Panorama Global 1

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APRESENTAÇÃO

O

s Estudos de Defesa e de Segurança Internacional ainda são muito embrionários na academia brasileira. A explosão dos Cursos de Relações Internacionais, em nosso país, nos anos 2000, tem modificado essa lacuna, ao incluir, como tema central, esses estudos, desde o nível graduação; contribuindo assim, para a compreensão de uma realidade internacional fortemente marcada pela insegurança e repleta de ameaças, as mais variadas, tanto à Pessoa Humana, quanto aos Estados nacionais. Desta forma, esta revista, vêm em sua 1a Edição revelar ao mundo acadêmico brasileiro, o talento e a dedicação dos nossos alunos, por uma temática tão importante para todos os internacionalistas e formuladores de políticas públicas atinentes à Defesa e a Segurança Internacional. A 1a Edição da Revista Acadêmica Panorama Global do Curso de Relações Internacionais da Unisinos é o resultado do hercúleo esforço dos seus corpos docente e discente, que unidos e irmanados, ombro a ombro, se dispuseram a contribuir de maneira efetiva para o aprofundamento das discussões e a apresentação de soluções para os graves problemas internacionais de todos os matizes; sendo os Estudos de Defesa e de Segurança Internacional - o primeiro grande passo, de inúmeros outros, que certamente virão com as demais edições. Os temas aqui tratados se concentram nas seguintes temáticas: na importância da participação do Brasil nas Missões de Paz das Nações Unidas – especialmente na Minustah, na Amazônia, na cobiça internacional por seus recursos e a sua importância geopolítica e a questão do narcotráfico, bem como no Conselho de Defesa Sul-Americano e, pôr fim, na atuação do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas. As Missões de Paz da ONU e a Minustah, em particular, representaram para o Brasil a oportunidade de uma maior inserção internacional. Primeiro com a possibilidade de se projetar como ator regional no continente Americano e a de se consolidar como líder da América do Sul, utilizando-se de seu aparato securitário junto com outas nações, para apoiar um país amigo em extrema necessidade, atuando na liderança desta missão. Por outro lado, apresentou ao Brasil as suas limitações políticas nas Nações Unidas para atingir esses e outros objetivos como está apresentado em ambos artigos nesta edição. A outra temática desenvolvida nesta edição, refere-se

a importância geopolítica da Amazônia como celeiro de recursos estratégicos, a cobiça internacional, suas ameaças globais e regionais, e a problemática dos ilícitos transnacionais, especificamente, o combate ao narcotráfico e a atuação das nações amazonidas fronteiriças ao Brasil, gerando uma premente necessidade da presença e forte atuação do Estado brasileiro na região, para resguardar seus interesses. O Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), criado em 2008, é um dos importantes temas abordados, o qual deu um novo perfil ao tratamento dos desafios relativos à Defesa e à Segurança no subcontinente. Dentro dessa perspectiva, o artigo investiga a dimensão da liderança do Brasil, nesse processo, bem como a possibilidade de uma integração militar e as consequências políticas, militares e sociais para os países-membros da Unasul advindas da criação e atuação do CDS. Esta edição também nos brinda, com uma rigorosa pesquisa da participação do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, nos biênios 1998-1999 e 2004-2005.Onde se verifica que no primeiro período o Brasil esteve mais alinhado às grandes potências, enquanto no segundo, atuou de acordo com a concretização dos seus interesses, agindo para se inserir de forma mais efetiva e assertiva no Sistema Internacional, o que culminou com o início da sua atuação na Minustah a qual durou não menos de quatorze anos e figura como um “Caso de Sucesso” junto as lições aprendidas nas Nações Unidas. Cabe, ainda, por dever de justiça e reconhecimento de todos os integrantes do Curso de Relações Internacionais da Unisinos, registrar o empenho e o alto grau de comprometimento e eficiência da Equipe que organizou de forma impecável esta 1a Edição da Revista Panorama Global, liderada pelo Prof. Dr. Bruno Lima Rocha e integrada pelas alunas Laura Gomes Garcia, Maíra Kristoschek Garcia e Thaís Honório Horn. Por derradeiro, cabe também, a todos os Internacionalistas da família acadêmica-Unisinos, nossos votos de parabéns pela realização deste criterioso e valoroso trabalho que, figura, a partir de agora, como pedra fundamental no desenvolvimento e no aperfeiçoamento dos Estudos Internacionais realizados no âmbito do nosso curso. “Por certo, esta 1a Edição da Revista Panorama Global é o primeiro grande passo na direção de uma profícua Jornada”.

Porto Alegre, 20 de maio de 2018. Prof. Dr. Marcos Reis

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SUMÁRIO

ARTIGOS 4

Participação brasileira na Minustah Augusto Colório

13

O Conselho de Defesa Sul-americano: a possibilidade de uma integração militar no subcontinente de 2008 a 2015 Giulia De Conto Affonso

20

A participação brasileira no Conselho de Segurança nos biênios 1998-1999 e 2004-2005 Rodrigo do Amaral Porciuncula

27

Ameaças globais e regionais à Amazônia Brasileira Bruna Gorgen Zeca e Henrique Muller Roht

36

Os recursos estratégicos da Amazônia Brasileira e a cobiça internacional Júlia F. V. da Costa e Nina Sanmartin

45

Análise das medidas tomadas pelo Brasil individualmente e em conjunto com os demais países fronteiriços da região Amazônica no combate ao narcotráfico nos anos entre 2000 e 2016 Flávia Essig Johann e Luiza Scherer de Oliveira

RELATOS 53

O caminho de Genebra: aprendendo a saber e a fazer em Relações Internacionais Gabriela Mezzanotti

56

O profissional que abrange a visão de mundo Sofia Cortez

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ARTIGO

PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NA MINUSTAH Augusto Colório*

RESUMO

A mudança na política externa brasileira do início do século XXI, em consonância com as mudanças pelas quais o Brasil passava, percebia as Operações de Paz como uma oportunidade de inserção internacional do país. Assim, em meio a uma nova crise no Haiti o Brasil aceitou o convite das Nações Unidas para liderar o contingente militar da Minustah. A partir dessa conjuntura, foi definido como objetivo principal deste trabalho analisar de que forma as limitações políticas do Brasil dentro do Sistema ONU influenciaram na execução de seus objetivos durante a Minustah. Constatou-se, por fim, que a atuação do Brasil na Minustah encontrou limites políticos para a execução de seus objetivos. PALAVRAS-CHAVE: Brasil. Organização das Nações Unidas. Operações de Paz. Haiti. Minustah. ABSTRACT The change in Brazilian foreign policy of the beginning of the XXI century, in keeping with the changes the country underwent, perceived Peace Operations as an opportunity for Brazil’s international insertion and in the midst of a new crisis in Haiti accepted the invitation of the Nations to lead the military contingent of Minustah. From this juncture, it was defined as the main objective of this work to analyze how the political limitations of Brazil within the UN System influenced the execution of its objectives during Minustah. Finally, it was verified that Brazil’s action in Minustah found political limits to the execution of its objectives. KEY WORDS: Brazil. United Nations Organization. Peacekeeping Operations. Haiti. Minustah.

1. INTRODUÇÃO

A

crise de 2004 no Haiti, após a deposição do então presidente Jean Bertrand Aristide, fez com que o Conselho de Segurança da ONU estabelecesse a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) com o intuito de terminar com a instabilidade política. O Governo Brasileiro, na época presidido por Luiz Inácio Lula da Silva, aceitou o convite da ONU para liderar o contingente militar da Missão, com base em um discurso de solidariedade e de

não indiferença ao povo haitiano, devido às semelhanças históricas, culturais e regionais. (LUCENA, 2014). No entanto, apesar da atuação solidária brasileira, percebe-se que a política externa do país buscou, durante o Governo Lula, também através da Minustah, a expansão internacional do Brasil com base na correção de assimetrias e melhorias sociais, fomento da paz e cooperação internacional (VIZENTINI, 2013). A Minustah se insere nesse quadro, pois, por intermédio das Operações de Paz, o Estado brasileiro visa, com uma política altiva dentro das Nações Unidas, à reformulação do Conselho de Segurança para pleitear uma vaga como membro permanente. Logo,

(*) Graduado em Relações Internacionas na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

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o aceite do convite por parte do Brasil reflete um interesse nacional em primeiro lugar. (DINIZ, 2005). Apesar da intenção brasileira, como se sabe, o sistema internacional é comandado pelas potências econômico-militares – o Conselho de Segurança da ONU é um exemplo disso –, que acabam por definir a agenda e os paradigmas na política mundial. Portanto, esse sistema não seria diferente para as OP, que acabam refletindo os interesses consensuais e de comportamento de atuação dos países centrais. De fato, devido ao seu poder, esses estados determinam os conceitos de paz adotados pelas organizações e a forma como devem ser construídos, marginalizando os demais. Devido ao objetivo da política externa brasileira de liderar o contingente militar da Minustah e ao aumento da participação do país em Missões de Paz desde os anos 90, este estudo busca compreender: como as limitações políticas do Brasil dentro do Sistema ONU influenciaram na execução dos seus objetivos na Minustah? O objetivo geral deste trabalho é analisar como as limitações políticas brasileiras dentro do Sistema ONU influenciaram a execução de suas atividades na Minustah. Os objetivos específicos são: analisar a estrutura da ONU com vistas a compreender como se relaciona no Sistema Internacional; relacionar as operações de paz com a estrutura ONU; compreender a teoria crítica, relacionando-a ao tema da pesquisa; dominar o histórico brasileiro nas operações de paz da ONU; discriminar os interesses da política externa brasileira durante o período de sua participação na Minustah; entender os objetivos da Minustah; investigar os principais problemas da Minustah.

2. POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO LULA E A APROXIMAÇÃO DO CARIBE A eleição do ex-presidente Lula em 2002, apesar de expectativas diversas, pode ser compreendida como uma reafirmação das mudanças nacionais e internacionais pelas quais o Brasil passava durante aquele período. A partir da nova abordagem de política externa, o país adquiriu maior importância internacional e avançou em seu protagonismo e desenvolvimento, superando a política externa limitada do governo anterior. (VISENTINI, 2013). Os principais objetivos da política externa brasileira eram: “redução das extremas disparidades sociais, a eliminação das crônicas vulnerabilidades externas e a realização acelerada do seu potencial.”. (GUIMARÃES, 2006, p. 259). No contexto da busca da política externa pelo multilateralismo e pela redução das assimetrias, a diplomacia política daquele período, através de uma diplomacia “ativa e altiva”, exerceu a defesa dos interesses nacionais e a

afirmação do país na cena internacional. A política desse governo utilizou uma diplomacia, como descreve Vizentini (2013, p. 112), “com sentido tático-estratégico”, que, através do carisma do presidente em escala mundial, buscava ter uma grande amplitude. As mudanças estabelecidas relacionadas à política externa podem ser compreendidas também a partir das posses do embaixador Celso Amorim, no Ministério de Relações Exteriores, e do embaixador Samuel Guimarães, como Secretário-Geral do Itamaraty. A busca do Brasil pela aplicação de políticas internacionais semelhantes às políticas internas em combate às desigualdades sociais esteve presente no discurso de posse do ex-Ministro Celso Amorim: Coerentemente com os anseios manifestados nas urnas, o Brasil terá uma política externa voltada para o desenvolvimento e para a paz, que buscará reduzir o hiato entre nações ricas e pobres, promover o respeito da igualdade entre os povos e a democratização efetiva do sistema internacional. Uma política externa que seja um elemento essencial do esforço de todos para melhorar as condições de vida do nosso povo, e que esteja embasada nos mesmos princípios éticos, humanistas e de justiça social que estarão presentes em todas as ações do Governo Lula. (AMORIM, 2003).

Gonçalves (2011) destaca que, apesar da América do Sul ter se tornado interesse de política externa brasileira desde o Governo de José Sarney (1985), o Governo Lula foi pioneiro em utilizar a relação de integração sul-americana como forma de projeção para a América Central e o Caribe. Depois de algumas iniciativas propostas pelo Brasil para intensificar as relações com os países da região, como a Primeira Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da América Latina e Caribe sobre Integração e Desenvolvimento (CALC I) em Salvador e a CALC II em Cancun, foi estabelecida a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), após os esforços centrais da diplomacia brasileira. A importância da região da América Central e Caribe para a política externa brasileira da época também pode ser exemplificada a partir do aumento de 15 postos diplomáticos promovidos pelo Brasil na região. Pela primeira vez em sua história, o Brasil passou a financiar embaixadas residentes em todos os estados. O crescente interesse da política externa brasileira na região da América Central e Caribe refletiu significativamente no comércio. Apesar de ser menor do que as atividades comerciais brasileiras com os países sul-americanos, o relacionamento comercial entre Brasil e o Caribe, no período de 2002 e 2009, passou de US$ 933 milhões para US$ 5,5 bilhões, um aumento de 495,4%. Outro dado significativo é a participação brasileira em obras de infra-

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estrutura na região, que aprovou mais de US$ 2,8 bilhões em obras. (GONÇALVES, 2011). Para Becard (2009), Gonçalves (2011) e Visentini (2013), a participação do Brasil na Minustah e na defesa do Presidente de Honduras, Manuel Zelaya, durante o Golpe de Estado em 2009, comprovam o aumento do interesse do Brasil na região e a expansão da sua área de influência. Além disso, devido às características descritas neste subapítulo e como forma de atingir seus objetivos, o Brasil buscou utilizar o Sistema Internacional Multilateral e as missões de paz como instrumentos de política internacional. (SÁNCHEZ NIETO, 2012). Logo, como descrito até este momento, o interesse do Brasil pela Minustah surge nesse contexto diplomático e político, de interesse tanto pelo Caribe quanto pelo sistema multilateral de governança, representado pelas operações de paz da ONU.

estabilidade; apoio ao processo constitucional e político; e direitos humanos. No entanto, a área da segurança foi considerada como principal desafio que deveria ser superado. Logo, recebeu apoio para que fosse criada uma “estrutura de segurança sustentável” capaz de controlar a situação interna, bem como de monitorar fronteiras terrestres e marítimas. (AGUILAR, 2014). A política externa brasileira, na época da criação da Minustah, adotou oficialmente o argumento de não indiferença à crise haitiana, apesar de haver um interesse ligado ao assento no Conselho de Segurança. No entanto, a decisão do Estado brasileiro e o motivo do país em fazer parte da Minustah tem sido um assunto de intenso debate por parte da elite política e acadêmica brasileira. Quanto aos interesses, Diniz (2005, p. 99) entende que, devido ao caráter da política externa brasileira da época e a busca de projeção internacional do Brasil apresentada desde os anos 90, a participação do Brasil na Minustah “torna-se facilmente compreensível, e quase perfeitamente consistente com a recente trajetória da política externa brasileira”. Com a intenção do país, de pleitear uma vaga de membro-permanente do Conselho de Segurança, a atuação do Brasil seria necessária para alcançar esse objetivo. Diniz (2005, p. 100), destaca que o país buscou demonstrar que era capaz de ser um líder e de possuir responsabilidades perante a comunidade internacional.

A política externa brasileira, na época da criação da Minustah, adotou oficialmente o argumento de não indiferença à crise haitiana

3. A CRISE HAITIANA E A MINUSTAH Em meio a mais uma crise, em 2004, os protestos que irromperam no Haiti, formados por antigos militares e policiais haitianos, além de líderes de gangues, desafiaram a presidência de Jean-Bertrand Aristide. A consequente queda do Governo acabou por representar um golpe à democracia, que não possui um histórico de estabilidade no país. (SEITENFUS, 2014). A política da comunidade internacional foi de dar suporte aos protestos e, consequentemente, deslegitimar o Governo de Aristide. Inclusive, alega-se que soldados dos Estados Unidos foram responsáveis por fisicamente tirar o Presidente de Porto Príncipe. (SÁNCHEZ NIETO, 2012). No entanto, tendo Aristide sido evacuado para a África do Sul e o estabelecimento de Gerarde Latortue como primeiro-ministro provisório, a ONU decretou a criação de uma força temporária multinacional de 3.000 homens, e, por fim, o Conselho de Segurança, em 30 de abril de 2004, estabeleceu a Minustah através da Resolução 1542. (SÁNCHEZ NIETO, 2012). Desde 1993, o país já recebeu mais de 7 operações de paz; logo, a Minustah insere-se nesse longo histórico de interferência estrangeira no Haiti. Liderada pelo Brasil a convite da ONU, a Minustah conta com 70% das suas forças formadas por países latino-americanos. (SEITENFUS, 2014). Para Correa (2014, p. 129) “O ineditismo do comando militar foi explorado pelo governo brasileiro quando vislumbrou criar um novo modelo de intervenção a partir da reconstrução do Haiti”. O mandato da ONU foi baseado em três pilares: segurança e

Desse ponto de vista, o Haiti apareceria como uma oportunidade ímpar: trata-se de uma situação com grande visibilidade política numa região de grande prioridade da política externa brasileira, que poderia alavancar ou, pelo menos, legitimar de certa forma a desejada liderança brasileira junto à América do Sul, na medida em que o Brasil, por liderar as forças a serviço da ONU, coordenaria a resposta do continente sul-americano a uma crise em região vizinha.

Aguilar (2014, p.173) resume os objetivos brasileiros, que se relacionam diretamente com os objetivos da política externa da época, ao entender que o país buscava fortalecer o sistema multilateral de segurança, especialmente a ONU; procurar uma maior inserção do país nesse sistema; [...] participar dos esforços de desenvolver e promover justiça social naquele país; e aumentar a cooperação coletiva sub-regional, especialmente entre os países do Mercosul.

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No entendimento de Silva (2016, p.132), o papel desempenhado pelo Brasil na Minustah deve ser visto como parte de uma estratégia maior de obtenção de ganhos e se projetar internacionalmente no cenário global como um ator proeminente dentro de uma ordem já estabelecida e controlado por outros países dotados de maior capacidade de influência no processo decisório da ONU.

Vigevani e Cepaluni (2007, p. 303) situam a Minustah do ponto de vista da estratégia de autonomia pela diversificação: O caso do Haiti serve perfeitamente para explicar o significado de “autonomia pela diversificação”. Diversificação não significa apenas a busca de alternativas nas relações com os outros Estados, mas também implica capacidade de intervenção em questões que não dizem respeito a interesses imediatos. Significa intervir em questões que se referem a bens públicos internacionalmente reconhecidos.

As primeiras atividades da Missão foram o desbaratamento de gangues e de grupos ligados ao antigo regime e à classe militar da ditadura Duvalier. Nesse sentido, Aguilar (2014) destaca que a participação da liderança brasileira conseguiu pacificar áreas de favela e melhorar a condição de segurança em regiões vulneráveis, permitindo o desenvolvimento de programas da Organização Mundial da Saúde, da Organização Pan-Americana da Saúde e do Programa Mundial de Alimentos. Correa (2012) destaca que a política externa brasileira buscou viabilizar também projetos relacionados à diplomacia de erradicação da fome que era uma das estratégias internacionais do Governo Lula. A cooperação do Brasil permitiu que fossem realizadas atividades na área da segurança alimentar e nutricional, direito à alimentação e agricultura familiar. Em um segundo momento, a Minustah buscou fortalecer a capacidade de governabilidade do Estado Haitiano. Por isso, foram estabelecidas parcerias com diversos países para que se pudesse melhorar a capacidade de investimento do estado. (AGUILAR, 2014). Lessa (2009) entende que, apesar do caráter de segurança da Missão, as atividades brasileiras caracterizam-se por ações em diversas esferas a fim de solucionar os problemas que são as raízes do dilema haitiano: “A violência e o conflito têm suas origens na política, mas também têm raízes econômicas, e continuam crescendo devido à ausência da autoridade estatal e à falta de desenvolvimento econômico e social.”. Nesse sentido, Seitenfus (2014, p. 122) destaca que:

[...] o Brasil destacou esforços não só na seara militar, mas também, mais amplamente, em outras dimensões, como a social, técnica e cívica, para assistir a população haitiana e para chamar a atenção da comunidade internacional para as necessidades do país. É nessa perspectiva ampliada de atuação que podem ser vistas ações como a cessão de itens da ração dos soldados à população, o envio de medicamentos e o jogo de futebol Brasil-Haiti, promovido pela Confederação Brasileira de Futebol. Também evidenciando que sua ação se propõe a reestruturar de forma sustentável o espaço haitiano, o Brasil enviou uma ação multidisciplinar de cooperação técnica para identificar setores em que o país poderia colocar à disposição do Haiti conhecimentos e mão de obra especializada para a reconstrução da infraestrutura e instituições do país caribenho.

Contudo, apesar das iniciativas brasileiras, surgem, no seio da Missão, duas visões antagônicas quanto ao tipo de funções que deveriam ser exercidas. A posição dos Estados Unidos, Canadá e França, que Seitenfus (2014) chama de Tridente Imperial, era de maior emprego da força para que fossem controladas gangues e outras atividades ilegais. Por outro lado, a posição brasileira era de que a questão da violência só poderia ser sanada se fossem aplicadas ações de caráter humanitário, social e econômico. Apesar da intenção brasileira, o país não possuía “capacidade financeira e vontade política para enfrentar os desafios econômicos haitianos.”. (SEITENFUS, 2014, p. 160). Por isso, as ações brasileiras permaneciam limitadas e dependentes dos investimentos dos países centrais que condicionavam sua ajuda a uma estabilização das questões de segurança por meio de maior uso da força.

4. ANÁLISE DAS LIMITAÇÕES POLÍTICAS DO BRASIL DURANTE SUA PARTICIPAÇÃO NA MINUSTAH Como destacado na sessão anterior, a participação brasileira na Minustah e a superação dos desafios que o Brasil entendia como necessários para o Haiti foram limitados pela crescente divergência de opinião em relação as grandes potências quanto ao tema. Cabe a esta sessão compreender, por fim, como as limitações brasileiras encontradas dentro do Sistema ONU influenciaram a execução dos objetivos do Brasil na Minustah em face da pressão das potências estrangeiras. A diplomacia social que o Brasil empregou, a partir de 2003, como estratégia de política externa fez parte da estratégia brasileira durante a participação na Minustah.

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Seitenfus (2014) entende que o Brasil buscava solucionar os problemas de natureza interna haitiana, como a falta do diálogo político entre os diversos atores e a melhoria da situação socioeconômica que assolava os haitianos, gerando graves problemas sociais. A chamada diplomacia solidária e o princípio da não indiferença fizeram com que o Brasil realizasse atividades não só de caráter securitário, mas, principalmente, de caráter social, técnico e cívico. Contudo, a postura brasileira era contrária ao posicionamento das potências estrangeiras, neste caso específico, EUA e França, que entendiam que o dilema haitiano se relacionava com problemas de segurança, migração e de narcotráfico. Na reunião do Conselho de Segurança de 29 de novembro de 2004, a representação do Brasil defendeu a posição do país, destacando que:

A chamada diplomacia solidária e o princípio da não indiferença fizeram com que o Brasil realizasse atividades não só de caráter securitário, mas, principalmente, de caráter social, técnico e cívico

Mesmo que alguns países e instituições já tenham começado inciativas no campo financeiro, a escala desses esforços deve ser rapidamente aumentada. Nós acreditamos que, de uma perspectiva securitária, as condições para aumentar os esforços já estão presentes. Doadores deveriam, assim sendo, ser encorajados a acelerar as taxas de desembolso dos fundos prometidos na Conferencia de Doadores de Washington, consistente com as prioridades identificadas pelo quadro provisório de cooperação do governo de transição haitiano. (SECURITY COUNCIL, 2004)1.

A posição brasileira no encontro demonstra a divisão de ideias que estavam presentes no Conselho de Segurança e, consequentemente, no controle da Missão. Além disso, o Brasil passou a receber diversas críticas por não usar a força que os países centrais entendiam como necessárias; inclusive, houve a intenção dos EUA, de enviar tropas americanas para controlar a situação. A visão do Conselho de Segurança da ONU, por sua vez, pode ser exemplificada a partir do documento abaixo:

1 Do original: “Although some countries and institutions have already commenced initiatives in the financial field, the scale of those efforts should be rapidly increased. We believe that, from a security perspective, the conditions for stepping up those efforts are already present. Donors should therefore be encouraged to accelerate the rate of disbursement of the funds pledged at the Washington Donors Conference, consistent with the priorities identified by the Haitian Transitional Government’s interim cooperation framework.”.

O Conselho de Segurança salienta que a estabilidade e a segurança permanecem chaves para os esforços de reconstrução política e econômica do governo provisório e da comunidade internacional. Isso demonstra a importância de desenvolver a capacidade de uma Polícia Nacional profissional e eficaz no Haiti. Isso reforça a importância de uma coordenação efetiva e cooperação entre MINUSTAH e a Polícia Nacional Haitiana. Isso também reforça a urgência de melhorar a situação dos direitos humanos no país, incluindo direitos das mulheres. (ANNAN, 2004a apud UN SECURITY COUNCIL, 2004b, p. 2).2

O primeiro comandante da Minustah, General Augusto Heleno Ribeiro, descreve a posição do Brasil na Minustah dizendo: “Não somos uma força de ocupação [...] nós nos negamos a utilizar violência cega. Nós somos uma força para paz. Esse país é tão pequeno que não podemos fazer grandes movimentos que possam romper o processo de paz.”. (RIBEIRO, 2005)3. Para Correa (2012), por exemplo, a participação brasileira agiu como um “braço civil” da missão, enquanto que os projetos de cooperação de outros atores possuíam caráter apenas securitário. As atividades da Agência dos Estados para o Desenvolvimento Internacional (USAID), por exemplo, além de possuírem caráter meramente assistencialista, eram diretamente relacionadas aos interesses nacionais norte-americanos e buscavam atingir esses objetivos. A participação brasileira, por sua vez, focada na Cooperação Sul-Sul tratou de refletir nas suas ações a intenção de intensificar as relações com os países da região por tratar de atingir não objetivos específicos do próprio país, mas objetivos do estado receptor. Apesar das visões opostas sobre o trabalho da Missão, os avanços que haviam sido feitos até 2009 fizeram com que os países, naquele período, tratassem sobre a futura saída das tropas da ONU e a consequente mudança da Minustah, que poderia acontecer no começo de 2011. No en2 Do original: “The Security Council underlines that stability and security remain key to the political and economic reconstruction efforts of the Transitional Government and the International Community. It stresses the importance of building the capacity of an effective and professional national police in Haiti. It reiterates the importance of effective coordination and cooperation between MINUSTAH and the Haitian National Police. It also underlines the urgency of improving the situation of human rights in the country, including women’s right”. 3 Do original: “We are not an occupation force...we refuse to use blind violence. We are a force for peace. This country is so small that we cannot make big moves that might disrupt the peace process.”. (RIBEIRO, 2005). Disponível em: http://www.refworld.org/docid/47a6eeb80.html. Acesso em: 26 out. 2017.

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tanto, aconteceu, no dia 12 de janeiro de 2010, o terremoto que marcou a história do país e destruiu grande parte do que havia sido realizado pela Minustah. A consequência do terremoto foi o retorno das condições econômicas e sociais que o país possuía em 2001, leia-se 71% da população sobrevivendo com menos de US$2 ao dia, e 50% com menos de US$1. (SEITENFUS, 2014). Segundo Seitenfus (2014), o terremoto acabou expondo as diferenças quanto à liderança da Minustah, que já vinham acontecendo. A “dualidade de comando das operações” (SEITENFUS, 2014, p. 201) foi acentuada com a catástrofe, pois houve uma intensa atividade dos EUA no Haiti. O Brasil, incomodado pela divergência com os norte-americanos e pelo despojamento de suas atividades, acordou que a ajuda humanitária seria de responsabilidade dos militares dos Estados Unidos, enquanto que a segurança seria de responsabilidade do contingente da Minustah, controlado pelo Brasil. Porém, as atividades não ocorreram como o acordado. Os norte-americanos que militarizaram a ajuda humanitária movimentaram o Comando Sul e um grande número de profissionais para auxiliar no gerenciamento da catástrofe, entrando em confronto com a liderança brasileira. Logo, Seitenfus (2014, p.211) descreve a situação brasileira na Minustah após o terremoto da seguinte forma: O Brasil encontra-se em delicada situação. Ao final de 2009, ele liderava uma Operação de Paz que projetava uma saída de crise e o progressivo retorno de seus militares. Ora, com o terremoto “de um momento para outro lhe escapou das mãos um cenário de reconhecido sucesso” quando comparado com os retumbantes fracassos das intervenções anteriores. Atordoado pela dramaticidade da situação, o Brasil perdera rapidamente a liderança então exercida. O sismo marca o retorno abrupto ao comando de fato da Minustah do Tridente Imperial.

Para Silva (2016), a fragmentação política da Minustah marcou a atuação brasileira ao impedir a plena atuação do Brasil. A partir dessa divisão, foram ressaltadas as diferenças políticas e as assimetrias de poder à volta do processo decisório. Logo, devido à posição enfraquecida do estado brasileiro perante os países com maior capacidade de comandar o processo decisório e com maior número de recursos, a capacidade de atuação do Brasil foi limitada. Além disso, para o autor, “Essa divergência demonstra também a capacidade de determinados membros do Conselho de monopolizar as decisões tomadas pelo órgão das Nações Unidas.”. (SILVA, 2016, p. 65). A própria diplomata dos EUA para a ONU, Susan Rice (2011) destaca que: “A verdade é: o Conselho de Segurança da ONU não pode

nem mesmo dar uma entrevista sem a benção dos EUA.”. (Traduzido pelo autor)4. Logo, podemos concluir que as decisões do Conselho de Segurança, quando se trata do Haiti, estão diretamente relacionadas à vontade dos EUA. (SILVA, 2016). Silva (2016, p. 65) destaca que essa assimetria de forças pode ser descrita como um modelo de “poder institucional no qual um ator trabalha através das regras e procedimentos de determinada instituição para influenciar outros atores”. Pode-se, portanto, identificar que as potências do Sistema Internacional têm utilizado o Sistema ONU e as Operações de Paz para manter o seu poder e atingir os seus objetivos, que nem sempre estavam de acordo com o interesse do Estado Haitiano. Por consequência, pode-se reconhecer que a atuação das potências ao securitizar as ações da Minustah, principalmente após o terremoto, conseguiu impor sua visão dentro da ONU sobre a crise do Haiti. Logo, acabou por limitar os objetivos do Brasil tanto de auxílio nos avanços da política haitiana, ou seja, na melhora do diálogo político e das condições socioeconômicas, quanto nos objetivos da política externa brasileira para o Sistema Internacional do Século XXI, como na redução das assimetrias de poder na Ordem Mundial. Para Seitenfus (2014), as potências possuem interesse na terceirização das atividades das Operações de Paz não só porque isso representa um gasto financeiro menor, mas também porque evita a perda - no caso específico dos EUA - de soldados norte-americanos em combate em guerras longe do seu território. Quando se analisa os principais países que enviam militares para as missões de paz, pode-se perceber ainda mais que a presença de países periféricos é ostensiva ao contrário das potências, em especial os EUA. Em consonância com esse ponto de vista, Uziel (2006, p.98) destaca que as potências “podem ver as operações de paz como uteis, quando eles não têm legitimidade para agir sozinhos ou quando preferem transferir os custos políticos de ação para terceiros países.”. A Tabela que segue mostra o ranking de países que contribuem com maior número de membros (Militares, Experts, Policiais, Funcionários) para as missões de paz de setembro de 2017.

4 Disponível em: The truth is: the UN Security Council can’t even issue a press release without America’s blessing. Acesso em: 31 out. 2017.

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os principais países que enviam militares para as missões de paz, pode-se perceber ainda mais que a presença de países periféricos é ostensiva ao contrário das potências, em especial os EUA. Em consonância com esse ponto de vista, Uziel (2006, p.98) destaca que as potências “podem ver as operações de paz como uteis, quando eles não têm legitimidade para agir sozinhos ou quando preferem transferir os custos políticos de ação para terceiros países.”. A Tabela que segue mostra o ranking de países que contribuem com maior número de membros (Militares, Experts, Policiais, Funcionários) para as missões de paz de setembro de 2017

Tabela 1 – Ranking de envio de pessoal por país:

Tabela 1 – Ranking de envio de pessoal por país:

9000 8000 7000 6000 5000 4000 3000 2000 1000 1.Etiópia 2.Bangladesh 3.Índia 4.Ruanda 5.Paquistão 6.Nepal 7.Senegal 8.Egito 9.Gana 10.Indonésia 11.China 12.Tanzânia 13.Burkina Faso 14Nigéria 15.Marrocos 16.Chade 17.África do Sul 18. Togo 19. Uruguai 31. França 35. Reino Unido 44. Brasil 67. Rússia 71. Canadá 73. EUA

0

Fonte: DPKO (2017). Fonte: DPKO (2017).

Apesar da terceirização da tropa, os poucos representantes militares das potências ocupam posição de comando e de liderança das missões de paz o que consequentemente acaba por caracterizar a prevalência da visão dos países mais fortes em detrimento de outros países. Fato esse que demonstra como as limitações políticas dentro da ONU podem refletir em um caráter periférico tanto na tomada de decisão, quanto na participação das Operações de Paz. A própria embaixadora dos EUA na ONU, Susan Rice (2011), em consonância com o marco teórico deste trabalho, evidencia que num cenário hipotético de não existência das Nações Unidas, deveriam os norte-americanos criar instituição similar para que sua segurança fosse garantida. Quanto as Operações de Paz da ONU, Rice, também destaca que o emprego de tropas das Nações Unidas é de extremo interesse dos EUA ao compreender que: Cada soldado das operações de paz da ONU custa uma fração do que custaria para enviar um soldado americano para fazer o mesmo trabalho. Então, o que é melhor? Que os Estados Unidos suportem todo o peso, ou que dividam o peso para soldados da ONU e paguem um pouco mais que um quarto do custo? Eu não sei vocês, mas eu pessoalmente, gosto de lugares onde eu tenho 75% de desconto5.

5  Do original: “Each UN peacekeeper costs a fraction of what it would cost to field a U.S. soldier to do the same job. So what’s better, for America to bear the entire burden, or to share the burden for UN peacekeepers and pay a little more than a quarter of the cost? I don’t know about you, but personally, I like places where I get 75 percent off.”. (RICE, 2011).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A participação brasileira como líder do contingente militar da Missão da ONU ocorreu após um chamado da organização ao Estado brasileiro. O histórico brasileiro nas operações de paz e o caráter da política externa do começo do século XXI foram fatores importantes para a escolha do Brasil como país líder da missão. Em meio a uma nova crise na política haitiana, o Brasil buscou cumprir com o mandato da Missão que previa o estabelecimento de um ambiente seguro e democrático. Apesar de estar ancorado em um discurso solidário, o Brasil, como verificado na pesquisa bibliográfica, possuía um interesse realista na sua participação. Foi por isso que, ao longo de suas atividades, além de cumprir com os objetivos da missão, o Estado Brasileiro perseguiu políticas que visavam a melhora das relações regionais e a percepção internacional que o país poderia galgar ao posto de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. No entanto, como relatado neste trabalho, apesar da intenção brasileira de realizar a Minustah de forma diferente ao pensamento das grandes potências, ocorreu uma divergência na execução das ações. O Brasil entendia que o dilema haitiano não poderia ser solucionado sem uma intensa participação da comunidade internacional para solucionar os reveses socioeconômicos e de falta de diálogo político. Os países centrais, principalmente os EUA, possuíam uma percepção de que a gravidade do Haiti era notadamente securitária. Até o terremoto em 2010, o Brasil conseguiu exercer de forma mais eficaz as suas políticas e foram realizados avanços que eram reconhecidos internacionalmente. Não obstante, o cismo acabou por desnudar a difícil realidade do Brasil na Minustah e o controle duplo da Missão fazendo com que os EUA e as outras potências passassem a atuar de forma mais acentuada. As atividades brasileiras acabaram sendo limitadas em face do poder dos países mais fortes e o país não conseguiu realizar as atividades as quais tinha como objetivo.

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O histórico brasileiro nas operações de paz e o caráter da política externa do começo do século XXI foram fatores importantes para a escolha do Brasil como país líder da missão


Logo, a partir do objetivo geral deste trabalho de analisar como foi a influência das limitações brasileiras dentro do Sistema ONU durante a execução de suas atividades na Minustah, foi possível atingir determinadas conclusões. Destaca-se que, por exemplo, pelo fato do Brasil não ser membro-permanente do Conselho de Segurança, ele enfrentou uma clara limitação política, pois houve a prevalência do prisma securitário sustentado pelos países com poder de veto no tocante aos rumos da Missão de Paz. De igual forma, verificou-se uma divisão do trabalho nas Operações de Paz, na qual os países ricos são responsáveis pelo financiamento e processo decisório, enquanto os países em desenvolvimento são responsáveis pelo envio de pessoal.

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ARTIGO

O CONSELHO DE DEFESA SUL-AMERICANO: A POSSIBILIDADE DE UMA INTEGRAÇÃO MILITAR NO SUBCONTINENTE DE 2008 A 2015 Giulia De Conto Affonso* Marcos Aurélio dos Reis**

RESUMO

A formação de alianças de natureza militar tem se tornado cada vez mais relevante no mundo globalizado. Quando se trata de defender recursos energéticos e naturais, países que possuem interesses semelhantes unem-se de modo a atingir seus objetivos mais rapidamente. O Brasil, como maior país da América do Sul, representa a liderança por trás da formação, em 2008, do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS), papel esperado desse país desde a idealização de tal tentativa de integração. O presente artigo tem o intuito de analisar as consequências gerais da criação do CDS para os Estados-membros – tanto de cunho político e militar quanto social –, enfatizando a influência brasileira nas ações e decisões do Conselho. A pesquisa, para sua construção, foi bibliográfica, tendo sido realizada, em sua produção, a leitura de artigos científicos e de outros trabalhos acadêmicos, assim como de obras de autores significativos na área. Por fim, percebe-se que, apesar de estarem sendo gerados proveitosos resultados pelo Conselho de Defesa, muito ainda pode ser feito para beneficiar as nações que integram essa aliança estratégico-militar regional, de forma a proteger as riquezas abundantes da área. PALAVRAS-CHAVE: Conselho de Defesa Sul-Americano. UNASUL. Segurança Regional. Recursos Energéticos. Integração Militar. ABSTRACT The establishment of military alliances has started to be more relevant in a globalized world. When it comes to defending energetic and natural resources, countries that share similar interests gather so they can reach their goals more quickly. Brazil – as the largest country in South America – represents the leadership behind the creation, in 2008, of the South American Defense Council (CDS), which was expected from this country since the idealization of this integration. The present article has the aim to analyze the general consequences of the creation of CDS for the member states – in a social, political and military way – emphasizing the Brazilian influence in the actions and decisions of the Council. A bibliographic research was carried out, including scientific articles, different types of academic outputs and essays from important authors of the field. At the end, it is realized that – although the Defense Council is generating advantageous results – a lot more can be done to benefit the nations that are now a part of this regional military-strategical alliance in a way that the countless wealth of this region finds itself truly protected. KEY WORDS: South American Defense Council. UNASUR. Regional Security. Energetic Resources. Military Integration (*) Acadêmica de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Artigo elaborado e finalizado em 2015/02, durante o segundo semestre do curso de Relações Internacionais (**) Professor do Curso de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

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1. INTRODUÇÃO

O

Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) foi instituído em 16 de dezembro de 2008 pelos 12 países que integram a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), com o objetivo de consulta, cooperação e coordenação no campo de defesa nessa região do globo. Baseado nos princípios que são mais caros para os países que o compõem – soberania, territorialidade e não intervenção – o CDS tem, até hoje, tentado propagar uma zona de paz na região, além de proteger os recursos naturais da América do Sul contra os interesses de grandes potências não pertencentes à área. Apesar dos objetivos internos de cada um dos países com a criação de uma instância que preza pela defesa e pela promoção da paz, o Brasil direciona os seus esforços para equilibrar os objetivos nacionais com as ações que beneficiarão o subcontinente como um todo, a curto e a longo prazo, “construindo uma identidade sul-americana em matéria de defesa, que leve em conta as características sub-regionais e nacionais e que contribua para o fortalecimento da unidade da América Latina e o Caribe ” (ESTATUTO DO CONSELHO DE DEFESA SUL-AMERICANO, ART. 4). Este artigo tem como finalidade abordar os fatos que levaram à necessidade de formação do Conselho, as consequências gerais de sua criação – sobretudo no que diz respeito ao Estado brasileiro – e os obstáculos para que suas ações se tornem mais concretas. Busca-se, também, analisar os impactos geopolíticos que decorreram da criação do CDS, verificando a influência do Brasil na criação e na manutenção dessa instância promotora de uma identidade de defesa das nações do subcontinente. Procura-se dividir este trabalho de forma que atinja o objetivo de situar o Brasil no contexto em que a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano se fez necessária. Para isso, este trabalho foi dividido em três seções: A Integração na América do Sul, A Criação do Conselho de Defesa Sul-Americano e O Brasil em Relação à Integração Militar. As seções 2 e 4 são constituídas por suas respectivas subseções: Tensões Históricas na Região e Gastos em Defesa, além de a seção 2 aprofundar-se em duas das principais motivações para o estabelecimento do CDS. Foi utilizada a revisão bibliográfica de artigos científicos, teses, dissertações, bem como do estatuto de criação do CDS e sobre a política externa brasileira no que se refere à defesa, além de informações obtidas na página da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), na web. Buscou-se, neste vasto tema, identificar e analisar, como problema de pesquisa, os objetivos do Brasil com a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano e as consequências gerais que decorrem de o país ser a liderança por trás dessa criação.

O CDS tem o objetivo de consolidar a América do Sul como uma zona de paz, criando condições para a estabilidade política e o desenvolvimento econômico-social, bem como construir uma identidade de defesa sul-americana, gerando consensos que contribuam para fortalecer a cooperação no continente. (BRASIL, MINISTÉRIO DA DEFESA, s/d)

2. A INTEGRAÇÃO NA AMÉRICA DO SUL A América do Sul tem sido bem-sucedida no que concerne à integração de âmbito político e militar, principalmente levando-se em consideração as guerras e tensões que eram presentes no dia a dia dos sul-americanos ao longo, particularmente, do século XIX. Atualmente, presume-se que os atores do Sistema Internacional acabem se tornando, em vez de Estados, blocos de poder políticos, econômicos e/ou militares formados por eles, o que aumenta a relevância de instâncias que visam a desenvolver a paz e a integração e que possibilitem a cooperação para a obtenção de certos ganhos de ordem internacional (DREGER, 2009). Conforme Dreger (2009, p. 8), a diplomacia não coercitiva do Brasil exerceu um vasto papel na promoção da paz que predomina em esfera regional, incentivando a aproximação entre Cone Sul e Comunidade Andina por meio da proposta da Área de Livre Comércio da América do Sul (ALCSA), criada em contraposição à Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), visando ao aumento – através de fóruns de diálogo e de instâncias econômicas, políticas e sociais, como o Mercosul, a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e instâncias de segurança e defesa, como o próprio CDS – não somente de suas respectivas autonomia e segurança, como também dos países vizinhos. A UNASUL foi fundada em maio de 2008, segundo o Ministério das Relações Exteriores (MRE), com o objetivo de promover as relações culturais, sociais e políticas entre os 12 países da América do Sul. Dentre as antigas tentativas de criação de uma instância de Defesa conjunta no continente americano, a mais conhecida delas, idealizada pelos EUA, foi o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), celebrado em 1947, mas que, com o tempo, foi perdendo sua credibilidade por favorecer mais os Estados Unidos do que os outros países do continente. A superpotência quebrou os princípios do tratado ao apoiar o Reino Unido no conflito pela posse das Ilhas Malvinas. Em 1948, foi criada, no âmbito do TIAR, a Organização dos Estados Americanos (OEA), cujos princípios, conforme Carvalho (2013), baseiam-se na garantia da paz e da segurança em primeiro lugar, utilizando políticas de boa vizinhança para solucionar pacificamente desavenças entre os

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Um dos fatores que dificultam a integração entre os países da América do Sul é a barreira linguística e histórica decorrente de uma formação social e cultural diferente entre o Brasil e os demais países do subcontinente, colonizados por espanhóis

membros. Visa à promoção de desenvolvimento econômico, social e cultural e à erradicação da pobreza crítica, vista como uma barreira para o “desenvolvimento democrático”. A falta de legitimidade de instâncias como a OEA – utilizada em grande escala pelos EUA como instrumento para exercer a Doutrina Monroe em seus vizinhos americanos –, como o Tratado de TIAR e a Junta Interamericana de Defesa (JID), decorreu da erosão da validade do modelo de segurança coletiva implantado nas Américas, principalmente depois de os Estados Unidos começarem a voltar sua política externa, a partir de 2001, para a Guerra ao Terror, abrindo espaço para a autonomia e independência no campo de Defesa dos países sul-americanos (FUCCILLE, 2014). Um dos fatores que dificultam a integração entre os países da América do Sul é a barreira linguística e histórica decorrente de uma formação social e cultural diferente entre o Brasil e os demais países do subcontinente, colonizados por espanhóis. Além desse fator, podem-se mencionar os conflitos fronteiriços que persistem na região e que são característicos de países de formação econômica, social e política mais recentes. Durante a conjuntura internacional bipolar, instaurou-se um período de extrema desconfiança entre os Estados, decorrente dos governos ditatoriais que se instalaram em países como Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, Equador e Peru e que tinham como um dos principais propósitos defender as fronteiras de eventuais invasões dos países vizinhos (SILVA, 2012, p. 6). Após o final da Guerra Fria, a América do Sul precisava garantir sua soberania e territorialidade em um mundo que se encontrava em uma conjuntura internacional completamente nova, podendo ser considerada tanto unipolar, quanto, como hoje sabemos, multipolar, o que causava incerteza a respeito da governança global. Segundo Okado (2012, p. 32), iniciativas como as reuniões de presidentes sul-americanos, iniciadas em 2000, a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e a criação da União Sul-Americana de Nações (UNASUL) “demonstram os esforços empreendidos em benefício de um projeto integrador entre os países do subcontinente.” Oito anos mais tarde, esses esforços desembocariam na principal instância de consulta, cooperação e coordenação em matéria de defesa da região. Objetivando promover a paz, a resolução pacífica de controvérsias, o desarmamento

e a cultura de paz no mundo e fortalecer o diálogo e o consenso em matéria de defesa mediante a vigência do Direito Internacional, entre outros aspectos, segundo os pontos do artigo terceiro de seu estatuto de origem, é criado o Conselho de Defesa Sul-Americano.

2.1. Tensões históricas na região

Por mais pacífica que a América do Sul seja historicamente, nem essa região desvencilha-se de ter sido palco de um conflito armado devastador para, pelo menos, uma das nações participantes. A Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870, foi uma das desavenças com consequências mais palpáveis que ocorreriam ao longo da história dos países do Cone Sul, na disputa pelo Rio da Prata e devido à indefinição de questões fronteiriças. Essa guerra foi responsável por praticamente dizimar a população masculina do país e possui, até hoje, efeitos negativos e visíveis no desenvolvimento de uma nação que costumava ser uma potência econômica da região. Em segundo lugar, pode-se fazer referência à Guerra do Pacífico, conflito entre Chile, Bolívia e Peru, de 1879 a 1883, que teve como finalidade a anexação, pelo Chile, de territórios ricos em minério, o que terminou por privar a Bolívia de uma saída para o mar e acarretou a perda da província de Tarapacá pelo Peru. Até hoje, no dia 23 de março, é celebrado na Bolívia o “Día del Mar”, ocasião em que os bolivianos rememoram a primeira batalha do conflito e clamam pelo direito universal de possuir uma saída para o litoral. Este acontecimento possui impacto ainda hoje nas relações políticas entre esses três países, principalmente entre Chile e Bolívia, e, por sua vez, nas políticas que visam à criação de uma identidade sul-americana de Defesa. Já nos anos 1900, pode-se citar a Guerra do Chaco, entre Bolívia e Paraguai, tendo o período de 1932 a 1935 como momento do conflito. De certa forma, essa guerra, para a Bolívia, foi decorrência das baixas do país na Guerra do Pacífico, no século anterior. O rio Paraguai atraíra os interesses bolivianos para a região do Chaco, e, naquele momento, a economia desse país era consideravelmente mais forte do que a do país rival. De todo o modo, após contabilizadas mais de 89.000 mortes (SILVA, 2012, p. 6), a Bolívia acaba por perder o conflito para o Paraguai e prossegue sem uma saída para o Oceano Pacífico. Ao longo do século XX, alguns incidentes de meno-

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res proporções1 também ocorreriam na área, mas não de forma a desestabilizar a região como um todo. Segundo Abdul-Hak (2013), é seguro dizer que diferentes combinações dos seguintes fatores foram essenciais para a resolução não coercitiva dos conflitos regionais: o papel estabilizador dos EUA como potência hegemônica e do Brasil como potência regional; a busca por um equilíbrio de poder; a força moderadora de possíveis ameaças externas; o isolamento geográfico acentuado pela baixa relevância estratégica da região; o crescimento econômico, a consolidação da integração e da interdependência; e a existência de valores comuns e consensos normativos. Atualmente, o Brasil passa por duas situações especialmente destacadas aqui: a primeira é a utilização de 95% de toda a energia produzida pela usina de Itaipu, hidrelétrica de uso binacional entre Brasil e Paraguai, comprando a maior parte dos recursos não consumidos pelo outro país a preço de custo, e a segunda é o descobrimento da camada de pré-sal no Atlântico Sul, onde há grande quantidade de petróleo de difícil acesso e extração, mas que já tomou a atenção de potências extrarregionais interessadas em conquistar fontes de recursos energéticos. Dentre os atritos ainda presentes, pode-se destacar o problema de demarcação de fronteiras entre Venezuela e Colômbia (SILVA, 2012), tensão que atinge as fronteiras da Amazônia devido ao tráfico humano, de drogas e de armas na região.

territorialidade dos 12 países. Em julho de 2009, essa negociação previa o uso de sete bases militares na Colômbia pelas forças armadas norte-americanas, o que significaria uma presença constante e possível interferência da superpotência em assuntos da região, levando países como Venezuela e Bolívia, durante a III Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da UNASUL, a condenar a presença de bases estrangeiras na América do Sul (ABDUL-HAK, 2013, p. 20). Conforme salientam Saint-Pierre e Palacios Junior (2014, p. 24),

2.1.1. Operação Fênix e Plano Colômbia

Foi durante o governo Luís Inácio Lula da Silva (20032010) e por meio da liderança de Nelson Jobim, ministro de Defesa do Brasil (2007-2011) que a criação do CDS conquistou credibilidade e apoio suficientes. O ministro, com o apoio do Itamaraty, viajou pelas 12 capitais da América do Sul no ano de 2008 buscando engajar os ministros de defesa dos Estados membros da UNASUL na promoção da paz e da segurança da região, o que acabou por deixar o país com o papel significativo, de exercer uma postura ainda mais diplomática e conciliadora no que diz respeito aos interesses nacionais de cada um dos Estados quanto à cooperação no campo da Defesa (ABDUL-HAK, 2013, p. 22). Criado no âmbito da UNASUL e procurando preencher lacunas de conhecimento compartilhado nas áreas de defesa e segurança entre os doze países, o Conselho de Defesa Sul-Americano apresenta-se como uma instância de consulta, cooperação e coordenação em matéria de Defesa que procura respeitar de maneira irrestrita a soberania, a integridade e a inviolabilidade territorial dos Estados, a

Há uma divergência na visão de autores que dissertam sobre o Conselho de Defesa Sul-Americano em relação aos principais motivos pelos quais essa instância possa ter sido criada, mas quase todos mencionam o ataque colombiano, em março de 2008, a um acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), em Angostura, no Equador, questão que ficou conhecida como ‘Operação Fênix’. Esse ataque das Forças Aéreas colombianas resultou no assassinato de uma das principais lideranças das FARC, Raul Reyes (SAINT-PIERRE; PALACIOS JUNIOR, 2014). Visando proteger a integridade e os objetivos do CDS, o cronograma de implementação de seu Plano de Ação 2009-2010 precisou ser interrompido com o comunicado de um acordo entre EUA e Colômbia, fator que só evidenciou ainda mais o quão importante se fazia a criação de um Conselho de Defesa que preservasse a soberania e a 1 O conflito fronteiriço entre Equador e Peru, em 1941, e outros incidentes em menor escala, nos anos de 1981 e 1995, podem ser mencionados neste artigo como algumas das tensões que tomaram forma historicamente no subcontinente (ABDUL-HAK, 2013, p. 195). Mesmo que sejam impasses de certa relevância regional, não interferem, atualmente, em grande escala nas relações militares e de seguranças da América do Sul.

