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'Eu era a bola da vez'
UM DOS MAIORES PRODUTORES DE HITS DO POP BRASILEIRO, GUILHERME ARANTES CELEBRA 40 ANOS DE CARREIRA E, NUM LONGO PAPO COM A REVISTA UBC, ANALISA SUA ASCENSÃO METEÓRICA, O APAGAR DOS HOLOFOTES, AS TRANSFORMAÇÕES DO MERCADO NESTAS DÉCADAS E O RENASCIMENTO DA MÚSICA DE VANGUARDA URBANA
Por Alessandro Soler
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Guilherme Arantes é dono de uma memória prodigiosa. Crava datas, locais, até mesmo horários de encontros importantes para sua carreira. Reconstrói diálogos tal como foram proferidos – ou, ao menos, assim lhe parece. Recita nomes – de parceiros, eventos, músicas, bandas – com fluidez. Tudo nele é rápido, urgente. Se não for interrompido, emenda um fluxo contínuo de ideias, digressões. Não surpreende que, ao celebrar seus 40 anos de carreira (descontados os dois como um dos cérebros da banda de rock progressivo Moto Perpétuo, surgida nos corredores na Faculdade de Arquitetura da USP, onde estudou), ele tenha planejado e guiado à minúcia a produção de um farto material que pretende definitivo.
Além de uma caixa com os relançamentos remasterizados de seus 21 LPs e de inúmeros singles, a cargo da Sony, um documentário de cerca de sete horas e em sete episódios divididos cronologicamente e uma considerável agenda de shows celebrativos, publicará uma minibiografia, uma carta escrita de próprio punho para acompanhar o material e relembrar passagens marcantes que resumem, a um só tempo, sua própria vida, sua carreira e um pedaço importante da história recente da música brasileira.
Neste papo com a Revista UBC, editado num esquema de perguntas e respostas para que o leitor possa ter uma ideia de como funciona a mente ágil e multirreferenciada de Guilherme Arantes, ele relembra suas idas e vindas pelas maiores majors do Brasil – cujo ocaso, admite, representou um golpe para sua própria carreira –, volta a falar do breve affair que teve com Elis Regina, brinca com a rivalidade artísticocultural entre Rio e São Paulo, contextualiza o momento em que surgiram alguns dos incontáveis hits que enfileirou por anos, em contínua linha de produção, reivindica um papel central na criação de uma cena musical infantil no país. E, principalmente, oferece um testemunho de alta qualidade, e em primeira pessoa, de um momento de ouro do pop e da MPB, gêneros que ele vê renascer depois de anos de uma decadência que associa ao que chama de utilitarismo ligado a movimentos como o sertanejo, o pagode e o axé.
Quarenta anos de carreira solo são coisa à beça. Já dá para fazer um balanço bem razoável, não?
Eu tive uma carreira muito irregular, de muitas fases e altos e baixos, com vários selos e gravadoras. Fonograficamente, fui um cara muito eclético. Comecei pela Som Livre, no início da carreira (solo), em 1976, começo forte, com bastante televisão. Depois saí para a Warner. Fiquei quatro anos lá, já num outro perfil de gravadora, com o (André) Midani… Passei pela WEA, voltei para a Som Livre, fui para a CBS, para a Odeon, para a Polygram... Estive no rock, no pop. E tive a Elis (Regina) na minha vida, me gravando, em 1980, no momento mais marcante da minha carreira, uma encomenda para ela (a canção “Aprendendo a Jogar”). Naquele momento, eu tinha a incumbência de fazer um hit para o rádio. Um hit para a Elis. A geração dela estava ficando fora da FM, que ganhava força… Então fizemos pensando nisso. Ela tinha emplacado um sucesso mediano com o “Alô Alô, Marciano”, da Rita Lee (e de Roberto de Carvalho), meses antes. Mas precisava se firmar. Estava numa fase difícil de carreira, teve problema em Montreux (segundo os registros da época, a cantora não gostou da sua apresentação no mítico festival suíço)… O perfil dela estava atrapalhado… Foi um momento importante para ela e ainda mais para mim.
