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ERNESTO MARTINS POSTAS DE PESCADA

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PALETES DE METAL

PALETES DE METAL

Postas de pescada

“Postas de Pescada: devaneios de dois energúmenos sobre personalidades da

música” será um espaço partilhado, entre dois “jornalistas”, onde se falará sobre músicos, bandas, acontecimentos e outras coisas que tais... Como devem ter reparado, o “outro” ainda não “mandou as postas”. Para a próxima edição não há a Parte 3 e depois, talvez o “outro” contribua...

Heavy Duty - Days and nights in Judas Priest

K. K. Downing with Mark Eglinton

(Constable, 2018)

Por: Ivo Broncas | Eduardo Ramalhadeiro

Esta semana os dois energúmenos que costumam escrever nesta rúbrica não poderam ou não quiseram dar o seu contributo habitual. No entanto, não queremos que vos falte nada e convidámos uma pessoa séria para falar sobre a autobiografia de K.K. Downing, ex-guitarrista dos Judas Priest.

Tem a palavra Ernesto Martins

Fundador da banda que representa, por si só, o epítome do Heavy Metal, e criador de riffs que deviam ser justamente elevados a património da humanidade, K. K. Downing apresenta aqui, não apenas o esperado resumo biográfico da sua carreira de quatro décadas com os Judas Priest, mas também um profundo exercício de catarse pessoal duma vida.

Para Kenneth Downing a história começa num lar dos subúrbios do Black Country interior da Inglaterra industrial da década de 1950, onde viveu uma infância pouco feliz à conta dos comportamentos obsessivos do pai, e uma adolescência não menos atribulada, que, em retrospectiva, viriam a moldar definitivamente a sua personalidade, influenciando todas as suas relações pessoais futuras.

Downing despertou para a música com Jimi Hendrix, adquirindo o seu primeiro instrumento – uma guitarra acústica – com as primeiras libras que economizou a trabalhar, primeiro como ajudante de cozinha e depois como electricista. E foi exactamente o espírito inovador de Hendrix que o inspirou a criar para além do blues e do psicadelismo tão ubíquo nas bandas locais do período 1969-70.

Foi em 1969 que fez a sua primeira audição para entrar nos Jug Blues Band, a banda de Al Atkins que viria, pouco depois, a chamar-se Judas Priest. Mas foi rejeitado. Com os pop Stagecoach obteve os primeiros ganhos financeiros como músico que lhe permitiram comprar a sua primeira Gibson SG (na altura a Flying V ainda era um sonho inacessível). A seguir formou os Freight, já com o baixista Ian Hill. A primeira encarnação dos Judas Priest seria entretanto dissolvida por Al Atkins que se juntou prontamente aos Freight. Logo a seguir os Freight assumiram o nome que fascinou Downing desde o início: Judas Priest (curiosamente inspirado numa canção de Bob Dylan). Foi esta formação seminal que compôs, em 1970, aquele que viria a ser o clássico “Victim of

changes”, assim como “Winter”, “Dreamer deceiver”, “Never satisfied” e “Caviar and meths”, temas que surgiriam nos primeiros dois álbuns da banda, em 1974 e 1976, já gravados com Rob Halford e Glenn Tipton. Passado o momento do primeiro contrato discográfico, de onde resultou «Rocka Rolla», o livro vai avançando a passos largos para os discos seguintes, focando-se nas longas temporadas passadas em estúdio a compor e a gravar (e revelando muitas curiosidades sobre a origem de alguns clássicos), nas várias peripécias típicas do rock’ n’ roll lifestyle, e em diferentes aspectos da vida pessoal de Downing. Uma boa parte da narrativa é pontuada por reflexões sobre o percurso da banda e por apreciações criticas sobre muitas das decisões tomadas na altura. Das relações com outras bandas, ressalta a admiração pelos AC/DC e Motorhead e os choques de ego com os ainda debutantes Iron Maiden.

