2 minute read

O xerife que veio de Argus

Já houve tempo, acredite, em que os programas policiais no rádio chegavam a ser espirituosamente engraçados pelos relatos do primeiro repórter especializado nessa área de cobertura em Rio Preto: J. Ravache. Nascido José Ravache de Camargo, em Piracicaba (SP), proclamava-se natural de uma pequena estrela da constelação de Argus, mas, muito mais do que um ET, parecia mesmo um personagem de John Wayne imune ao calor de 40 graus desta boca de sertão. Ele andava com chapéu de abas largas, terno escuro, colete, camisa branca mostrando os punhos adornados por abotoaduras douradas, gravata borboleta, corrente prateada pendendo do relógio de bolso, botas com o cano longo recoberto pela calça... Ah, é claro, e um reluzente Smith & Wesson recheando um coldre de couro preso a um cinturão no qual se enfileiravam as balas calibre 38. Não era bem um repórter policial; era mais um policial repórter, como o definiu, certa vez, Dinorath do Valle, tal a promiscuidade de suas relações com as fontes. No entanto, em

uma época em que o grosso das notícias policiais tinha a ver com furtos de bicicleta, sumiço de animais e pequenos acidentes de trânsito, era capaz de brindar seus leitores e ouvintes com expressões do tipo: “afanaram a magrela”, “levaram o beiço-mole” e “foi só lata que amassou”. Costumava apartear as notícias que publicava com pequenos comentários que não eram exatamente um primor do politicamente correto: “bandido bom é bandido morto” foi um dos mais recorrentes. Encerrou a vida vivendo de recordações: do tempo em que chegou a Rio Preto para gerenciar o restaurante do Automóvel Clube e era conhecido pela proverbial elegância com que desfilava roupas caríssimas, lembradas pelo detalhe das abotoaduras de ouro maciço; ou, já repórter policial, do grande feito de sua carreira, que foi o esclarecimento de um crime que havia chocado a cidade em agosto de 1963. A polícia ainda procurava pistas sobre o assassinato do radialista Zacarias Fernandes do Vale, e Ravache presenteou seus leitores com uma entrevista em que o autor confessava o crime: um conhecido professor, motivado pelo envolvimento da vítima com uma filha, moçoila. A longa amizade de Ravache com os delegados lhe valeu a permissão para morar de favor em um quartinho dos fundos do 1º DP. Ali escondeu todas as particularidades de sua vida (dizem que tinha uma filha, não se sabe se é verdade) e dali pôde assistir a plácida evolução da teia de violência e brutalidade que, aos poucos, começava a enredar a cidade onde morreu, nos anos 1980, antes de ser obrigado a registrar crimes como os fatos que já se tornaram uma triste rotina e que se sucedem a um ritmo frenético de um assassinato por semana, ou algo parecido. Onde quer que esteja, em Argus, dever preferir o tempo em que a cidade preocupava-se com os furtos das magrelas e dos beiços-moles... Mas ainda deve brilhar como uma estrela. De xerife.

Advertisement

This article is from: