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Lágrimas de Cristo
No começo, eram só os vizinhos. Em pequenos grupos, eles se aproximavam; alguns se ajoelhavam penitentes, todos rezavam. Mais tarde, começou a chegar gente de todo lado, de bairros próximos e cidades distantes, mulheres armadas com sombrinhas coloridas que as ajudavam a desafiar a inclemência do sol quente; homens trôpegos apoiados em suas bengalas; crianças algazarrentas atravessando a rua sem olhar, advertidas pelos berros das mães preocupadas. Nas semanas seguintes, esse estranho séquito já era uma pequena multidão e nela crescia a representatividade dos desvalidos – uma frota de cadeiras de rodas, muletas e bengalas, gente despejando sobre o gramado coisas como réplicas de braços e pernas feitos em cera, porta-retratos e fotografias de gente nova, gente velha, gente de todo grau de esperança. Estávamos no final dos anos 1960 e todas essas pessoas comprimiam-se no pequeno anel viário que une as ruas Alberto Sufredini e Fernão Dias, contornando a pracinha de onde se projeta, imponente, o monumento do Cristo Redentor, que abre
os braços sobre Rio Preto a partir de seu privilegiado ponto de observação na Vila Maceno. Por algum tempo, o milagroso gotejar que caía de um dos braços da imagem reuniu crédulos e céticos ao redor de versões conflitantes: — São lágrimas de Cristo! — Chegaram a precisar os primeiros. — É sangue de Jesus! — Asseguravam outros, enxergando um improvável tom avermelhado nas gotas esbranquiçadas. — Isso é água de chuva que escorre por alguma rachadura! — houve quem quisesse raciocinar puramente sobre a lógica. Autoridades religiosas eram entrevistadas pelas emissoras de rádio e pelos jornais. “Nunca devemos subestimar a crença do povo”, diziam sem maiores comprometimentos. Porém, a romaria foi perdendo força quando a Prefeitura resolveu investigar o fenômeno e concluiu pela tese dos incrédulos: a água não era senão o resultado da prosaica infiltração da chuva por uma rachadura na cabeça no monumento que fluía para um pequeno compartimento em um dos braços, de onde gotejava para o rico imaginário dos fiéis rio-pretenses Dizem – sabe-se lá se é verdade – que os primeiros pingos haviam caído, meses antes, sobre a cabeça do então jovem radialista César Muanis, em uma noite em que ele aproveitava a mansidão da praça deserta para namorar aos pés do Cristo. Um pingo, dois pingos, três pingos depois... e César garantia que havia sido dele a ideia brilhante. No dia seguinte, ao iniciar seu programa pela Rádio Rio Preto PRB-8, revelou aos ouvintes que o Cristo Redentor estava vertendo gotas que poderiam ser lágrimas... E deu no que deu.
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