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GARAGE POWER SOUNDSCAPISM INC

GARAGE POWER

Cinematografia sonora

Este é daquele tipo de projectos independentes que nos dá um gozo enorme ajudar a promover e divulgar – Soundscapism Inc. é, pura e simplesmente, uma pérola sonora.

Entrevistas: Eduardo Ramalhadeiro

Olá, antes de mais esperamos que esteja tudo bem contigo. Obviamente, as primeiras perguntas só poderiam ser: Quem é o músico Bruno A. e quem são os Soundscapism Inc.? Bruno A. - Olá Eduardo/VERSUS! Tudo bem, tendo em conta as condicionantes atuais - aqui piores que aí. Ora o Bruno A. é um músico e produtor português, a viver em Berlim há cerca de 9 anos. Comecei aí em PT em meados de ‘99 com Arcane Wisdom, mais tarde formei Vertigo Steps (a banda pela qual serei mais conhecido) e desde 2015 estou com Soundscapism Inc. Começaram todos como projetos a solo que contaram com convidados - e os vocalistas dos 2 primeiros tornaram-se eventualmente membros efetivos. Mas nunca se materializaram ao vivo. SInc. é um projeto a solo puro, onde faço basicamente tudo, mas tenho tido oportunidade de contar com talentosos convidados em todos os álbuns - e o novo não podia ser exceção (Manuel Costa e Tobias Umbach).

Como é que defines a tua música em geral e se quiseres, «Afterglow of Ashes» em particular? Definir o meu som não é tarefa fácil, até por ser tão versátil. Isso prende-se com os meus gostos, que apesar de seletivos, se alargam por um espectro musical bastante vasto, desde simples música ambiental até metal extremo, passando por post-rock, prog, triphop ou eletrónica. Basicamente gosto de música com uma salutar dose de ambiência, de preferência com alguma escuridão, risco, melancolia e/ou nostalgia. Seja com guitarras distorcidas e baterias pesadas ou apenas voz e mellotron - o veículo não importa. ”Afterglow of Ashes” reflete um pouco o que andei a fazer no último ano; um álbum cinemático, melódico e vivo, mais intenso e rítmico que os anteriores. Criado durante o confinamento, maioritariamente isolado quer em casa, quer no estúdio.

Devo dizer que és um músico do caraças. Apesar de existirem muitos componentes e camadas electrónicas, tu ainda tocas guitarra – eléctrica e acústica - piano, ukulele, bateria, baixo e cantas. - De onde é que vem este teu background musical? Antes de mais, obrigado! Eu vejo-me, mais do que mero instrumentista, como compositor. Os arranjos e produção são para mim tão importantes como os primeiros acordes acústicos onde a música amiúde aparece. Assim sendo, uso tudo o que o tema pede - e o que não consigo tocar programo ou convido músicos específicos que o fazem melhor que eu. No novo álbum em particular, tratei sozinho da grande maioria, também devido ao confinamento e à inspiração diária que de mim fluía (e essa não sei explicar!). O background musical virá, como mencionei acima, dos meus gostos tão variados; seria incapaz de compor um álbum chato e monótono, com 10 temas idênticos. Até nos tempos em que fazia black metal, o som estava carregado de avantgarde e instrumentação bizarra, folk, loops e metal tradicional. Existe sempre o fio condutor da minha composição, melodias e arranjos, mas raramente coloco travões criativos. E é por isso que o novo álbum tem momentos pesados ao lado de tantos outros mais leves ou cinemáticos. E além do postrock sempre presente, encontras acústicas, beats eletrónicos e trabalho intricado de guitarra, teclados e manipulação áudio. Coerência musical, mas sempre alicerçada em versatilidade de estilos e sons. É possível desvendar no álbum toques de post-rock, synthpop/anos 80, rock/metal alternativo, prog, trip-hop, dream pop, ambient e até o ocasional blues... - Porque é que sentiste a necessidade de tomares as rédeas

Éabsolutamente pernicioso e contraproducente o que os serviços de streaming (não) pagam aos músicos. Bruno A.

quase completas da música e não, por exemplo, tentares formar uma banda – se é que já tentaste? Questão pertinente! Por um lado gosto de colaborar com outros músicos e desde que tenho o meu estúdio que aprecio imenso as jams que fazemos regularmente, quer apenas com o meu colega, quer com convidados e amigos que nos visitam. Parece que nasci para isso, agarro (normalmente) numa das guitarras, rodo os botões dos vários pedais para chegar a um som que me agrade... e saí sempre música, melodias, riffs, grooves, atmosferas psicadélicas e sons enormes, dinâmicas acentuadas, etc. A maioria das vezes as ideias ficam por ali mesmo, mas já houve esboços que acabei por usar (i.e. “Revolutions Per Minute”). Mas por outro lado, justamente por sempre ter tido essa queda para a composição, o natural foi criar os meus projetos de raiz. Foi assim que aconteceu quando comecei a tocar e depois acabei por nunca me juntar seriamente a uma banda no sentido tradicional do termo. E a própria produção é tão detalhada e rica em arranjos que seria impossível ter de delegar em terceiros. Quanto a formar uma banda… digamos que é uma cefaleia que não desejo acrescentar à minha vida haha! Em Portugal tentei primeiro com Arcane Wisdom; com Vertigo Steps era difícil devido ao vocalista viver em Helsínquia (ou o Daniel Cardoso ser mais um membro de sessão). Com SInc., também não o pus completamente de parte, mas seria bastante difícil tentar recriar tudo o que fiz a nível de arranjos, detalhes e ambiências de guitarra ou teclados/programacão num contexto ao vivo… mas não fecho essa porta completamente, um dia que volte a haver concertos. Aliás já tínhamos essa ideia com o projeto Architects of Rain (com o meu velho amigo Alex, de Scar For Life, com o qual até dei uns concertos em meados dos 2000), mas a pandemia acabou por atrapalhar os planos.