Ainda que não tenha sido assinado nenhum documento final, o resultado político dessa Cúpula foi claramente significativo: pela primeira vez conseguiu-se reunir com sucesso todos os chefes de Estado da região (inclusive o presidente Uribe, nesse momento demandado) para debater questões de defesa regional, sem a participação de potências extrarregionais e com transmissão televisionada ao vivo. [...] o ambiente diplomático estratégico compeliu a Colômbia e os EUA a agirem de maneira mais cautelosa e a divulgarem aos demais governos o teor de seus acordos militares.2

3. A CRIAÇÃO DO CONSELHO DE DEFESA SUL-AMERICANO

2 A negociação de um acordo para a utilização das sete bases colombianas, por até 800 militares e 600 civis americanos, durante dez anos, foi formalmente justificada pelos governos dos dois países como uma medida necessária para intensificar a luta contra o narcotráfico e o terrorismo (ABDUL-HAK, 2012, p. 163).

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não intervenção nos assuntos internos e a autodeterminação dos povos, definida como aquilo que garante a todo país o direito de tomar suas próprias decisões sem intervenções exteriores, ou seja, é o direito de cada Estado à soberania. Como ressalta Nascimento (2013, p. 83), os três objetivos gerais do CDS incentivariam a autonomia regional em termos de integração estratégico-defensiva, sem afetar as soberanias nacionais:

A segurança da América do Sul como entidade, mesmo que não explícita em certos artigos do estatuto de criação do Conselho, está subentendida na totalidade das demandas da região

a) consolidar a América do Sul como uma zona de paz, base para a estabilidade democrática e para o desenvolvimento integral de nossos povos, e como contribuição para a paz mundial; b) construir uma identidade sul-americana em matéria de defesa, que tome em conta as características sub-regionais e nacionais e que contribua ao fortalecimento da unidade da América Latina e do Caribe; c) gerar consensos para fortalecer a cooperação regional em matéria de defesa.

Quanto às determinações na área de confiança e segurança coletiva, pode-se citar como pontos significativos do estatuto do CDS: avanços graduais em análise e o debate de uma visão regional no campo de defesa; a informação de atividades de cunho militar intra e extrarregionais, em concordância com a ação de países tanto da região quanto de fora dela; medidas no campo da segurança coletiva, como a intensificação da segurança de fronteiras visando a atos de contrabando, terrorismo e qualquer tipo de ato ilícito ou de violência; a renúncia ao uso ou ameaça do uso da força entre os países da América do Sul, assim como a garantia de que esse Conselho preservaria o subcontinente como espaço livre de armas de destruição em massa, promovendo o desarmamento e a cultura de paz no mundo (CARVALHO, 2013, p. 108). Entre as ações já realizadas, o CDS executou, em 2010, dois planos de ação que dizem respeito à “promoção da troca de informação e análise sobre a situação regional e internacional, com o objetivo de identificar fatores de riscos e ameaças que possam afetar a paz regional e mundial”. Esses planos foram responsáveis pela criação do Centro de Estudos Estratégicos de Defesa (CEED), situado em Buenos Aires, que tem como finalidade consolidar os princípios do próprio Conselho, incentivando a troca de conhecimentos estratégico-regionais e exercendo, segundo o estatuto do CDS, “o intercâmbio em matéria de capacitação militar, facilitando processos de treinamento entre

as forças armadas e promover a cooperação acadêmica dos Centros de Estudos de Defesa”. A segurança da América do Sul como entidade, mesmo que não explícita em certos artigos do estatuto de criação do Conselho, está subentendida na totalidade das demandas da região, e, essencialmente, todas as ações e objetivos do Conselho de Defesa Sul-Americano implicam um enorme autoconhecimento e confiança regional entre os Estados-membros, o que se torna evidente conforme a região atrai os interesses de potências extrarregionais devido ao seu desenvolvimento e a seus recursos energéticos. Eis as razões pelas quais o CDS precisaria proteger seus recursos, segundo Abdul-Hak (2013, p. 84):

A América do Sul é autossuficiente em energia e possui 25% das terras cultiváveis para agricultura e os mesmos 25% das reservas de água doce do mundo. Para o setor militar, essas características conferem uma importância estratégica singular para a região, dada a possibilidade de crescentes conflitos internacionais movidos pela escassez de comida e água. Seriam fatores convergentes entre os países da região sua distância relativa dos grandes focos de tensão internacional, a ausência de armas nucleares, a semelhança de culturas e o processo de aperfeiçoamento das democracias em curso desde a década de 1980. As possíveis fontes de instabilidade seriam interesses interestatais divergentes, fragilidades econômicas e institucionais domésticas, ilícitos transnacionais e o transbordamento de conflitos nacionais.

4. O BRASIL EM RELAÇÃO À INTEGRAÇÃO MILITAR Existia, antes da formação dessa instância, e existe, até hoje, um certo receio entre as demais nações que compõem o CDS sobre os reais objetivos do Brasil com relação a esse Conselho, mesmo que, durante a viagem de Nelson Jobim pelas 12 capitais sul-americanas, o ex-ministro tenha feito questão de enfatizar que o CDS nada teria a ver com uma “OTAN do Sul”, pois o Conselho poderia representar uma tentativa de imperialismo brasileiro na região. Apesar dessas suspeitas, o país demonstra não possuir ambições expansionistas e reforça ainda que, entre suas motivações por trás da liderança de criação do CDS, está o exercício da defesa regional em conjunto, beneficiando,

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de alguma forma, todos os países do subcontinente. Há, todavia, pensamentos controversos no que concerne ao protagonismo brasileiro, de acordo com Okado (2012, p. 38):

maneira este poderia servir aos maiores objetivos de uma integração regional (OKADO, 2012). O Brasil, conforme a visão de Abdul-Hak (2013, p. 193),

As reações ao protagonismo brasileiro, por exemplo, manifestam-se por meio dos entraves às iniciativas de pleitear cargos de destaque em organizações internacionais, com o Conselho de Segurança, ou da negação do apoio a propostas acordadas em bloco, como a eliminação dos subsídios agrícolas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). A neutralização das pressões internacionais sobre a Amazônia, desde quando o processo de integração no Cone Sul adquiriu proeminência, é o objeto de preocupação constante dos governos.

É um país que tem muito a defender, mas com limitada capacidade efetiva de defesa. Trata-se do quinto maior do mundo em termos de território e de população, o segundo maior produtor agrícola do mundo e uma potência energética em termos hídricos e petrolíferos, após as descobertas de reservas do pré-sal. Na América do Sul, a assimetria brasileira é pronunciada: o país concentra 48% do território sul-americano, 50% da população, 48% das reservas de água doce e 45% das terras agricultáveis.

Para analisar as dimensões de segurança no Brasil, recorre-se ao estudo de cenários possíveis, registrados pelo exército brasileiro em 2005. Entre os pontos mais importantes, destacam-se as reações internacionais ao protagonismo brasileiro, a participação militar do país em conflitos na América do Sul e a neutralização de pressões internacionais sobre a Amazônia, além da possibilidade de existência do terrorismo em território brasileiro (OKADO, 2012). A Amazônia é um dos principais – senão o principal – focos de interesse do Brasil no desenvolvimento das ações, o que reflete na tomada de decisões diplomáticas do país substancialmente, como ressalta Abdul-Hak (2013), quando menciona a iniciativa de realização do tratado de cooperação amazônica de 1978. Alguns anos mais tarde, o Brasil conceberia o Projeto Calha Norte, que tinha como objetivo resguardar e fortalecer a região ao norte dos rios Solimões e Amazonas contra ameaças ilícitas. Com a implantação desse projeto, a área estaria automaticamente mais protegida de vazamentos de conflitos pela fronteira com a Colômbia e, também, de crimes relacionados ao tráfico. O Brasil expressava interesse na formação de um mecanismo válido de defesa desde o ano de 2004, e não há dúvidas sobre o Conselho de Defesa Sul-Americano ser, de acordo com Okado (2012, p. 105), “a maior expressão da política de defesa brasileira no sentido de integração regional em matéria de segurança e defesa”. Conforme a linha de pensamento de Nascimento (2013), “Imagina-se a união sul-americana – e, consequentemente, a paz regional – como uma condição necessária para que o país exerça o seu papel de liderança regional e de projeção no Sistema Internacional”. No que diz respeito à visão do Itamaraty, mesmo que a diplomacia brasileira tenha demonstrado apoio e incentivo à formação do CDS, não existem declarações assertivas que vão além do fato de a iniciativa ser importante, e não se expressa o que se pretende atingir com o Conselho e de que

4.1. Gastos em Defesa De acordo com o artigo terceiro do Estatuto do Conselho de Defesa Sul-Americano, um dos princípios de formação do CDS pode ser definido como a promoção da redução das assimetrias entre os sistemas de defesa dos Estados-membros da UNASUL, de modo a fortalecer a defesa da região como um todo. Contudo, tornar mais similares esses sistemas de defesa – considerando as diferenças territoriais, políticas e econômicas de cada país – é um tanto quanto desafiador, e o Brasil, como o país mais atuante da região no Sistema Internacional, possui grande discrepância em relação a outros países sul-americanos no que concerne a gastos em defesa3, fator que pode ser observado claramente na tabela referente ao orçamento de defesa da América do Sul (ANEXO B). Apesar disso, existe a possibilidade de países menores investirem em comunhão para que, desse modo, seus ganhos sejam maiores através da utilização de recursos que não sejam abundantes na área de controle de fronteiras. Sendo o Brasil o Estado da América do Sul que mais gasta nessa área, há de se pensar que uma reformulação da defesa brasileira terá de ser realizada em algum momento. O país gasta, atualmente, mais com militares que não estão mais em serviço (em torno de US$ 19,98 bilhões no ano de 2008) do que com aqueles que estão atuando (US$ 11,96 bilhões) (ABDUL-HAK, 2013, p. 86). 3 Os brasileiros tendem a se perguntar se grandes gastos em defesa seriam necessários em um país que não apresenta nenhuma ameaça externa iminente e que carece historicamente de volumosos investimentos nas áreas sociais, mesmo que os gastos sejam justificados pelo exercício da soberania nacional sobre os recursos naturais do território e pela estrutura econômica do país. Unindo-se a esses fatores, existe ainda o desgaste da qualidade de segurança dos cidadãos, ocasionado pelo tráfico de drogas, o contrabando de armas o crime organizado; porém, há uma percepção da população de que um dos motivos da falta de segurança são, justamente, as falhas de policiamento nas fronteiras (ABDUL-HAK, 2013, p. 89).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A manutenção das ações do Conselho – que tem como presidente o representante do país que está, simultaneamente, no comando da UNASUL – exige grande engajamento das políticas de defesa e da política externa, em certos casos, mais do Brasil do que do país que está efetivamente no comando. Acredita-se que, caso a relevância dos blocos de poder se torne maior do que a dos Estados em si, a importância de instâncias estratégico-militares será ainda maior, pois esses blocos terão a capacidade de compreender e resolver conflitos de forma pacífica e coordenada. Conforme as situações políticas e econômicas internas nos países do subcontinente se alteram, podemos esperar um maior ou um menor protagonismo do CDS no âmbito de integração de defesa da região. Algo que também pode ser levado em consideração é a pouca divulgação da existência e da influência que o Conselho tem em manter a paz na América do Sul. Espera-se que suas ações assumam papel mais visível no dia a dia da população, que pode facilmente compreender a relevância dos aspectos de projeção internacional dessa instância. Devido aos contrastes em seus investimentos em defesa, os 12 países que compõem o CDS têm um longo caminho a percorrer se quiserem que essa integração funcione de forma mais efetiva. Apesar disso, desde sua formação, em 2008, o Conselho tem conseguido propagar a paz e a integração na região, existindo ainda expectativas de que atue como uma ferramenta que diminua o tráfico de drogas, de armas e de pessoas em grandes centros urbanos da América do Sul.

REFERÊNCIAS ABDUL-HAK, Ana Patrícia Neves Tanaka. O Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS): objetivos e interesses do Brasil. Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), 2013. ATLAS comparativo de defesa na América Latina e no Caribe. Edição 2010. Cap 3. Disponível em http://www. defesanet.com.br/geopolitica/noticia/4639/ANALISE-COMDEFESA---Integracao-SUL-AMERICANA -em-Defesa--Perspectivas-e-Desafios. Acesso em 12 out. 2015. CARVALHO, Glauber Cardoso. A América do Sul em Processo de Transformação: desenvolvimento, autonomia e integração na UNASUL. Rio de Janeiro, RJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2013.

CONSELHO DE DEFESA SUL-AMERICANO. Estatuto do Conselho de Defesa Sul-Americano. Santiago, Chile: Terceira Reunião Ordinária da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), 2008. Disponível em: http://www.ceedcds.org.ar/Portugues/09-Downloads/ PORT-ESTATUTO_CDS.pdf. Acesso em 12 out. 2015. COSTA, Wanderlei Messias. O Brasil e a América do Sul: cenários geopolíticos e os desafios da integração. Mapa 3, Confins (online). Disponível em http://confins.revues.org/6107. Acesso em 28 out. 2015. DREGER, Fabrício Brugali. Integração na América do Sul: a UNASUL e o Conselho de Defesa Sul-Americano. Porto Alegre, RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 2009. FUCCILLE, Alexandre. Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS): balanço e perspectivas. São Paulo, SP: Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2014. MINISTÉRIO DA DEFESA. Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS). Disponível em http://www.defesa. gov.br/relacoes-internacionais/foruns-internacionais/ cds. Acesso em 25 out. 2015. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Aprovação do Tratado Constitutivo da UNASUL no Congresso Nacional. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/index.php?option=com_tags&view=tag&id=52-unasul&lang=pt-BR. Acesso em 28 out. 2015. NASCIMENTO, Paulo Roberto Laraburu. O sentido da autonomia na iniciativa brasileira de criação do Conselho de Defesa Sul-Americano. Brasília, DF: Universidade de Brasília (UNB), 2013. OKADO, Giovanni Hideki Chinaglia. Política Externa e Política de Defesa: uma epifania pendente. Brasília, DF: Universidade de Brasília (UNB), 2012. SAINT-PIERRE, Héctor Luis; PALACIOS JUNIOR, Alberto Montoya Correa. As Medidas de Confiança no CDS: análise dos gastos em defesa (2009-2012). Franca, SP: Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2014. SILVA, Saint-Clair Lima da. Conselho de Defesa Sul-Americano: possibilidade de integração militar efetiva na América do Sul? Brasília, DF: Universidade de Brasília (UNB), 2012.

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ARTIGO

A PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA NO CONSELHO DE SEGURANÇA NOS BIÊNIOS 1998-1999 E 2004-2005 Rodrigo do Amaral Porciuncula * Marcos Reis **

RESUMO

Este artigo aborda a participação do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas, nos Biênios de 19981999 e 2004-2005. O Conselho de Segurança (CS) é um dos órgãos mais importantes da Organização das Nações Unidas (ONU), e seu principal objetivo é manter a paz mundial. No seu primeiro biênio analisado, o Brasil atuou mais ligado às grandes potências, focando em aprovar resoluções para resolver várias crises na África, Ásia e na Europa Oriental. No seu segundo biênio analisado, o Brasil manifesta uma atuação mais independente, focada em problemas que não receberam tanta atenção das grandes potências, destacando-se seus esforços na criação e na liderança da missão de paz no Haiti. PALAVRAS-CHAVE: Conselho de Segurança, Brasil, Política externa, ONU. ABSTRACT This article discusses the participation of Brazil in the United Nations Security Council in 1998-1999 and 20042005. The Security Council (SC) is one of the most important organs of the United Nations (UN), and its main goal is to maintain world peace. In its first two years analyzed, Brazil acted more on the great powers, focusing on passing resolutions to resolve several crises in Africa, Asia and Eastern Europe. In its second biennium analyzed, Brazil shows a more independent role, focused on issues that have not received much attention of the great powers, especially their efforts in the creation and leadership of the peacekeeping mission in Haiti. KEY WORDS: Security Council, Brazil, Foreign policy, UN.

(*) Acadêmico de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) (**) Doutor em Ciências Militares pelo Exército DEP, Brasil (2005) e Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS (2016). Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

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1. INTRODUÇÃO Este artigo tem como objetivo verificar a participação brasileira no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) nos biênios de 1998-1999 e 2004-2005. Para tanto, será dividido em 3 seções: a primeira tratará da participação brasileira no biênio de 1998-1999, a segunda tratará da participação no biênio de 2004-2005 e a terceira será uma análise comparativa da participação brasileira nos dois biênios. A divisão foi realizada visando responder a seguinte pergunta: qual foi o perfil da participação do Brasil no CSNU nos biênios de 1998-1999 e 2004-2005? A Organização das Nações Unidas (ONU) é uma organização internacional composta por 193 países membros, fundada em 1945 por meio da Carta das Nações Unidas, de 26 de julho de 1945, que entrou em vigor em 24 de outubro de 1945. Dentre os diversos órgãos da ONU, o que será tratado com atenção especial no presente artigo será o Conselho de Segurança (CSNU). A ONU tem como primeiro propósito: Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; (ONU, 1945).3

O Conselho de Segurança é composto por 15 estados membros, dentre os quais cinco ocupam as cadeiras permanentes (P-5), China, Estados Unidos, França, Inglaterra e Rússia, e possuem poder de veto. Os outros dez ocupam as cadeiras rotativas, sem o poder de veto. O CSNU é responsável por manter a paz e a segurança mundial e, para atingir seus objetivos, é dotado de capacidade de impor suas decisões a outros países. As relações internacionais do Brasil são regidas pela 3 Artigo 1 - Os propósitos das Nações unidas são: 1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns.

Constituição Federal, especificamente pelo artigo 4°, no qual estão presentes os princípios norteadores da atuação da política externa brasileira. Entre esses princípios estão: a defesa da paz (inciso VI), a autodeterminação dos povos (inciso III) e a solução pacífica de conflitos (inciso VII).4 Assim, é legítimo afirmar que a política externa brasileira deverá sempre se pautar pelo norteamento do artigo da sua Constituição Federal acima citado. Nesse sentido, percebe-se que o Brasil prima pela cooperação internacional, pela solução pacífica dos conflitos internacionais e pela prevalência dos Direitos Humanos, tendo como fundamento jurídico em suas ações externas, sua própria Carta Magna.

2. PARTICIPAÇÃO DO BRASIL NO CSNU NO BIÊNIO DE 1998-1999 Com aproximadamente 96% dos votos, na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) de 1997, o Brasil foi eleito para participar e ocupar uma cadeira não permanente no CSNU. No contexto na qual a participação brasileira ocorre, é importante destacar, segundo Uziel (2011 apud ZIEMATH, 2014), a escalada de tensões no continente africano e as diversas questões que surgiram na Europa Oriental e no Leste asiático, as quais, muitas, colocaram em atrito os membros permanentes, reduzindo, assim, o ativismo em relação à década anterior. A África, na época da atuação brasileira, apresentava mais de quinze conflitos em andamento, tendo o Brasil uma atuação mais profunda em dois desses, o de Angola e o da Guiné-Bissau. Seguindo a resolução 1170 do CSNU, que criou seis grupos de trabalho para o desenvolvimento de uma paz duradoura no continente africano, o Brasil assume a liderança do grupo destinado ao fortalecimento da aplicação efetiva dos embargos de armas no continente (FONSECA Jr, p.22 apud ZIEMATH, 2014). O Brasil, na posição de liderança do grupo, vai ao encontro de um dos seus princípios norteadores constitucionalmente previsto, a solução pacífica dos conflitos, uma vez que a aplicação de embargos é uma forma não violenta de tentar solucionar um conflito armado entre as partes. A participação brasileira se destaca principalmente 4 Artigo 4° A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não-Intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político.

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junto ao grupo de trabalho que visava reforçar o papel das organizações regionais na estabilização do continente, demonstrando, assim, uma continuidade da postura histórica de apoio brasileiro ao capítulo VIII da Carta da ONU (ZIEMATH, 2014). Nesse capítulo da Carta das Nações Unidas, no artigo 52, inciso 35 está explícito que o CSNU deverá estimular a solução pacífica por meio de entidades regionais. Em 1998, o Brasil fez parte da quarta operação de paz da ONU em Angola, conhecida como a Missão de Observação das Nações Unidas em Angola (MONUA). O CSNU, ao observar que a situação se deteriorava no país, fortaleceu as sanções contra a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), movimento rebelde angolano, além de exigir sua desmilitarização. A UNITA era considerada uma das causas para a deterioração da estabilidade política da nação (ZIEMATH, 2014). O Brasil buscava manter-se alinhado as decisões do CSNU em relação ao conflito angolano, defendendo a permanência da ONU na região. Já no conflito que ocorria na Guiné-Bissau, “em 5 de junho de 1998, o General Ansumane Mane, antigo líder das forças armadas, declarou-se chefe de um governo militar e convocou eleições gerais” (FONSECA Jr, 2002, p. 100). Em razão disso, o conflito tomou proporções regionais e envolveu países vizinhos para intervir em favor do governo deposto. Desse modo, a atuação brasileira se deu em duas frentes. A primeira, compondo um grupo de negociação devido à proximidade linguística. E a segunda por meio do CSNU, o qual apoiou a resolução 1216, que solicitava a realização de eleições gerais até novembro de 1999, e a resolução 1233, que aprovava a criação de um escritório para a reconstrução do país. Essa atuação compactuou com o inciso VII do art. 4° da Constituição Federal. Outra situação de instabilidade que ocorreu durante o mandato do Brasil no CSNU foi a do Timor Leste, o qual apresentava uma similaridade com a cultura brasileira, pois foi colonizado por portugueses. O Timor Leste foi anexado como 27° província da Indonésia em 1976 (FONSECA Jr, 2002). Em decorrência dos problemas gerados por essa anexação, o CSNU estabeleceu a Missão das Na-

ções Unidas em Timor Leste (UNAMET), cujo objetivo era organizar uma consulta popular a respeito da independência do Timor Leste. Com o aumento das tensões, pós-consulta popular, cogitou-se a instalação de uma missão de paz no Timor Leste. Inicialmente a Indonésia foi contrária, pois seria uma violação de sua soberania. Contudo, quando cedeu, O CSNU decidiu que uma missão de paz da ONU levaria muito tempo e, portanto, estabeleceu-se uma força multinacional, liderada pela Austrália, com a missão de restaurar a paz e proteger a Missão das Nações Unidas em Timor-Leste (UNAMET). Essa criação se deu por meio da resolução 1264, apoiada pelo Brasil, que além de votar a favor, enviou tropas (ZIEMATH, 2014). A posição do Brasil esteve de acordo com o art 4°, incisos II, III, VI, da Constituição Federal. O Brasil visava a proteção da população timorense, que estava sofrendo com violações dos direitos humanos, que, em última instância, ocorreu por meio de uma intervenção militar, a qual respeitou a soberania da Indonésia, e, assim, também apoiava a autodeterminação do povo timorense (UZIEL,2012). Outra situação foi a do Kosovo, na qual o Brasil apoiou a resolução 1272, que estabelecia um embargo de armas à Iugoslávia e aos grupos kosovares, chegado, inclusive, a assumir a presidência do comitê de sanções (ZIEMATH, 2014). O Brasil também apoiou a resolução 1203, que transferia a responsabilidade de uma missão de verificação aérea em Kosovo para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Então, em 1999 é aprovada a resolução 1244, que autorizava os estados e organizações internacionais a intervirem com qualquer meio necessário para cumprir a resolução e criava a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK). O Brasil foi de acordo com essa decisão, pois tinha objetivos humanitários. Nesse mesmo ano, em 1999, o Brasil assume a presidência do CSNU em um momento de crescentes tensões no Oriente Médio, estabelecendo três painéis que avaliaram a situação. Os painéis culminaram com a resolução 687, que determinava a criação da Comissão das Nações Unidas de Vigilância, Verificação e Inspeção (UNMOVIC), que permaneceu até a invasão dos Estados Unidos no Iraque 2003. No período da presença brasileira, de 1998-1999, o CSNU abordou diversas temáticas, como a presença de crianças em conflitos armados, o terrorismo internacio-

A participação brasileira se destaca junto ao grupo de trabalho que visava reforçar o papel das organizações regionais na estabilização do continente

5 O Conselho de Segurança estimulará o desenvolvimento da solução pacífica de controvérsias locais mediante os referidos acordos ou entidades regionais, por iniciativa dos Estados interessados ou a instância do próprio conselho de Segurança. (Carta das Nações Unidas, capitulo VIII, inciso 3, 1945)

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nal, os refugiados de conflitos armados, a proteção de civis em conflitos armados, a proliferação nuclear, entre outros. A pretensão da cadeira permanente foi mais limitada em 1998-1999, restrita sobretudo pelos debates nas eleições de 1998, nas quais concorriam FHC e Lula, principalmente focados no âmbito econômico, além de ser limitada por impasses regionais com a Argentina, o que quebrava o consenso latino-americano. (Arraes, 2005 apud ZIEMATH, 2014). Nesse biênio analisado, o Brasil apresentou 100% de seus votos em consonância com os da maioria do CSNU, tendo como objetivo a aprovação de um maior número de resoluções por parte do CSNU. Tentou aumentar as atividades do conselho, mesmo havendo a abstenção de voto de algum membro permanente.

