no Recife.

Como sou destro, vou me valer da ideia — não comprovada — de que, à minha direita, tenho os meios e modos que manejo de forma mais racional e segura. Rodrigo Dourado, diretor de todos os espetáculos do Teatro de Fronteira, seu fundador e mentor, é Doutor em Artes Cê-

CAMINHO 5: PARA BAIXO, PARA O CHÃO.

nicas pela Universidade Federal da Bahia e Professor Adjunto do Departamento de Teoria de Arte e Expressão Artística/Licenciatura em

O que nos sustenta: o Teatro de Fronteira assume, como projeto de pes-

Teatro da Universidade Federal de Pernambuco. É um pesquisador.

quisa, investigar os temas e as formas artísticas contemporâneas, sem

Assim, livros inteiros, partes de livros e artigos — densos maTREMA!_negro

perder de vista o teatro e seus recursos como ferramentas expressivas p­ — 17


PERFIL

marconi bispo – foto: ricardo maciel

e os sujeitos marginais como objetos principais da sua cena. As relações

americano Matthew Shepard. Os crimes de ódio são o ponto no-

e diálogos entre a performance, a teatralidade e a cena contemporânea,

dal do texto. E, pensando no avanço conservador em nosso país,

além de uma investigação constante sobre a potência artística provocada

é ponto nodal para nós mesmos, sujeitos à margem. Uma leitura

pelos (as) que habitam os liames e fronteiras, são ancoradouros do grupo.

dramatizada do texto já foi realizada, em 2014, no apartamento

De janeiro de 2013 a agosto de 2014, quatro atores-pesquisadores

de Rodrigo Dourado (que também assinou, junto com outros co-

desenvolveram uma pesquisa (subsidiada pelo Fundo Pernambucano de

laboradores, a tradução do texto de Moises Kaufmann, inédito no

Incentivo à Cultura/Funcultura) em torno das vocalidades/dramaturgias

Brasil). Assim como também foram inéditas, no País, as traduções

contemporâneas. O estudo buscou articular a voz e a dramaturgia como

e montagens de “Chat” (Gustavo Ott) e “Les Drôles” (Elizabeth Ma-

metáforas das subjetividades contemporâneas.

zev). O Teatro de Fronteira investe na pesquisa sobre dramaturgias

Ainda em 2014, Rodrigo Dourado abre seu apartamento para aco-

contemporâneas.

lher o solo autobiográfico “Complexo de Cumbuca”, do performer Rodrigo Cavalcanti (um dos atores-pesquisadores da ação acima citada), impulsionando o movimento de Teatro Domiciliar junto a outros artistas recifenses, com muitas casas e apartamentos se abrindo para receber ex-

CAMINHO 7: PARA DENTRO DE VOCÊ MESMO.

perimentos cênicos. “Na Beira”, com atuação de Plínio Maciel e direção de Dourado, en-

“Luzir é Negro!” começou porque eu queria entender como o racismo

corpou e incorporou — em um espetáculo exitoso — esta pesquisa a partir

havia afetado — ou ainda afeta — as minhas relações íntimas, des-

do biodrama, conceito desenvolvido pela encenadora argentina Viviana

de os primeiros elos estabelecidos dentro da minha família até as

Tellas, que também consiste na investigação sobre a teatralidade presente

escolhas e não-escolhas que determinavam meus relacionamentos

no real e a preservação-partilhamento da memória como ação política.

na fase adulta. Era importante saber se o fato de ser candomblecista,

Desde o espetáculo “Olivier e Lili: uma história de amor em 900

por exemplo, e externar isto das mais variadas formas (deixar minhas

frases”, de 2012, temos examinado as implicações da entrada do real na

guias de orixás aparentes e assumir isto nas redes sociais, por exem-

cena. “Luzir é Negro!” continua esta pesquisa. A partir das questões ra-

plo) estava determinando o fato de estar sem “namorar” há mais de

ciais e do cruzamento delas com outros aspectos da minha identidade

dez anos. Rodrigo também percebeu a potência de desbravar aspec-

(a sexualidade dissidente, o ser candomblecista e periférico), enraizamos

tos da formação do povo brasileiro a partir das minhas histórias e

ainda mais essa prospecção.

memórias, cruzando tais elementos com fatos recentes no País, com a representação do negro em diversas dramaturgias (“Os Negros”, de Jean Genet; “Arena Conta Zumbi”, de Guarnieri, Boal e Edu Lobo; e “Gota d’Água”, de Chico Buarque e Paulo de Pontes, por exemplo) e

CAMINHO 6: PARA O ALTO.

em outras matrizes documentais, como redes sociais, matérias e artigos de jornal e documentos históricos. No meio desta encruzilhada

Em 2017, o grupo espera começar a montagem do docudrama "O

teatral, inspirado por Exu, o dono de todas elas, busquei estes sete ca-

Caso Laramie", que trata do assassinato, em 1998, do jovem gay

minhos. Fronteira não é mesmo lugar de ser um.

p­ — 18


#NE G RO L E I TU RA VI S UAL Criola

TREMA!_negro

p­ — 19


endabeni — obra de mohau_modisakeng


TREMA!_negro


O NÃO-DITO

BRANCO

cena do documentário "eu não sou seu negro", de james baldwin – foto: spider martin

p­ — 22


GIOVANA XAVIER gixavier@yahoo.com.br

N

o dia 9 de fevereiro a 2017 lançará nos cinemas “Eu Não Sou Seu Negro”, indicado ao Oscar 2017 de Melhor Documentário, e gostaria de saber se podemos

contar com o seu apoio para a divulgação desse filme que carrega uma mensagem importante e poderosa sobre os direitos humanos e a luta dos negros por igualdade. Nar-

rado por Samuel L. Jackson, o documentário constrói uma reflexão sobre como é ser negro nos Estados Unidos. Em 1979, James Baldwin iniciou seu último livro, “Remember This House”, relatando as vidas e assassinatos dos líderes ativistas que marcaram a história social e política americana: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr. Baldwin não foi capaz de completar o livro antes de sua morte, e o manuscrito inacabado foi confiado ao diretor Raoul Peck, que combina esse material com um rico arquivo de imagens dos movimentos Direitos Civis e Black Power, conectando essas lutas históricas por justiça e igualdade com os movimentos atuais que ainda clamam os mesmos direitos. Sei que você é uma pessoa muito articulada, e queria saber como poderia nos ajudar. Além disso, iremos fazer uma sessão especial de pré-estreia no dia 07/02, e você está super convidada. Vai ser no Reserva Cultural em São Paulo e em breve terei mais informações para te mandar. Muito obrigado pela sua atenção! Abraços.

Transcrição de um convite enviado via Facebook por um funcionário da produtora semanas antes do lançamento do importante documentário “Eu não sou seu Negro”, esta epígrafe coloca-nos diante do compromisso de dialogar com o que não é dito, mas sentido e carregado na materialidade do corpo preto. Uma vez que, não por acaso, estarei com Nicky Falkof no espaço “Discursos sobre o Não Dito: Racismo e Descolonização do Pensamento”, aqueço a mente para este momento que ocorrerá na MITSP2017 no dia 20 de março e que já se tornou especial em minha trajetória de ativista acadêmica. TREMA!_negro

p­ — 23


trabalhadores de saneamento se reúnem para uma marcha solidária, memphis, 28 de março de 1968

***

mo são cultuados como patrimônios do sujeito branco. Mas como esta cultura do “criada para servir” é apropriada e aprimorada por pessoas Brancas?

Independentemente das posições que ocupamos, pessoas Negras,

Certa vez, estava em um bar lavando as mãos quando uma jo-

em especial Mulheres, somos ensinadas ao longo de nossas vidas a

vem branca me pediu licença para entrar no banheiro. Espantada

lidar com o confinamento de nossas imagens ao papel de ajudan-

com a solicitação, olhei e certifiquei-me de que havia espaço sufi-

tes, auxiliares, coadjuvantes. A empregada que assume a respon-

ciente para que ambas seguissem em seus atos. Eu lavando as mãos.

sabilidade de cuidar da casa e da família é apresentada às amigas

Ela dirigindo-se ao banheiro. Mantive-me — com o prazer da certe-

da patroa, em um gesto de redenção, como a secretária. A profes-

za — no mesmo lugar, o que a deixou profundamente incomodada.

sora é identificada como aquela que ajuda a criança branca relu-

Isso me fez lembrar de que toda vez em que me encontro

zente a brilhar mais e mais. A ativista, traçada como um ser que,

em alguma situação de aparente disputa de espaço com pessoas

por estar no mundo, tem a obrigação de ser didática nas lições an-

Brancas, há uma expectativa, por parte das últimas, de que eu abra

tirracismo em movimentos sociais. A prostituta, “cor do pecado”,

mão de um lugar que — sob a ótica delas — não me pertence. Isso

narrada como um corpo à serviço da iniciação sexual masculina e

ocorre em calçadas, bancos de transportes públicos, elevadores,

por aí vai. Todas estas imagens possuem um sentido naturalizado

filas. Ganha corpo também em bancas de concursos públicos, co-

em sociedades pós-escravistas, nas quais a autoria e o protagonis-

mitês científicos, seleções de projetos de pesquisa em grandes

p­ — 24


editais. De formas distintas, os mecanismos de manutenção dos

afro-americanos, como também seus representantes no Brasil se

privilégios da supremacia branca partem sempre do pressuposto,

sintam autorizados a convidar uma pesquisadora negra para ajudar

como bem pontuado por Bell Hooks, de que Mulheres Negras são

na “divulgação do filme”. Dadas as conquistas políticas de grupos

o grande seio da humanidade.

marginalizados nas duas últimas décadas, convites como este re-

A interpretação de que nascemos para servir norteia as ações

presentam menos o reconhecimento da autoria e da competência

de boa parte da população branca no País, independentemente

de intelectuais negros do que uma estratégia para manutenção do

da classe que ocupam. Isso é evidenciado quando consideramos

status quo, através da escolha de “pretos de estimação”.

que menos de 30% das empregadas domésticas Negras possuem

A racialização de grupos negros como serviçais, patológicos

carteira assinada. Que boa parte das famílias negras são chefiadas

e criminosos legitima profissionais brancos a partirem da com-

por mulheres ou que, em termos de docência no ensino superior,

preensão de que movimentos como o dos Direitos Civis nos Esta-

representamos menos de 0,01% da categoria no país.

dos Unidos são capítulos da história que dizem respeito exclusiva-

As reflexões mais densas provêm dos sujeitos que observam e

mente à “luta dos negros por igualdade”. Esta é uma forma, diga-se

transitam no mundo pelas brechas. Como uma intelectual negra in-

de passagem, nada cordial de dizer que o racismo é um problema

surgente, afirmo que são estas as mesmas razões que tornam pos-

dos Negros e que pessoas Brancas que reconhecem isso são mere-

sível que uma produtora branca tenha não só a posse dos direitos

cedoras da nossa eterna gratidão. E, na sociedade capitalista, uma

de distribuição de um documentário sobre a história de intelectuais

das formas que uma “pessoa muito articulada” (e não uma Dou-

TREMA!_negro

p­ — 25


manifestante protesta contra a morte do adolescente michael brown em ferguson — foto: scott olson

tora) tem de dizer “obrigada” é trabalhando gratuitamente como consultora (Wikipreta), alegrando-se ser “super convidada” para a

EU Boa tarde! Obrigada pelo contato. Por favor, defina "ajuda".

estreia do filme, em uma cidade diferente da sua, em um dia de semana e sem maiores informações sobre despesas com transporte

PRODUTORA

e hospedagem, só a título de escurecimento.

nas suas redes sociais, suas aulas... Onde você puder. Claro,

Esta visão é parte do mesmo processo de letramento racial

Queríamos a sua ajuda para divulgar o filme

desde que você goste do filme.

que faz com que marcadores como o da “boa aparência”, proibidos por lei, continuem sendo utilizados nas seleções de emprego

EU Ah sim! Você quer me contratar para divulgar o filme como

por todo o país. Um processo que torna legítimo que intelectuais

Historiadora Negra, especialista em História Afro-americana?

brancos, a despeito de ocuparem espaços de poder, prestígio e vi-

Sim. Será um prazer conversar sobre este trabalho. Por favor,

sibilidade, eximam-se de reconhecer o protagonismo que exer-

envie-me por e-mail uma proposta com os termos pensados.

cem na manutenção do racismo. Isso ocorre quando silenciam pontos de vista de sujeitos negros, como no caso recente de um

PRODUTORA

dos programas da série “Temas Fundamentais para o Brasil” do

pelo retorno!

Legal! Vou te enviar um e-mail sim. Obrigado

Jornal Nexo 1 , que tematizou o “Racismo Estrutural” nas vozes das historiadoras brancas Heloisa Starling e Lilia Schwarcz, e que, apesar da avalanche de comentários indignados sobre a ausência de

Após este contato, três propostas de trabalho para divulgação

intelectuais negros, não apresentou nenhuma alternativa, exceto

envolvendo especialistas na temática foram apresentadas e ca-

um pedido de desculpas padrão ao estilo “estamos trabalhando

tegoricamente recusadas sob a alegação indignada da “falta de

para”/ ”sua opinião é muito importante para nós”.

recursos”. Aquela malcriação típica dos horizontes insípidos de

Na atual conjuntura política, na qual direitos conquistados

quem interpreta a recusa de ajuda como sinônimo de ingratidão.

pelos movimentos negros e feministas nas duas últimas décadas

Em tempos de “Eu não sou seu Negro” e “Discursos so-

enfraquecem-se, o final do contato com a Imovision reatualiza o

bre o Não-Dito”, sigamos Afrontando, ensinando e aprendendo

ato de narrar nossas próprias histórias como ferramenta impres-

com os nossos as nossas histórias. Histórias — não podemos

cindível na luta contra o racismo:

esquecer — de um Brasil no qual, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado. Afinal, James Baldwin me ensinou que “tenho mais coisa para fazer do que pensar nos seus problemas

1 Link da série: https://www.nexojornal.com.br/video/video/As-consequ%C3%AAnciasdo-racismo-para-o-Brasil-por-Lilia-Schwarcz-e-Heloisa-Starling.

p­ — 26

de racismo. É seu problema, lide com isso e, quando terminar, voltaremos a conversar”.

#EUNÃOSOUSUANEGRA


#EUNÃOSOUSUANEGRA

TREMA!_negro

p­ — 27


pergunta

TREMA! O NEGRO É UMA INVENÇÃO BRANCA?* 1/8

MARCÍLIO MORAES

AS PERGUNTA É AMBÍGUA DEMAIS, MAS NA MINHA OPINIÃO, NEGRO É NEGRO E PONTO FINAL. SEM DEMÉRITOS. JÁ A DISCRIMINAÇÃO, O PRECONCEITO ÉTNICO-RACIAL E A SEGREGAÇÃO É QUE TALVEZ TENHA SIDO CONSTRUÍDA HISTORICAMENTE POR BRANCOS RACISTAS. DE FATO, A IMAGEM DO NEGRO AO LONGO DA HISTÓRIA DESSE PAÍS FOI CONSTRUÍDA PELA ÓTICA DO BRANCO.

2/8

MARIA BIANCA

A PERGUNTA É AMBÍGUA SIM, MAS ACREDITO QUE ESTÃO SE REFERINDO A IMAGEM DO NEGRO QUE DE FATO, INICIALMENTE, FOI UMA CONSTRUÇÃO FEITA PELOS BRANCOS.

3/8

THIAGO ANDRADE

O NEGRO NÃO É UMA INVENÇÃO. O NEGRO SIMPLESMENTE É. NEGRITUDE, RAÇA, ETNIA, RAIZ E COR. PALAVRAS SÃO SÓ PALAVRAS, A LÍNGUA DO BRANCO EUROPEU TALVEZ NÃO DEFINA OU TRADUZA O NEGRO EM SUA IDIOSSINCRASIA.