Por quê?
Eu não tinha credibilidade, não era gravado por outros que não eu mesmo. Ela gravou “Só Deus É Quem Sabe”, que eu tinha guardada e mandei para o Roberto Carlos. Ele não deu retorno. Fala de separação, coisa de casal. Ela gostou, fez um bolero, gravou de pronto. Aí pediu uma música que pudesse entrar na FM. Como a banda dela tinha acento funk muito forte, o Pedrão Baldanza era o baixista e ajudou a fazer o arranjo junto com o Cesar Camargo Mariano, que era marido da Elis. O Cesar é uma pessoa a quem devo muito. Ele incentivou a Elis a me dar oportunidade. Ela queria um compositor paulista, queria dar uma descariocada no trabalho dela. Gravou Belchior, outros paulistas… Então estava querendo dar uma puxada para a música de São Paulo. Quando ela me ligou, eu morava na Vila Mariana. Me ligou num fim de tarde em 1980. Eu tinha gravado um disco chamado “Coração Paulista”, pela Warner, meio maldito, meio de rock, feito com o Liminha. A Elis tinha me visto no “Fantástico” cantando (a canção) “Coração Foi, sim. Fomos jantar no Bar Lagoa, no Rio, e brincamos de fazer “trocadalhos do carilho” (risos). Eu, desde o colégio, já brincava disso. Quem tem amigo cachorro quer sarna para se coçar. Água mole em pedra dura mais vale que dois voando… Ela também pirava nessas coisas. Voltei com esse briefing, e a música saiu rápido. Recentemente descobri o cassete original que mandei para ela. A música foi gravada e, em uma semana, estava em primeiro lugar na FM. Foi uma coisa assim… como dizer?... Foi demais! Ela cravou essa história de que sou um hitmaker, esse carimbo… Ela disse: “você pede, ele atende, e estoura.” A Elis tinha bronca por estar de fora do ambiente da FM naquele momento. Tinha uma coerência política, filosófica, ideológica… Então estava difícil para ela estourar num mercado que sofria uma transformação. E claro que a entrada dela em primeiro nas FMs foi fundamental para mim. Me permitiu emendar outro sucesso, “Deixa Chover”. Voltei para casa e fiz a música, que cita a “Aprendendo a Jogar”, “As pessoas sempre têm a chance de jogar de novo e errar”, e é uma citação também ao affair, ao babado rápido que tivemos naquele momento. Era uma nova chance para ela jogar de novo e errar...
Como foi esse affair?
Teve uma história entre nós naquele momento. Elis era uma pessoa livre. A gente teve um babado. Ela avançou para cima, avançou o sinal. Eu era aquele cara jovem, cheio de energia... Saímos juntos, foi bonito, guardo com muito carinho. Eu tinha muito respeito por eles, por ela e o Cesar. Isso é importante dizer. O Cesar tinha sido o responsável por eu estar na área e me deu força como produtor, ajudando a estourar “Aprendendo a Jogar”. Que se seguiu ao Festival MPB Shell 81, da Globo, em que participei com “Planeta Água”. Foi sequência mortal, importante, que se mantém até hoje como símbolo do meu desabrochar para o mercado. Eu era a bola da vez.
E o que veio depois?
