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MPB (M\u00FAsica Preta Brasileira)
Nos 130 anos da abolição da escravidão, a Revista UBC homenageia a riquíssima, imensurável, contribuição africana aos ritmos e sons que fazemos hoje, discute o papel do negro na nossa cultura e relembra grandes nomes que fizeram essa história
por_ Gilberto Porcidonio ∎ do_ Rio
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Dos tambores herdados da África,essa mãe com tantos filhos distintos, aos atabaques eletrônicos do funk carioca, a música negra brasileira demonstra sua força através dos tempos. Neste mês de maio em que a abolição de um dos piores crimes já cometidos pela humanidade, a escravidão de seres humanos africanos, completa 130 anos, a Revista UBC homenageia os grandes expoentes que levaram a musicalidade negra a romper os grilhões e chegar a outros patamares.
Mas o que é que define essa tal música negra brasileira?
Caçulinha desta família, a paulistana MC Soffia, de 14 anos, já nasceu de um lar empoderado e, para ela, é tudo o que se remete a força, resistência, luta e inspiração. Pudera, a sua referência principal é a da black music americana da nova e da novíssima geração, como Rihanna e Beyoncé, além dos brasileiros Karol Conka, Linn da Quebrada e as rappers do Rimas & Melodias. Mas tudo começou antes, bem antes de ela bombar com o hit “Menina Pretinha” e de agora, aos 14 anos, se ver como cantora e influencer.
“Escutei muito a Willow Smith, que era uma menina da minha idade quando a conheci, com 10 anos na época, e isso me contagiou. Não existia uma menina negra que cantava, e isso me inspirou bastante a fazer música pop, a ter cabelos legais...”
Ídolo de Soffia, Karol Conka, sem falta modéstia, pontua a riqueza e a ginga da negritude que ecoa das vozes brasileiras, como a sua.
“Os temas falam sobre o cotidiano e a ancestralidade. Dentro disso, a minha música é livre e autêntica. Mergulho em melodias diferenciadas, que têm a ver com minha personalidade”, declara a curitibana, autora do hino “Tombei”, símbolo de um geração empoderada.
Cria de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, o rapper Marcão Baixada lançou o seu EP, “Vermelho Outono”, em março, e nele narra a saga de um jovem negro que enfrenta a pobreza e a violência no dia a dia. O jovem de 24 anos começou a escrever poemas aos 9 e entrou no mundo do hip hop graças ao basquete, que jogava na Vila Olímpica da cidade vizinha de Nova Iguaçu. Costuma comentar muito com os amigos, principalmente os DJs, sobre os rumos distintos que a música negra brasileira tomou, mas sempre preservando algo em comum.
Karol Conka
“Hoje ela aborda muito a questão da militância mas, ao mesmo tempo, também queremos falar de outras coisas, como a Liniker faz ao também cantar sobre amor. É natural para a gente olhar para dentro. Além disso, o hip hop no Rio de Janeiro era muito segmentado e concentrado na Zona Sul (a mais rica) da capital. Vimos que era possível movimentar a cena local. Assim, lugares perigosos, hoje em dia, são ocupados com arte e festivais. Mostrar essa lógica para quem vive na Baixada é muito importante, trabalha a autoestima e a visão de mundo.”
Essa visão a que ele se refere revela um processo que tem merecido mais destaque na historiografia brasileira: o negro como um elemento civilizador do país. Dentro de nossa hierarquia racial, ficou entendido durante séculos que o branco era aquele que levou as benesses da civilização para negros e índios (duvida? Pesquise pelos trabalhos de Von Martius). Com este “novo” viés de análise, percebe-se que a cultura negra foi uma das principais formadoras da nação brasileira como ela é hoje. Para o cantor e compositor Macau, ela segue construindo essa história, que é infinita.
“Considero a música negra brasileira como a cultura negra em si. Ela guarda a história da nossa língua, da nossa política, das relações sociais, do nosso idioma, da nossa vida... E, assim como vieram vários povos africanos para cá, cada estilo de música negra é único. Temos maculelê, maracatu, maxixe, afoxé...”
De acordo com o autor do hino “Olhos Coloridos”, que explodiu graças à potência vocal de Sandra de Sá, em um país que era tão iletrado, ela também tinha a função de ser didática.
Macau
“Para o negro conseguir estudar por aqui e chegar à faculdade é uma complicação… Assim, vemos a música retratar nosso folclore, nossa história e nossa raiz. O samba, antigamente, contava mais essa história e acabou sendo um divisor, um brutal divisor, da civilização brasileira. O samba foi um marco.”
Para Áurea Martins, que tem Alaíde Costa como referência e faz, como muitas cantoras, uma música dotada de profunda passionalidade, é justamente esse lugar de fala – ou seria de canto? – que torna a música negra tão única em sua intensidade.