4/8

NATHÁLIA HERA TEXEIRA

O NEGRO ENQUANTO SER SOCIAL INFERIOR FOI INVENTADO PELO BRANCO, NESSE VIÉS INTERPRETATIVO, A PERGUNTA TEM CABIMENTO. MAS MINHA PRIMEIRA REAÇÃO FOI DE CHOQUE E INDIGNAÇÃO.

5/8

IRAN MELO

ABSOLUTAMENTE SIM. AS PALAVRAS NÃO SÃO FORMAS VAZIAS DE HISTÓRIA, SÃO SIGNOS, CONSTRUÍDOS HISTÓRICO E IDEOLOGICAMENTE. MUITAS VEZES, GANHAM DIFERENTES SENTIDOS E, QUASE SEMPRE, ROMPEM COM A IDEOLOGIA QUE LHES DERAM EXISTÊNCIA. MUITAS PALAVRAS NASCEM PARA DISCRIMINAR UMA REALIDADE DE OUTRA, COMO UMA ENUNCIAÇÃO PARA DIZER O QUE NÃO É. QUEM INVENTOU A POBREZA FOI A RIQUEZA, O JUDEU FOI O ANTISSEMITA, O HOMOSSEXUAL FOI O HETEROSSEXUAL. NÃO ESTOU ME REFERINDO A EMPIRIA, MAS A EXISTÊNCIA DE SENTIDO. TODAS ESSAS FORMAS PASSARAM A GANHAR SENTIDO POR UMA HISTÓRIA E SUJEITOS QUE LHES NEGARAM. NÃO FOI DIFERENTE COM O NEGRO. SUAS SIGNIFICAÇÕES FORAM FABRICADAS PARA FUNCIONAREM COMO CATEGORIAS DE DEPRECIAÇÃO. A PROVA É A TENTATIVA DE OUTRAS FORMAS QUE, DESDE SUA CRIAÇÃO, FORAM GERADAS PARA SUBSTITUIR OS SENTIDOS ATRIBUÍDAS A ESSAS PALAVRAS (EUFEMIZANDOOS, RESSALTANDO ALGUNS DE SEUS ASPECTOS ETC.): AFRODESCENDENTE, MORENO, NEGO, PRETO, ENTRE OUTRAS. O INTERESSANTE NISSO TUDO É QUE A INVENÇÃO DA PALAVRA É A INVENÇÃO DA COISA. E PROSSIGA O DEBATE!

p­ — 28 as respostas das pessoas que contribuíram e deram permissão via facebook até o dia 01.março.2017, quando fechamos a edição do negro. *publicamos


6/8

CALIXTO NETO

BOA PERGUNTA! NO PELE NEGRA, MÁSCARAS BRANCAS, O FRANTZ FANON FALA QUE ENQUANTO ESTAVA NA MARTINICA, ESSA NÃO ERA UMA QUESTÃO PARA ELE. ELE ERA FRANCÊS E PONTO. MAS FOI CHEGANDO EM PARIS QUE ELE NÃO SÓ SE DESCOBRIU NÃO FRANCÊS, OU EM TODO CASO MENOS FRANCÊS DO QUE O FRANCÊS NÃO COLONO, COMO TAMBÉM SE DESCOBRIU NEGRO ATRAVÉS DO OLHAR (CLASSIFICADOR, MENOSPREZANTE) DO OUTRO, DO SEU OPOSTO, DO BRANCO. MAS AS RELAÇÕES RACIAIS E COLONIAIS ENTRE A EUROPA E SUAS COLÔNIAS TÊM OUTRAS COMPLEXIDADES. ALGUMAS SE APROXIMAM DA REALIDADE BRASILEIRA, MAS O BRASIL APRESENTA OUTRAS QUESTÕES, COM CERTEZA! E SERIA MASSA ENTENDER TAMBÉM SE O NEGRO NAS ARTES (PENSAR NA DANÇA TAMBÉM, PLIZ!) SERIA UMA INVENÇÃO BRANCA. SE JÁ PODEMOS DIZER SE O NEGRO É OLHADO DO JEITO QUE SE DÁ A VER (OU DO JEITO QUE GOSTARIA DE SE DAR), OU TALVEZ AINDA ATRAVÉS DO OLHAR DO OUTRO, O BRANCO.

7/8

RODRIGO DOURADO

T ODA IDENTIDADE É UMA INVENÇÃO E DE QUEM TEM PODER PARA DEFINIR SEUS CONTEÚDOS E SEUS LIMITES. COM O TEMPO, ELA SE COLA AOS SUJEITOS E PASSA A DEFINI-LOS DE FORMA NATURALIZADA (DISFARÇANDO SEU ESTATUTO DE INVENÇÃO). COM MAIS TEMPO, OS SUJEITOS PODEM TOMAR AQUELA IDENTIDADE QUE OS DEFINIU (ARBITRÁRIA E COMPULSORIAMENTE) E REINVENTÁ-LA, SUBVERTÊ-LA, OCUPÁ-LA. ESSE ÚLTIMO MOVIMENTO É O QUE MAIS ME INTERESSA OBSERVAR - A DESCONSTRUÇÃO, (DES)APROPRIAÇÃO DAS IDENTIDADES, (DES)IDENTIFICAÇÃO. PORQUE O PRIMEIRO É PRÓPRIO DE QUALQUER PROCESSO CULTURAL: A CRIAÇÃO, DEFINIÇÃO, INTERPELAÇÃO IDENTITÁRIA. EMBORA ISSO NÃO SE DÊ TREMA!_negro

SEM CONFLITOS, OBVIAMENTE. AFINAL, O QUE É SER NEGRO FOI CLARAMENTE DEFINIDO PELOS BRANCOS. MAS O QUE É SER NEGRO HOJE É EXATAMENTE INDAGAR ESSA INTERPELAÇÃO BRANCA PRIMÁRIA, SEM DESCARTÁLA, MAS REINVENTANDO-A. IMPORTANTE TAMBÉM LER A ANGELA DAVIS PARA ENTENDER AS DIFERENÇAS GRITANTES ENTRE A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE NEGRA MASCULINA E DE OUTRA FEMININA NO SISTEMA ESCRAVOCRATA NORTE-AMERICANO. PORTANTO, EH IMPORTANTE PENSAR NESSA INTERSEÇÃO DE GÊNERO QUE CRUZA AÍ ESSA PERGUNTA.

8/8

MARCONDES LIMA

ACHO QUE A PERGUNTA ATIÇA UMA RADICALIDADE QUE DEVE SER ASSUMIDA. AS PALAVRAS ENCERRAM SENTIDOS E AS VEZES NÃO DÃO CONTA DO RECADO, TODOS JÁ ESTÃO CARECAS DE SABER. ÓBVIO QUE A FORMULAÇÃO DA PERGUNTA PODE SER QUESTIONADA, PODE TER SAÍDO BRANCA DE ORIGEM, MAS ME PARECE QUE APONTA PARA ALGO QUE PRECISA SER DISCUTIDO SIM, POR NEGROS E POR BRANCOS. QUAL NEGRO ESTÁ SENDO POSTO NA BERLINDA? O NEGRO VISTO PELO NEGRO OU O NEGRO VISTO PELO BRANCO? PARECE BOBO LEVANTAR ESSA QUESTÃO, MAS SE ENGANA QUEM ACHAR ISSO. O SEGREGACIONISMO, POR EXEMPLO, PODE SERVIR PARA ILUSTRAR CONCRETAMENTE O QUE FALO: QUEM INVENTOU "LUGAR DE NEGRO", BANHEIRO, ESCOLA, SESSÃO EM BIBLIOTECA, LUGAR EM TRANSPORTE PÚBLICO, ENTRADAS EM AMBIENTES, NÃO "INVENTOU" O "NEGRO" QUE A ESSAS CONDIÇÕES FOI SENDO SUJEITO? ACHO QUE A ANGELA DAVIS DÁ CONTA DISSO MELHOR QUE EU E RODRIGO DOURADO. E SERÁ DIFÍCIL DESCREDENCIÁ-LA. p­ — 29


p­ — 30

imagem retirada da capa do livro "peles negras, máscaras brancas"


REFLEXÕES SOBRE 12 DE MAIO DE 2015, ou ainda tenho que falar sobre isso, depois de tanto tempo?

EUGÊNIO LIMA djeugenio.lima@gmail.com

A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo... ou tarde demais. Não venho armado de verdades decisivas. Minha consciência não é dotada de fulgurâncias essenciais. Entretanto, com toda a serenidade, penso que é bom que certas coisas sejam ditas. (...) O negro deve conduzir sua luta

C

om estas palavras, pinçadas da introdução do clássico/ ácido de Frantz Fannon “Peles negras, máscaras brancas” 1, abro minha reflexão sobre o debate intitulado “Arte e so-

ciedade: a representação do negro”, que ocorreu no Itaú Cultur-

em dois planos: uma vez que, historicamente, ele se condicionou, toda libe-

al no dia 12 de maio de 2015. Para tanto, é preciso deixar claro

ração unilateral seria imperfeita, mas o pior erro seria acreditar em uma

em que contexto este debate ocorreu: o encontro foi organiza-

dependência automática. (...) De uma vez por todas, a realidade exige uma

do após manifestações que acusavam “A mulher do trem”, de

compreensão total. No plano objetivo como no plano subjetivo, uma solu-

Os Fofos Encenam, de racismo...

ção deve ser encontrada. E é inútil vir com ares de mea culpa, proclamando

Com a minha mediação, participaram da mesa: Stephanie

que o que importa é salvar a alma. Só haverá uma autêntica desalienação

Ribeiro, estudante de arquitetura, blogueira e ativista; Fernando

na medida em que as coisas, no sentido mais materialista, tenham tomado os seus devidos lugares.

TREMA!_negro

1 FANNON, Franz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.

p­ — 31


AT O Ú N I C O - R E V E R B E R A R Quero iniciar pousando meu olhar sobre as reverberações públicas daquela noite. Confesso que tais reverberações me acompanharam ao longo de várias semanas. Participei de outros debates e encontros, li artigos e post nas redes sociais, viajei para fora do Brasil e lá fui interpelado ainda sobre o debate: qual seria a minha opinião a respeito disto ou daquilo? Algumas manifestações foram, no mínimo, “surpreendentes”. A racialização da questão no campo das artes e, sobretudo, na representação teatral abriu um grande panorama de opiniões de diversas matizes. Estas, no meu entender, reivindicavam em conjunto uma proteção quase “imaculada” do fazer artístico e uma defesa da cultura na qual qualquer análise crítica ou posicionamento sobre este fazer artístico, fosse ele “popular “ou “erudito” 3, eram um caso blackface na peça "a mulher do trem", da companhia "os fofos encenam". — foto: divulgação.

de censura ou de tentativa de cercear a criação. A defesa da arte, em sua imensa maioria, era uma bandeira

Neves, professor, pesquisador, ator e um dos diretores da com-

de luta e as opiniões em coro ignoravam qualquer reflexão sobre

panhia Os Fofos Encenam; Aimar Labaki, dramaturgo, roteirista,

a existência de uma visão racial pejorativa intrínseca na cultura,

diretor, tradutor e ensaísta; Mario Bolognese, professor de tea-

que destitui a alteridade/integridade do outro nas posições es-

tro da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho

tético-políticas. Era como estivéssemos diante de um olhar que

(Unesp) e pesquisador do circo brasileiro; Salloma Salomão, edu-

naturalizava o preconceito e o racismo no seio da cultura.

cador, músico, representante da Cia do Teatro e da intervenção

Esta é uma visão que aparta a arte da sociedade em se vive,

urbana “Os crespos”; Roberta Estrela Dalva, atriz do Núcleo Bar-

afasta a arte da história e que, sobretudo, distancia a arte do fato de

tolomeu de Depoimentos; e Dennis Oliveira, professor da Escola

ela estar pousada numa sociedade que foi/é (?) escravocrata duran-

de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo

te 400 anos, que recebeu quase 40% do tráfico negreiro do mundo,

(USP) e coordenador do coletivo Quilombação.

que teve o maior porto escravo da história da escravidão moderna,

Quero deixar explícito que mediar tal encontro não foi

que constrói apartamentos com quarto de empregada (senzalas

uma atividade fácil e que, em muitos momentos, os parado-

dentro de apartamentos), que mata sua juventude na idade mais

xos/contradições da função foram muito desconfortáveis.

produtiva e que tem a maior população negra fora da ÁFRICA.

Apesar de entender tudo isso como parte de um grande pro-

Evidentemente, neste espaço, não será possível discorrer

cesso histórico em curso e de compreender que o debate teve

sobre como a escravidão e o racismo moldou e molda a socieda-

um forte impacto na discussão sobre o racismo brasileiro e

de brasileira. Neste espaço, também não se poderá discutir sobre

sua relação com a cultura e arte na nossa sociedade, sei que o

como todos os países do continente americanos foram criados a

caminho ainda é longo até que possamos de fato desconstruir

partir da mão de obra negra escravizada, sendo o Haiti o único país

o ideário racista. Do mesmo modo, quero deixar “claro” para o

a declarar independência e abolir a escravidão, sofrendo um dos

leitor que não farei aqui uma mediação da ideias apresentadas

maiores boicotes e destruições sistemáticas que se têm notícia.

no debate, criando uma espécie de compêndio das falas de

Para compreender melhor tudo isso, recomendo a leitura de “O

cada um da mesa.

tratado dos viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul - Sé-

2

Não, caro(a) leitor(a), o que pretendo aqui é deixar explí-

culos XVI e XVII”, de Luiz Felipe de Alencastro, e “O racismo atra-

cito como vi/vejo as questões levantadas e, sobretudo, refletir

vés da história: da antiguidade à modernidade”, de Carlos Moore

sobre o que aconteceu depois. Tal reflexão é lacunar, incom-

Wedderburn. Também sugiro “Negro Drama”, dos Racionais MCS.

pleta, não pretende responder questões, mas articular um ponto de vista e usar a legitimidade da minha voz e vivência/

NEGRO DRAMA,

experiência sobre o respectivo tema. Ou, em outras palavras,

EU SEI QUEM TRAMA,

como canta Rappin' Hood: “se eu tô com o microfone, é tudo

E QUEM TÁ COMIGO,

no meu nome”.

O TRAUMA QUE EU CARREGO, PRA NÃO SER MAIS UM PRETO FODIDO.

2 Ao longo das semanas que seguiram, não consegui parar de pensar em como a linguagem “denigre” e afasta o reconhecimento da presença negra na sociedade. A luta é, sobretudo, para sobreviver diante da linguagem; para existir como representação simbólica.

p­ — 32

3 Duas camadas que não costumo mais usar, mas que, no caso, explicitam que a questão permeava as diversas “tradições” artísticas.


Ignorar que este processo histórico impregnou não só as relações

mas ainda me surpreende a defesa in loco de mecanismos que

culturais, mas a linguagem e a cultura como um todo é irresponsá-

oprimem a todos. De maneira desigual, meu copo tem pouca

vel e ingênuo. O próprio teatro chega ao Brasil como instrumento

água para derramar e vejo jarras muito grandes transbordando

de catequização, de destituição de imaginário e de enquadramen-

de intolerância.

to do outro em um apêndice do eu que olha um outro eu.

Quando penso nisto, ecoam na minha cabeça as palavras de Aimé Cesárie no seu “Discurso sobre o colonialismo” 5:

Como se sabe, as antigas missões, que estão na origem de tantas cidades, vilas, vilarejos e arraiais do interior do Brasil, foram os

Seria preciso estudar primeiro como a colonização se esmera em

lugares privilegiados dessa fabricação do componente indígena

descivilizar o colonizador, em embrutecê-lo, na verdadeira acep-

do “povo brasileiro”, ao sintetizar os célebres índios genéricos, os

ção da palavra, em degradá-lo, em despertá-lo para os instintos

índios de aldeamento, catecúmenos do sacramento estatal da

ocultos, para a cobiça, para a violência, para o ódio racial, para o

transubstanciação étnica: a comunhão nacional... A Constitui-

relativismo moral, e mostrar que sempre que uma cabeça dego-

ção de 1988 interrompeu juridicamente (ideologicamente) um

lada e um olho esvaziado no Viatename em que França se aceita,

projeto secular de desindianização, ao reconhecer que ele não se

uma rapariguinha violada em que França se aceita, (...) há uma

tinha completado. (...) Converter, reverter, perverter ou subverter

aquisição da civilização que pesa com seu peso morto, uma re-

o dispositivo de sujeição armado desde a Conquista de modo a

gressão universal que se opera, uma gangrena que instala, um

torná-lo dispositivo de subjetivação; deixar de sofrer a própria

foco de infecção que se alastra, e que no fim, de todos estes tra-

indianidade e passar a gozá-la.

tados violados, de todas estas mentiras propaladas (...), no fim

4

desta arrogância racial encorajada, desta jactância ostensiva, há No seu célebre “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não

um veneno instilado nas veias da Europa e progresso lento, mas

é”, Eduardo Viveiros de Castro discute as questões relacionadas à

seguro, do asselvajamento do continente.

falsa pergunta: quem é índio no Brasil? Para mim, tal pensamento de Viveiro de Castro é análogo à questão da representação negra e

Acredito que a arte tem um papel central nesta reorganização de

à recusa de grande parte dos jovens que foram ao debate no dia 12

heterogeneidades, pois é, na destituição da representação simbó-

de maio de serem visto diante de estereótipos culturais.

lica do outro, que este sistema se mantém ativo. É na linguagem,

Esta recusa de ser visto diante de estereótipos perpetua-

na forma de ver o outro, no apagamento das lembranças e na des-

dos pela cultura hegemônica e também pela construção artís-

construção dos saberes coletivos, que aos poucos vai apartando

tica representa, por um lado, a recusa de ser visto como negro/

um povo da sua forma de atuar sobre o mundo, que estão presen-

negra genérico. Ela é um sonoro “não” à mesma generalidade

tes os legados de um sistema escravocrata/racista. Este mantém,

que impede que a negritude seja gozada na vida, sem ser um

no seu centro, um olhar masculino/branco/eurocêntrico. Uma cul-

dispositivo de sujeição.

tura não se elimina por decreto: é preciso mudar o hábito e, sobre-

Ela é a recusa a tudo que faz com que os(as) negros(as) sejam

tudo, mudar o imaginário.

destituídos(as) de sua singularidade, para serem restituídos(as) de

Uma história precisa ser rearticulada. É necessário mudar

maneira perversa à condição de coisa, sem alteridade, sem cultura

quem organiza a cena. É chegado o momento de mudar o(a) narra-

e história, moldado de acordo com o olhar da sujeição.

dor(a) e, junto com ele(ela), mudar a forma de organizar a narrativa.

Por outro lado, ela representa, ao mesmo tempo, uma voz/ olhar/maneira de ser articulada sobre si mesmo, um olhar que se

Penso nas palavras e escrevo na tentativa de encontrar outras vozes dispostas a continuar a empreitada...

autorreconhece, um olhar de quem busca ser visto na sua singula-

Sou o que fiz que sou.

ridade, na sua alteridade afirmativa, seja na relação com a cultura,

Ser negro/negra é ser muita coisa... Mas, sobretudo, é uma

com a linguagem ou com a arte.

questão política.

Trata-se, ao meu entender, da falsa questão da liberdade de expressão artística versus movimento negro. O que vimos foi uma disputa política (no seu sentido mais amplo) sobre qual será a resposta pública que as construções artísticas e seus criadores

A minha Negritude é uma gota no oceano,

irão dar quando as representações cristalizadas e os estereótipos

É um pequeno ponto entre a África e a América.

raciais e sociais do outro forem questionados. Quando este outro

É uma onda no meio do Atlântico Negro 6 .

articular coletivamente a sua voz com um sonoro “não!”. Os limites não estão “claros”. Aliás, enegreceram bastante,

4 VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. Entrevista à equipe de edição, originalmente publicada no livro “Povos Indígenas no Brasil 2001/2005”. Link: https://pib.socioambiental.org/files/file/ PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_é_%C3%ADndio.pdf.

TREMA!_negro

5 CÉSARIE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução Noémia de Sousa. Lisboa: Editora Sá da Costa, 1978. 6 Citação tirada da obra Carta Aberta a Aimé Cesarie, de Eugênio Lima, ainda não publicada.

p­ — 33


NOTAS DE PROCEDIMENTO

o processo criativo do espetáculo

espetáculo "exu — a boca do universo" — foto: bob nunes

EXU – A BOCA DO UNIVERSO

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FERNANDA JÚLIA fernandajulianata@gmail.com

(Babalorixá Rychelmy Imbiriba – Esú Tobí, 2013)

D

ecididos a dar mais um passo em busca do amadurecimento do nosso projeto poético e mobilizados pela luta contra a intolerância religiosa e o combate ao

racismo, o Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas (NATA), no ano de 2011, decidiu que Exu seria o próximo orixá a ser encenado. Queríamos montar um espetáculo que contribuísse com o processo de quebra dos estigmas seculares que foram imputados a ele e que povoam o imaginário social a seu respeito. Tratava-se de realizar uma montagem que divulgasse a história desse orixá, seus atributos de mensageiro, comunicador, fiscalizador da verdade, amante da vida e apaixonado por Oxum. Muitas dessas informações são desconhecidas pela maioria da população e também por boa parte do povo de axé. Por isso, decidimos criar um espetáculo que contribuísse com a quebra dos estigmas sobre Exu mostrando sua beleza, realeza e, principalmente, o que ele representa dentro da religiosidade do Candomblé. Esse objetivo só pode ser alcança-

TREMA!_negro

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do em 2013, quando fomos contemplados pelo edital TCA.NÚCLEO “Em Construção, Edição Especial 2013 – Uma Homenagem a Lina Bo Bardi” 1. Assim, inscrevemos o projeto “Exu silé oná TCA – Exu abre os caminhos do novo TCA”.

O ORIXÁ Exu (Èsù), traduzido do yorubá para o português como “esfera”, é a figura mais controvertida do panteão africano, o mais humano dos orixás, senhor do princípio e da transformação. Na verdade, Exu é a ordem, aquele que se multiplica e se transforma na unidade elementar da existência humana, é o ego de cada ser, o grande companheiro do humano no seu dia a dia, é aquele que tem o poder de quebrar a tradição, pôr as regras em questão, romper a norma e promover a mudança.

espetáculo "exu — a boca do universo" — foto: andréa magnoni​

Exu e Ogun são as divindades da inovação. Sendo que Exu é o próprio princípio do

estabelecendo a comunicação entre todos os seres.

movimento, que a tudo transforma e supera os limites. Assim,

Todo elemento ligado à comunicação está intimamen-

tudo o que contraria as normas sociais que regulam o cotidia-

te relacionado a esse orixá, como a construção da linguagem,

no passa a ser atributo seu. Ele representa o princípio da con-

gestualidade, fala articulada e o poder da oralidade, elemento

tinuidade, garantido pela sexualidade e reprodução humana;

sagrado para os africanos, como se vê na descrição de Juana

está ligado ao prazer, ao gozo, à liberdade, à explosão da libido

Elbein (1986, p. 130-131) 3:

e do desejo sexual. Por tudo isso e pelo etnocentrismo comum a todo pro-

Exu não só está relacionado com os ancestrais femininos e

cesso de dominação, Exu recebeu atribuições distorcidas da

masculinos e com suas representações coletivas, mas ele

sua natureza, sendo transformado, principalmente no Brasil, na

também é um elemento constitutivo, na realidade o “elemen-

tradução de tudo o que tem ligação com o mal . Ele é a revolu-

to dinâmico”, não só de todos os seres sobrenaturais, como

ção, a mudança gradual e radical de comportamento e pensa-

também de tudo o que existe. Neste sentido, Exu não pode ser

mento humano. É o grande ojissé (mensageiro) dos orixás, faz a

isolado ou classificado em nenhuma categoria. É um princí-

conexão entre os planos da materialidade e da imaterialidade,

pio e, como o axé que ele representa e transporta, participa

2

forçosamente de tudo. Princípio dinâmico e de expansão de tudo o que existe, sem ele todos os elementos do sistema e 1 Nessa edição do TCA.NÚCLEO, o Teatro Castro Alves – TCA realizou uma mudança no perfil do edital: o que antes se tratava da formação de um elenco sob a condução de um diretor para a montagem de um espetáculo passou a ser uma residência artística para grupos e coletivos teatrais da cidade, que deveriam ocupar os variados espaços do teatro, com diversas atividades artísticas, de formação à difusão.