Eu tinha outra música com o Júlio Barroso, que era a “Perdidos na Selva”, já no MPB Shell 81. Fiz a pedido do Nelson Motta para a Gang 90 e As Absurdettes. Só que não assinei, porque não podia concorrer com duas no festival. Acabou sendo editada só em nome do Júlio. Anos depois ele faleceu, ficou no nome dele, não fiz questão de reverter isso aí… Eu fiz o refrão, “eu e minha gata rolando na relva…”, e alguma outra coisa. Lembra até o estilo de “Lindo Balão Azul”, que eu estava produzindo na mesma época e que inaugurou a era dos musicais infantis porque eu tomei uma atitude muito acertada. Foi a de voltar para a Som Livre num momento de estouro. O Guto Graça Mello tinha me descoberto, nos anos 1970, e eu os “traí” indo gravar com o Midani. Naquele momento de bombação, com três hits enfileirados, fui até o Guto e propus a minha volta no auge. Tinham feito “Arca de Noé”, com Vinicius (de Moraes), Edu Lobo, Chico (Buarque)… Era uma obra mais erudita, sofisticada. A proposta da Globo era fazer pop. Propus o “Lindo Balão Azul”, que vendeu um milhão de discos. Nesse momento eu me firmei como compositor que estava com a estrela. Eu tinha virado um midas.
Aquele momento de música infantil durou um certo tempo...
Durou. Eu fiz depois o especial com o Paulo Leminski, o “Pirlimpimpim 2”, um disco de “diluição”, como se dizia. Traduzindo: um caça-níqueis, uma sequência do sucesso do “Pirlimpipim”, que marcou os 100 anos do Monteiro Lobato. Mesmo sem criar diretamente eu continuava na ponta de lança dessa história infantil. A introdução do tema de abertura do “Xou da Xuxa” (“Doce Mel”, de Claudio Rabello e Renato Correa) é igual à do “Lindo Balão Azul”. O arranjo, do Lincoln Olivetti, chupou totalmente, descaradamente, o meu. Ele mesmo me disse: “bicho, eu chupei descaradamente. Algum problema?” Eu virei: “nenhum, meu, você pode tudo.” Esse cara me deu muita força na carreira, me admirou e estimulou. Claro que não havia problema. Isso é o pop. Os Beatles faziam isso. Todo mundo se “cita” o tempo todo.
Você estava podendo nesse tempo. Era amigo dos caras, influente. O que faltava?
Eu buscava novos desafios (risos). Então fui para a CBS, onde tinha o Marcos Maynard, Claudio Condé, que eram um grupo de fãs e foram muito importantes para mim. Quem me pôs lá, de certa forma, foi o Djavan. Fui fazer, no final de 1984, um show em Maceió. Apareceu o Djavan no meu camarim. Adoro ele. Uma honra. Um gênio, puta músico, hitmaker… Estava estourado, tinha feito o disco “Luz”, com gaita do Stevie Wonder… Depois lançou o “Lilás”, muito forte no pop. Foi a um show meu, conversamos no camarim, e ele disse que o pessoal da CBS me adorava e que eu deveria tentar, que eu ia me dar bem lá. Na semana seguinte, consegui o telefone da CBS e liguei para o Maynard, que era diretor artístico. O cara pulou da cadeira, “não acredito, você era quem queríamos aqui”. No dia seguinte fomos almoçar na Majórica (churrascaria no bairro do Flamengo, no Rio). Lembro dessas situações todas, muito engraçado. Dois dias depois estava assinado com a CBS e começava a produzir um disco que ia estourar total.
Quando hoje eu conto a minha história, as palavras que vêm à mente são satisfação, alegria e gratidão. Não há ranço de injustiça, que eu acho um estado péssimo do artista. Sempre somei música, letra, arranjo, piano, voz e figura, a minha figura. Não me deixei manipular em momento algum. Nunca conseguiram me adulterar, sempre fui muito respeitado. Essa é a verdade. Por todos. Primeiro o João Araújo, depois o Guto Graça Mello, depois a CBS. Na própria Odeon, na Polygram… Nas majors eles sempre foram cheios de dedos para lidar comigo. Eu era figura muito definida, autônoma.
Em nenhum momento esse sucesso subiu à cabeça?