“A música negra é forte. Pela voz do negro, ela lembra de um sofrimento e de uma exclusão que só o negro sabe como é. Quando é tocada ou cantada, seja por Tom, Chico ou Vinicius, e, depois, quando é tocada ou cantada por um negro, ela se torna bem diferente. Johnny Alf, Moacyr Santos, Cartola, Nelson Cavaquinho e muitos outros têm a força e a temporalidade dos grandes gênios mundiais. O que é digno nesses gênios brasileiros é que, apesar de todo o preconceito que sabemos existir, eles se registraram, resistiram e estão aí como referência.”
ESSA TAL BRANQUIDADE
Toda essa cultura, de ontem e de hoje, também tem a ver com a busca por uma sociabilidade que se propõe a ser mais comunitária e menos individualista. Já as reações negativas que surgem quando negros se mobilizam, seja nas repressões que castigaram o samba, seja nas que hoje marginalizam o funk, têm nome que aparece até na universidade: branquidade. A professora Sonia Maria Giacomini, do departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, que estudou a Cena Black Rio, se debruça sobre o tema.
“Em todo lugar em que existe branquidade, que é o que define o privilégio dos brancos, qualquer forma de organização negra vai ser tachada de racista. Se você pegar toda a arte que coloca negros como incapazes, subalternos, hipersexualidados, isso também é a branquidade, e é o que aparece na maioria dos produtos culturais. Dar muita justificativa para essa gente (racista) é uma armadilha, porque se justificar dá mais espaço a essas vozes.”
Paraibana de João Pessoa, a cantora e compositora Cátia de França, que vai lançar um disco novo no segundo semestre deste ano, vê a música negra como adereço e remédio contra qualquer tipo de discriminação, como a feita pela branquidade.
“Falar nisso já me lembra de quando cheguei ao Rio, em 1972, e tinha o Movimento Black, o Gerson King Combo, o Tim Maia... Hoje eu gosto do Emicida, do Russo Passapusso, da Karol Conka, que acho uma sumidade, do Crioulo, que bota a cara fora do útero e se aconchega no samba. Acho isso de uma coragem incrível, porque o samba é uma confraria, quase que uma maçonaria”, ironiza.
Para a compositora de 72 anos, que também é fã do jazz cabeça de Thelonious Monk e de Dizzy Gillespie, o conceito também precisa ser encarado de uma forma bem mais ampla e que abarque também aquilo que não se inspirou nem no samba nem na black music americana, as duas referências mais explícitas da música negra brasileira.
“Reginaldo Rossi e Waldick Soriano também são música negra, como não? Eles são um tipo de preto meio ‘flambado’, mas eles são pretos, sim. A música negra brasileira é um baobá. São galhos imensos, e tudo bebe da mesma seiva. É de uma riqueza sem fim.”
Sons e ritmos atemporais
Esta linha do tempo traz alguns dos nomes marcantes da história da nossa música e a década em que surgiram profissionalmente. Por limitação de espaço, e unicamente por isso, a lista não é ainda maior.
1910
João da Baiana: Músico, passista e compositor, o carioca balizou o caminho para o samba moderno ao introduzir o pandeiro no ritmo. É autor do megassucesso “Batuque na Cozinha”.
Pixinguinha: Maestro, flautista, saxofonista, compositor e arranjador. Graças a ele, o choro encontrou a sua forma atual. “Carinhoso” e “Lamentos” estão entre suas principais composições.
1920
Cartola: Fundador da Mangueira, cantor, compositor, poeta e violonista. Autor de “As Rosas não Falam” e “O Mundo é um Moinho”, é o retrato da genial junção do lirismo à música popular.
1930
Elizeth Cardoso: Uma das maiores cantoras da nossa música, imortalizou choros e sambas-canção, como “Mensageiro da Saudade”, de Ataulfo Alves e José Batista, e “Barracão”, de Luís Antônio e Oldemar Magalhães.
Luiz Gonzaga: Colocou o forró, o baião, o xote e o xaxado nas rádios e TVs do país ao sintetizar a vida do sertanejo em clássicos como “A Vida do Viajante”, “Luar do Sertão”, “Que Nem Jiló” e “Asa Branca”.
1940
Alaíde Costa: Estrela do mítico Beco das Garrafas, no Rio, participou, como cantora, do nascimento da bossa nova. Em 2014, lançou seu primeiro disco autoral, “Canções de Alaíde”.
Jackson do Pandeiro: O cantor e compositor paraibano transitou genialmente entre baião, xaxado e frevo, além do jazz.
Baden Powell: Tido como um dos maiores violonistas da música mundial, começou a se apresentar cedo, na rádio, aos 10 anos. Com o parceiro Vinicius de Moraes, uniu o samba aos sons do candomblé.
1950
Elza Soares: Eleita pela rádio BBC a cantora brasileira do milênio, surgiu na Rádio Tupi aos 14 anos, deixando o apresentador Ary Barroso sem palavras ao dizer que vinha do “planeta fome”.
Tim Maia: O síndico da MPB arrebatou a música brasileira com seu soul carregado de elementos brasileiros, como forró e samba, e com sua postura iconoclasta. É autor de um transatlântico de hits.