2 Refiro-me à visão criada de Exu pelo cristianismo, desde o processo de colonização impetrado pela Europa, quando missionários, ao chegarem ao continente africano, sincretizaram a imagem de Exu com a imagem do diabo cristão.

p­ — 36

seu devir ficariam imobilizados, a vida não se desenvolveria. Essa descrição mostra a dimensão de Exu. Para os adeptos do Candomblé, é a divindade mais importante do panteão; sem

3 DOS SANTOS, Juana Elbein. Os nagô e a morte. São Paulo: Editora Vozes, 1986.


O PROCESSO CRIATIVO A construção do texto neste espetáculo foi o disparador e definidor de novos caminhos dramatúrgicos

do

grupo,

como assinala Daniel Arcades, em entrevista concedida em novembro de 2015: Quis colocar no texto aquilo que fizemos em Siré Obá, ainda em experimentação de linguagem cênica. Quis aprofundar a ideia da poesia na cena e da “cotidianização” da palavra considerada poética. A provocação, através das imagens construídas pelo grupo, auxiliava na construção do texto, e a possibilidade de ouvir o grupo e refazer as cenas foi um exercício de escuta para uma atividade considerada solitária na maior parte das vezes. Meu amor pela poesia, acredito, foi a maior contribuição que pude dar a este espetáculo. Essa afirmação de Daniel Arcades,

dramaturgo

do

NATA e autor do texto, é a sua intervenção, não há possibilidade de realização de ne-

uma pista de que a construção da dramaturgia do espetáculo

nhum ritual, por isso é sempre saudado em primeiro lugar.

"Exu" deu relevo ao casamento entre itans e orikis, pois con-

Como dito anteriormente, é uma divindade-bússola, rege os

tribuiu para que pudéssemos apresentar aos espectadores um

caminhos, as passagens, as entradas e saídas tanto no sentido

Exu divindade, apaixonado, ritualístico e festivo. Ao poetizar

físico como no sentido energético do termo. Outra caracte-

as lendas desse orixá, criamos um texto bem-humorado, críti-

rística importante de Exu é a valorização da vida. Estar vivo,

co e, ao mesmo tempo, imagético e sensorial. Nesse processo,

quente, pulsando. Exu é a vida ao máximo, é a vida em todas as

imergimos com mais cuidado no universo da língua yorubá,

acepções possíveis.

sua melodia, fonética, significados e tonalidades.

Uma característica pouco divulgada desse orixá é a de

Apostamos na escrita de um texto que, dividido em qua-

“grande fiscalizador”, o mantenedor da verdade e da honra.

dros, nos remetesse a passagens ou episódios da vida de Exu,

Aquele que promete tem que cumprir com a sua palavra e Exu

mesmo sem uma história com começo, meio e fim. A profusão

é a divindade responsável por fazer cumprir aquilo que foi

de situações, características e feitos deste orixá apresenta um

prometido. É o protetor da verdade e da palavra empenhada.

mosaico interessante sobre a divindade e também a beleza da

Exu é uma grande divindade. Sua importância dentro da

cultura yorubana. A dramaturgia de "Exu" foi um passo à frente

ritualidade do Candomblé é sem precedentes. Sua presença é

na compreensão do grupo a respeito do poder da palavra, do

sentida desde as mais simples circunstâncias, como a sensa-

valor da oralidade e da utilização de elementos mítico-nar-

ção de dor que um beliscão provoca ou o prazer de um beijo;

rativos que mostrassem a essência da divindade, porém sem

em ambas as situações, Exu está presente ao sinalizar que algo

revelar os fundamentos de seu culto em cena.

diferente acontece com o corpo. É a poesia da existência, é o

No campo da visualidade, nosso Ipadê 4 de cenário, figuri-

patrono das encruzilhadas, de todas elas. Está na passagem, na

no e luz estabeleceu diálogos mais conectados nessa monta-

íris dos olhos. Caso precise de algo, ele está ali, como contam os mais antigos, sentado à esquerda da porta de entrada. 4 Termo em yorubá que significa encontro em português.

TREMA!_negro

p­ — 37


NOTAS DE PROCEDIMENTO

espetáculo "exu — a boca do universo" — foto: usina de artes joão donato

gem. Houve um melhor amalgamento desses elementos, pois o ator e diretor de arte Thiago Romero e também ator e ilu-

REFERÊNCIAS PARA A CRIAÇÃO DO FIGURINO E DA MAQUIAGEM DE “EXU – A BOCA DO UNIVERSO”

minador Nando Zâmbia, por meio de suas pesquisas cênicas estabelecidas no interior do grupo, trouxeram ao espetáculo

O depoimento de Thiago Romero expõe as escolhas que nortea-

"Exu" uma visualidade que, além de exuberante, revela Exu em

ram a construção da visualidade do espetáculo "Exu", aponta onde

sua majestade e profunda beleza. Como afirma Thiago Rome-

buscamos referências para essa construção e nos situa quanto

ro, em entrevista realizada em novembro de 2015:

aos objetivos a serem alcançados por essas escolhas. Por isso, a cenografia desse espetáculo foi construída a partir da inspiração

Em relação aos elementos visuais, pode-se notar um aprofunda-

do culto a Exu no continente africano. Em países como a Nigéria,

mento na construção da visualidade do NATA, uma imersão na

o Togo e o Benin, por exemplo, existem altares para Exu na entra-

pesquisa sobre a herança cultural africana e como ela está ex-

da das cidades, das feiras e/ou de espaços/templos consagrados

pressa no dia a dia do povo brasileiro. Em "Exu", esses elemen-

a ele. No caso desse espetáculo, nós nos inspiramos no símbolo

tos foram criados durante o processo. Muitos dos elementos de

mais importante da indumentária de Exu, o ogó. Esse símbolo tra-

figurino, cenário e maquiagem surgiram durante o processo de

duz a ligação de Exu com a reprodução humana, com a liberdade

criação do espetáculo e foram frutos da nossa pesquisa sobre a

e o prazer sexual e possui o poder de levá-lo a qualquer lugar que

ancestralidade. Este mergulho nos propiciou a construção de uma

queira ir, fazendo-o transitar pelas várias dimensões.

visualidade rica, diversa, como é a cultura brasileira e africana.