Eu até tive um período de temperamento, comecei a ter um temperamento meio difícil, no final dos anos 1970, em função das dificuldades do mercado, que é muito duro. Você sempre ouve do mercado que você não está com essa bola toda. Isso é uma constante para todos os artistas. “Menoshhhh” (imita sotaque carioca e ri). Há 38 anos eu não era ninguém perto do Magal, que era fodão. Quando eu chego ao começo dos anos 1980, quando a Elis me grava, eu estava por baixo. Não era ninguém comparado com o Kleiton & Kledir ou o Oswaldo Montenegro. Não estava mesmo com essa bola toda. Depois, passaram-se os anos, e lá para 1983 ou 1984 eu não era ninguém perto do Ritchie ou do Fabio Jr., que passavam o sucesso na cara. Passaram-se mais dez anos de muito sucesso. No fim dos anos 1980 eu não era ninguém perto dos caras dos gêneros populares que tinham bombado com a era do CD - Asa de Água, Netinho… Dez anos depois, não era ninguém perto do Claudinho & Buchecha. Aí descubro que em 40 anos nunca fui ninguém! (risos).
Essas comparações irritam o artista em sala de gravadora. Quando você quer fazer um projeto e “não está com essa bola toda”… Isso é o normal da negociação. Os caras derrubam para pagar menos. Com o tempo fui aprendendo isso. Era assim. Não pode gerar irritação, sentimento de injustiça. É o mercado em que a gente quer estar. Tem que jogar o jogo. Hoje tenho 63 anos e vejo que fiz um bom serviço de sobrevivência. E nesse pacote agora eu mostro toda essa gratidão.
Como?
Dentro da caixa da Sony vai vir um relato manuscrito, um diferencial importante, com caneta gráfica, em que escrevo em 72 páginas todos os detalhes das gravações, a relação com o mercado, as expectativas e tudo mais. Onde a gente estava, o que comíamos, quem eram os músicos. E detalhes técnicos sobre a feitura dos discos com muitas minúcias. Fui buscar pesquisas de todo o contexto. Fui atrás até de fichas técnicas falhas e que omitiam músicos e participantes. Nem tudo foi perfeito nas fichas. Então fiz trabalho que será diferencial importante na caixa. Esse verdadeiro libreto conta essa história. Não conta a história das músicas. Essa fica a cargo do documentário.
E este? Como é exatamente?
É um grande documentário de sete horas de material já editado. Sete episódios de uma hora, cada um dividido em capítulos cronológicos. Conta desde os primórdios no Moto Perpétuo. Fui buscar tudo. Montei no meu estúdio, na Bahia, uma sala de estar, com sofá, biblioteca, discoteca, filmoteca, tudo que influenciou cada período. E ali fizemos. Egberto Gismonti, Taiguara, meu começo… Fala de Blondie, B52s, Police, Tears for Fears, Double, Billy Joel, Elton John… Fala de tudo que me influenciou, que me é caro, dos poetas que influenciaram, como (Vladímir) Maiakovski, Jorge Mautner… Mostro fragmentos de coisas, de obras, na sala de estar… Numa situação de intimidade numa visita à minha casa. Um projeto completamente diferente. Esse material, que vai ser lançado na íntegra no meu canal no YouTube, inclui ainda visitas que faço ao Guto Graça Mello, ao Nelson Motta, no Rio... A gente vai ao Morro da Urca contar como eram aqueles anos de Noites Cariocas, as parcerias que a gente fez… É uma história bastante interessante e vai na contramão do mercado, que tem cultura de arena. DVDs são todos iguais. O da Adele é idêntico ao do Bruno & Marrone, num certo sentido: os recursos, os apelos visuais, as luzes, as câmeras passando pelo palco, o coro de negros dançando. Ficou tudo manjado. Acho que vou abrir uma leva de documentários similares ao meu.
Quem dirige?
Eu fiz um coletivo, não tem uma só pessoa. São três diretores sob a minha batuta. Eu sei a história que quero contar e não quero edição alheia. Tem que estar completo. Amanhã eu morro, e não interessa o olhar do diretor. O que interessa é o olhar meu, o do público.