Johnny Alf: Um dos pais da bossa nova, o cantor, compositor e pianista era chamado de “Genialf” por Tom Jobim. Atribui-se a ele a introdução do cool jazz no estilo.
1960
Clara Nunes: Primeira cantora brasileira a vender mais de 100 mil cópias, evocava a ancestralidade africana e as religiões afrobrasileiras em muitas das suas dezenas de sucessos.
Clementina de Jesus: Neta de escravos, introduziu cânticos de tempos imemoriais em suas gravações de partido-alto, jongo, curimã, caxambu e lundu. É tida como uma das maiores sambistas de todos os tempos.
Gilberto Gil: Um dos idealizadores da Tropicália, é autor de partituras e letras geniais, conhecido no mundo todo e considerado, com razão, um dos maiores músicos da nossa história.
Os Tincoãs: Virou lenda ao unir cantos das religiões de matriz africana a cânticos católicos e spirituals da tradição negra estadunidense. “Deixa a Gira Girá” é um de seus sucessos, e seus álbuns se tornaram cults.
Áurea Martins: Notável cantora, dividiu os palcos com artistas como Emílio Santiago, Elza Soares, Cauby Peixoto e Milton Nascimento. Jazz e samba-canção povoam seu repertório de grande crooner.
Wilson Simonal: Conquistou os brasileiros ao som de hits como “Mamãe Passou Açúcar em Mim”, “Nem Vem que Não Tem”, “Carango”, “Vesti Azul” e “Sá Marina”.
Tony Tornado: Ícone da black music brasileira, o paulista ganhou fama na era dos festivais. Dono de uma biografia inimitável, com direito a participação em guerras e aventuras mil pelo mundo, também é ator.
Paulinho da Viola: Ícone da Portela, influenciador de gerações, é autor de um sem-número de hits, como “Foi Um Rio que Passou em Minha Vida”, “Dança da Solidão” e “Coração Leviano”.
Jorge Ben Jor: Ás do violão, cantor e compositor, transita entre soul, samba, samba-rock e ritmos afros. Autor de uma constelação de hits, como “País Tropical”, “Mas Que Nada” e “Taj Mahal”.
Milton Nascimento: Carioca criado em Minas, é um dos formadores do mítico Clube da Esquina, que mistura jazz, rock, música erudita e dos negros mineiros. Um dos maiores cantores brasileiros de todos os tempos.
Luiz Melodia: Ator, cantor e compositor, estourou com a gravação de sua música “Pérola Negra” por Gal Costa e com a gravação de “Estácio, Holly Estácio” por Maria Bethânia. Cravou, ele mesmo, um estilo único de cantar.
1970
Tribo Massáhi: Outrora obscuro, esse grupo experimental encabeçado por Embaixador tem, em seu álbum afroprogressivo “Estrelando Embaixador”, um ícone disputadíssimo em leilões.
Itamar Assumpção: Pertencente à geração que transformou São Paulo em um caldeirão de música de vanguarda, misturava poesia, declamação, performances cênicas e jogos de palavras em meio a um sem fim de ritmos.
Banda Black Rio: Fundada pelo saxofonista Oberdan Magalhães, sobrinho do também genial sambista Silas de Oliveira, marcou para sempre a cena soul brasileira com uma fileira de grandes hits.
1980
Jovelina Pérola Negra: Ajudou a levar o samba e o pagode ao salão nobre da MPB. O próprio nome, dado pelo amigo Dejalmir, já insinuava um pré-empoderamento desta baiana do Império Serrano.
Paulinho Camafeu: Considerado um dos pais do axé music, o baiano apresentou o estilo ao mundo ao cocriar hinos como “Fricote” e “Que Bloco é Esse”.
Racionais MCs: Formado pelos MCs Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue e o DJ KL Jay, o grupo paulistano levou o rap brasileiro a outros patamares com hits como “Diário de um Detento”, “Homem na Estrada” e “Negro Drama”.
1990
Chico Science: Herdeiro da Tropicália por excelência, o pernambucano foi figura seminal do movimento manguebeat ao unir os timbres do metal alternativo, do funk e do hip-hop a maracatu, ciranda e frevo.
Claudinho & Buchecha: Sucesso absoluto na TV e nas rádios, ajudaram a tornar o funk mais palatável à classe média. Tiveram algumas de suas canções, de letras e sons elogiados, gravadas por Lenine e Adriana Calcanhotto.
2000
Rincon Sapiência: Um dos pontas de lança da novíssima geração rapper paulistana. “Elegância”, “Linhas de Soco”, “Ponta de Lança”, “Afro Rep” e “A Coisa Tá Preta” são alguns de seus sucessos.
2010
Karol Conka: A rapper paranaense é a cara desse saudável momento de empoderamento da mulher — principalmente da mulher negra — que mostra ter vindo para ficar.
Ouça Mais! Na página da UBC no Spotify, uma playlist com canções de grandes artistas negros da nossa música. ubc.vc/MusicaPretaBrasileira