3. PARTICIPAÇÃO DO BRASIL NO CSNU NO BIÊNIO DE 2004-2005 Quatro anos após deixar sua ocupação no assento rotativo do CSNU, o Brasil é novamente eleito, participando pela nona vez, com 97,2% dos votos na AGNU para ocupar um assento rotativo no CSNU, atuando no biênio de 2004-2005. No contexto da participação do Brasil, é importante ressaltar que algumas questões, que receberam menor prioridade por parte dos países permanentes, foram tratadas de forma especial pelo Brasil, com uma maior atenção que a concedida pelos P-5. O CSNU apresenta certa inatividade prática, mas, ainda assim, produz várias resoluções durante o biênio da presença do Brasil. O Brasil segue aos princípios basilares de sua política externa, conforme a Constituição Federal art. 4°, tendo ênfase nos incisos II, VI, VII e IX. O Brasil continua atuando em busca de um maior consenso no CSNU, se abstendo de votar quando acreditava que a resolução ia além dos limites políticos aceitáveis para o país e realizando tentativas de reduzir a busca por soluções fora do CSNU (ZIEMATH, 2014 p. 119). Na pauta do CSNU encontrava-se a região africana, dentre os problemas da região, o Brasil atuou mais profundamente no caso da Guiné-Bissau, citado anteriormente. No Oriente Médio, outra região que constava na pauta, o país atua, principalmente, no Líbano. Umas das atuações de maior destaque foi a da questão do Haiti, na qual o Brasil atuou de forma proativa. Na Ásia, o país atuou comprometido com a construção da paz no Timor Leste. A construção da paz e os debates acerca do TPI também contaram com a atuação do Brasil. Nas questões africanas, temas como a instabilidade no Sudão e conflitos regionais, como o da Libéria e da Costa do Marfim, ganharam maior destaque que o conflito da Guiné-Bissau. Esse último conflito era de grande interesse

brasileiro em razão dos laços culturais, porém ficou em segundo plano nas discussões do Conselho. Nesse contexto, o Brasil tenta iniciar o debate sobre as limitações do Gabinete Integrado das Nações Unidas para a Consolidação da Paz na Guiné-Bissau (UNIOGBIS), propondo a ampliação de sua área de atuação. Desse modo, os esforços do Brasil foram efetivos e resultaram na resolução 1580/2004, que intensificou o mandato da UNIOGBIS (ZIEMATH, 2014 p. 120). Quanto ao Oriente Médio, os conflitos religiosos acabaram sendo resolvidos por pequenos grupos, assim o CSNU manteve uma posição secundária nas negociações. Os Estados Unidos fizeram uso do poder de veto toda vez que alguma resolução ia contra os interesses de Tel Aviv, em apoio a Israel, já que esse nunca esteve presente no Conselho (VIEGAS, 2012, p.27). Na questão do Líbano, o CSNU entendeu que havia interferência de forças estrangeiras infiltradas naquele país, assim, foi votada a resolução 1559/2004, a qual convocava que todas forças estrangeiras presentes no país se retirassem. O Brasil se absteve nessa votação, sob a justificativa de que a resolução interferia em assuntos internos do Líbano, fugindo, portanto, das atribuições no Conselho. Essa ação do Brasil demostrou o seu apoio ao princípio de não intervenção em assuntos domésticos de outros países. Aqui é importante ressaltar a participação do Brasil na Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL). O principal tema da atuação do Brasil no Conselho foi a questão do Haiti, na qual foi criada uma nova missão militar, a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH), que seria liderada pelo Brasil, sendo um exemplo de cooperação sul-sul. No início da questão haitiana, o Brasil adotou uma posição reativa aos problemas, porém, no biênio de 2004-2005, essa abordagem mudou drasticamente, passando para uma posição mais proativa em relação ao Haiti. Essa mudança começou com o ingresso do Brasil no grupo de amigos do Haiti, criado por uma iniciativa da Organização dos Estados Americanos para ajudar o Haiti. Em 2004, foi aprovada por unanimidade a resolução 1529, que criava uma força internacional que atuaria por três meses no Haiti, tendo liberdade para usar todos os meios necessários para garantir a paz. O Brasil apoiou a resolução, pois essa continha um prazo para o fim da missão militar, a certeza da criação de uma nova missão de paz e o compromisso internacional com a estabilidade política e o desenvolvimento socioeconômico a longo prazo (ZIEMATH, 2014). Em abril desse mesmo ano é aprovada a resolução 1542, que cria a MINUSTAH. Na resolução pode ser observado o esforço brasileiro para vincular o máximo de organismos regionais em operações de paz da ONU, ficando clara, no pará-

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grafo 6º, a colaboração com a Comunidade do Caribe (CARICOM) e a Organização dos Estados Americanos (OEA). Também se nota que a expressão “ all necessary measures” não foi usada para definir a MINUSTAH, mostrando, assim, respeito à soberania do Haiti. Muito relevante apontar a presença de um parágrafo sobre a criação de uma estratégia de desenvolvimento a longo prazo. O Brasil adotou como estratégia para sua participação em missões de paz: participar em discussões informais; buscar por fonte de informações próprias; dedicar uma atenção maior aos casos que não eram de interesse exclusivo do CSNU e contribuir de maneira efetiva nos projetos. Em 2004, o Brasil também atuou na busca pela renovação da Missão das Nações Unidas de Apoio a Timor-Leste (UNMISET), de 2002, alegando que ainda havia instabilidade na região e usando como base os pedidos de ajuda de Díli. Aproveitando o apoio da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), o Brasil conseguiu renovar a missão por mais um ano, aumentando o número de tropas enviadas e se tornando o maior contribuinte na missão. A renovação da UNMISET não era uma prioridade dos P-5, fato que facilitou ao Brasil atingir seu objetivo. Em 2005, o Brasil apoiou a resolução 1599 que criava a Escritório das Nações Unidas no Timor-Leste (UNOTIL). Essa decisão mostrou a política brasileira de solução pacifica de conflitos (ZIEMATH, 2014). A grande atuação do Brasil na criação da Comissão de Construção da Paz (CCP) reforçou a posição brasileira de apoio as instituições multilaterais democráticas e visou o desenvolvimento econômico como forma de gerar e garantir a estabilidade de um país. Dita comissão foi criada por meio da resolução 1645 de 2005. A posição do Brasil quanto à forma da comissão divergia em relação a idealizada pelo P-5. O Brasil e outros países em desenvolvimento queriam uma comissão mais diversificada, enquanto os P-5 queriam que a Comissão fosse ligada ao CSNU e que os cinco tivessem assentos permanentes na Comissão. Nesse sentido, a proposta apresentada, criava a CCP, sem membros permanentes, mas os P-5 apoiaram a proposta, apresentada no CSNU, de modificação da CCP, colocando membros permanentes na Comissão. O Brasil votou favorável à criação da CCP, resolução 1645/2005, mantendo seu apoio a instituições multilaterais, mas se absteve de votar, apoiado pela Argentina, na resolução 1646, que garantia a presença per-

manente dos P-5 na CCP. Dessa maneira, percebe-se que o Brasil apresenta uma posição contrária à subordinação do órgão ao CSNU, pois isso tiraria a condição de igualdade em relação a outros órgãos da ONU (ZIEMATH, 2014). Um aspecto relevante em relação à participação do Brasil foi a aproximação com a Argentina, tendo sido estabelecido um acordo entre ambos o qual prevê que quando o Brasil estiver no CSNU, haverá um diplomata da Argentina na comissão do Brasil. O mesmo acontece em situação contrária, ou seja, quando a Argentina estiver no CSNU, haverá um diplomata brasileiro na comissão da Argentina. Em 2005, Brasil e Argentina ocuparam assentos não permanentes no CSNU. Último ponto a ser destacado é a divergência do Brasil em relação à posição americana de apoio a renovação da resolução 1422/2002. Essa resolução isentava os cidadãos que estivessem trabalhando em operações de paz e que fossem nacionais de países não membros do Estatuto de Roma de serem julgados pelo TPI, já que essa resolução ia contra a política brasileira de apoio a instâncias multilaterais jurídicas. Durante a atuação do Brasil no CSNU, no biênio de 2004-2005 é possível observar-se uma política um pouco mais distante das grandes potências, P-5, principalmente dos Estados Unidos. O Brasil atuou de forma mais independente. Também cabe ressaltar que ocorreu um certo desencanto com o CSNU depois da invasão americana ao Iraque. O Brasil começa a articular uma rede de alianças, principalmente com o G-4 (Alemanha, Brasil, Índia e Japão), visando colocar em pauta a reforma do Conselho de Segurança, representando a busca brasileira pelo assento permanente no CSNU e buscando ganhar maior autonomia no Conselho.

Mesmo o Brasil tendo uma política de concordância com a maioria do CSNU e com o P-5, na sua última participação, apresentou maior autonomia

4. ANÁLISE COMPARATIVA DA ATUAÇÃO DO BRASIL NOS BIÊNIOS DE 1998-1999 E 2004-2005 No período de 1995 até 2003 o Brasil foi governado por Fernando Henrique Cardoso, assim sendo, esse foi responsável pela atuação brasileira no CSNU durante o primeiro biênio analisado. Durante o segundo biênio analisado, o Brasil foi governado por Luiz Inácio Lula da Silva, presidente de 2003 até 2011 e responsável pela atuação brasileira de 2004-2005 no CSNU.

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O primeiro fato que deve ser considerado é que nos dois períodos examinados o Brasil teve governos de partidos diferentes, que formularam políticas externas distintas, o que refletiu diretamente na atuação do Brasil no Conselho, como será analisado abaixo. Durante a primeira participação do Brasil, ocorreu uma convergência de 100% com a maioria do CSNU. Ao se comparar a participação do Brasil no CSNU nos biênios de 1998-1999 e 2004-2005, é possível notar algumas diferenças e similaridades. Iniciando-se pelas similaridades, observa-se que algumas questões tratadas no CSNU durante a participação do Brasil foram parecidas, contudo, as diferenças surgem no grau de atenção dado pelos P-5. Exemplo disso foi a atuação nos temas de Guiné-Bissau e Timor Leste. Outra similitude, foi o apoio ao uso de instituições regionais como forma de facilitar a paz, como, por exemplo, a abordagem do Brasil por meio CPLP na Guiné-Bissau. Mesmo havendo modificações na forma de lidar com os problemas, o constante apoio a instituições fora do CSNU permanece sem grandes mudanças. Esse método se mostrou eficiente, pois com o apoio da CPLP, o Brasil conseguiu manter a missão de paz no Timor Leste. Uma semelhança na atuação do Brasil foi a da constante busca pela paz e pelo desenvolvimento socioeconômico nos países que eram estabilizados por missões de paz da ONU. Tendo esse objetivo sendo manifestado diversas vezes pelo Brasil no CSNU. A atuação do Brasil em 2004-2005 se difere da de 19981999, pois há diferente visão e abordagem do problema. Começa-se a apoiar de forma mais efetiva as missões de paz, por meio de envio de mais militares e de mais equipamentos, um exemplo disso foi a UNMISET, na qual, para sustentar seu apoio, o Brasil aumentou o número de tropas enviadas para ajudar. Outro foi a MINUSTAH que, além de ser um exemplo do apoio brasileiro às missões de paz da ONU, também representa a mudança de abordagem que o Brasil teve durante o biênio de 2004-2005. O Brasil além de apoiar a MINUSTAH, se ofereceu para comandá-la, sendo um grande exemplo da pró-atividade do Brasil no último biênio analisado, assim como de cooperação sul-sul, pois toma a liderança da missão sendo uma potência regional. A MINUSTAH também é um exemplo do uso de instituições regionais para a construção da paz, já que no Haiti houve o apoio da CARICOM e da OEA, duas organizações regionais. Mesmo o Brasil tendo uma política de concordância com a maioria do CSNU e com o P-5, na sua última participação, apresentou maior autonomia, tomando iniciativa em temas que recebiam menos atenção, como o conflito armado na Guiné-Bissau e no Timor Leste. Trazendo-os para os debates do Conselho, o Brasil discordou de algu-

mas políticas apoiadas pelas grandes potências. Uma grande diferença entre a participação de 19981999 e a de 2004-2005 foi a relação diplomática com a Argentina, tendo em 1998-1999 sido menos intensa do que a de 2004-2005. Uma boa relação com outra potência da América do Sul demonstra um certo grau de consenso, o que favorece a busca do Brasil pelo assento permanente no CSNU, assim como garante o apoio em votações, como visto na votação da resolução 1646/2005. Na atuação do Brasil no biênio de 2004-2005 fica claro que o Brasil mantém alguns padrões que orientam suas ações, mas também demonstra que há uma grande mudança prática no método de abordagem em relação aos diversos temas citados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Respondendo à pergunta proposta no início desse artigo, “qual foi o perfil da participação do Brasil no CSNU nos biênios de 1998-1999 e 2004-2005? ”, pode-se afirmar que o perfil de atuação do Brasil foi focado em cooperar na resolução dos principais problemas de países instáveis, com maior proximidade ao seu entorno estratégico, seja na sua dimensão geográfica ou seja na sua proximidade das dimensões históricas ou culturais. Esse sempre visou à construção de uma paz duradoura, acompanhada pelo crescimento econômico e desenvolvimento social do país em questão, figurando como um ator altamente cooperativo com a ONU e a Sociedade Internacional, diante das questões atinentes à Segurança Internacional e a Paz mundial. O Brasil apresentou uma atuação mais ligada às grandes potências no biênio de 1998-1999, já no biênio de 2004-2005, atuou de forma mais independente e ativa, em casos que não recebem tanta atenção no Conselho de Segurança, destacando-se pelo incentivo a criação, organização e liderança da MINUSTAH. Essa evolução na busca por uma Política Externa mais autônoma não é o tema desse artigo, mas deve ser citada, pois apresenta reflexos diretos na atuação brasileira no CSNU. Pode-se notar sua presença na mudança da forma com que o Brasil começa a encarar os problemas, focando em uma colaboração sul-sul, tendo ele uma participação muito ativa e independente dos P-5. Por fim, é imperativo observar o início de um distanciamento entre as decisões das grandes potências e as posições do Brasil no CSNU, no biênio de 2004-2005, que, embora seja pequeno, é um desvio de padrão em relação a participação brasileira no biênio de 1998-1999. Assim, é possível inferir que de forma geral, em ambos os períodos estudados, o perfil da atuação brasileira no CSNU se manteve fiel aos seus fundamentos constitucionais, enunciados em seu artigo quarto, mas com grandes mudanças

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na forma prática de lidar com os problemas apresentados ao Conselho de Segurança.

REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 17 out. 2016. FONSECA Jr, Gelson. O Brasil no Conselho de Segurança: 1998/1999. Brasília: FUNAG, 2002. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. ONU: Nova York, 2001. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D19841.htm>. Acesso em 17 out. 2016. UZIEL, Eduardo. O voto do Brasil e a condição de membro eletivo no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Política Externa. São Paulo: HMG Editora, v. 21, n.1, jun-ago. 2012. VIEGAS, Marcelo. A atuação recente do Conselho de Segurança e o Brasil. O Brasil e a ONU. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2008, p. 15-38. ZIEMATH, Gustavo Gerlach da Silva. A participação do Brasil no Conselho de Segurança: 1945-2011. 2014. 153f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais, Universidade de Brasília (UNB), Brasília, 2014.

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ARTIGO

AMEAÇAS GLOBAIS E REGIONAIS À AMAZÔNIA BRASILEIRA Bruna Gorgen Zeca* Henrique Muller Roht**

RESUMO

A Amazônia brasileira corresponde a cerca de metade do território nacional e há décadas é uma região visada econômica e estrategicamente. Tendo em vista a importância desse território para o Brasil, este artigo tem por objetivo a identificação das atuais ameaças à Amazônia brasileira. Para a sua realização, a pesquisa foi baseada na análise de fontes bibliográficas acadêmicas e também na perspectiva daqueles que tiveram a experiência de participar no cenário amazônico. Como resultado, identificou-se que as ameaças à Região Amazônica não compreendem apenas assuntos que envolvam as Forças Armadas, mas incluem os campos econômico, científico-tecnológico, cultural e ambiental, que se originam em atores tanto da esfera regional quanto global. PALAVRAS-CHAVE: Brasil; Amazônia; ameaças; intervenção; narcotráfico. ABSTRACT The Brazilian Amazon comprehend about half of the national territory, and for decades it has been an economically and strategically area of global interest. Considering the importance of this territory for Brazil, this article aims to identify the current threats to the Brazilian Amazon. For its accomplishment, the research was based on the analysis of academic bibliographical sources and also on the perspective of those who had the experience to participate in the Amazon scenario. As a result, it has been identified that the threats to the Amazon Region do not only comprise matters involving the Armed Forces, but include the economic, scientific-technological, cultural and environmental fields that originate from regional and global actors. KEY WORDS: Brazil; Amazônia; threats; intervention; drug trafficking.

1. INTRODUÇÃO

D

esde sua descoberta, a Amazônia sempre foi vista como região de grande valor devido às suas riquezas e, mais tarde, à sua localização geopolítica. Para o Brasil, a necessidade de se preocupar com a violação de seu território nessa região foi intensificada, principalmente, durante a Guerra Fria, com o receio de que o comunismo adentrasse o território nacional pelas fronteiras do Norte.

Com o fim do conflito, a ameaça da presença comunista é substituída por outros temas que compõem a agenda de segurança nacional da região amazônica e que corroboram com ideia de que as fronteiras do norte do Brasil devem constituir o cerne das atividades de defesa do Estado. Os temas em questão dividem-se entre os conceitos de segurança tradicional e não tradicional, utilizados com frequência pela academia no período pós-Guerra Fria. O conceito tradicional é desenvolvido principalmente em relação à dinâmica dos setores políticos e militares, ao

(*) Graduada em Relações Internacionais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) (**) Graduado em Relações Internacionais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

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passo que o conceito não tradicional agrega ao sentido de segurança os setores econômico, ambiental e social (BUZAN, 2003). Essa nova configuração de temas, que evidenciam ameaças à Região Amazônica de naturezas distintas, é identificada e constantemente atualizada pelo Estado brasileiro, o qual expõe as suas preocupações nos atuais documentos de defesa nacional. Em suma, as ameaças são expostas em termos de instabilidade política e econômica regional; transbordamento de conflitos internos de um país para os demais países amazônicos; cobiça internacional no grande potencial de riquezas e biodiversidade amazônica; deterioração de condições sociais, energéticas e ambientais; concentração de forças hostis nas fronteiras terrestres e uso não autorizado do espaço nacional. Tendo em vista as afirmações até aqui preconizadas, o problema de pesquisa que balizará este artigo é formulado nos seguintes termos: De que forma as ameaças tradicionais e não tradicionais se apresentam atualmente na Amazônia? Nesse sentido, o objetivo norteador do presente trabalho é identificar as atuais ameaças, tradicionais e não tradicionais, sofridas pela Amazônia brasileira. Será feito um reconhecimento mais detalhado e específico das ameaças no âmbito global e regional, a fim de que se possa pensar em estratégias de defesa e segurança para essa região do país.

Para ilustrar tal percepção, apresenta-se que, além de reservas minerais de toda a ordem, cujos levantamentos indicam representar uma das mais extraordinárias províncias minerais do planeta, a Amazônia detém 20% da disponibilidade mundial de água doce; cerca de 2/3 das potenciais reservas de energia elétrica; a maior floresta tropical; 30% de todas as espécies vivas do mundo; a maior biodiversidade e o maior banco genético do planeta (LIVRO BRANCO, 2012; MATTOS, 2012). Ademais, a região possui uma extensa e estratégica costa marítima, com largos rios que possibilitam o deslocamento de grandes embarcações de ou para o seu interior. As disputas pelo direito de exploração da Amazônia são de longa data. Na segunda metade do século XX, a comunidade internacional já agia de forma conjunta para tentar garantir seus privilégios sobre a região, conforme aponta Alves,

2. AMEAÇAS GLOBAIS

Entende-se também que não há apenas uma ameaça específica que represente a cobiça das riquezas amazônicas, mas uma série de acontecimentos que demonstram a vontade da comunidade internacional em apresentar a região como um patrimônio da humanidade, e não mais uma extensão regional pertencente aos países que a compartilham. Na prática, ONGs e outros países já vêm atuando internamente na região, e podemos observar o impacto dessa atuação, por exemplo, através do registro de patentes sobre espécies da Amazônia, conforme Figura 1.

No âmbito global, são identificadas as ameaças que provêm de fora da região amazônica ou sul-americana. As principais preocupações do Estado brasileiro se baseiam nas atividades de atores externos que acabam por penetrar no complexo de segurança da região andina. A ameaça mais comum e facilmente identificada, tanto nas produções acadêmicas, documentos do Estado ou depoimentos militares, trata-se da cobiça internacional pelas riquezas naturais e posição estratégica da Região Amazônica. Conforme a geógrafa brasileira, Bertha K. Becker, que possui uma vasta produção científica e intelectual a respeito da Amazônia, principalmente na área geopolítica, ou seja, considerando a relação entre o poder e o espaço geográfico,

(...) em reunião da UNESCO (em 1948) se tenta criar o chamado Instituto Internacional da Hiléia Amazônica. Essa Organização internacional, composta por dezessete países, seria destinada a orientar e apoiar a execução de pesquisas científicas e exploração de recursos naturais na região, centralizar e difundir os resultados. Verdadeiramente, o plano consistia em uma gradual alienação dos territórios amazônicos de seus países para o regime internacional (ALVES, 2009, p. 26, grifo nosso)

Há três grandes eldorados naturais no mundo contemporâneo: a Antártida, que é um espaço dividido entre as grandes potências; os fundos marinhos, riquíssimos em minerais e vegetais, que são espaços não regulamentados juridicamente; e a Amazônia, região que está sob a soberania de estados nacionais, entre eles o Brasil (BECKER, 2005, p. 77).

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Figura 1 – País de origem dos documentos de espécies da Amazônia patenteadas no período de 2000 a 2009.

Fonte: Elaborado por YANAI (2012) com base na análise informações coletadas na base de dados Derwent Innovations Index.

De acordo com o estudo de YANAI (2012, p. 82), “apenas 16,18% dos documentos de patentes são oriundos de depositantes do Brasil. Isso demonstra que 83,82% dos desenvolvimentos para fins de exploração econômica pertencem a outros países”. Os dados apresentados comprovam que a cobiça internacional pela Amazônia não é apenas real, mas atualmente presente no cenário regional. Desde meados da década de 1970, os países que compõem a região são constantemente acusados de má gerência no que concerne aos cuidados para com o bioma local e pressionados a adotar políticas regionais que impactam diretamente na economia e desenvolvimento nacional, salientando novamente a penetração de atores externos no complexo regional de segurança. Além do condicionamento regional, criado a partir de um modelo externo de preservação da natureza, as questões ambientais podem servir ainda como pretexto ou catalisadoras para uma intervenção militar na região, conforme sugerido por Fregapani. Devemos considerar que a possibilidade de intervenção armada sob a alegação de razoes humanitárias se torna presente e, que na falta do anterior inimigo declarado, o comunismo, escolhe-se outro tal como o fundamentalismo islâmico, os violadores dos direitos humanos, os governos não democráticos ou os “perturbadores do meio-ambiente” (FREGAPANI, 2011, p.32).