E a caixa da Sony?
A caixa são 21 discos de carreira e mais um só de singles e raridades. Tive alguns que ninguém conhece, que são raridades, obscuros. São 450 músicas gravadas, bicho! E tive outros que estouraram. “Planeta Água” e “Deixa Chover” não saíram em LP. Juntamos tudo em compactos.
Com 450 músicas gravadas, é fácil imaginar que a arrecadação de direitos autorais vai muito bem...
Vai bem demais! Eu apoio 100% o sistema, o método da UBC, do Ecad…. Funciona muitíssimo bem. Não tem segredo.
Quem produz e toca recebe. A gestão coletiva é a forma mais saudável de arrecadação e distribuição, de retribuição do trabalho… Eu tenho um bolo arrecadatório bastante satisfatório. Não é milionário, porque o nosso mercado não comporta isso, os novos tempos não comportam isso, a nossa língua não comporta isso. Mas eu tenho um acervo muito presente.
Você ainda tem relação com o pessoal lá do início, do Moto Perpétuo?
Tenho ainda com o Gerson, com o Claudio Lucci, o meu maior parceiro ali dentro. A gente se encontrou na FAU 45 anos depois do Moto Perpétuo. O documentário mostra isso. Voltamos às origens. As pessoas vão chorar, falamos de tudo, daquela época.
E com a turma da FAU? Dizem que havia uma rixa entre grupos rivais no curso de Arquitetura e que você fez não poucos detratores lá...
Eu briguei com todo mundo, mandei todo mundo tomar no c... Eu falava que era um bando de comunistas fracassados (risos). Quem era minha colega de classe era a Clara Ant, braço direito do Lula. Comunista histórica. Hoje eu olho com respeito, claro. Passou a rixa. Vivemos uma realidade tão diferente. Mas não nego que foi ótimo fazer sucesso naquele momento e mostrar para eles.
Você parece ter uma história de dissidência, sempre meio do contra.
Vou te contar um lance. Eu não entrei no Rock in Rio. Nem eu nem o Ritchie. Injustiça grande, ainda mais no caso dele. Tínhamos penetração na classe média alta universitária. Proliferaram bandas semelhantes. Mas eu não era da patota da Blitz, do Lulu Santos, do Barão Vermelho... Essa turma, junto com Kid Abelha, Paralamas do Sucesso, era a voz de uma classe social hegemônica que varreu as FMs. Eu só fui morar no Rio em 1985, com o objetivo de estourar no Canecão e, finalmente, virar um cara “nacional”. Eu não podia ficar sendo um artista paulista. Tinha um ranço, não estourava nacionalmente. Só os artistas cariocas, baianos, que moravam no Rio, tinham presença forte nas paradas. Os artistas de São Paulo eram discriminados, claramente. O bairrismo era muito grande, as gravadoras estavam no Rio. Quando lanço o (disco) “Coração Paulista”, isso provoca reação grande no meio radiofônico. Eu nunca tive que cariocar. A Elis, por exemplo, cariocou, cantava com sotaque forte do Rio. Rita Lee também. Tinham que ser mais palatáveis. Eu fui aclamado no Maracanãzinho, fui aceito. Me mudei em 1985, fiz Canecão, morei em Copa, na Francisco Otaviano, número 17. A minha mulher na época era carioca, amiga de todo mundo do Noites Cariocas. Era discotecária a Luíza, minha segunda mulher. Era amiga do Ezequiel Neves, do Júlio Barroso, da Scarlet Moon… O pessoal me acolheu maravilhosamente. Passaram a pensar que eu sou carioca. É a melhor coisa que pode acontecer com um forasteiro no Rio. Foi a glória (risos).
E o que aconteceu a partir dos anos 1990? A crise das gravadoras impactou a sua carreira?
