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Diálogos com José Abdalla Helayël Neto: a ciência solicita mais e mais filosofia e se oferece à educação José Abdalla Helayël Neto e Alexandre Maia do Bomfim

DIÁLOGOS COM JOSÉ ABDALLA HELAYËL NETO: a ciência solicita mais e mais filosofia e se oferece à educação

José Abdalla Helayël Neto Alexandre Maia do Bomfim

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Apresentação

Nosso primeiro ato, agora, será apresentar o que circunscreve ao próprio conteúdo do capítulo, o que contextualiza (neste caso, o entorno é tão importante quanto o seu interior). Vale logo esclarecer que esta é a primeira parte da entrevista que nós fizemos com o professor José Abdalla Helayël Neto em agosto de 2019. Nós, no caso, sou eu, professor Alexandre Maia do Bomfim, uma turma de doutorandos1 e alguns alunos do nosso Grupo de Pesquisa em TrabalhoEducação e Educação Ambiental (GPTEEA)2 . Sem exagero, posso dizer que Helayël Neto é um dos maiores físicos teóricos do país, participou de grupos de pesquisa liderados por professores laureados com o prêmio Nobel de Física, professor titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), coordenador científico do Grupo de Física Teórica José Leite Lopes etc. Não obstante, nos parece que lhe dá mais orgulho trabalhar com

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2 Preferimos não identificar as falas das alunas e dos alunos dessa turma de doutorandos, ora por conta da dificuldade de identificá-los nas audições, ora porque alguns não perguntaram e preferimos dar destaque à turma num todo, essa que é nossa primeira do Doutorado Profissional – Propec, de 2019. Dessa forma, vale citá-los integralmente aqui: Adriana Ramos Pinheiro, Ana Lucia Rodrigues Gama Russo, Andrea Cristina Costa de Freitas, Cristiano de Jesus de Oliveira Barauna, Eduardo dos Santos de Oliveira Braga, Elizabeth Augustinho, Lucas Peres Guimaraes, Luiz Felipe Santoro Dantas, Patrícia Maria Pereira do Nascimento, Priscila Silva de Souza, Sérgio de Souza Henrique Junior, Valéria da Silva Lima, Victor Hugo Paes de Magalhaes dos Santos, Vinicius Munhoz Fraga. O GPTEEA foi representado, além das doutorandas, por Thiago da Silva Oliveira, Juliana Rodrigues de Souza e Priscila da Paixão Silva Veras.

a Educação voltada para as classes populares, especialmente com o projeto de pré-vestibular social. Para se ter uma ideia, Helayël Neto pediu para que não fosse o primeiro autor deste capítulo, algo que para mim não faria sentido, pois o conteúdo é dele. Acabei não acatando sua gentileza, claro, mesmo porque isso poderia me impedir de assumir esta apresentação e desta forma, em que venho lhe render a devida homenagem. Aproveito também para mostrar como foi a construção dessa entrevista com o professor. Aqui vale agradecer a Arthur Rodrigues do Bomfim, quem fez a enorme transcrição dessa entrevista. Aproveito para esclarecer que adaptamos o que apreendemos das falas para que diminuísse o que estava excessivamente coloquial3 . Nossa intenção foi dar uma melhor narrativa e linearidade. Também propusemos uma organização por seções, o que indica edição. Dessa forma, essa é minha contribuição principal quanto coautor. O projeto para esta realização foi bem simples, no lugar de uma das aulas do Doutorado, depois de indicarmos a leitura do livro “A Utilidade do Inútil4”, trouxemos o professor Helayël Neto até uma das salas de nosso Instituto para ser entrevistado, num formato “roda vida” (um grupo faz perguntas a uma única pessoa, enquanto considera a mediação de outra), com perguntas ligadas à Ciência (num sentido lato) e à Educação em Ciências (num sentido stricto).