Essa questão se torna mais viva do que nunca agora que a Venezuela se encontra em uma grave crise político-econômica e sem boas relações com os Estados Unidos, que sob a presidência de Donald Trump se mostra pouco favorável ao diálogo. Diante desse contexto, apresentam-se duas opções aos

países amazônicos: utilizar os seus recursos conforme orientação da comunidade internacional – cuja vontade é expressa majoritariamente pelos países desenvolvidos – corroborando com a manutenção do status quo; ou, priorizar o desenvolvimento nacional em detrimento da natureza e sofrer as consequências com a resposta dos países desenvolvidos. Frente a isso, o Brasil tem lutado por uma terceira via. Neste âmbito, o “desenvolvimento sustentável é hoje pano de fundo de um debate nacional sobre retomada do crescimento econômico com política ambiental clara” (LAGO, 2006, p. 13). O Brasil tem lutado fortemente nesse sentido para achar um meio termo que lhe possibilite integrar a Região Amazônica às políticas de desenvolvimento nacional, ao passo que mantém – ou ao menos intenta manter – uma forte política de preservação do meio ambiente. A exemplo, já em 1988, mesmo atravessando um dos piores momentos financeiros da história do País, iniciou sua campanha para que se tornasse a sede da segunda grande conferência das Nações Unidas sobre questões ambientais, a RIO-92, e teve atuação decisiva para garantir que o tratamento do meio ambiente estivesse atrelado ao desenvolvimento nacional. Desde então, o país tem sido um protagonista no que concerne ao debate entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento sobre a proteção do meio ambiente. Contudo, veremos a seguir que, apesar do esforço brasileiro em se apresentar como um Estado responsável perante o seu território amazônico, as ameaças à sua soberania continuam presentes.

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O Brasil tem lutado fortemente nesse sentido para achar um meio termo que lhe possibilite integrar a Região Amazônica às políticas de desenvolvimento nacional, ao passo que mantém uma forte política de preservação do meio ambiente


2.1. Presença Militar dos EUA na Região Amazônica Dentre outras ameaças mencionadas, ou ainda a serem abordadas neste estudo, a possibilidade de uma intervenção por parte dos EUA, especificamente na região amazônica, é percebida pelo Estado e pelos militares como a maior ameaça de violação à soberania brasileira. Tal temor é fundamentado com base nas ações e políticas adotadas pela superpotência, dentre as quais é identificado, mas não limitado apenas a este item, o estabelecimento de diversas bases americanas na região amazônica ou ao seu redor. Segundo Becker (2005, p. 79), “o Brasil virou uma ilha cercada de ‘localidades de operação avançada’ por todos os lados, com instalações norte-americanas apoiadas pela União Europeia”. Uma organização independente, a SAO Watch, localizada nos Estados Unidos, propõe-se a monitorar as atividades militares da Superpotência e, de acordo com o seu relatório, atualmente existem cerca de 30 centros militares na América do Sul administrados pelo Pentágono. Suas localizações são: Argentina (5); Chile (1); Colômbia (10); Equador (1); Guiana Francesa (1); Paraguai (3) e Peru (7) (REIST, 2011). Contudo, não se sabe o número total de postos de operação estadunidenses na região, pois muitos são criados com fins distintos, como Centros de Operações para Desastres e centros para ajudar as operações de paz da ONU, e outros não se tem nem mesmo confirmação do envolvimento norte-americano, como a pista de Marechal Estigarribia, no Paraguai, uma das pistas mais extensas da América Latina. Justificadas geralmente como parte de programas de cooperação para o combate ao terrorismo e narcotráfico, estas bases formam um cerco estratégico – com tropas terrestres – ao redor da Amazônia Legal brasileira. Soma-se a este fator, segundo Piletti (2008, p. 60), a implementação de radares e equipamentos militares e a tentativa de estabelecer acordos militares bilaterais com países vizinhos ao nosso. No mesmo sentido, Becker (2005, p. 79) aponta que “o Brasil tenta impedir esse cerco com várias respostas, como com a criação do Ministério do Meio Ambiente e o projeto Sipam (Sistema de Informação para Proteção da Amazônia)”. Além disso, a região conta com o Fundo Amazônia, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em cooperação com o Ministério do Meio Ambiente, que visa financiar projetos de conservação e uso sustentável da Amazônia. Portanto, dentro da estratégia de segurança do país, o Brasil procura prevenir-se ao se certificar de que temas como a degradação do meio ambiente, a disputa por territórios indígenas e o narcotráfico, entre outros, sejam propriamente adminis-

trados e não venham a ser utilizados por potências externas como argumento de “ingerência brasileira sob o seu território” para viabilizar uma violação de sua soberania. Entretanto, mesmo que se possa minimizar a possibilidade de uma intervenção, ela nunca se torna nula. Tendo isso em mente, vale apontar que faz parte da estratégia de defesa do Brasil a promoção de treinamentos de resistência em território amazônico, com o intuito de treinar as Forças Armadas para suportar por um longo período de tempo em caso de qualquer invasão à região. Além da possibilidade de intervenção direta por parte dos EUA, o Estado brasileiro também se preocupa no sentido de que as ações e políticas adotadas pela potência americana para com a Região Amazônica tendem a provocar o transbordamento de conflitos externos para dentro da Amazônia brasileira. O exemplo mais recente de como isso pode ocorrer é a possível busca pelo fomento à oposição de Nicolas Maduro, na Venezuela, considerando os riscos do transbordamento de um conflito interno, quando não de uma explosão social devido ao prolongamento da crise. Argumenta-se que não há justificativa alguma que possa defender a ideia de presença de tropas estrangeiras em um país soberano. Menos ainda se estas não vierem na forma de Missão da ONU e, o mais grave, resultarem em uma versão sofisticada do Big Stick, da aplicação da Doutrina Monroe como diplomacia dos canhões para a América Latina. O cerco à Amazônia Continental opera a partir de países clientes dos EUA e que são parte tanto da América do Sul como do subsistema de defesa do Caribe-Antilhas, como é o caso da Colômbia. Alegando combater o narcotráfico, o Comando Sul dos EUA vem operando desde o final dos anos 80, aumentando esta presença ano a ano, resultando em uma verdadeira ocupação indireta do território amazônico.

2.2. A China na Amazônia A primeira consideração que deve ser feita, e a mais claramente identificada dentre os objetivos chineses, é que, acima de tudo, o incremento de sua atuação na América Latina e na Região Amazônica faz parte de um plano econômico que visa garantir e facilitar seu acesso a recursos naturais, ou commodities, mais especificamente. A China está envolvida na construção e no desenvolvimento de diversos projetos energéticos na América Latina, incluindo Brasil, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia, que fazem parte da região amazônica. No Brasil, a estatal chinesa State Grid é responsável pela construção da principal linha de transmissão de energia da usina hidrelétrica de Belo Monte, além de já possuir e/ou estar articulando novos acordos de cooperação com o governo

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nacional nas áreas de energia solar, eólica, biodiesel e nuclear, entre outras. Na Amazônia, grande parte do capital investido se dá em infraestrutura para captação de recursos naturais, tanto no Brasil como nos países vizinhos. Essa constatação nos retoma, sem grandes surpresas, à primeira ameaça abordada nesse estudo, a cobiça internacional pelas riquezas amazônicas. Além disso, o investimento em infraestrutura local gera críticas das comunidades nacionais e internacionais em relação à desapropriação dos povos nativos, à modificação do ecossistema local e à degradação do meio ambiente. Conforme defendem Cunha e Campello (2014, p. 258), A região mostra-se carente de projetos que favoreçam a realização de um salto de qualidade na apropriação da natureza. Reproduzir esquemas exógenos, agora sob a égide chinesa, não significa agregar valor à economia da região. Isso a torna refém de modelos que perpetuam nossa condição na divisão internacional do trabalho, devastam a terra e desvalorizam o conhecimento e a população regional.

cooperação chinesa de maneira a complementar planos prévia ou paralelamente criados pelos governos nacionais. Por fim, fica claro que não se pode colocar a atuação chinesa na América do Sul e na região amazônica no mesmo patamar da penetração norte-americana. Por mais que alguns de seus objetivos sejam semelhantes, os métodos e abordagem diferem bastante. A China, por vezes, pode ainda ser considerada como um contrapeso à intervenção dos EUA na região, no sentido de que a sua parceria ou apoio aos projetos do governo brasileiro poderiam facilitar a execução de ações que outrora seriam fortemente reprimidos pela superpotência mundial ou pela comunidade internacional.

3. AMEAÇAS REGIONAIS Por ameaças regionais, pretende-se relatar situações atuais ou ações provenientes de atores regionais (sul-americanos). Nem todas ameaças abordadas representam diretamente uma violação à soberania brasileira, contudo, de alguma maneira, impactam na segurança amazônica do país.

Não obstante, dentre os aspectos da atuação chinesa na América Latina e, principalmente, na Região Amazônica, identifica-se que a grande elevação de capital investido também faz parte de sua estratégia de política externa, já utilizada frequentemente em outras regiões e continentes, como, por exemplo, na África e no Oriente Médio. Se por um lado, a importância dos investimentos chineses é arrebatadora, por outro, deve ser vista como constituinte de uma estratégia de intervenção em diferentes regiões do mundo. Esperar os investimentos e a cooperação chinesa sem antes estabelecer parâmetros definidores e limites, ou mesmo refletir sobre o alcance da benevolência estrangeira, é arriscar o futuro dos interesses brasileiros na Amazônia. (GALVÃO, 2008, p. 31).

Portanto, embora os investimentos chineses sejam benéficos para o país, também não se pode deixar que esse capital sirva apenas para equilibrar as contas do balanço de pagamentos brasileiro. Cabe ao Brasil, e aos demais países da região, utilizarem os projetos elaborados com a

No que concerne à participação da Região Amazônica neste cenário, estima-se que se tenha tornado essencial ao narcotráfico internacional na década de 80, embora já fosse conhecida como local de plantio de substâncias psicoativas ilícitas há algum tempo

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3.1. Narcotráfico, grupos insurgentes e narcoguerrilha Neste âmbito, possivelmente a ameaça mais desafiadora para os países do norte andino seja o controle do narcotráfico. Além de se tratar de comércio ilegal de substâncias psicoativas ilícitas, o tráfico de drogas estimula a ocorrência de outras atividades ilegais que ameaçam a segurança na região, como o contrabando de armas e matérias primas, crime organizado, para-militarismo e a narcoguerrilha. Conforme relatório das Nações Unidas de 2015, o consumo de drogas poderosas no Brasil, como a cocaína, aumentou consideravelmente desde 2010, chegando a três vezes o nível médio do consumo global. (UNODC, 2015). No que concerne à participação da Região Amazônica neste cenário, estima-se que se tenha tornado essencial ao narcotráfico internacional na década de 80, embora já fosse conhecida como local de plantio de substâncias psicoativas ilícitas há algum tempo. Na época, a droga co-


mumente comercializada era a maconha, e o ligeiro aumento do tráfico na região se dá, em grande parte, devido aos esforços norte-americanos em eliminar a produção da droga no México e na Jamaica, durante a década anterior, sem diminuir, no mesmo passo, a demanda pelo produto. (OLIVEIRA, 2007). Em parâmetros atuais, o relatório anual do United Nations office on Drugs and Crime (UNODC) demonstra que praticamente 100% do plantio mundial de coca, equivalente a 120,8 hectares (cerca de 170 campos de futebol), está localizado na Colômbia, Peru e Bolívia. (UNODC, 2015). A transição da maconha para a cocaína como a principal droga comercializada e produzida em larga escala na região caracteriza também um marco estrutural para o negócio. A alta rentabilidade da atividade faz com que os grupos envolvidos cresçam e também aumente a parcela da sociedade envolvida no narcotráfico. Para Oliveira (2007, p. 84), “a Região Andina tornou-se, de certa forma, o centro do narcotráfico no continente por ser a única fornecedora de cocaína, um dos psicoativos ilícitos mais consumidos nas Américas e no mundo”. A interdependência da cadeia do narcotráfico entre os países da região amazônica demonstra ser razão suficiente para que o tema seja abordado como uma ameaça à segurança regional. Basta lembrar que, em 2001, o maior traficante brasileiro, Luiz Fernando da Costa (Fernandinho Beira-Mar), foi capturado na Colômbia em área controlada pelas FARC, organização para a qual foi acusado de fornecer armas, munição e explosivos, entre outros, em troca de cocaína. Para o General Eduardo Villas Bôas, atualmente exercendo a função de Comandante do Exército, o transbordamento dos ilícitos ligados ao tráfico de drogas através da Região Amazônica faz com que o Brasil pague por eles o preço que nenhuma guerra pode cobrar. Estima-se que 80% da criminalidade urbana seja ligada ao tráfico de drogas. (...) Morrem por ano 54 mil pessoas assassinadas no Brasil (...). É impressionante. Para mudar o quadro, é fundamental melhorar o controle da fronteira, que tem quase 17 mil quilômetros (BÔAS, 2015).

Ademais, embora não sejam todos produtores da cocaína, os países andinos, e o Brasil em especial, participam ativamente do narcotráfico como centros de distribuição da droga para outras regiões do mundo. Ainda em relação às rotas do narcotráfico, outro problema de servir como centro de distribuição das drogas é que esses caminhos “também servem de rota para o tráfico de armas que caminha em sentido inverso” (PILETTI, 2008, 143). Nesse caso, as armas podem tanto ficar no país que serviu de distribuidor, afetando diretamente a sociedade, ou podem

ser encaminhadas para a origem do tráfico, ou seja, os grupos produtores, que também ameaçam violar o território nacional de seus vizinhos na Região Amazônica. O envolvimento com narcotráfico é constante e tem impacto significativo na sociedade, ao passo que as narcoguerrilhas, embora mais limitadas, por vezes transbordam para territórios vizinhos, exigindo certo grau de vigilância por parte das Forças Armadas. Apesar do impacto do narcotráfico nas questões de segurança do Estado brasileiro e no seu constante combate, a “Política de Defesa Nacional parte de uma doutrina de segurança tradicional, reconhecendo como ameaça (à sua soberania) os Estados Nacionais” (ALVES, 2009, p.11). Assim, o Brasil não vê o problema do narcotráfico ou dos grupos guerrilheiros em si como uma ameaça à sua soberania, pois adota uma posição mais conservadora, em que a soberania somente pode ser violada por um igual. (PILETTI, 2008)

3.2. Demarcação de territórios e reservas indígenas As ameaças relacionadas às questões indígenas seguem, em parte, uma linha muito semelhante a já apresentada sobre “cobiça internacional”, na seção sobre as ameaças globais, pelas riquezas da Região Amazônica e proteção do meio ambiente. A semelhança é vista no sentido de que, também nas questões indígenas, o discurso legítimo de preservação da cultura e dos povos nativos é utilizado pela comunidade internacional para atingir objetivos encobertos. Dentre estes objetivos, pretende-se, principalmente, limitar a gerência brasileira sobre a região (ou dos demais países amazônicos), preservar recursos naturais para, no futuro, usurpar o direito de usá-los e, enfim, usar o tema como mais um pretexto para uma possível ingerência na região. Determina-se que a ameaça à segurança nacional frente à questão indígena pode ser dividida em dois tópicos. Por um lado, trata-se de um “congelamento” de parcelas da região, ricas em recursos naturais (principalmente minérios), nas quais o governo fica impedido de exercer qualquer intervenção local devido à classificação do território como reserva indígena. Por outro, entende-se que a preocupação toma uma segunda forma quando os representantes dos povos dessas reservas indígenas procuram-se tornar independentes do Estado – ou são coagidos a fazê-lo, conforme acredita-se – e podem desencadear um efeito dominó na busca pela emancipação de diversas outras áreas. Compreende-se que essa seria a primeira etapa de uma possível “balcanização” da região. O termo se refere à formação de “enclaves étnicos, sociais e políticos na Amazônia, a partir da criação de grandes reservas indí-

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genas que poderiam ser utilizadas posteriormente como pretexto para uma intervenção internacional com vistas à autonomia ou independência dessas áreas do Brasil” (PILETTI, 2008, p.60). Existe o temor, principalmente por parte dos militares brasileiros, de que posteriormente essas delimitações de reservas indígenas possam se tornar nações independentes com o apoio de potências externas, interessadas em usufruir dos recursos naturais ali presentes. Na opinião do General-de-brigada e Doutor em Aplicações, Planejamento e Estudos Militares, Luiz Eduardo Rocha Paiva, Deve-se ter em conta que algumas potências financiadoras de ONGs pertencem à OTAN, com as quais a região guianense tem fortes laços históricos, constituindo-se em potencial cabeça de ponte para eventuais intervenções militares internacionais. Essas ONGs e outras organizações não consideram os indígenas cidadãos brasileiros e defendem que eles se reúnam em “nações” autônomas (BARROS; GOMES, 2011, p. 44).

O General lembra ainda que, em 2007, foi aprovada na ONU a Declaração de Direitos dos Povos Indígenas, com o voto favorável do Brasil. O artigo 42 da declaração “prevê, implicitamente, a intervenção das Nações Unidas para fazer valer a declaração, uma vez que um dos seus órgãos (dispostos no artigo) é o Conselho de Segurança, a quem cabe decidir sobre intervenções” (BARROS; GOMES, 2011 p. 45). Sobre o conteúdo da declaração, ela concede aos Índios que vivem nas Terras Indígenas, entre outros, o direito de: 1. autogoverno e livre determinação da condição política; 2. instituições políticas e sistemas jurídicos próprios; 3. pertencer a uma “nação indígena”; 4. vetar atividades militares; e 5. aceitar ou não medidas legislativas ou administrativas do governo nacional. (Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, 2008) Além de prever a impossibilidade de atividade militar na região, necessária para garantir a segurança perante ilícitos já comentados anteriormente, deve-se atentar ao ponto que destaca a possibilidade de os Índios pertencerem à uma “nação indígena”. Contudo, em que pese a preocupação, bem fundamentada ou não, por parte dos militares, vale apontar que a declaração em questão foi criada sob o âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas, ou seja, o seu conteúdo, apesar de significativo, não é vinculante. Desta forma, o exército brasileiro não está impedido legalmente de atuar nas áreas indígenas, muito menos nas fronteiras nacionais cujo território faz parte

das áreas demarcadas. Dentro desta perspectiva, Luciano José Penna, Chefe do Estado-Maior do Comando Militar do Sul (CMS) até o ano de 2017, relata que, em outubro 2014, durante fórum permanente de discussão regional, o líder Yanomami, Davi Kopenawa, pronunciou-se a respeito dessa questão. Segundo Penna (2015), o líder Yanomami apresentou e defendeu ao Itamaraty o projeto de um território binacional da nação Yanomami, cuja região integraria a parte noroeste da Amazônia brasileira, já determinada reserva indígena Yanomami, e parte da Venezuela, com tamanho semelhante ao da reserva Yanomami no Brasil. O fato de as reservas indígenas se encontrarem principalmente em regiões fronteiriças do Brasil torna a questão ainda mais complexa. Mesmo que o exército não esteja impedido legalmente, acaba, por diversos motivos, tendo uma presença limitada nessas regiões, o que prejudica as ações de vigilância nessas áreas e a manutenção da segurança nacional em geral. O Governo brasileiro busca, constantemente, demonstrar ser capaz de lidar com o impasse entre a preservação da cultura indígena, a manutenção de sua integridade territorial e o desenvolvimento da região, assim como o faz com as questões que envolvem a preservação do meio ambiente. Neste sentido, talvez a grande preocupação do Estado e do exército seja a possibilidade de o tema ganhar maior relevância para a comunidade internacional em uma escala desproporcional às ações nacionais empreendidas para garantir a legitimidade do Brasil em lidar com as questões indígenas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A consolidação da segurança do território nacional ainda é um tema atual para o Brasil. Mesmo com a globalização, as fronteiras continuam a representar um fator importante no que concerne a integridade territorial. O Estado continua sendo o responsável em garantir a Soberania Nacional, e a atuação do governo brasileiro na defesa da Amazônia é imprescindível para a manutenção desse status. Nesse sentido, o Estado brasileiro promove a securitização do território amazônico com base nos documentos de Política Nacional de Defesa (PND), Estratégia Nacional de Defesa (END) e No Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN), criados e reformulados para estabelecer as diretrizes de defesa e segurança do país, e cuja visão sobre a Amazônia a configuram como uma região de alto valor estratégico. Os documentos em questão destacam ainda que as ameaças à Região Amazônica não compreendem apenas assuntos que envolvam as Forças Armadas, incluindo os campos econômico, científico-tecnológico, cultural e

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ambiental, entre outros, no âmbito da segurança. Ou seja, a defesa nacional deve ser planejada ultrapassando o eixo militar. Entende-se que defender tanto a integridade territorial da Amazônia assim como a preservação de seus biomas e das formas de vida das populações locais (extrativistas, quilombolas, originários e ribeirinhos) é a garantia tanto da soberania nacional como das possibilidades concretas de um desenvolvimento autônomo e sustentável para a Região Amazônica e suas áreas limítrofes. Esta defesa se torna um desafio principalmente quando é percebida a cobiça internacional pelas riquezas da Amazônia. Atores externos atuam na região muitas vezes sob a égide de uma falsa proteção às culturas locais e preservação do meio ambiente, ao passo que usufruem de sua biodiversidade por meios ilegais, como a biopirataria, ou ainda arbitrários. Além disso, esses atores procuram imobilizar a atuação os Estados soberanos no local em vista da preocupante noção de que os recursos naturais no planeta são limitados e a disputa por sua posse tende a aumentar. Regionalmente, a ameaça mais desafiadora é o controle do narcotráfico, que afeta diretamente a economia e a sociedade brasileira e dos países do Norte Andino. Além de se tratar de comércio ilegal de substâncias psicoativas ilícitas, o tráfico de drogas estimula a ocorrência de outras atividades ilegais que ameaçam a segurança na região, como o contrabando de armas e matérias primas, crime organizado e para-militarismo. Sobre a presença estadunidense na Amazônia, em 2017 o Governo brasileiro convidou o país para a realização de simulações militares lideradas a partir de uma base multinacional formada por tropas do Brasil, Peru, Colômbia e Estados Unidos na tríplice fronteira amazônica. Apesar de o objetivo da operação ser a melhora na capacidade de pronta resposta multinacional, principalmente nas áreas de logística humanitária e de suporte ao combate de ilícitos transnacionais, é importante que o Brasil não seja dependente de outros países para controlar seu território, pois do contrário o prolongamento de bases como essa tentaria se justificar. Ademais, destarte a constatação de diversas ameaças à região, percebe-se nos documentos oficiais do país o cuidado do Estado brasileiro em não especificar, em nenhum momento, a natureza dessas ameaças. Este cuidado está ligado ao fato de que a própria política de defesa compreende que “convém organizar as Forças Armadas em torno de capacidades, não em torno de inimigos específicos. O Brasil não tem inimigos no presente. Para não tê-los no futuro, é preciso preservar a paz e preparar-se para a guerra” (BRASIL, 2012, p. 58).

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MATTOS, Luis Carlos. O Exército Brasileiro na defesa da soberania Amazônica. Brasília, Seminário de Segurança da Amazônica, Secretaria de Assuntos Estratégicos, 2012. OLIVEIRA, Fernando. Redes Narcotraficantes e Integração Paralela na Região Amazônica. Brasília, DF, UnB – Universidade de Brasília, Instituto de Relações Internacionais, 2007. PILETTI, Felipe. Segurança e defesa da Amazônia: o exército brasileiro e as ameaças não-tradicionais. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, 2008. REIST, Rachel. U.S. (and NATO) Military Presence in Latin America. SOA Watch, 2011. Disponível em: http://www.soaw.org/take-action/bridges-not-bases/ 233-bridges-not-bases/3637-us-military-presence-in-latin-america Acesso em 12 de Marc. 2018. UNODC. World Drug Report. United Nations, 2015. YANAI, Angela E. Patentes de produtos naturais amazônicos: análise do impacto da inovação tecnológica mundial. São Paulo, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, 2012.

