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HOOFMARK

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OMITIR

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Para onde quer que olhe, este disco desperta diferentes sensações em função da sensibilidade e referências de cada pessoa.

Tenho isso como uma coisa positiva, porque suporta a noção de universalidade da música.

Olá, Nuno! Adorei este álbum pela “misturada” (no sentido positivo do termo). Nuno Monteiro Ramos – Obrigado! Agradeço muito o teu feedback.

O que me dizes se te contar que, logo à primeira faixa, fiquei com a sensação de que estava a ouvir uma versão Black Metal de uma canção de The Legendary Tiger Man? Adorei o fundo de blues dessa faixa. Para onde quer que olhe, este disco desperta diferentes sensações em função da sensibilidade e referências de cada pessoa. Tenho isso como uma coisa positiva, porque suporta a noção de universalidade da música.

Donde vem a experiência musical que se sente neste teu álbum? O «Evil Blues» foi criado em paralelo com um livro que estava a escrever, mas para o qual fiquei sem saída. Em todo o caso, ambos se foram influenciando mutuamente e dessa troca de noções e emoções foi emergindo o disco tal como ele depois se manifestou. Tenho a impressão de que foi mero acaso a música ter triunfado sobre a literatura. Poderia tão facilmente ter acontecido o contrário! Quis a minha sensibilidade que aquelas paisagens de sangue derramado e lamentos fossem sons em vez de palavras, embora existam ali ecos das histórias que escrevi, preservados sobretudo no booklet do CD. A experiência musical do «Evil Blues» tem a sua raiz nessa amálgama de ideias, sem nunca, ainda assim, resvalar para o domínio do álbum conceptual. A cola das canções é os seus temas comuns de ser-humano e natureza, insegurança pelo futuro incerto e o estudo das pequenas maldades no mundo. Se existe um fio condutor, eu procurei assegurar-me de que ele é ambíguo o suficiente para que cada ouvinte tenha a sua própria interpretação. E a avaliar pelas impressões que surgiram até aqui, penso que fui bem-sucedido nisso.

É um tanto difícil perguntar-te o que te influencia, porque se ouve de tudo neste «Evil Blues» (embora os blues predominem, é claro). Podes comentar? Ouvir-se de tudo penso que é uma feliz consequência de eu próprio ouvir de tudo, e ter poucos filtros no momento de escrever música. Há bandas e músicos que distribuem a sua produção artística por vários projetos de maneira a não misturar estilos ou identidades. Eu tenho uma abordagem distinta com HOOFMARK. Não sou Metal, Rock ou Blues hoje e amanhã deixo de ser. HOOFMARK é HOOFMARK e este projeto irá sempre buscar o que é seu, soe como soar. Essa impermanência valida-me. Sobre o «Evil Blues», tanto tenho influências óbvias como referências mais difíceis de definir. O Black Metal dos anos 80 é para mim uma fonte inesgotável de inspiração pelo seu caráter rompente e desprendido e há música desse tempo que retém uma qualidade perturbante e desorientadora, bem diferente dos sons extremos posteriores entretanto vulgarizados. Destacaria Poison da Alemanha (se nunca ouviram a demo «Sons of Evil», libertem 40 minutos para a ouvir e o resto do dia para pensar como aquilo foi possível em 1984), Parabellum e Hellhammer. Estaria a ser desleal, ainda assim, se também não nomeasse bandas como Pagan Altar, Metallica, Paul Chain, Bathory, Darkthrone e, para mencionar artistas mais recentes,

“Se existe um fio condutor, eu procurei assegurar-me de que ele é ambíguo o suficiente para que cada ouvinte tenha a sua própria interpretação.

Vetter e Black Magic. Depois vem o Blues e dele não consigo escapar. O Metal é-me privado, mas o Blues é mais que isso: é uma coisa íntima para mim e sobre a qual me revolvo, sobretudo nos dias menos bons. Não é todo o Blues, tal como não é todo o Metal, embora não possa deixar de salientar o Lightnin’ Hopkins (o mais próximo que terei de um “guitar hero”), Mance Lipscomb e depois também artistas com um registo mais adulterado como Townes Van Zandt, Steve Young, Mickey Newbury, Bruce Springsteen («Nebraska» é um álbum lindo) ou David Allan Coe («Requiem for a Harlequin» é uma referência máxima para HOOFMARK). Finalmente, HOOFMARK tem queda para alguns sistemas musicais do passado longínquo e, enfim, achados arqueológicos. O «Evil Blues» tem alguns vestígios desse interesse, mas é algo que gostaria de explorar em maior profundidade mais tarde. Dito isto, a minha intenção com o «Evil Blues» foi estar o mais solto possível da referenciação direta. Eu tenho influências, como toda a gente tem, mas não são elas que caracterizam o disco.