Claro que sim, um impacto grande. É paradoxal. Por essa época surgem os gravadores digitais caseiros. Sheryl Crow, Alanis Morissette, muita gente começa a fazer disco “em casa”. Por um lado, a indústria declinava, e, por outro, a tecnologia subia. Protools, mais tarde, computadores… Essa migração foi a mais dolorosa, perdemos o modus faciendi. Metamorfose muito grande. A replicação, também, da casa dos milhões propiciada pelo CD – e, mais tarde, pela pirataria do CD – teve um impacto profundo na maneira como se passou a entender a música. É o momento do Gerasamba, que virou É o Tchan!, do Só Pra Contrariar, esse povo que inventava dança, comportamento, sexualidade, claramente já com a dança da moda, gestualidade e toda uma coisa mais caricata. Isso proporcionando vendas que a indústria nunca tinha visto. Aí vêm os Mamonas Assassinas… Há tese de que esses marcos são os fundadores da decadência da indústria musical. Foi quando a gozação, o achincalhe e o esculhambo passaram a render muito mais do que o bom comportamento, a erudição ou a inovação da linguagem, das letras, das músicas, ou até que a revolta do rock… Esses valores ficam de lado.
Os sertanejos cantam que vão beber cerveja, a geladeira está cheia, e eu vou comer todas as mulheres. É uma caricatura de sertanejo, uma caricatura de forró, uma caricatura de pagode originais... O nível educacional baixo é o caldo de cultura. É uma instrumentalização da música, uma coisa utilitária, usada para vender. Usada pela indústria, e não só a musical. É consenso que o neossertanejo é usado pelo agronegócio. O axé foi usado pelo carlismo na Bahia, nos grandes shows promovidos durante os governos do Antônio Carlos Magalhães (morto em 2007). O pagode foi a trilha da inserção de uma grande massa de excluídos nas periferias das metrópoles que, de repente, podia ter conta no Itaú e fazer crediário nas Casas Bahia.
Nesse contexto, você já não era a bola da vez.
Já não era. Quando você está no auge, todo mundo adere, e você é maravilhoso. O fenômeno da aclamação é generalizado. Cada época tem seu fenômeno. Houve um momento Chico César, um momento Zeca Baleiro, um momento Lenine, Guilherme Arantes, Sullivan & Massadas, Dalto e Claudio Rabello... No sertanejo, houve um momento Sorocaba, que já passou, mas é inegável que o cara é um hitmaker...
O normal não é o sucesso retumbante. A normalidade é o dia a dia, o pé no chão. Eu ia andar na madrugada depois de fazer show para milhares. O normal é a solidão, a batalha, a introspecção. É a atitude de gente como Marisa Monte ou Adriana Calcanhotto, que se retiram para criar, saem de cena, saem dos holofotes. E voltam com discos fantásticos. Elas se permitem isso, mas são exceções. Infelizmente, o corrente, hoje, são a roda-vida, a série de shows, as turnês sem fim, a produção em série.
Há luz no fim do túnel?
Eu vejo um cenário de reconstrução da música brasileira, que foi devastada pelo utilitarismo. O renascimento vem pelas vanguardas de uma juventude urbana e culta, insatisfeita e sempre transgressora. Está havendo uma reconstrução, com novos nomes. Eu admiro muito o idealismo dessa geração, que vem desprotegida para o mercado. Sem a proteção de um demo econômico, de uma propulsão a jato como os fenômenos de massa das décadas passadas, e sem as grandes gravadoras, que perderam o poder de corte do mercado. Cito o Tiago Iorc, um menino que não tem problema com o sucesso e não tem problema em se tornar mainstream. A nova geração tem vergonha de virar mainstream. Ele, não. Tem o Marcelo Jeneci, a Tulipa Ruiz, a Roberta Sá… Roberta Sá beira o divino. É perfeita. Tem a Tiê, que também está se atirando para o mainstream. Tem a Karina Buhr, a Karol Conka... Se perderem o restinho de medo de ser mainstream que têm, essas vão ser as pessoas que farão a virada.