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ARTIGO

OS RECURSOS ESTRATÉGICOS DA AMAZÔNIA BRASILEIRA E A COBIÇA INTERNACIONAL Júlia F. V. da Costa * Nina Sanmartin ** Marcos Reis ***

RESUMO

O presente artigo aborda a importância geoestratégica da Amazônia brasileira e a cobiça internacional sobre seus recursos. Essa região, por apresentar diversas riquezas, possui grande valor geoestratégico para o Brasil. Devido à necessidade crescente de recursos para movimentar a economia global e à diminuição dos estoques ao redor do planeta, a Amazônia passa a atrair cada vez mais a atenção de países desenvolvidos, que olham com cobiça para as potencialidades dessa preciosa parte do território brasileiro. Essa realidade geopolítica gera, portanto, a necessidade de uma maior presença do Estado brasileiro na região, além da formulação de estratégias para a defesa e o desenvolvimento econômico dessa área, com o intuito de assegurar e proteger a soberania e o patrimônio nacional. PALAVRAS-CHAVE: Amazônia, recursos naturais, cobiça internacional, defesa nacional, soberania nacional ABSTRACT This article discusses the geostrategic importance of the Brazilian Amazon and the international greed about its resources. This region, due to its wealth, has great geostrategic value for Brazil. Because of the growing need for resources to move the global economy and the gradual reduction of the inventories around the planet, the Amazon is attracting more and more attention from developed countries, who look with greed at the potential of this precious part of the Brazilian territory. In this geopolitical reality, a greater presence of the Brazilian State has become necessary in the region, besides the formulation of strategies for the defense and economic development of this area, with the purpose of assuring and protecting the national sovereignty and patrimony. KEY WORDS: Amazon, natural resources, international greed, national defense, national sovereignty

(*) Acadêmica de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) (**) Acadêmica de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) (***) Doutor em Ciências Militares pelo Exército DEP, Brasil (2005) e Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS (2016). Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

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1. INTRODUÇÃO

E

ste artigo tem como objetivo apresentar a importância da Amazônia como patrimônio geoestratégico brasileiro e a cobiça internacional sobre essa região. Para tanto, será divido em três seções. A primeira tratará da Amazônia e de seus recursos estratégicos e será subdividida em três partes: biodiversidade, minerais e água. A segunda tratará da Amazônia Legal e das estratégias de defesa do governo brasileiro e também será subdividida em três partes: Amazônia Legal, políticas de segurança nacional e o papel do Estado no controle efetivo do território. A última seção abordará o tópico da cobiça internacional e será subdivida em duas partes: apanhado histórico e internacionalização da Amazônia. A divisão foi realizada visando responder a seguinte pergunta: de que forma a Amazônia, patrimônio geoestratégico brasileiro, é alvo de cobiça internacional? A Amazônia é uma região rica em recursos estratégicos: abriga metade das espécies terrestres do planeta, a maior bacia hidrográfica do mundo, aproximadamente 40 mil espécies de plantas e valioso estoque de minerais. No Brasil, que engloba cerca de 60% da Bacia Amazônica, o bioma se estende por 4,2 milhões de quilômetros quadrados (49% do território nacional). Se pensada através da região administrativa conhecida como Amazônia Legal, esse número aumenta: são 5,2 milhões de quilômetros quadrados, que alcança nove estados e abrange quase 60% da totalidade do território brasileiro.1 Com a globalização e o aumento na competição internacional, tornou-se evidente a necessidade de novas fontes de matérias primas, como gás, petróleo, minerais e, especialmente, água. Assim, diante da perspectiva global de escassez de recursos naturais, países desenvolvidos, que dependem desses recursos para sua sobrevivência, voltam sua atenção às regiões detentoras dessas riquezas. Dessa forma, a Amazônia passa a ser alvo de cobiça internacional. Para proteger o território e garantir a soberania sobre a região, o Estado brasileiro investiu em políticas governamentais que visam ao monitoramento da região, a uma maior militarização das fronteiras amazônicas e ao crescimento social, econômico e sustentável.

2. A AMAZÔNIA E SEUS RECURSOS ESTRATÉGICOS A relevância da Amazônia no cenário internacional se dá devido ao grande estoque de recursos naturais presente na região. Os 2.014.238 de quilômetros quadrados da 1 BRASIL. Greenpeace. Disponível em: <http://www.greenpeace.org/brasil/ pt/O-que-fazemos/Amazonia/>. Acesso em: 2 de nov. 2017.

Amazônia brasileira têm sido objeto de interesse de alguns dos principais atores da geopolítica mundial nos últimos séculos. Esse acentuado fascínio é decorrência de algumas particularidades da região, que é detentora de um quinto da água doce disponível e de 12% de toda a biodiversidade do planeta, além do enorme potencial econômico dos minerais em seu subsolo. A seguir, neste trabalho pretende-se identificar e estimar os principais recursos estratégicos da Amazônia, que despertam a cobiça internacional nos últimos séculos (AMIN, 2015, p. 17-23).

2.1. Biodiversidade Quando se fala em biodiversidade, logo se faz presente a lembrança da Amazônia e, em especial, de sua parte brasileira. O ecossistema amazônico representa um terço das reservas de floresta tropical do mundo, que se estende por 7.300.000 quilômetros quadrados e corresponde a um vigésimo da superfície terrestre (STROH, 1998, p. 80). O Brasil comporta 68,2% dessa área e é o país que possui a maior cobertura florestal tropical do mundo, que abriga cerca de 12% de toda a biodiversidade do planeta. O biólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Juan Revilla, em seu livro Plantas da Amazônia: oportunidades econômicas e sustentáveis, analisa a situação das riquezas da Amazônia da seguinte forma: A gigante Amazônia ainda possui extensa área de densa floresta tropical, alta diversidade de espécies de animais e vegetais, distribuídas numa grande variedade de ecossistemas terrestres e aquáticos, traduzindo-se assim um enorme potencial econômico e de recursos genéticos para o futuro (REVILLA, 2000, p. 11).

O potencial da flora amazônica é altamente relevante. Ela compreende plantas produtoras de látex, de gorduras e de resinas, além de um grande número de plantas com potencial medicinal que despertam a cobiça internacional, como é o exemplo da graviola para o tratamento de diabetes (OLIVEIRA, 2002, p. 58-59). Muitos recursos da floresta, tanto no que tange a flora quanto a fauna, têm sido extraídos e vendidos de forma ilegal sem que haja um processo de reposição de espécies. Esse tema tem sido foco central em muitos eventos nacionais e internacionais que buscam traçar estratégias para garantir a preservação da biodiversidade. Nessa linha, a Convenção de Diversidade Biológica (CBD), firmada durante a Rio-92 e ratificada em 1993, visa, em seu Artigo 15, regular e proteger o acesso à biodiversidade por partes externas, reconhecendo os direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais e a autoridade para

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determinar o acesso a recursos genéticos pertencentes aos Estados (AMIN, 2017, p. 23-24).

2.2. Minerais

A crescente presença e proteção do Estado na Amazônia deixa claro o desejo e a necessidade da nação brasileira de afirmar a soberania e a capacidade em defender e desenvolver essa região

A Amazônia é detentora de um dos maiores estoques de recursos minerais necessários para o desenvolvimento tecnológico do século XXI. As estatísticas levantadas pelo Centro de Tecnologia Mineral (CETEM) apontaram a região como possuidora de grandes estoques voltados para a produção de ferro, bauxita, alumínio, ouro, além de outros minerais que não foram explorados de forma extensiva, como o cromo, o cobre, o zinco (CETEM, 1991). Dos Santos (1196, p. 177) atenta para a importância dessas riquezas na economia internacional quando explica que: “os primeiros investimentos na Amazônia foram feitos por empresas estrangeiras, com o principal objetivo de verificar as potencialidades minerais dessa vasta região ainda desconhecida, considerando apenas seu uso fruto”. Outra reserva de alta relevância para a indústria tecnológica é a de nióbio, encontrada principalmente no estado do Amazonas (VILLAS, 2008, p. 78). Esse e outros minerais da região estão altamente ligados ao desenvolvimento da indústria tecnológica e despertam grande atenção do mercado internacional. No século XXI, para proteger os recursos minerais da região amazônica, o poder público brasileiro deve considerar que toda essa riqueza exige técnicas de exploração e exportação a que possam ser incorporados processos ambientalmente sustentáveis, visando garantir o desenvolvimento regional da Amazônia dentro da desejada nova ordem mundial de desenvolvimento sustentável (DA SILVA, 1996, p. 205).

2.3. Água A Amazônia é considerada, também, a maior reserva hidrográfica do planeta. Um quinto de toda a água doce do mundo está localizado nessa região, em uma rede hidrográfica que conta com a bacia do rio Amazonas e o aquífero do Alter-do-Chão, que possui um volume de água de 86 mil quilômetros cúbicos. Neste contexto de riqueza hídrica, o rio Amazonas, com mais de três mil afluentes, assume posição privilegiada dentro da dimensão geopolítica de utilização e preservação dos recursos naturais do planeta (AMIN, 2015, p. 31).

Pensando a questão da água em nível global, a escassez desse recurso nas mais diversas regiões do planeta tem se convertido em um dos temas mais importantes à escala mundial. Essa escassez é vista hoje como uma futura causa para a geração de confronto armado entre países. Becker (2004, p. 43) comenta que: “sua valorização reside na ameaça de escassez decorrente do forte crescimento do consumo, a tal ponto que é considerada o ‘ouro azul’, capaz de, à semelhança do petróleo no século XX, instigar guerras no século XXI”. A Amazônia, nesse cenário, assume uma posição internacional de forte conteúdo geopolítico por apresentar um território amplo, com uma disponibilidade hídrica única no planeta. A Bacia Amazônica se transformou, no século XXI, em um local estratégico de valor econômico e social. Ribeiro (2005, p. 385) enfatiza que os prognósticos sobre a evolução da crise mundial da água surtem efeitos preocupantes na geopolítica, de forma que se pode concluir, diante da fragilidade geopolítica da Amazônia, que esse aspecto não deixará de estar presente na agenda das discussões para a solução da crise mundial da água. Desse modo, a Bacia Hidrográfica Amazônica, que representa potencial hídrico de valor estratégico, econômico e social, começa a exigir cada vez mais do governo brasileiro.

3. A AMAZÔNIA LEGAL E AS ESTRATÉGIAS DE DEFESA DO GOVERNO BRASILEIRO A Amazônia, por possuir o maior estoque de recursos estratégicos do planeta, atrai atenções internacionais que colocam em perigo a soberania nacional da região. Neste trabalho, além da questão dos recursos, serão apresentados os limites geográficos da Amazônia Legal e sua relevância para as estratégias de defesa do governo brasileiro. A crescente presença e proteção do Estado na Amazônia deixa claro o desejo e a necessidade da nação brasileira de afirmar a soberania e a capacidade em defender e desenvolver essa região. A Amazônia Legal, resultado de uma complexa configuração de três forças (populações ditas tradicionais, governos estaduais e cooperação internacional), surge com esse propósito. Mais do que uma fronteira móvel, é uma região fundamental presente em uma nova ordem mundial que traz outras configurações para o significado da geopolítica. Essa, por sua vez, não mais

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atua na conquista de territórios, mas sim na apropriação da decisão sobre seu uso (BECKER, 1990, p. 18).

3.1. Amazônia Legal A Amazônia Legal não é um imperativo geográfico, mas sim uma imposição geopolítica do Estado brasileiro, criada com o intuito de organizar e promover o desenvolvimento da região. Para sua formação, o governo federal utilizou como base análises estruturais e conjunturais, englobando regiões com semelhantes problemas sociais, políticos e econômicos. Sua concepção é resultado da Lei 1.806, de 06.01.1953, que também instituiu a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA).2 Pela Lei 5.173, de 27.10.1966, que extinguiu a SPVEA e criou a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), a Amazônia Legal tem seu conceito reinventado para fins de planejamento. Em 1977, pela Lei complementar nº 31, de 11.10.1977, a Amazônia Legal tem seus limites ampliados, passando a incorporar todo o estado do Mato Grosso. A Amazônia Legal corresponde a quase 60% da totalidade do território nacional e concentra apenas aproximadamente 12% da população brasileira. O controle efetivo dessa região e a defesa de suas fronteiras sempre foi um desejo para o governo brasileiro, mesmo quando a Amazônia não era o principal foco das estratégias de segurança nacional. Ainda hoje, mesmo com o avanço da tecnologia, essa ambição se vê dificultada pela baixa densidade demográfica e vastidão territorial: “a pequenez do homem frente à natureza” (NASCIMENTO, 2013, p. 31).

3.2. A Amazônia e as Políticas de Segurança Nacional Como já destacado anteriormente, a Amazônia é o território que mais concentra ameaças à segurança do país. Um dos principais motivos são as fronteiras extensas e de difícil acesso, que representam grandes portas para a entrada de contrabandistas, guerrilheiros e narcotraficantes. Nessa linha de pensamento, juntamente com o aspecto ambiental e a preocupação com os direitos humanos, a ação do narcotráfico e do crime organizado é um dos pretextos que justificariam a tão almejada internacionalização, fruto da cobiça internacional sobre a região. Dessa forma, é função do Estado brasileiro reduzir a incidência desses problemas, provando sua capacidade de gerenciar a 2 BRASIL. Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia. Disponível em: <http://www.sudam.gov.br/index.php/institucional?id=86>. Acesso em: 30 set. 2017.

região por meio de políticas governamentais efetivas (SILVA; PIERANTI, 2005, p. 6). A Política Nacional de Defesa (PND) é o documento de nível mais alto do planejamento de defesa do Brasil e um exemplo de política governamental que trata da segurança e da defesa na região amazônica.3 No que se diz respeito especificamente à temática amazônica, a PND indica a região como uma área prioritária para a defesa nacional: O planejamento da defesa inclui todas as regiões e, em particular, as áreas vitais onde se encontra maior concentração de poder político e econômico. Complementarmente, prioriza a Amazônia e o Atlântico Sul pela riqueza de recursos e vulnerabilidade de acesso pelas fronteiras terrestre e marítima (BRASIL, 2005, p. 7).

Há, também, passagens do texto que indicam que a “atenção internacional” continua como uma das principais preocupações para a segurança nacional. Assim, uma das formas de assegurar a soberania sobre a região é torná-la mais estável, sanando problemas nas zonas de fronteiras. O fortalecimento de foros políticos, como a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA)4, que tem como objetivo estimular o desenvolvimento integral da região e reforçar a soberania dos países sobre seus territórios amazônicos, é uma forma de evitar instabilidades. Outro exemplo de política governamental é a Estratégia Nacional de Defesa (END), lançada em 2008, durante o governo Lula, e revista em 2012. A END procura estabelecer diretrizes para preparar e capacitar as Forças Armadas, garantindo, assim, a segurança do país. Observa-se, dessa forma, que a garantia da soberania, do patrimônio nacional e da integridade territorial são importantes Objetivos Nacionais de Defesa (OND).

3.3. A Função do Estado no Controle Efetivo do Território Com o fim da Guerra Fria, observou-se o aumento da presença de atores não estatais nas relações internacionais e a mudança de temas na agenda internacional. As ameaças agora apontadas são difusas e incorporam, entre outros assuntos, a questão ambiental. Desse modo, a preservação da região amazônica passa a ser pauta nos países desenvolvidos que, por sua vez, contestam a capacidade dos países da região de resguardar e gerenciar tal riqueza, considerada por eles como patrimônio da humanida3 BRASIL. Ministério da Defesa. PND. Disponível em: <http://www.defesa.gov. br/estado-e-defesa/politica-nacional-de-defesa>. Acesso em: 1 out. 2017. 4 BRASIL. Itamaraty. OTCA. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/integracao-regional/691-organizacao-do-tratado-de-cooperacao-amazonica-otca>. Acesso em: 1 out. 2017

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Por ser detentor da maior parte do território da Amazônia, o Brasil, além de ter o direito a exercer soberania sobre a região, tem também o dever de proteger suas riquezas

de. Para impedir a internacionalização e garantir a soberania e desenvolvimento efetivo da região, o Estado brasileiro procurou articular políticas de defesa e segurança de cunho Estadual e militar, em âmbito regional e doméstico. Com o objetivo de coibir a produção e o tráfico de drogas, monitorar as questões relativas ao crime organizado internacional, controlar epidemias e endemias, proteger a navegação fluvial e preservar o meio ambiente, o governo criou o projeto militar Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM), que entrou em vigor em 2002 e faz parte do SIPAM, Sistema de Proteção da Amazônia (SIVAM, 2008). O programa, controlado pela Aeronáutica, possui uma rede de radares terrestres espalhados pela região, além de uma rede de sensoriamento remoto instalada em aeronaves e um subsistema de telecomunicações (ALMEIDA, 2002, p. 44-45). Outro exemplo é o Programa Calha Norte (PCN), concebido pela então Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional (SG/CSN) e colocado em prática em 1985, no governo de Sarney. O objetivo era militarizar a zona de fronteira da Amazônia, assim como integrar e desenvolver a região ao norte da calha do Solimões, buscando atender às carências vividas pelas comunidades locais (NASCIMENTO, 2013, p. 96). Entre as necessidades elencadas pela SG/CSN, estariam: assistência às populações indígenas; intensificação das transações comerciais bilaterais; manutenção da soberania brasileira, com grande presença das Forças Armadas; aumento da oferta de recursos sociais básicos (PILETTI, 2008, p. 68). Desta forma, pode-se observar o esforço do Estado brasileiro em garantir a soberania e a integridade da região através de sua vigilância, monitoramento, integração e atendimento às comunidades locais carentes.

4. A COBIÇA INTERNACIONAL Não é de hoje que a Amazônia brasileira é objeto de desejo de outros países. Esse interesse, seja ligado à preocupação ambiental, seja relacionado ao acesso e controle de seus recursos, é facilmente explicado: ali estão o maior banco genético e um quinto da água doce do planeta, além de um enorme potencial econômico e uma extensa diversidade cultural. Por ser detentor da maior parte do território da Amazônia, o Brasil, além de ter o direito a exercer soberania sobre a região, tem também o dever de proteger suas riquezas.

Dessa maneira, o governo brasileiro não deve deixar de controlar estrategicamente a região, promovendo o desenvolvimento sustentável, a mobilidade e a segurança. Porém, a Amazônia não é só brasileira: países vizinhos compartilham de problemas semelhantes aos brasileiros e países desenvolvidos demonstram interesse pelos recursos da região. Assim, é fundamental visualizar as ameaças à Amazônia em diversos níveis, e não apenas no nacional (PENNA FILHO, 2015, p. 20). No plano internacional, por exemplo, o comportamento de cobiça se efetivou no final do século XX, quando discursos ecológicos e ambientais se consolidaram. Além da retórica sustentável de países que ressaltaram a importância de “proteção” internacional da região e classificaram a Amazônia como “patrimônio da humanidade”, também é possível observar a ação de Organizações Não Governamentais (ONGs) “que utilizam tanto a retórica ambiental quanto a indigenista para promover interesses contrários aos nacionais dos países amazônicos, tais quais percebidos por seus diferentes governantes” (PENNA FILHO, 2015, p. 22).

4.1. Presença Histórica A cobiça internacional à região amazônica já se fazia presente no período colonial do Brasil. O controle da região da foz do Rio Amazonas preocupava os portugueses, que entraram em diversos conflitos na região para assegurar a posse dessa área. Essa preocupação lusa em assegurar o controle da foz do Amazonas, como destaca Meira Mattos, é de extrema importância: Graças à ação do governo de Lisboa, protegendo a cobiçada foz do Amazonas, expulsando aventureiros ingleses, holandeses e franceses que se atreveram rio acima, e expandindo os marcos de ocupação lusa até as proximidades das nascentes andinas do grande rio e seus principais afluentes de margem norte, foi possível aos demarcadores da fronteira assente através do Tratado de Madri (1750) firmado no princípio do utis possidetis comprovar a antecipação de ocupação lusa do imenso leque norte e oeste do grande rio e seus afluentes, dando nascimento ao atual delineamento da fronteira da Amazônia brasileira (MATTOS, 1980, p. 36).

De modo geral, o grande cuidado de Portugal durante o período do Brasil colônia nessa área foi a incorporação

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do território amazônico com o intento de aumentar seus domínios territoriais além-mar. Os esforços do governo português e, mais tarde, do governo brasileiro, eram voltados para a consolidação das fronteiras do Brasil com seus países vizinhos (NASCIMENTO, 2013, p. 22-23). Além de uma relevância objetiva que envolvia a consolidação do espaço territorial, a Amazônia também possuía uma importância simbólica, exaltando-se suas potencialidades naturais e magnitudes hidrográficas. As preocupações relacionadas com a questão do povoamento e com o aumento do controle estatal na região surgiram mais tarde, com diversas iniciativas para sua valorização econômica (NASCIMENTO, 2013, p. 22-23). Posteriormente, no século XIX, manifestou-se a primeira percepção de “ameaça”: um plano norte-americano de ocupação da região, que obrigou o Estado a dirigir sua atenção à região amazônica. Esse plano, atribuído ao empreendedor Willian Troousdale, era pautado na transferência da população negra dos Estados Unidos para a exploração de borracha e algodão amazônico. Nesse contexto, os Estados Unidos da América pressionaram o Brasil para que abrisse a navegação dos rios amazônicos às nações amigas. O Comandante Matthew Maury, chefe do Observatório Naval de Washington, defendia a livre navegação alegando que o rio Amazonas deveria ser incorporado ao status do Direito Marítimo. A saída diplomática encontrada pelo Brasil foi permitir estrategicamente a navegação dos rios da região pelos países ribeirinhos superiores, adiando o pedido norte-americano até que fosse possível incentivar a ocupação da área com população nacional (PAIVA, 2006, p. 58). Mais tarde, em 1876, a atenção do Estado voltou-se novamente para a região, quando o inglês Henry Alexander Wickham levou milhares de sementes de seringueiras para a Inglaterra. De lá, foram enviadas ao Oriente, onde iniciou-se uma cultura. Em pouco tempo, o comércio de borracha da Ásia havia destruído o monopólio que o Brasil exercia sobre essa atividade. Desde então, o Estado impõe multas pesadas pela extração ilegal de produtos amazônicos e vê com desconfiança a atuação de atores internacionais na região (MACHADO, 2008, p. 6). No começo do século XX, surgiram algumas manifestações de políticos europeus que demonstravam interesse nos recursos da região amazônica, como o caso do Chanceler alemão, Barão Oswald Richtöfen, que em 1902 já propunha que “seria conveniente que o Brasil não privasse o mundo das riquezas naturais da Amazônia” (PAIVA, 2006, p. 58). Também na primeira metade do século XX, surgiram pretensões da Bolívia de arrendar uma grande área limítrofe do Brasil em seu território a uma corporação internacional, o que levou à intensa mobilização diplomática sobre tal área durante a gestão do Barão do Rio

Branco. No fim, essa ação resultou na anexação do Acre (MACHADO, 2008, p. 6-7)

4.2. A Internacionalização da Amazônia Como mencionado anteriormente, a preocupação com a internacionalização da Amazônia surge no período colonial, quando os portugueses procuravam evitar invasões holandesas, inglesas e francesas na região da foz do rio Amazonas. A securitização da região tem origem nesse momento do Brasil colônia. O perigo atual da internacionalização, porém, nasceu no final da década de 1950, quando a região antártica foi submetida ao julgo internacional, através do Tratado da Antártica. Em resposta a esse acordo, o governo brasileiro, preocupado com a atuação de forças externas em seu território e apreensivo com a proteção de suas fronteiras, criou a Zona Franca de Manaus, com o objetivo de “integrar a Amazônia Ocidental às dinâmicas socioeconômicas nacionais” (MACHADO, 2008, p. 5). Contudo, é apenas a partir da década de 1970 que o “fantasma” da internacionalização volta com uma nova máscara: a questão ambiental. Esse período de popularização da temática ecológica foi marcado por uma forte pressão para a internacionalização da Amazônia, apoiada no discurso ambientalista que se potencializou após a Conferência de Estocolmo de 1972 e a Eco-92, que ocorreu no Rio de Janeiro. Ambas as declarações alegam que o princípio da soberania se aplica ao direito do Estado de desenvolver seus recursos naturais (BRASIL, REVISTA CONSULTOR JURÍDICO, 2011). Entretanto, segundo um relatório das Nações Unidas intitulado “Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento”, publicado em 1988, a questão ambiental traz à tona uma nova análise sobre o conceito de soberania tradicional, visto que a insegurança ambiental ameaça as nações (NASCIMENTO, 2013, p. 39). A Declaração de Estocolmo, assim como outros documentos, reconheceu que há uma classe crescente de problemas ambientais que afetam o domínio internacional público e que, por isso, requerem grande cooperação entre nações e ações pelas organizações internacionais em favor do interesse comum. Entretanto, a proteção da Amazônia faz com que a soberania e o “interesse da humanidade” entrem em desacordo. Como mostrado por Nascimento, O mau gerenciamento dos recursos naturais era tido como um perigo para toda a humanidade e abria espaço para intervenções. Discursos com esse tom foram muito comuns vindos de potências mundiais, que curiosamente, não possuíam (nem possuem) políticas de desenvolvimento nacionais cunhadas pelo

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desenvolvimento sustentável e pela preocupação com o bem-estar da população mundial e/ou preservação ambiental (NASCIMENTO, 2013, p. 40).

Para sobreviver, as grandes potências dependem do acesso à vasta fronteira internacional de recursos naturais estratégicos. A região amazônica, por sua vez, possui grande estoque desses recursos e, assim, passa a ser referência nas políticas de planejamento estratégico por parte de economias hegemônicas. Essas políticas, muitas vezes, escondem interesses materiais e geopolíticos, mascarados por uma hipotética preocupação ambiental. Em 1989, por exemplo, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, disse que “ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia pertence a todos”. Outro claro exemplo que ilustra o anseio dos países desenvolvidos pela internacionalização da Amazônia se encontra na fala do ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, Pascal Lamy, em 2005: “A Amazônia e as outras florestas tropicais do planeta deveriam ser consideradas bens públicos mundiais e submetidas à gestão coletiva – ou seja, gestão da comunidade internacional” (PAIVA, 2006, p. 58-59). Como forma de contrapor-se às ameaças à Amazônia, o Estado brasileiro buscou executar uma série de medidas estratégicas voltadas para o efetivo desenvolvimento sustentável (social, econômico e ambiental), o fortalecimento militar da região e a cooperação com países vizinhos (POLÍTICA DE DEFESA NACIONAL, 1996, p. 8). No documento da Estratégia Nacional de Defesa, é ressaltado que o Brasil:

sileiro, é alvo de cobiça internacional? ”, pode-se afirmar que a grande quantidade de recursos minerais e hídricos e a extensa biodiversidade da Amazônia têm sido objeto de imenso interesse de apropriação, desde o período colonial, por parte de diversos países e instituições internacionais. Essa cobiça é potencializada pelo fim da bipolaridade, pela introdução de novos temas na agenda internacional (questão ambiental e indígena, narcotráfico) e pelo discurso ambientalista reproduzido na Conferência de Estocolmo de 1972 e na Eco-92. Seguindo essa linha de pensamento, a escassez de recursos naturais ficou ainda mais clara depois da virada do século. Fruto da globalização, a nova dinâmica internacional requer maior busca e exploração de recursos estratégicos, uma vez que esses são necessários para o crescimento da economia mundial e, principalmente, para a preservação da colocação privilegiada das grandes potências. Como explicitado neste artigo, há tempos que personalidades e chefes de Estado exteriorizam sua opinião a favor da limitação da soberania nacional sobre a região amazônica. No raiar do século XXI, essas opiniões vieram em forma de crítica ao modelo de preservação que o governo brasileiro vem adotando para a região, mascaradas pela suposta preocupação ambiental. Essas críticas, que questionam a capacidade do Estado brasileiro de proteger a Amazônia como um bem natural, sugerem mudanças que afetam a integridade, a soberania e a segurança do país. Assim, é essencial destacar a importância da ação do governo brasileiro frente a essas ameaças. Para assegurar a soberania nacional, a segurança territorial e a defesa de seus recursos estratégicos, o Estado brasileiro buscou implementar programas e políticas governamentais, como o Programa Calha Norte (PCN), com forte presença das Forças Armadas e assistência às comunidades locais; a Política Nacional de Defesa (PND), que atenta à defesa da região e incentiva o fortalecimento de foros políticos; a Zona Franca de Manaus (ZFM), modelo de desenvolvimento econômico que promove integração produtiva e social dessa região e o Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM), que faz parte do Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM), e é responsável pelo controle ambiental, do

Fruto da globalização, a nova dinâmica internacional requer maior busca e exploração de recursos estratégicos, uma vez que esses são necessários para o crescimento da economia mundial e, principalmente, para a preservação da colocação privilegiada das grandes potências

Não permitirá que organizações ou indivíduos sirvam de instrumentos para interesses estrangeiros – políticos ou econômicos – que queiram enfraquecer a soberania brasileira. Quem cuida da Amazônia brasileira, a serviço da humanidade e de si mesmo, é o Brasil (ESTRATÉGIA NACIONAL DE DEFESA, 2008, p. 5).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Respondendo à pergunta proposta no início desse artigo, “como a Amazônia, patrimônio geoestratégico bra-

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tráfego aéreo e de ações de contrabando. Por derradeiro, conclui-se que o Brasil ainda possui um longo caminho a percorrer para alcançar efetivos controle e manutenção de sua soberania na região amazônica. É fato, contudo, que as políticas públicas e os projetos já adotados vão ao encontro desses objetivos, mantendo a Amazônia como valiosa parte do país, protegida da cobiça internacional pelos seus recursos geoestratégicos.

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ARTIGO

ANÁLISE DAS MEDIDAS TOMADAS PELO BRASIL INDIVIDUALMENTE E EM CONJUNTO COM OS DEMAIS PAÍSES FRONTEIRIÇOS DA REGIÃO AMAZÔNICA NO COMBATE AO NARCOTRÁFICO NOS ANOS ENTRE 2000 E 2016 Flávia Essig Johann * Luiza Scherer de Oliveira ** Gabriel Pessin Adam ***

RESUMO

Durante muito tempo, a problematizaçāo do narcotráfico foi uma preocupaçāo secundária na agenda dos países da regiāo amazônica. Entretanto, com a consolidaçāo das redes narcotraficantes na localidade, os Estados viram a necessidade de tomar medidas que combatessem a situação de maneira mais eficaz. Desta forma, o objetivo do presente estudo é analisar as medidas tomadas pelo Brasil individualmente e juntamente com os outros países que fazem fronteira com a Amazônia. Os resultados obtidos mostram que grande parte dos desafios é a falta de cooperaçāo entre todos os países da localidade. Por isso, se faz necessário a elaboracāo de medidas conjuntas entre todos os Estados fronteiriços da regiāo, além da consolidaçāo de políticas públicas voltadas para os usuários de substâncias ilícitas. PALAVRAS-CHAVE: narcotráfico; Amazônia; Brasil; medidas; redes narcotraficantes. ABSTRACT For a long time, the drug trafficking problem was a secondary concern in the Amazonian region countries’ agenda. However, with the consolidation of the local drug trafficking networks, States saw the necessity of taking measures that could combat the situation in an effective way. This way, the aim from the present study would be to analyze the measures taken by Brazil individually and together with the other border countries in Amazon. The results obtained show that a big part of the challenges are due to the lack of cooperation between all the local countries. Lastly, it is necessary to work on the elaboration of not only joint measures among all of the border States in the region, but also the consolidation of public policies aim that drug users. KEY WORDS: drug trafficking; Amazon; Brazil; measures; drug trafficking networks.

(*) Acadêmica de Relações Internacionais na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos) (**) Acadêmica de Relações Internacionais na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos) (***) Graduado em Ciência Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

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ARTIGO 1. INTRODUÇÃO

D

esde os anos 80, até os dias de hoje, o narcotráfico foi ganhando espaço na região da Hiléia - ou seja, os países que dividem o território amazônico, sendo eles Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Suriname, Peru, Venezuela e uma colônia, Guiana Francesa - e, consequentemente, se tornando um assunto relevante na agenda internacional, não só se restringindo à região amazônica, mas também se tornando uma questão de interesse das grandes potências, que viram o narcotráfico como uma forma de inserção nos assuntos da localidade, tendo como verdadeiro objetivo a internacionalização da Amazônia. (RODRIGUES, s.d.). Devido às grandes proporções que o tráfico de drogas ganhou, aumentando os índices não só do consumo de drogas, como também de diversos outros fatores que retardam o desenvolvimento dos países amazônicos, viu-se a necessidade emergente de combater essa atividade. Sendo assim, esses Estados começaram a se organizar tomando medidas de cunho interno e externo para a resolução desse problema. Este estudo tem como objetivo analisar as medidas tomadas pelo Brasil, individualmente e em conjunto com os demais países que dividem a região amazônica, no combate ao narcotráfico. Essa análise pretende abranger o que foi feito a respeito do assunto desde os anos 2000 até 2016. Esse período foi escolhido com o intuito de examinar a situação dessa atividade nos dias atuais, verificando seus resultados e a efetividade de suas ações que ainda estão em vigência. Para o desenvolvimento deste estudo, se faz necessário entender a organização dos grupos narcotraficantes, que, nas últimas duas décadas, tem se dado por meio de redes, pois estas serão, em diversos momentos, mencionadas ao longo do trabalho. Por isso será explicado o conceito de redes e o seu funcionamento, justificando os motivos do sucesso do narcotráfico na região estudada. Com a finalidade de ilustrar a grande presença do narcotráfico no Brasil e em toda a Amazônia, se discutirá alguns dos vários impactos causados por essa atividade, visto que essa é responsável por desencadear diversos outros crimes como roubos, lavagem de dinheiro, tráfico de armas e homicídios. Tendo isso em mente, essa questão será dividida em dois tópicos, sendo esses: a violência na região Amazônica, que é resultado, tanto das disputas entre os grupos narcotraficantes, quanto na “Guerra às Drogas”; e a corrupção, sendo essa um grande obstáculo para o combate ao narcotráfico, além de ser uma das grandes fontes de financiamento dessas redes. Como, nas últimas décadas, a participação dos narcotraficantes brasileiros foi se tornando mais relevante no tráfico de drogas, é importante analisar o narcotráfico, de

que forma e por qual razão esse consolidou-se no Brasil nesse período. Já que essa atividade demorou para se estabelecer em terras brasileiras, as medidas tomadas pelo Estado, no início, eram lentas e sem respaldo orçamentário, mas, a partir do início do século, foram se desenvolvendo. Para demonstrar o reflexo que essa atividade possui no país, serão apresentados dados quantitativos à respeito do nível de consumo de drogas no Brasil e no mundo. Por fim, será abordada a forma encontrada pelo Brasil de proteger a sua soberania e desenvolvimento regional abordando, neste artigo, mais especificamente, as questões envolvendo o narcotráfico -, criando, tanto medidas nacionais, quanto internacionais. Dessas, serão apresentadas as que mostraram maior relevância no século XXI, havendo um enfoque nas parcerias brasileiras com a Bolívia, a Colômbia e o Peru. Essa importância é dada a eles porque esses são os principais produtores de substâncias ilícitas da América do Sul. Já o último tópico será reservado para as conclusões obtidas com este estudo.

2. REDES NARCOTRAFICANTES Os grupos narcotraficantes organizados em forma de redes começaram a surgir nos anos 1990, substituindo os oligopólios. Essa transiçāo ocorreu devido à chegada da nova versāo da política de “Guerra às Drogas” dos Estados Unidos na América do Sul. A principal mudança, que se mantém até hoje, é a descentralizaçāo. (PROCÓPIO, 2003). Como mencionado anteriormente, as redes narcotraficantes nāo se organizam de forma integralmente hierárquica, pois essas se misturam com esquemas híbridos, onde laços de família, de amizades ou de religião podem ser relevantes. Portanto, nāo é esperado um comportamento padrāo dos membros desses grupos, e esses nāo possuem uma forma rígida de sistematizaçāo. (DE OLIVEIRA, 2007). As redes narcotraficantes proliferam-se em lugares onde a sua atuaçāo é facilitada pelas relações pessoais e coletivas, pois esses nāo possuem estrutura para combatê-los. A sua presença nas cidades localizadas na Amazônia é um grande exemplo, à medida que essas possuem fraca presença de agentes Estatais em áreas sensíveis como educaçāo e segurança pública; corrupçāo endêmica e impunidade; e grande disponibilidade de māo de obra por causa do alto índice de desemprego naquela regiāo. (TOKÁTLIAN, 1999). Devido à ausência de um Estado forte nas localidades onde as redes narcotraficantes se proliferam, elas conseguem obter poder político e econômico, fazendo com que seus lucros, sua influência e sua segurança aumentem de forma significativa. Para alcançar seus fins, essas redes fa-

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zem uso do suborno, da persuasāo e da corrupção, além da violência e a coerçāo. (DE OLIVEIRA, 2007). O sucesso da presença das redes narcotraficantes na regiāo da Amazônia se dá pela cooperaçāo transnacional entre elas e com outras organizações criminosas, que formam a chamada integraçāo paralela na Amazônia Continental. Por se organizarem de uma forma horizontal, diferentemente dos Estados, as redes possuem mais flexibilidade na circulaçāo de bens, pessoas e finanças pelas fronteiras nacionais, caracterizando a, anteriormente mencionada, integraçāo paralela. (DE OLIVEIRA, 2007).

3. IMPACTOS DO NARCOTRÁFICO

vez que elas utilizam métodos violentos para chegar aos seus objetivos. Da mesma forma, os Estados utilizam a mesma estratégia, que consiste na atuação das Forças Armadas. Consequentemente, as ações de ambos os lados contribuem para o caráter violento das cidades situadas na Amazônia, algo que se tornou primordial para os países dessa região. Essa problematização é essencial nas relações entre os países da Hiléia e os Estados Unidos, que se faz presente através de um financiamento com fins militares, além de bases militares situadas em diversos países da localidade. (DE OLIVEIRA, 2007). Anos após o final da Guerra Fria, com o objetivo de manter a sua hegemonia mundial, os Estados Unidos passaram a adotar um discurso com princípios como a democracia liberal, os direitos humanos, a economia de mercado, a defesa de minorias étnicas, as questões ambientais e o combate ao narcotráfico e ao terrorismo. A preocupação americana com o narcotráfico enxerga, na América do Sul, uma forma de se estabelecer na região, auxiliando no combate às drogas. Um exemplo de projeto financeiro-militar para intervir no combate às substâncias ilícitas por parte dos Estados Unidos seria o Plano Colômbia (1998), Do qual grande parte do financiamento é investido no combate à produção dos cultivos ilícitos e a militarização da luta antidrogas. (BORGES, 2003; BETANCOURT & MARTÍNES, 2000; VIZENTINI, 1999). Sendo assim, se mostra evidente a participação ofensiva dos Estados Unidos no combate às substâncias psicotrópicas. Essa política intervencionista, somada aos conflitos entre as facções criminosas mencionadas anteriormente, caracteriza a violência crescente na região da Amazônia.

O sucesso da presença das redes narcotraficantes na regiāo da Amazônia se dá pela cooperaçāo transnacional entre elas e com outras organizações criminosas

O narcotráfico é uma atividade que está constantemente presente na agenda internacional, influenciando diretamente no cotidiano de uma grande parcela da população. Por isso, é algo a ser discutido tanto na política interna quanto externa desses países. Os impactos do tráfico de drogas são sentidos em grande parte dos países latinos, havendo maior expressão naqueles que estão situados na região amazônica. Sendo assim, há a necessidade de abordá-los de modo amplo, porém com enfoque na América do Sul. Esses impactos são, em sua grande maioria, relacionados à violência e à corrupção, conforme será explanado nos próximos itens.

3.1. Violência De Oliveira (2007) sustenta que há uma analogia entre a Lei Seca estadunidense (1920 - 1933) e os esforços estatais para combater o narcotráfico. Assim, como o tráfico de álcool e a violência resultante das atividades ilícitas e dos grupos criminosos daquela época, hoje essa situação se repete, porém, no cenário sul-americano do narcotráfico. As redes narcotraficantes, assim como os grupos criminosos norte-americanos, conforme o autor, acabam se envolvendo com outras atividades ilícitas e cooperando com um período de extrema violência nos países envolvidos. Ou seja, essas redes tornam-se facções e acabam se envolvendo com homicídios e roubos. O tráfico de drogas possui influência direta no contexto social, político e econômico em que está inserido. Nas cidades em que esses grupos de narcotraficantes estão consolidados, a população fica à mercê dessas redes, uma

3.2. Corrupção A corrupção é um dos principais obstáculos para combater o narcotráfico, além de ser uma das grandes fontes de financiamentos das redes narcotraficantes. O controle e a repreensão do tráfico de drogas por parte do Estado é, geralmente, comprometido pela corrupção, já que as grandes facções narcotraficantes acabam se tornando forças políticas, com poder e autoridade de instituições legitimadas. Segundo de Oliveira (2007, p. 28), Para tornar possível a sua atuação no sub continente, o crime organizado corrompe. Acaba envolvendo au-

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toridades políticas, policiais e judiciais cooptadas por meio da corrupção. O considerável enriquecimento das organizações criminosas só é possível com articuladas estratégias de lavagem de dinheiro. Uma última característica fundamental para o sucesso do crime organizado atuante na Bacia Amazônica é sua capacidade de agir com flexibilidade o que resulta em maior eficiência na produção, transporte e comércio dos produtos que oferece.

Assim, as redes narcotraficantes se envolvem com o crime organizado. Por isso, é importante para o funcionamento dessas redes que se tenham membros infiltrados em instituições estatais que possam prejudicá-las. Outra forma de corrupçāo presente no esquema do narcotráfico é a lavagem de dinheiro. Essa é caracterizada como “a necessidade de dar status legal para o dinheiro sujo independente de sua origem”. É corroborado que o narcotráfico lava dinheiro no Brasil, sendo as principais formas por meio de empresas, como construtoras ou táxis aéreos; casas noturnas, boates ou restaurantes; e casas de câmbio. Com essa “legalizaçāo”, o dinheiro proveniente do narcotráfico está apto para circular. (BORGES, 2006; MAGALHĀES, 2000).

4. NARCOTRÁFICO NO BRASIL No início do século XX, o Brasil se apresentava despreocupado com a problematização do narcotráfico, enxergando o problema como pertencente aos seus países vizinhos, como a autora Luiza Lopes da Silva (2013) retrata, tratando-o como “uma tempestade que parecia dirigir-se a outras regiões”. Sendo assim, as medidas tomadas pelo Brasil a respeito disso foram lentas e praticamente sem auxílio orçamentário, sendo somente iniciadas à medida que o Estado brasileiro começou a perceber que o país havia se tornado uma rota para os narcotraficantes. Com a lentidão dessas medidas, o tráfico foi cruzando as fronteiras nacionais e se consolidando no país, enquanto carregamentos cada vez maiores se direcionaram para o mercado consumidor do norte. Esse corredor do narcotráfico abriu espaço também para o aumento do tráfico de armas e, consequentemente, aumento da criminalidade urbana, além do estabelecimento de elos entre as organizações criminosas e a corrupção governamental em diferentes níveis. (DA SILVA, 2013). No final do século XX e início do século XXI, devido à instabilidade provocada pelo narcotráfico nas fronteiras entre os países andinos e o Brasil na Amazônia, a região se tornou primordial para a política de defesa brasileira. Além disso, esse contexto influencia nos atuais números absolutos de consumidores de cocaína no mundo, trazen-

do o Brasil como o segundo maior usuário, ficando atrás somente dos Estados Unidos, como mostra a figura 1.

Figura 1 – Números Absolutos de Consumidores no Mundo

Fonte: INPAD, 2014.

O grande número de consumidores no Brasil é um resultado da quantidade de traficantes que se estabeleceram no país devido à falta de importância dada ao assunto por parte do Estado brasileiro no final dos anos 1970, quando o narcotráfico começou a se estabelecer no país. Com o intuito de resolver essa situação, o governo brasileiro, em 2006, instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD) a partir da ementa da lei nº 11.343: Prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. (LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE DROGAS NO BRASI, 2011).

Em função desta lei, houve uma maior rigidez acerca da criminalização do tráfico de drogas, resultando em uma superlotação dos presídios, visto que um em cada três presidiários responde pelo envolvimento com esta atividade, superando o total de presos por outros crimes. Essa superlotação é um problema muito grande dentro do sistema carcerário brasileiro e não se restringe a apenas uma região. (D’AGOSTINO, 2015; VELASCO, D’AGOSTINO, REIS, 2017).

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5. MEDIDAS VOLTADAS PARA A REGIÃO AMAZÔNICA E PARA O NARCOTRÁFICO A Amazônia possui um papel fundamental para a manutenção do planeta, isso porque essa é uma região repleta de biodiversidade, tanto animal quanto vegetal, apresentando 2500 espécies de árvores e 30 mil espécies de plantas, além de possuir uma vasta gama de recursos genéticos, sendo eles os mais variados e maiores do mundo, além do fato de que ela poderia servir como base para a indústria farmacêutica. Ademais, a Amazônia é rica em recursos energéticos, como gás, petróleo e minerais. Também, há abundância em recursos hídricos, sendo a bacia amazônica a maior do mundo (cobrindo cerca de 6 milhões de quilômetros quadrados). (AMAYO, 1993 apud BORGES, 2006). Esses seriam alguns dos principais motivos pelos quais os países desenvolvidos, como os Estados Unidos e membros da União Europeia, possuem interesse na localidade. Uma justificativa usada por esses países desenvolvidos para intervir nas questões que dizem respeito à região da Amazônia é o combate ao narcotráfico. A partir disso, surge a importância, para os países que dividem a região, de preservá-la e protegê-la, tomando medidas que tenham em pauta, entre outras coisas, o tráfico de drogas, sendo essa uma atividade que influência negativamente no desenvolvimento social, politico e econômico da região em que está inserida. Essas medidas partem do governo brasileiro individualmente e em conjunto com os demais países amazônicos. Algumas dessas medidas serão abordadas nesse capítulo, sendo elas as de maior relevância no período analisado.

tem como objetivo a integração das ações e informações para a proteção do território amazônico brasileiro e o desenvolvimento sustentável por meio da implementação de infraestruturas de meios técnicos, entrou em vigor em 2002. Juntamente com a inauguração do Centro Regional do SIPAM, houve a instauração do Sistema de Vigilância Amazônica (SIVAM), que pode ser caracterizado como a estrutura organizacional do SIPAM, visando oportunizar aos membros desse programa o conhecimento de assuntos relevantes para a proteção da Amazônia Legal Brasileira. Além disso, o sistema se preocupa com a segurança ecológica, pois essa interfere diretamente na segurança nacional, e, ademais, possuindo outras funções, dentre elas, o auxílio à repressão dos ilícitos de forma geral, abrangendo a luta contra o contrabando e o tráfico de drogas. (SILVA, 2004; RODRIGUES, s.d.). Quanto a medidas voltadas especificamente para o narcotráfico, criada em 1991, mas com desdobramentos até os anos 2000, houve a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que tinha como objetivo aprofundar as investigações de suspeitas sobre a relação que os políticos e os juízes poderiam possuir com o narcotráfico. Com os depoimentos recolhidos, obtiveram-se novas informações sobre esquemas de lavagem de dinheiro e desvio de fundos públicos, além do tráfico de drogas, armas e cargas operantes em vários estados brasileiros conectados com outros países. Essas conexões abrangem deputados estaduais e federais, policias e juízes que estão envolvidos nesses esquemas. Entretanto, a mobilização dos congressistas não gerou grandes resultados, fazendo com que a CPI do Narcotráfico não obtivesse grande sucesso. (RODRIGUES, s.d.). Além disso, no dia 27 de Outubro de 2005, o Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) aprovou a Política Nacional sobre Drogas (PNAD), que seria uma nova abordagem do governo nos assuntos relativos à redução da demanda e da oferta de substâncias ilícitas, abrangendo questões mais voltadas para políticas públicas. O órgão responsável por colocar em prática essa política é a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), essa desenvolveu um processo governamental e popular com o objetivo de realinhar a política vigente desde 2001. Esse decreto abriu espaço para a criação de novas leis que seguiam as diretrizes do projeto. (LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE DROGAS NO BRASIL, 2011). Os documentos brasileiros sobre defesa nacional também demonstram uma preocupação com o assunto.

A maneira encontrada pelo Estado brasileiro foi a criação de empreendimentos estratégicos

5.1. Medidas Brasileiras Sendo a Amazônia uma região de grande relevância para o Brasil, viu-se necessário a formulação de medidas que respondessem às possíveis ameaças ao território. A maneira encontrada pelo Estado brasileiro foi a criação de empreendimentos estratégicos, sendo que esse estudo abordará algumas das principais medidas elaboradas e/ou implantadas no período entre 2000 e 2016, essas seriam o Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM), a CPI do Narcotráfico, a Política Nacional sobre Drogas (PNAD) e a seção do Plano de Articulação e Equipamentos de Defesa (PAED) que diz respeito ao narcotráfico. (SILVA, 2004). O Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM), que

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Consta no Livro Branco de Defesa Nacional (2012) a instituição do Plano de Articulação e Equipamentos de Defesa (PAED) - sendo esse um programa que possui como principal objetivo garantir que as Forças Armadas recebam os instrumentos e infraestrutura necessária para a sua operação - que visa, no campo militar, o auxílio à prevenção e ao combate às novas ameaças, dentre essas, o combate ao narcotráfico, o contrabando dos demais ilícitos transfronteiriços e o crime organizado. (LIVRO BRANCO DE DEFESA NACIONAL, 2012).

5.2. Medidas conjuntas Devido à importância já mencionada que a região amazônica possui, em 1978, os países da localidade - Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela - formularam o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). Em 1995, para fortalecer a ação da TCA, foi criada a Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia (OTCA), cuja Secretaria Permanente só foi ser instaurada, em Brasília, no ano de 2002. A OTCA tem como missão: Ser um fórum permanente de cooperação, intercâmbio e conhecimento, guiado pelo princípio de redução das assimetrias regionais entre os Países Membros; auxiliar nos processos nacionais de progresso econômico-social, permitindo uma paulatina incorporação desses territórios às respectivas economias nacionais; promover a adoção de ações de cooperação regional que redundem na melhoria da qualidade de vida dos habitantes da Amazônia; atuar segundo o princípio do desenvolvimento sustentável e os modos de vida sustentável, em harmonia com a natureza e o meio ambiente e levando em consideração a legislação interna dos Países Membros. (OTCA, 2010)

Essa cooperação também foi necessária para que os países de fora da região amazônica não interferissem na soberania dos países que se encontram no território amazônico. Ela visa pôr em pauta diversos problemas comuns a todos os Estados membros. Dentre esses assuntos, se encontraria o narcotráfico transamazônico. (DE ROCCO, 2013). Além de fazer parte da OTCA, o Brasil também possui medidas bilaterais, com países da região, que dizem respeito ao tráfico de drogas. Esse estudo abordará algumas das medidas, que se encontram dentro do período entre 2000 e 2016, feitas em parceria com a Bolívia, com a Colômbia e com o Peru, devido à relevância desses no assunto.