Como disse, apesar de existirem muitos elementos electrónicos, a música no seu todo soa muito orgânica. Quais foram as tuas principais dificuldades, sendo só tu, a compor, gravar e produzir «Afterglow of Ashes» Diria que o prazer supera largamente as dificuldades. Contei com baixista e pianista convidados, e tive algum apoio na fase final da mistura e masterização do meu colega de estúdio (temos por hábito produzir em duo). Mas de facto tudo o resto fiz eu, toquei e compus para todos os instrumentos, tratei de arranjos e mistura. O processo todo durou largos meses, mas a inspiração veio em catadupa, por isso os temas foram crescendo de forma incrível, ficaram cada vez mais rítmicos e menos minimalistas ou introspectivos. Senti que tinha aqui algo de muito especial e que tinha de lutar para o produto final soar tão bem como o que ouvia na minha cabeça. E tens razão, o som de SInc. é e será sempre muito orgânico, independentemente da componente eletrónica. Aliás, muita da eletrónica que aprecio é empregada de forma emocional, não necessariamente fria e estéril. Um tema como “Planetary Dirt”, no debut de SInc. Moderat, Massive Attack ou Boards of Canada são alguns excelentes exemplos disso. Além disso, é um álbum quente e intimista, e com respeito pelos instrumentos, sem querer tudo perfeito e dando o balancear devido às performances, certas linhas quase atrás do tempo em vez de ter tudo na “grid” e com isso perder flow e emoção. São pormaiores que para mim fazem todo o sentido.

Tu tiveste algum apoio (monetário) para gravares este álbum ou saiu tudo do teu bolso? Tudo da minha saca de moedas,

como de costume! Mas tenho pelo menos a vantagem de ter o meu próprio estúdio - playground para experimentação! -porque se fosse estar a “perder” aquelas horas todas num estúdio alugado, estaria em falência declarada agora, chuteiras penduradas e barba em estado terminal.

Em Maio sairá uma versão física exclusiva pela Ethereal Sound Works – uma editora independente portuguesa. - Como é que surgiu esta oportunidade de veres o teu trabalho editado pela ESW? A colaboração com a ESW já dura há bastante tempo, somos mesmo das bandas de maior “fidelidade”, tal como mencionaram recentemente numa entrevista. Começou quando editaram o terceiro de Vertigo Steps e depois uma edição especial com os 3 álbuns e ainda uma coletânea. Quando criei SInc, o passo natural foi manter-me na ESW. E mesmo nesta altura complexa, quando falei com o Gonçalo sobre o novo álbum, ele priorizou-o logo, o que para mim acabou por ser importante. Pese atrasos na edição especial, há-de estar tudo disponível dentro em breve.

«Afterglow of Ashes» é uma pérola sonora, parece-me ser uma lógica evolução dos trabalhos anteriores. Concordas? O que é que fizeste – se é que fizeste – de diferente dos álbuns anteriores para este? É sem dúvida um passo em frente. Um álbum importante na minha carreira, numa altura-chave da vida e que espelha um pouco do que tenho andado a fazer ao longo de mais de 2 décadas de música, do caminho que sigo como músico e do vocabulário musical que penso ser meu apanágio, como que a minha assinatura. Os temas são mais aventureiros e intrincados em estruturas e tempos. É uma viagem de 1hr de música variada, cinemática, emocional mas também bastante acessível, rítmica e excitante, com surpresas ao virar da esquina. Estou mesmo muito contente com o resultado e o feedback que tenho tido não podia ser melhor. É o álbum mais ambicioso e com melhor som de SInc. O “Desolate Angels” já tinha sido um álbum semi-conceptual com ideias muito boas, mas que apenas pecou pela produção caseira, que tendo resultado em temas intimistas, roubou um pouco a outros mais épicos.