Queres fazer-nos uma visita guiada ao teu álbum (tendo em conta a música e as letras)? A minha tentativa com este disco foi a de encontrar caminhos que permitissem conciliar coisas à partida incompatíveis. O «Evil Blues» é, por um lado, o resultado de um choque de significados com visões de mundo diferentes e, por outro, um trilhar de percursos já traçados. A minha expectativa era a de, no correr desta experiência, produzir um trabalho que, pese embora as suas diferentes características, não soasse “esquisito” ou se tratasse de uma mistura rígida e que, por isso, fosse fácil de destrinçar. Os elementos fundem-se aqui, espero eu, de um jeito harmonioso de tal maneira que pensar no género em si pode ser uma tarefa supérflua (isto é, “sobrecomplicada”). Gosto de pensar que a mesma abordagem foi tida a respeito das letras do álbum. Foram privilegiadas as técnicas narrativas e de contador de histórias. A “palavra falada”. Os temas são de sangue e trevas, mas também de cores pretas fecundantes e grandes pedras vivas. Há aqui transcendentalismo (pela apreciação da natureza que também somos nós), fatalismo, impulsividade e introspeção. Umas coisas relacionam-se com a “mobília interior” do El Vaquero Ungulado e outras têm uma escala mais macro.

Por que deste ao teu álbum o título de «Evil Blues»? Durante muito tempo, o disco era para se chamar «Best Kept Old» em referência a uma das canções do álbum. Contudo, um dia, apercebi-me de que esse título iria provavelmente passar a ideia errada. Tematicamente, embora tema pelo futuro, tenho a expectativa que ele seja melhor que o presente. E, do ponto de vista musical, este álbum não é exatamente um exercício de revivalismo retro, pelo menos não de uma forma saudosista. Eu tenho as referências que tenho, mas isso não significa que não ouça música do presente com o mesmo entusiasmo e êxtase. «Evil Blues» foi um momento *Tcharan* que tive enquanto ouvia a canção do Mance Lipscomb com o mesmo nome. É um título que interage comigo, transmite o essencial das canções do disco e presta tributo a um músico especial – tudo-em-um.

Que critérios usaste para selecionar os músicos que gravaram o álbum contigo? As coisas proporcionaram-se com naturalidade, não posso dizer que tenham existido critérios muito estritos. É óbvio que uma boa comunicação é fundamental e, sem ela – como, de resto, em qualquer relação – tudo é muito mais difícil. O talento é outro fator importante e, felizmente, rodeei-me de pessoas com uma combinação desejável

de elevada perícia, bom gosto e mente aberta. Tenho de agradecer ao João (de Summon, Sepulcros, KURØCCVLT e muitos outros projetos) pelo apoio inestimável. Foi ele que me apresentou ao André (bateria) e ao Ricardo (baixo, produção e masterização) e, portanto, que deu ânimo a este projeto na fase em que ele mais precisou de sair das minhas mãos e começar a apresentar-se ao mundo. O André injetou no «Evil Blues» uma muito necessária energia quasi-maximal e o Ricardo, as linhas de graves de que as músicas precisavam sem que eu algum dia me tivesse apercebido disso (além de uma persistência louvável para encontrar o som mais indicado para o álbum). Antes disso, já tinha tentado com outras pessoas (inclusive fora da esfera do Metal), mas por uma ou outra razão isso não foi para a frente. Não ajuda eu estar um bocadinho à margem da cena Metal em Portugal. Conheço poucos dos seus intervenientes pessoalmente, embora com HOOFMARK tenha vindo a estabelecer mais contactos. Isso deixa-me feliz, porque cada vez mais valorizo e procuro promover o sentido de comunidade.

Por que apareces na capa do álbum e nas fotos promocionais com uma máscara semelhante às dos caretos transmontanos? Essa opção tem algo a ver com opções estéticas que condicionem a tua música? A máscara serve uma função dupla: atua como a manifestação de uma figura que durante um tempo me perseguiu em sonhos (uma espécie de musa destes “evil blues”) e permite ao disco conservar uma identidade portuguesa da qual não queria prescindir – identidade essa que pretendi, à escala de HOOFMARK, partilhar com o resto do mundo, sem barreiras. As semelhanças com as máscaras dos caretos atribuoas ao esforço absolutamente exemplar do Carlos Ferreira, o artesão transmontano a quem devo os créditos deste trabalho. Se esta opção condicionou ou não a música, é difícil dizer. Mas a musa foi uma fonte de inspiração ao seu jeito, apenas não de uma maneira romântica.

Quem arranjaste para te fazer a capa do álbum e as fotos promocionais? Está tudo ótimo. O design da capa, do CD e de todos os materiais gráficos promocionais ficaram à responsabilidade da designer e ilustradora Carina Reis, cujo contributo é das minha partes favoritas de todo o projeto. As fotos são da exclusiva autoria do fotógrafo Luís Barros, que acrescentou ao «Evil Blues» a compostura, ora tranquila, ora selvagem, sem a qual este trabalho ficaria manifestamente muito mais pobre.

Fazes concertos ou a tua banda é só de estúdio? Numa realidade paralela em que a pandemia não existe, HOOFMARK talvez estivesse hoje a apresentar o «Evil Blues» em palco. Há esse desejo, mas o momento não é o melhor.

Como é trabalhar com a Miasma of Barbarity? O contacto com a Miasma traduziuse para mim como um sinal de aprovação do «Evil Blues» e fico muito grato ao Pedro Almeida pelo salto de fé. HOOFMARK não existe num vazio e estaria a mentir se dissesse que pouco me importa o que se diz e escreve sobre o disco. Importa-me. Eu tenho a perfeita noção de que este não é um disco fácil – de ouvir ou “vender”. Ele é como eu quis que fosse, o que não significa que não tenha em consideração os seus críticos. Sou fiel às minhas convicções, mas seria muito autocentrado achar que tenho as respostas todas. Levo HOOFMARK (e a minha vida) suficientemente a sério para fazer questão de me lembrar que o outro importa. Depois desde desvio, retomo a ideia inicial de que valorizo muito esta oportunidade com a Miasma, bem como o esforço que a editora tem feito para promover o «Evil Blues». Espero que o disco também possa contribuir para o sucesso da editora, porque ela está entregue a alguém que acredita muito na sua missão e sabe o que faz.

Já tens material para um terceiro álbum? O «Evil Blues» é o primeiro álbum de HOOFMARK. A maquete que lancei em cassete em 2016 foi relançada no ano seguinte em CD pela Ultraje, mas isso não fez daquele trabalho um álbum. Na verdade, gosto de lhe chamar uma compilação, mas talvez deva evitar complicar ainda mais o assunto. Retomando a tua pergunta, a resposta é não. Tenho ideias (pouco claras) sobre para onde ir e o que fazer de seguida, mas nesta fase não passam disso mesmo: ideias. Conheço-me um bocadinho e também sei que prefiro fazer as coisas devagar, embora gostasse que o próximo lançamento fosse mais curto e, de certa forma, urgente. Vamos ver, a única certeza que tenho é que HOOFMARK não é para acabar.

Para terminar – e antes que eu morra de curiosidade – por que deste o nome de Hoofmark a este teu projeto musical? Debati-me muito para encontrar um nome que satisfizesse os meus requisitos. Rabisquei de tudo na esperança que me ocorresse o nome ideal. Sabia que queria um nome de uma só palavra e sabia que tinha de ser algo que evocasse o caráter térreo que queria imprimir à música. Quando HOOFMARK surgiu, não fiquei imediatamente convencido, mas a palavra conquistou-me e, olhando para trás, não há vocábulo tão bom como este para descrever o aspeto e comportamentos do projeto. É HOOFMARK, porque pertence à terra, remonta às marcas que deixamos no mundo, mas também porque quer desfrutar de uma relação com o que não é humano na natureza.

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