Desse modo, construímos um grande totem em formato de

Analisando minha trajetória como diretor de arte do grupo, pos-

ogó, que representou nossa síntese cenográfica. Chamamos de

so notar um amadurecimento nas concepção e escolhas estéticas

síntese cenográfica a construção de uma cenografia substancial,

referentes à criação e seleção de materiais, modelagens e formas.

que é composta pelos elementos cênicos primordiais, uma ceno-

Fizemos uma imersão nas indumentárias ritualísticas africanas e

grafia enxuta, sem excessos. Toda a ação da montagem orbita em

afro-brasileiras e, a partir deste mergulho, conseguimos conceber

torno desse totem, e ele é o captador de toda a atenção no sentido

um espetáculo com potência visual, no qual figurino, maquiagem

coreográfico e da iluminação.

e cenografia revelam, assim como a dramaturgia, características

Além do conceito de totem, os altares construídos para os

sobre Exu e também contribuem para a criação das atmosferas de

orixás no Brasil, chamados de peji ou pepelê, foram também uma

ritualidade e interatividade propostas pelo texto e pela encena-

inspiração para a cenografia, uma vez que uma base de madeira foi

ção. Assim como no Candomblé, a roupa e os adereços não apenas

construída para sustentar o totem e os elementos simbólicos dos

vestem, mas também revelam magia e encantamentos. E foram a

altares dos orixás. Assim, quartinhas, quartilhões, pratos de barro,

busca destes elementos que orientaram as nossas escolhas.

bebidas e búzios foram colocados de forma a dar a ideia de um

p­ — 38


altar para Exu. Com isso, a cenografia propõe colocar o público em

e traços que se emaranhava na exuberância da divindade ali

um espaço de proximidade, integração e ritualidade e também de

homenageada e que precisava de contornos expressivos e tra-

reverência a essa divindade.

dução pigmentada. Minha função foi pintar os sentimentos.

O figurino e a maquiagem foram concebidos a partir das

Para além da função primordial de iluminador, tive a intenção

vestimentas e maquiagens utilizadas por algumas comunidades

de que meu trabalho também fosse responsável por mostrar a

africanas, como os L´omo, Surma, Mursi, Hamer, Himba, Ndebele e Ar-

beleza dessa divindade.

bore, e também a partir da visualidade das indumentárias do orixá Exu nas comunidades de axé da Bahia e do Brasil. Essa concepção

Os desejos e objetivos de Nando Zâmbia, como pintar os senti-

fundamenta-se na necessidade de apresentarmos Exu como ori-

mentos e mostrar a beleza dessa divindade por meio de uma tra-

xá, como divindade, retirando da sua imagem qualquer associação

dução pigmentada, traduzem nossos progressos na compreen-

com o demônio, tal como visto pela religião cristã. Ao buscarmos

são de um teatro ritualizado. Também dá pistas do processo de

a ancestralidade africana de Exu, colocamos em cena a riqueza e a

conscientização técnica e conceitual ao qual estamos passando

exuberância dessas comunidades, como um pequeno exemplo da

e explicita a relevância da iluminação em nossas montagens.

grandiosidade e da beleza do continente africano e sua presença

Desse modo, a sua participação nessa construção cênica trouxe

ressignificada pelo Candomblé no Brasil.

contribuições pertinentes e relevantes para o fazer teatral que

A maquiagem fundamentou-se no conceito do “corpo como

buscamos realizar.

tela”, pesquisa desenvolvida por Thiago Romero desde a maquia-

Já no que se refere à direção musical e coreográfica, é im-

gem do espetáculo "Siré Obá" . Essa pesquisa tem inspiração na

portante ressaltar que o diretor Jarbas Bittencourt, a instrumen-

força e na beleza das máscaras e das pinturas corporais de comu-

tista Sanara Rocha e o coreógrafo Zebrinha estabeleceram mais

nidades africanas, incluindo a civilização egípcia, além das pintu-

que um diálogo artístico. Eles criaram uma simbiose cênica que

ras realizadas nas cerimônias de iniciação do Candomblé. Desse

auxiliou na criação de uma montagem rica em movimentos, tex-

modo, Thiago Romero vem desenvolvendo processos de pintura

turas sonoras e explosões corporais. Em um espetáculo no qual

corporal e colagem de pedrarias que intensificam a expressivida-

teatro e ritual configuram a base da criação, não há como seg-

de dos atores, mostrando também a beleza dos traços e das for-

mentar nenhuma linguagem, muito menos a música e a dança.

mas africanas e afro-brasileiras.

Assim, esses elementos foram construídos de forma unificada,

5

No que diz respeito à iluminação, Nando Zâmbia propôs uma

sem nenhum tipo de distinção entre eles, pois são mantenedores

luz cenário, uma luz texto, uma luz ritual. Em diálogo intenso com

da energia e das imagens construídas pelos atores, além de que

as diretrizes da encenação, a iluminação trazia para a cena o poder

conduzem e estimulam as sensações do espectador.

transmutador do sagrado, ao mesmo tempo em que convidava

Para facilitar a leitura, abordarei a concepção desses elemen-

para uma balada noturna, uma festa com os amigos, colocando no

tos de forma separada, começando com a construção musical.

espaço cênico a intimidade da cerimônia e a liberdade da rua.

Nessa montagem, a música passou por um processo de hibridiza-

A iluminação é um elemento de instauração de energia e at-

ção rítmica na composição da trilha sonora. Nós juntamos a músi-

mosfera da cena. Colabora com a construção corpórea dos atores,

ca popular brasileira com alguns ritmos africanos como o bravum,

com as imagens construídas durante o processo e com o jogo cê-

agueré e avamunha (ritmos tocados para o orixá Exu nas cerimô-

nico entre os atores e entre eles e os espectadores. É um elemento

nias do Candomblé), criando um universo sonoro diversificado.

de intensificação de visualidade, pois também dialoga com a indu-

Essa reunião de ritmos tinha, como objetivo principal, intensificar

mentária do espetáculo, revelando nuances e símbolos.

a comunicação com o público de forma a não criarmos um espetá-

Na concepção do NATA, luz é música, movimento, co-

culo que só dialogasse com pessoas iniciadas no Candomblé, mas

reografia e estado energético, um elemento que proporciona

que também pudesse aproximar o orixá Exu dos espectadores,

sensorialidade aos espectadores, colocando-os no interior do

mostrar-lhes a riqueza da musicalidade africana e afro-brasileira

ritual e contribuindo de forma eficaz na divinização e huma-

e suas reverberações na composição da música popular no Brasil.

nização de Exu. O iluminador Nando Zâmbia assim define a sua

Para a execução da trilha sonora, realizamos um processo de composição de música executada ao vivo e bases musicais

participação no espetáculo:

gravadas, criando uma simbiose interessante e dinâmica. ProcuNo que tange à minha contribuição na montagem do espe-

ramos criar um tecido musical que fizesse com que o público não

táculo, enxergo que ficou toda ela condicionada em revelar

diferenciasse o que era executado ao vivo do que estava sendo

nuances sensíveis de uma grande tela em movimento. Costu-

gravado. A música, em nossos espetáculos, tem a finalidade de

mo dizer que o espetáculo é um quadro de imensas proporções

revelar a beleza da divindade a ser encenada, suas sutilezas e sen-

que se apresenta com todas as cores e que nós, iluminadores,

sibilidades e também a de estabelecer o encontro ritual.

somos responsáveis por retirar o excesso e acentuar os pontos

Dentro da ritualidade do Candomblé, a música tem grande

que os pincéis – atores, encenadores, diretores musicais, ce-

responsabilidade na condução das cerimônias, principalmente

nógrafos, figurinistas e colaboradores – pintaram. No espe-

as públicas, em que tudo é cantado. É por meio também da mú-

táculo "Exu não foi diferente. Tinha ali uma profusão de cores

sica que estabelecemos a comunicação com os planos do visível e do invisível. Desse modo, almejamos sempre, em nossas peças,

5 Espetáculo que inaugura a pesquisa sobre ancestralidade do NATA.

TREMA!_negro

a criação de um universo sonoro que, assim como no Candomblé, possua um ambiente de transcendência.