O teu artwork é muito interessante e, pelo que vi, já há alguns anos que é feito pelo João Filipe. De que forma é que os desenhos e imagens se relacionam com a tua música? Obrigado, concordo a 100%! O João é um amigo próximo de há longos anos e um talento ímpar e de visão bastante original. Daí que me seja natural colaborar com ele, já dos tempos de Vertigo Steps e até de outros projetos mais ambientais que tive na altura. E quer a estética do artwork, quer os títulos dos temas, são tudo coisas importantes e que não negligencio, sobretudo quando boa parte do som é instrumental. Desta feita, sabendo das suas capacidades como ilustrador e querendo marcar a diferença deste álbum tão especial desde logo no artwork, desenvolvemos esta ideia para a capa, uma gravura exclusiva e original. Ligado ao título e conceito, como que um renascimento no meio do caos e apocalipse que nos rodeiam, encontrar a criatividade e “luz” após todas as trevas e opressão. O resplendor das cinzas, a redenção e catarse que a destruição também carrega consigo. E uma certa inocência que a música ainda representa. São aliás ideias presentes também no vídeo de avanço,”Neon Smile”.

Fui “cuscar” o álbum anterior e tens lá duas versões: “Atmosphere” dos Joy Division e “Diamonds” da Rihanna. - Se os Joy Division acho natural, já a Rihanna foi quase… WTF?! (risos). Porque escolheste estas duas versões e quais foram os critérios que tiveste para lhes dar esta nova sonoridade? Sabes que embora nunca tenha sido aquele guitarrista que toca repertórios completos de outras bandas (quando agarro no instrumento é primariamente para criar algo novo ou simplesmente improvisar), sempre achei curioso fazer interpretações pessoais de certos temas. Como “Nothing At All” ou “Sweet Sweet Rain”. “Atmosphere” é um tema do outro mundo, com uma letra perfeita, e com o qual tenho uma ligação muito especial; foi como disseste quase natural. Já a versão de “Diamonds” tem uma estória curiosa... Sumarizando, não sou fã de Rihanna nem do seu estilo musical (embora o tema seja da Sia, essa mais interessante), mas aconteceu a coincidência de por duas vezes ter entrado aqui numa noite de metal num clube otherwise célebre pelas noites fetichistas, e estarem nesse preciso momento a passar um cover metalcore do “Diamonds”. Na altura nem conhecia o tema original, mas acabei por investigar. E num serão berlinense, meses após, passei por uma montra com diamantes falsos à venda por uma pechincha e aí começou a germinar a ideia de que se calhar estava escrito nas estrelas fazer a tal versão! E convidei o Flávio Silva (Oblique Rain, Left Sun), já habitué de SInc.,. no que acabou por ser um belo dueto vocal com a sua filha, grande fã do tema. Curiosamente, vários ouvintes disseram-me apreciá-la bem mais do que o original :)

Os arranjos e produção são para mim tão importantes como os primeiros acordes acústicos onde a música amiúde aparece.

Bruno A.

Não sei se tomaste conhecimento sobre o que disse Marko Hietala dos Nightwish… bem, exNightwish: “[…] Temos empresas de streaming que demandam trabalho integral e inspiração dos artistas, enquanto dividem injustamente seus lucros. Somos a república dos bananas da indústria musical”. Comungas da opinião dele? Já sentiste esta injustiça na pele? Claro que sim! É absolutamente pernicioso e contraproducente o que os serviços de streaming (não) pagam aos músicos. Mesmo o aumento de lucro dos streamings devido à pandemia - que poderia ajudar os artistas a atravessar esta crise - acabou nos bolsos errados (basicamente reinvestidos em artistas de mainstream: os que menos precisam). Entrámos numa era em que a música é um produto adquirido, não se valorizam os criadores, e muita gente assume que não tem de pagar para obter mp3. Tudo descartável e de consumo rápido. E também numa época - sobretudo a nível da geração Z - com um severo défice de atenção e em que muitos consideram o álbum um formato defunto e só se pensa em termos de singles e playlists. Esse formato que Beatles e Stones vieram institucionalizar nos 60s, substituindo os singles... e que meio século depois parece em vias de extinção. Não é assim que gosto de vivenciar a música. Absorver e experienciar um álbum requer tempo, dedicação, envolvimento, e não uma recompensa instantânea - e instantaneamente esquecida. Recentemente, um cliente do estúdio comentava que se não houver um hook imediato nos 15-20 segundos iniciais do tema, o ouvinte moderno (vítima involuntária do ADHD omnipresente no atual zeitgeist) dessintoniza, perde interesse… E, claro, temas cada vez mais curtos e software a optimizar automaticamente para os logaritmos. Ora muito sinceramente - e longe de querer fazer algum rant ou velhodorestelismo - não é nesse tipo de ouvinte que estou interessado. Mas é isso que a indústria promove, lançar constantemente “conteúdo” (esse horrível conceito), quantidade sobre qualidade. Acontece que não faço música para enriquecer, vazia e sem alma; apenas continuo a criar porque sinto que tenho algo de novo a trazer com o qual os ouvintes se podem identificar e neles despertar reações emocionais intensas e profundas.

Para terminar, o que podemos esperar dos Soundscapism Inc. num futuro próximo? Vou certamente continuar a criar e produzir, já tive algumas ideias novas interessantes e tenho sempre pedais e gear novos a experimentar… Mas de momento estou satisfeito por ter o álbum pronto e não me preocupo para já em começar a gravar o próximo. Virá com o tempo. Até lá, espero que este chegue ao maior número possível de pessoas, tal como o vídeo. Obrigado e um abraço!

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