5.2.1. Brasil – Bolívia Além de compartilharem uma fronteira de 3.100km de extensão, o Brasil e a Bolívia precisam lidar com o tráfico de drogas, à medida que a produção da cocaína boliviana, uma das maiores da região Amazônica, depende da exportação de precursores químicos brasileiros. Dito isso, em dezembro de 2007, ocorreu, em La Paz, a V Reunião da Comissão Mista Brasil-Bolívia sobre Drogas e Temas Conexos, que consistiu na definição de iniciativas conjuntas a respeito do controle de fronteiras, na luta contra os psicoativos e na prevenção do consumo. (BIATO, 2012 apud DIAS, 2015). Nesse mesmo ano, foi estabelecida uma troca de informações entre a Direção de Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal do Brasil e a Força Especial de Luta contra o Narcotráfico da Polícia Nacional da Bolívia. Além disso, o governo brasileiro ressaltou a possibilidade de transferir aeronaves que foram apreendidas anteriormente para que a inteligência policial de ambos os países pudessem utilizá-las no combate às drogas. (DIAS, 2015)

5.2.2. Brasil - Colômbia A fronteira associada entre o Brasil e a Colômbia possui uma extensão de 1.645km na região amazônica, onde há ocorrência de diversos delitos transnacionais, entre eles o narcotráfico, visto que a Colômbia é um dos maiores produtores de coca/cocaína do mundo. Em 2001, foi criada a Operaçāo Cobra, que consistiu na instalaçāo de Postos de Controle de Fronteiras, que visavam a vigilância da área fronteiriça, a fiscalizaçāo de aeroportos e portos, a patrulha de rios, a destruiçāo de pistas de pouso clandestinas, além de outras ações de repressāo ao narcotráfico. Já em 2011, foi fundada a Comissāo Binacional Fronteiriça (COMBIFRON) que tinha como objetivo intensificar a cooperaçāo entre os organismos brasileiros e colombianos relacionados à segurança fronteiriça. Ademais, no mesmo ano, foi instituído o Plano Binacional de Segurança Fronteiriça Brasil-Colômbia, que visa combater os ilícitos na regiāo de fronteira, intensificar a cooperaçāo securitária fronteiriça e o desenvolvimento sustentável da Amazônia, por meio do fortalecimento estratégico e político, além de atender às necessidades básicas da populaçāo local.

5.2.3. Brasil - Peru

Em 2011, o Peru se tornou um dos maiores produtores de coca/cocaína do mundo, em função da fragilidade institucional do Estado e da economia. Dividindo uma fron-

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Se faz necessário que os países ampliem a cooperaçāo, abrangendo a promoçāo de políticas públicas

teira de 2.995km de extensão com o Brasil, os dois países têm interesse em resolver o problema do narcotráfico na região. Por isso, em agosto de 2003, com o objetivo de integrar o Peru ao Sistema de Proteção e Vigilância da Amazônia (SIPAM/ SIVAM), os dois países assinaram o Memorando de Entendimento sobre Cooperação em Matéria de Proteção e Vigilância da Amazônia. Além disso, no mesmo ano, a Polícia Federal do Brasil instaurou a Operaçāo Pebra, que pretende estabelecer postos de controle permanente na fronteira com o Peru. Semelhante à Operaçāo Cobra, essa iniciativa visa a evitar a entrada de drogas no Brasil, entretanto, nāo pode ser considerada uma iniciativa que tem como objetivo combater conjuntamente o tráfico internacional de drogas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma característica notável ao longo da história dos países da região da Hiléia é que seu desenvolvimento ocorreu de costas para a Pan-Amazônia. Essa falta de presença de um Estado consolidado na região por um longo período de tempo ajuda a explicar o motivo pelo qual o cultivo e as rotas de exportação surgiram com grande intensidade, consequentemente, agravando a situação do consumo de ilícitos no restante do Brasil. Essa forte presença do narcotráfico na região trouxe diversos impactos sociais, como a violência; e políticos, como a corrupção, principalmente dentro da sociedade na qual os grupos narcotraficantes se fazem mais presentes. Isso implicaria, no caso da violência, em conflitos entre as redes e facções ou a militarização do combate ao tráfico de drogas, que, muitas vezes, é financiado e influenciado pelos Estados Unidos, resultando em muitas fatalidades; além disso, essas facções se envolvem também com roubos, tráfico de armas e homicídios. Já a corrupção é um fator que inviabiliza as investigações e o funcionamento das instituições, devido à influência e participação que juízes, deputados e policiais possuem com o tráfico; e à lavagem de dinheiro, que encobre a procedência ilegal do dinheiro gerado através do narcotráfico. Esses impactos possuem presença no Brasil devido à forma como o Estado tratou da problematização do tráfico de drogas por um longo período de tempo. À medida que o narcotráfico foi ganhando espaço em territórios brasileiros, o Brasil foi incluíndo o assunto em diversos programas, como o Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM). Porém, o assunto foi muito tratado como secundário, garantindo espaço para o desenvolvimento de redes

narcotraficantes mais complexas e consolidadas. Por outro lado, foram criados, também, a CPI do Narcotráfico e a Política Nacional Antidrogas, que tinham como enfoque principal o combate ao tráfico de substâncias ilícitas. Esse cenário evidencia que há uma certa preocupação com essa questão na política interna do país. Quando se diz respeito à política externa brasileira com todos os demais Estados da região amazônica., o tráfico de substâncias ilícitas não passou de um tópico na agenda do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) e, posteriormente, da Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia (OTCA). O Brasil possui acordos bilaterais que focam no combate ao narcotráfico na região amazônica com a Bolívia, com a Colômbia e com o Peru. Entretanto, essas medidas teriam mais eficiência se tivessem a participação de todos os países presentes na localidade. As redes narcotraficantes obtêm sucesso na região por operarem de maneira transnacional, além do fato de que os países da região não operam da mesma forma. Portanto, o combate ao narcotráfico na região amazônica é ineficaz por não haver uma cooperação efetiva entre os países da localidade, já que esses tratam o assunto muito mais como uma política interna, sendo que deveriam estar tratando-o, também, como um problema de política externa. Ademais, se faz necessário que os países ampliem a cooperaçāo, abrangendo a promoçāo de políticas públicas que visam a prevençāo, o tratamento e a reinserçāo social de usuários de substâncias ilícitas, além de programas de desenvolvimento social, principalmente nas áreas de maior vulnerabilidade.

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BORGES, Fábio. Amazônia e economia da droga: conflitos colombianos e interesses brasileiros (1985 2005). São Paulo, mai. 2006. BORGES, Fábio. Os possíveis impactos do Plano Colômbia no Brasil: aspectos econômicos, estruturais e diplomáticos. UNESP, Araraquara, 2003. BRASIL, Kátia. Brasil e Colômbia farão ação conjunta. Folha de São Paulo, 19 maio 2005. BRASIL. Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas. Legislação e Políticas Públicas sobre Drogas no Brasil. Brasília, 2011. BRASIL. Livro Branco de Defesa Nacional. Brasília, 2012. BRASIL. Ministério da Defesa. Plano de Articulação e Equipamento de Defesa (PAED). Disponível em: < http://www.defesa.gov.br/index.php/industria-de-defesa/paed>. Acesso em: 07.nov. 2017.

De Janeiro, vol. 21 (1): 165-191, jan/jun 1999. VELASCO, Clara; D’AGOSTINO, Rosanne; REIS, Thiago. Um em cada três presos do país responde por tráfico de drogas. São Paulo. Disponível em < https://g1.globo.com/politica/noticia/um-em-cada-tres-presos-do-pais-responde-por-trafico-de-drogas.ghtml>. Acesso em: 23 out. 2017. VELASCO, Clara; D’AGOSTINO, Rosanne; REIS, Thiago. Número de presos dobra em 10 anos e passa dos 600 mil no país. São Paulo. Disponível em: < http://g1. globo.com/politica/noticia/2015/06/numero-de-presos-dobra-em-10-anos-e-passa-dos-600-mil-no-pais. html>. Acesso em: 23 out. 2017. VIZENTINI, Paulo Fagundes. Dez anos que abalaram o século XX. Porto Alegre: Editora Novo Século, 1999.

DE OLIVEIRA, Fernando Moreno Martim. Redes narcotraficantes e integração paralela na região amazônica. Brasília, mar. 2007. DE ROCCO, Ítalo Brunetto. Segurança Regional na Amazônia: a importância da formação de uma política de segurança coletiva no âmbito da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica. Porto Alegre, 2013. DIAS, Michelle Gallera. Cooperações Bilaterais do Brasil com Bolívia, Colômbia e Peru no Combate ao Tráfico de Drogas Ilícitas. Porto Alegre, set. 2015. MAGALHÃES, Mário. O narcotráfico. São Paulo: Publifolha, 2000 RODRIGUES, M. S. Thiago. Narcotráfico e repressão estatal no Brasil: um panorama do tráfico de drogas brasileiro. s.d. SILVA, Luiza Lopes da. A questão das drogas nas Relações Internacionais: uma perspectiva brasileira. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013. SILVA, Marcelle Ivie da Costa. Amazônia e Política de Defesa no Brasil (1985 - 2002). Campinas, dez. 2004. TOKÁTLIAN, Juan. Crime organizado e drogas psicoativas: o caso da Colômbia. Contexto Internacional. Rio

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RELATO

O CAMINHO DE GENEBRA: APRENDENDO A SABER E A FAZER EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS Gabriela Mezzanotti* Nota preliminar: o corpo editorial da nova revista do Curso de RI da Unisinos, Panorama Global, me estendeu o gentil convite para escrever essas poucas palavras sobre as origens e principais características do intercâmbio curricular do Curso e é isso o que passo a desenvolver sumariamente nos próximos parágrafos. Devo alertar ao leitor que foi extremamente difícil manter meu texto enxuto e desvinculado dos sentimentos que me remetem às boas amizades que surgiram no ambiente do Curso de RI e que me invadem de uma certa melancolia aqui na longínqua Noruega.

O

que um estudante de administração de empresas diria da oportunidade de sentar-se ao lado da Ginni Rometty (CEO IBM) e poder passar a tarde conversando com ela sobre como melhorar seu currículo diante das tendências do mercado? Ou o que pensaria um game developer ao poder conversar com o Hideo Kojima sobre os principais desafios e oportunidades que ele vem encontrando em sua carreira profissional? Que experiência, não é mesmo? Bem, fico muito feliz por poder dizer que os alunos de Relações Internacionais da Unisinos têm acesso a uma oportunidade muito semelhante ao participarem do intercâmbio curricular obrigatório para Genebra previsto em seu Curso. Anualmente, desde 2014, os alunos do quinto semestre trilham o seu caminho de Genebra, o que significa ter acesso a altos funcionários da sede da ONU em Genebra (UNOG) e poder conhecer e receber palestras de funcionários internacionais de instituições como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (ICRC), o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR), a Organização Internacional do Comércio (WTO), a Organização

Internacional do Trabalho (ILO), dentre tantas outras instituições que possuem sede em Genebra e que fazem parte deste programa acadêmico. Imaginem o que significa para um internacionalista poder entrar na Organização Internacional para Migrações (IOM) e conversar sobre o novo Pacto Global com uma das diretoras jurídicas da instituição, ou poder assistir pessoalmente a sessões do Universal Periodic Review na ONU, poder usar uma das bibliotecas mais importantes do mundo na área, receber do próprio Diretor de Recursos Humanos da ONU orientações sobre como melhorar o currículo para a conquista de estágios na instituição e poder circular pelos corredores e auditórios onde grandes lideres expressaram suas doutrinas e, muitas vezes, seus mais importantes discursos. Quantos estudantes possuem tal oportunidade? Em 2010, quando a Unisinos se propôs a criar uma graduação de referência na área de Relações Internacionais, participei da Comissão de professores responsáveis pela elaboração do Projeto Politico Pedagógico do Curso. A ideia, desde o início, era de criarmos uma graduação com uma linha concreta para a internacionalização de toda a comunidade acadêmica vinculada ao Curso. O intercâmbio internacional curricular foi uma das ações adotadas para tanto. A atividade curricular também foi pensada como um importante elemento pedagógico capaz de contribuir para a formação de líderes com autonomia intelectual, postura reflexiva, crítica e analítica. Para tanto, vale lembrar que a atividade está prevista para ocorrer no quinto semestre do Curso, justamente para marcar a transição entre os dois anos iniciais, em que o aluno é inserido no universo acadêmico das RI com dedicação integral (manhã e tarde), e o início do estágio nos anos finais. A ideia aqui é a de que

(*) Possui Doutorado em Ciências Sociais pela UNISINOS e Mestrado em Direito Internacional pela UFRGS. Atualmente é professora do Mestrado em Direitos Humanos e Multiculturalismo na University of Southeast Norway (USN) e é editora assistente da Human Rights Education Review. Desenvolve pesquisa nas áreas de migração, direito internacional dos direitos humanos e instituições internacionais, com foco nas teorias de Análise Crítica do Discurso (CDA) e teoria crítica de RI. É professora da Unisinos desde 2000 (licenciada) e foi a primeira coordenadora do Curso de Relações Internacionais da Universidade, entre os anos de 2012 e fevereiro de 2016. Reside em Oslo, Noruega.

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um internacionalista precisa ir ao mundo, aprendendo a aprender e a fazer, ou seja, aliando teoria e prática. Se me perguntassem o que faz o Curso de Relações Internacionais da Unisinos ser tão especial, eu diria que os principais fatores para o sucesso do curso são a sua habilidade de aliar teoria e prática e sua compreensão de que as relações internacionais são essencialmente humanas. O humano no Curso de RI é o seu diferencial. É o que faz com que essa comunidade de pessoas (estudantes e professores) se dedique profundamente ao estudo das RI e permaneça engajada em tentar entender complexos problemas globais para poder transformá-los e quiçá fazer do mundo um lugar melhor. Em tempos de tantas incertezas, retrocessos, conflitos globais e locais, poder evidenciar o esforço e investimento institucional e de cada pessoa vinculada ao Curso na criação de uma educação de alta qualidade me deixa um pouco mais otimista. Desde a sua criação, o Curso de RI pôde contar com um grande apoio institucional, o que possibilitou a formação de um corpo docente muito qualificado e extremamente dedicado. Criamos juntos um curso de excelência. Seu currículo inovador já foi amplamente elogiado por representantes de diversas instituições de ensino, pela direção da ABRI, por representantes da ONU e do Ministério das Relações Exteriores. O intercâmbio é um elemento essencial dessa já reconhecida qualidade. Ainda em 2010, quando do processo de elaboração do Projeto Politico Pedagógico do Curso, indiquei Genebra como a cidade destino para o intercâmbio, sugestão que foi aceita pela comissão responsável pelo projeto e, posteriormente, mantida pelo Conselho Universitário (CONSUN). Não tive qualquer dúvida de que Genebra seria a melhor opção para o destino, tanto por minha experiência profissional prévia na cidade, como pelo que Genebra representa para a nossa área de atuação. Seguir o caminho de Genebra significa estar mais próximo dos caminhos trilhados por muitos líderes internacionais, tais como Henry Dunant, Friedrich Martens, Rui Barbosa, Sergio Vieira de Mello, Navanehtem Pillay. Esses líderes internacionais, de momentos históricos distintos, representam a excelência em suas diversas áreas de atuação. Eles trilharam o caminho de Genebra, caminho este que pode ser também o de novos líderes formados pelo Curso de RI da Unisinos. Genebra é uma cidade que respira, vive, se alimenta da e alimenta a área de Relações Internacionais. Mesmo um bom “realista” não pode deixar de admitir a relevância da cidade no desenvolvimento das Relações Internacionais e do Direito Internacional. Sem contarmos a ampla contribuição da cidade da Reforma para outras áreas do conhecimento, Genebra está relacionada ao nascimento do Direitos Internacional Humanitário, à Liga das Nações e à

OIT, apenas para citar alguns exemplos de sua contribuição histórica para as RI. Com uma população multicultural, Genebra é sede de mais de 30 Organizações Internacionais Intergovernamentais; e mais de 300 ONG’s, 200 Missões Diplomáticas e mais de 130 empresas multinacionais. Como profissional da área, sempre defendi a relevância da construção de um conhecimento profundo dos parâmetros normativos e institucionais do cenário internacional. Organizações Internacionais intergovernamentais e ONGs são atores responsáveis pela propagação de ideias e por formas de pensar e agir no mundo. Os efeitos de suas ações tendem a homogenizar e privilegiar certas necessidades e valores que evidenciam e refletem relações de poder presentes no cenário internacional, mas, independentemente das opções adotadas na área das teorias sociais e políticas, um entendimento sólido que possibilite a construção de um pensamento crítico relevante passa, indispensavelmente, por esse conhecimento institucional do cenário internacional. Para que possamos contextualizar, compreender e, posteriormente criticar os diversos discursos, desafios e possibilidades de desenvolvimento de cada área de atuação do internacionalista, o conhecimento sobre as instituições internacionais ligadas a tais áreas faz-se indispensável. É apenas dessa forma que o profissional de RI poderá atuar com qualidade em temas complexos que variam da proliferação nuclear ao empoderamento de gênero, sendo capaz de construir cenários e analisar o mundo a partir de bases teóricas muito distintas. Genebra também foi escolhida pela qualidade de suas instituições acadêmicas e pelo que representa em termos de opções de futura empregabilidade e possibilidades de estágios internacionais. Organizações Internacionais, ONGs, empresas multinacionais, a diplomacia e a área acadêmica (pesquisa e docência na área de RI) representam os nichos mais desejados para o exercício da profissão de internacionalista e estágios em instituições como ONU, OMC, ou CICV são altamente competitivos. Aí também a relevância de podermos aproximar os alunos da Unisinos desta rede de instituições em Genebra. Ao mesmo tempo, o contato acadêmico com alunos internacionais e professores em Genebra, seja na Geneva School of Diplomacy, na Geneva University (Geneva Academy of International Humanitarian Law and Human Rights) ou, desde o último ano, com a cooperação internacional existente com o Mestrado em Direitos Humanos e Multiculturalismo da University College de Southeast Norway, a experiência vem se revelando uma excelente oportunidade para a formação e expansão do networking internacional tanto do Curso como dos alunos, inclusive para o futuro ingresso de estudantes da Unisinos em cursos de mestrado e doutorado na Europa. A atuação direta dos coordenadores e

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professores do Curso que participam do intercâmbio e organizam todo o programa desde 2012 (professores Alvaro Augusto Paes Leme e Gabriela Mezzanotti) vem abrindo muitas portas para a internacionalização do Curso da Unisinos. Para finalizar, para que eu pudesse contar as histórias vivenciadas por diferentes grupos de estudantes (turmas Nelson Mandela, Sergio Vieira de Mello, Vinícius de Moraes, Frida Kahlo e Malala Yousafzai) eu precisaria ter muito mais espaço para poder escrever aqui um verdadeiro tratado, mas, infelizmente, me restam apenas alguns caracteres neste curto texto. O que posso contar é que muito embora em cada grupo as risadas, comportamentos, personalidades e interesses em uma ou em outra área de atuação fossem sempre diferentes, algo permanece sempre igual: o olhar inquieto, atento e curioso de cada aluno em sua primeira reunião na ONU. O brilho do olhar de uma aluna prounista não me foge a memoria: sua feição trazia um misto de orgulho, admiração e superação. Esse mesmo olhar encontro sempre a cada ano, mas em pessoas diferentes. Também estão sempre presentes os sentimentos de amizade, respeito e gratidão pela experiência vivida. Que oportunidade, que injeção de entusiasmo para a carreira de internacionalista, que motivação para ser melhor, para liderar, para um dia, talvez, poder trabalhar nessas instituições e, oxalá, ajudar a transformar os rumos do mundo.

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RELATO

O PROFISSIONAL QUE ABRANGE A VISÃO DE MUNDO Sofia Cortez*

E

u sempre gosto de dizer o porquê de eu escolher cursar Relações Internacionais na Unisinos. Na época que pesquisei as universidades (privadas), a grade curricular completa e abrangente me chamou muito a atenção. A estruturação do nosso curso permite ao aluno fazer a graduação que faça sentido para ele/ela, o que eu digo com isso é que o professor que vai lecionar economia não vai explicar um só ponto de vista, mas vários. Dentro da minha sala de aula havia pessoas que se interessavam pela área privada e outras pela área pública, por exemplo. Assim, os debates sempre foram muito saudáveis e enriquecedores, pelo fato de cada um seguir a linha de raciocínio de sua preferência. A minha área de interesse, desde o princípio, foi a de cultura e de direitos humanos. Consegui direcionar a minha graduação, desde a produção do primeiro artigo científico (no segundo semestre do curso), em cima de temas que mais chamavam a minha atenção. Agora, já formada, vejo que um profissional de Relações Internacionais da Unisinos (especificamente) é alguém que está muito familiarizado com inúmeros pontos divergentes e que ainda assim sabe explanar sua opinião e respeitar a do outro ( o que está bem difícil na nossa sociedade atualmente). Ouso ainda, dizer que o profissional de Relações Internacionais, em seu ambiente de trabalho, consegue abranger a visão de mundo de seus colegas. No meu caso, por ter um interesse bem especifico, que é o trabalho com refugiados, encontrei dificuldade em Porto Alegre, por só existirem duas ou três opções de local de trabalho. No entanto, no meu ponto de vista essa dificuldade não torna o trabalho inatingível. O mais importante de tudo é tra-

çar planos e estratégias de como alcançar os nossos objetivos. Após formado/a, a longa espera por uma resposta (de um currículo enviado) é massacrante. Por isso, enquanto esperamos devemos nos atualizar, ler bastante, fazer coisas relacionadas a nossa área (foi o que eu fiz e acho que me ajudou bastante nessa incansável espera). Sobre as facilidades de ser um profissional de Relações Internacionais, eu acho que o que mais chama antenção das empresas é a nossa facilidade de pensar em inúmeras consequências para certa ação (talvez por nossas boas aulas com o Rei Gabriel de Política Externa ou Geopolítica). Conseguimos nos adaptar a um local e analisar formas de melhorá-lo. Muito positivo! Minha experiência depois de formada foi traçar um plano para eu seguir meus objetivos. Enviei currículos para todos os lugares (do mundo) em que eu gostaria de atuar. Muitos tinham como requisito um ou dois anos de experiência, portanto, enquanto esperava por retornos eu resolvi atuar localmente. Pesquisei, então, lugares voltados ao trabalho com refugiados e migrantes, e fui pessoalmente em busca de oportunidades. O primeiro lugar que me acolheu, como voluntária, foi a Igreja da Pompéia, onde eu atuei por um ano e tive uma das mais ricas experiências da minha vida; posteriormente, surgiu uma vaga dentro do Programa Brasileiro de Reassentamento Solidário ASAV/ACNUR, onde atuei como analista social. Não poderia estar mais realizada com o início da minha carreira, dentro da área na qual atuo. Eu acredito que o trabalho com migrantes e refugiados não é assistencialista, eles não são pessoas pelas quais devemos sentir pena (como muitos acreditam), é justamente ao contrário. Em

(*) Graduada em Relações Internacionais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

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ambas as instituições procurei (e consegui) exercer o meu trabalho de forma a mostrar o caminho para que eles conseguissem seguir suas vidas de forma independente. É claro que enfrentamos muitos empecilhos no caminho, mas é justamente por este motivo que existe uma equipe que auxilia a integração dos refugiados na nossa sociedade. Pela minha experiência, posso dizer que ser uma trabalhadora humanitária é um constante aprendizado. O ouvir se torna a característica mais importante e o exercício diário é não impor a nossa realidade para o outro. Quando se trata de diferenças culturais nada é óbvio, nem mesmo atravessar uma rua. São por esses e outros tantos motivos que eu amo o que eu faço!

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EXPEDIENTE

Coordenação do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Stumpf Paes Leme Profª. Drª. Nadia Barbacovi Menezes Colegiado docente de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Stumpf Paes Leme Prof. Dr. Anselmo Otavio Prof. Dr. Bruno Lima Rocha Profª. Ms. Carla Andreia Ronconi Holand Mello Prof. Dr. Gabriel Pessin Adam Prof. Dr. Marcos Aurelio Reis Profª. Drª. Nadia Barbacovi Menezes Editoras Assistentes, graduandas do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Acadêmica Laura Gomes Garcia Acadêmica Maíra Kristoschek Garcia Acadêmica Thaís Honório Horn Arte da capa: Vitória Kramer de Oliveira Projeto gráfico e diagramação: Agência Experimental de Comunicação da Unisinos (Agexcom) Projeto gráfico: Mariana Matté Diagramação: Marcelo Garcia Logotipo: Daniel Bueno Breitenbach

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Av. Dr. Nilo Peçanha, 1600 - Boa Vista. Porto Alegre (RS). Cep: 91330 002. Telefone: (51) 3591.1122. Site: www.unisinos.br. E-mail: unisinos@unisinos.br Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino Vice-reitor: Pedro Gilberto Gomes Pró-reitor acadêmico e de relações internacionais: Alsones Balestrin Pró-reitor de administração: Luiz Felipe Jostmeier Vallandro Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba Gerentes dos cursos de Graduação: Paula Campagnolo e Tiago Lopes Coordenadores do curso de Relações Internacionais: Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme e Nadia B. Menezes

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