NOTAS DE PROCEDIMENTO Em entrevista realizada com o diretor musical do NATA Jarbas

A concepção coreográfica de Zebrinha consistiu na criação

Bittencourt e com a instrumentista Sanara Rocha, perguntei a

de um espetáculo completamente coreografado. Todos os

ambos como definiriam a criação musical do espetáculo "Exu —

movimentos do espetáculo, os deslocamentos, avanços e in-

A boca do universo". Bittencourt traduziu seu pensamento apre-

teração com os espectadores foram devidamente pensados

sentando o seguinte esquema:

por ele. Tudo foi minimamente coreografado, nada deixou de ser dança. Até nos momentos de maior espontaneidade dos

A minha atuação no espetáculo '"Exu" é uma tentativa de co-

atores, eles estavam executando uma coreografia. Essa opção

locar a minha visão e experiência de música cênica a serviço da

deveu-se ao fato de termos muitas variações rítmicas dentro

estruturação sonora e musical dos elementos imanentes ao ser

da peça e pela necessidade de manter uma pulsação interna

artístico do NATA, e ela pode ser descrita da seguinte forma:

que mantivesse o espectador conectado com o espetáculo. A dança, assim como a música, precisava de um gráfico, de um

A) Identificação dos traços musicais mais importantes em

metrônomo a dar andamento às cenas, para que pudéssemos

cada um dos ‘estímulos sonoro/musicais’ presentes em cada

atingir o chamado “colorido cênico”.

cena. Tais estímulos serão aqui doravante denominados ESM;

Esse colorido relaciona-se com o modo através do qual

B) Interferência nos aspectos de forma e estrutura musical

a dança se processa nas cerimônias do Candomblé, pois, ao

dos ESM propiciando maior inteligibilidade no discurso sonoro

dançar durante o siré, o orixá conta sua história, seus feitos,

interno e em sua relação com os outros elementos da encenação;

suas derrotas e seus amores; nenhum gesto é à toa, tudo tem

C) Proposição de alterações timbrísticas que possam, em

um simbolismo muito profundo.

termos de dramaturgia sonora, dialogar de forma mais en-

O trabalho coreográfico foi fundamental, pois, para nós,

riquecedora com a macroforma do espetáculo. Recursos tais

o corpo fala, e nosso fazer cênico busca essa teatralidade

como os do simbolismo sonoro, da alusão musical, da criação de

que mobiliza todos os sentidos. Assim Zebrinha foi tecendo,

texturas sonoras a partir de ritmos dados e da descontextuali-

tramando e compondo a cena, desenhando e comunicando;

zação foram frequentemente usados neste processo;

como ele mesmo diz, “legendando” a divindade. Sobre a im-

D) Composição de temas e/ou estruturas musicais que expres-

sem os estados desejados pela direção para cenas do espetáculo;

portância do corpo negro na cena e suas implicações, Zebrinha argumenta, em entrevista realizada em março de 2016:

E) Composição de canções dentro dos parâmetros estéticos Eu encaro o corpo, eu posso falar do corpo negro, que é a mi-

da encenação;

F) Definição em termos de sintaxe musical de como um

nha praia. Partindo do princípio de que todos os corpos são

elemento encadeia-se a outro no processo de sucessão de ce-

iguais, eu acho que o corpo negro é operístico. Acredito mui-

nas do espetáculo;

to na memória desse corpo, tem muitas histórias pra contar.

G) Finalização da parte musical do espetáculo, definindo,

O corpo negro tem tanta coisa ainda pra dizer e que não foi

com os atores/ intérpretes e técnicos musicais, todas as questões

dito. Acho que tudo em relação a gente, a cultura. Temos tan-

referentes à DINÂMICA e AGÓGICA 6 que irão compor a teia da

ta coisa pra falar, que nunca foi dito e nem escrito. Então, por

música dentro da encenação.

exemplo, é muito fácil eu olhar um corpo negro em movimen-

to e dali escrever um vocabulário só ao observar. Este corpo A esquematização do pensamento de Jarbas Bittencourt é uma

vem legendado por histórias.

tentativa de melhor explicitar as escolhas que fazemos no que tange à criação da trilha de nossos espetáculos. É importante

Por termos muito o que dizer sobre nós negros e sobre a nossa

apontar que, em "Exu", considero que conseguimos uma equida-

memória ancestral é que necessitamos compreender esse cor-

de no emprego dos elementos do Candomblé e dos elementos

po legendado de história, ativar suas memórias e, com ênfase

do teatro. Vejo que pudemos somar a isso a construção de uma

nessas reminiscências, apurar a técnica artística, estabelecer os

trilha com maiores complexidades sonoras e técnicas.

diversos diálogos e construir um espetáculo que possa ser uma

No caso da dança, dividimos o processo de criação em duas

contribuição efetiva na formação da identidade cultural do ar-

etapas. Na primeira, durante o processo de preparação corporal,

tista brasileiro e também na ampliação do universo simbólico

mergulhamos no universo do Candomblé ao treinarmos cor-

do nosso povo.

poralmente utilizando os ritmos tocados para Exu. Nesse trei-

E, assim, munidos dessa erudição africana e afro-brasilei-

namento, conseguimos apreender a gestualidade, o vigor e as

ra, vamos configurando e reconfigurando nosso pensamento e

sutilizas dessa divindade para depois passarmos a incorporar

atitude cênica. O espetáculo "Exu" trouxe, integrado ao seu pro-

fragmentos da coreografia ritual de Exu a experimentações com

cesso de construção, o escavamento das questões pontuadas

outros elementos de dança. A segunda etapa compreendeu o le-

por Zebrinha, já pensadas e discutidas nos espetáculos anterio-

vantamento da coreografia do espetáculo; nesse momento, nos-

res do grupo. Mas, nessa montagem, apresentam novas cama-

so coreógrafo Zebrinha uniu o material levantado no processo de

das de entendimento e também um fortalecimento intelectual,

preparação com a sua concepção de coreografia.

artístico, político e filosófico de cada artista que atualmente compõe o NATA.

6 Conceitos utilizados para definir a pulsação e o ritmo interno da música; nesse caso, da música dentro do espetáculo.

p­ — 40


EXPEDIENTE TREMA! revista de teatro EDIÇÃO DO negro ANO 2

#9

MARÇO 2017

COORDENAÇÃO TREMA! PLATAFORMA DE TEATRO Mariana Rusu e Pedro Vilela

CONSELHO EDITORIAL Bárbara Buril , Mariana Rusu, Olívia Mindêlo, Pedro Vilela e Thiago Liberdade

EDIÇÃO Bárbara Buril

PROJETO GRÁFICO Thiago Liberdade

CAPA E CONTRA CAPA Mohau Modisakeng

PROPONENTE DO PROJETO Mariana Rusu

COLABORADORES DA EDIÇÃO* Calixto Neto, Criola, Eugênio Lima, Fernanda Júlia, Giovana Xavier, Iran Melo, Patricia Hill Collins, Marcondes Lima, Maria Bianca, Marcílio Moraes, Marconi Bispo, Mariana Rusu, Nathália Hera Texeira, Rodrigo Dourado e Thiago Andrade *As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

PLATAFORMA TREMA! tremarevista@gmail.com tremaplataforma@gmail.com facebook.com/tremaplataforma www.tremaplataforma.com.br +55 (81) 9 9203 0369 | (81) 9 9223 5988

Tiragem: 500 exemplares (por edição) Impresso pela Brascolor ISSN: 2446-886X

Edição do NEGRO | Nº #9 | Ano #2 | Recife, Março de 2017

Realização:

Incentivo:

A TREMA! Revista de Teatro de Grupo é uma publicação com incentivo do FUNCULTURA – Fundo de Incentivo a Cultura de Pernambuco.

TREMA!_negro

#NE GR O LEI TURA V I SUAL Criola




ISSN: 2446-886X

EM TODAS EDIÇÕES VAMOS BUSCAR NO DICIONÁRIO OS SIGNIFICADOS DO TEMA PROPOSTO. PARA O NEGRO, NENHUM DICIONÁRIO SERÁ SUFICIENTE. POR ISSO VAMOS NOS VALER DO SEGUINTE EXTRATO DA MÚSICA DE CHICO CÉSAR:

"POIS QUANDO UM PRETO FALA O BRANCO CALA OU DEIXA A SALA COM VELUDO NOS TAMANCOS"


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