Reconhecido como um ponto de viragem, «British Steel» marca um período de crescimento meteórico a todos os níveis para os Judas Priest, que culmina no maior sucesso de vendas em «Screaming for Vengeance». A década de 80 é a época de maior realização para Downing, que reclama para si a ideia da clássica indumentária de cabedal que se viria a tornar rapidamente o dress code de toda uma cultura. Várias páginas são dedicadas ao polémico e radio-friendly «Turbo», às guitarras sintetizadas e à abertura a novos fãs, especialmente às do sexo feminino. Da tríade estereotipada “sexo, drogas e rock’ n’ roll “, Downing confessa ter gozado muito do primeiro, mas dispensado sempre a segunda, fazendo ponto de honra em não beber antes dos concertos de forma a assegurar o melhor desempenho possível.

Depois do regresso ao melhor dos Priest com «Painkiller» e ao polémico caso de tribunal com o PMRC, dá-se a saída de Halford, em 1991. Poucos saberão que, mesmo antes de conhecer as intenções de Halford, já Downing pensava sair dos Judas Priest, tendo mesmo chegado a redigir a sua carta de demissão. Mas como Halford se antecipou, Downing acabaria por abortar a demissão já que, pensava ele, a banda se ia dissolver de qualquer modo.

O descontentamento de Downing, que transparece de forma recorrente ao longo de todo o texto, decorre das incompatibilidades com Glenn Tipton, que remontam já a 1976, ao tempo de «Sad Wings of Destiny». Na visão de Downing, Tipton tentava controlar a banda, de forma subtil, tanto do ponto de vista criativo como na gestão dos concertos. Além disso era demasiado exibicionista ao vivo, tentando sempre assumir o protagonismo das guitarras. Em suma, uma rivalidade de bastidores entre os dois guitarristas que chega a raiar a infantilidade. O ânimo de Downing parece renovar-se em 2004 com a reentrada de Halford, por ocasião do Ozzfest. Até porque foi sempre com Halford que Downing sentiu sempre a maior proximidade pessoal. A propósito, refirase que a orientação gay de Halford, tornada pública em 1998, já era conhecida pelos membros da banda desde o início, sem receio que isso fosse afectar a imagem dos Judas Priest, mesmo numa época (anos 70) em que o tema era ainda muito estigmatizado. Mas apesar das gravações de «Angel of Retribution» terem decorrido com aparentemente normalidade as relações entre Downing e o introvertido Tipton (com quem Downing nunca conseguiu alguma proximidade em 37 anos de convivência) voltaram a piorar. Para evitar confrontos Downing acabaria sempre por ceder à vontade de Tipton – por exemplo, na divisão de solos e na escolha do título do álbum, que, segundo Downing, deveria ter sido «Judas Rising» – acabando por acumular mais e mais frustrações. É um erro que Downing reconhece em si próprio e que lamenta, embaraçosamente, no fim de toda a reflexão que é este livro. A saída dos Judas Priest, que aconteceu finalmente em 2011, acabaria por não ser nada amigável e é inevitável não sentir que toda uma saga de quatro décadas termina para Downing num tom de alguma amargura. No último capítulo, num balanço de sentimentos mistos, Downing, (agora com 69 anos ide idade) considera que o sucesso dos Judas Priest podia ter sido ainda maior. Houve decisões erradas, oportunidades perdidas e pessoas erradas envolvidas. Na opinião do guitarrista, a banda não realizou todo o seu potencial, tanto do ponto de vista criativo como financeiro.

Com um texto fluente e de fácil leitura, redigido com a ajuda da pena profissional de Mark Eglinton, conhecido pela co-autoria das biografias de James Hetfield («So Let it be Written») e de Adam “Nergal” Darski («Confessions of a Heretic»), «Heavy Duty» é um relato honesto e sentido de uma vida dedicada à música, e uma visão singular de bastidores dos primeiros 40 anos de carreira de uma das mais icónicas formações do Heavy Metal.

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