Introdução

Qual o grande desafio de construir esse trabalho, esse capítulo? O maior desafio foi diminuir a nossa fala excessivamente coloquial no texto escrito. Por outro lado, só tentamos diminuir essa característica ao patamar que facilitasse a comunicação, pois queríamos manter as características de um texto baseado numa conversa. Isso porque só numa conversa poderíamos perguntar diretamente ao professor Helayël: “você pratica Religião?” Somente por meio de uma conversa e não por um artigo, geralmente, monotemático poderíamos enfrentar tantas frentes e considerar uma variedade de aspectos, inclusive ligados à afetividade. Por conta disso, precisei participar efetivamente de muitos trechos no

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4 Vale agradecer a releitura da Professora, Mestre em Letras pela UERJ, Juliana Regoto Rodrigues. ORDINE, N. A Utilidade do Inútil: um manifesto. Trad. Luiz Carlos Bombassaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

texto para tentar melhorar a compreensão e, como já disse acima, fazer a edição que me confere a coautoria. Mas, garanto que é uma coautoria vigiada, pois tudo que suprimi ou adicionei obteve a revisão final do professor Helayël (o que poderá tranquilizar muito o leitor). Há alguns acréscimos diretos, outros por meio de parênteses e outros por colchetes (estes porque poderiam estar vindo com ideias muito tangenciais). De uma maneira ainda que informal, posso dizer que o trabalho que fizemos aqui é de divulgação científica, é de Educação em Ciências, mas com uma fortíssima presença das “Humanidades”, em seu conceito mais ampliado. No sentido de que é necessário considerar o político, o social, o cultural, o psicológico e até o transcendental, porém, no mesmo instante que tentamos não enviesar excessivamente por nenhum desses itens. A intenção aqui é deliberadamente obter o equilíbrio! Infelizmente não deu para mantermos os inúmeros momentos que ríamos ou batíamos palmas, mas vale registrar que seguimos num exercício necessário de garantir o bom-humor e o entusiasmo, itens muito urgentes para enfrentar momentos atuais de tanto obscurantismo. De qualquer forma, tivemos que suprimir as menções aos risos e às palmas, mas vale ao leitor sensivelmente pressupor quais momentos seriam. Como se tornou um trabalho de grande extensão, tivemos que dividi-lo em dois capítulos. Agora vai o primeiro e em breve, teremos o segundo que finalizará esses momentos de reflexão.

Parte 1 A física, a filosofia e até a metafísica diante de professores físicosfilósofos-religiosos-políticos: por que não?

Alexandre Maia do Bomfim (AMB): Estimulados pela leitura do livro a “Utilidade do inútil5”vamos começar com as reflexões maiores, com os itens mais filosóficos e conceituais, para depois irmos direcionando aos itens mais próximos de nossa realidade, de nossa prática. A primeira questão é a seguinte... Considerando as fronteiras que a Física encontra hoje, considerando também que o desconhecido também aumentou, podemos dizer que a Ciência voltou a ficar próxima ou nunca esteve tanto da Filosofia? Ou mais ainda, nunca esteve tão próxima da Metafisica? E estando próxima da Metafisica, como essa Ciência deverá/se distinguirá (eis o fim desta questão), por exemplo, da Religião?

5 Op. cit.

6 José Abdalla Helayël Neto (HN): Bom... Eu diria o seguinte, em relação à minha parte da Ciência que é a Física, há várias abordagens para apreender o Universo. Umas de abordagem mais empírica, outras mais observacionais ou fenomenológicas... No meu caso, seria observar fenômenos e tentar construir modelos, num aspecto mais teórico, na tentativa de compreender princípios fundamentais, regras universais do comportamento da natureza e com uma abordagem muito matemática. Até a segunda metade do século passado, no século XX, esse foi o lugar de domínio da Mecânica Quântica, uma guinada para uma visão mais microscópica de Universo. Foi essa Mecânica Quântica que levou a gente para o lado da Filosofia e eu diria para Metafisica também. Existe na Física preconceito para se falar de Filosofia, de Metafísica, porque muitas vezes a Física é muito utilitarista, muito mecanicista. Por isso que somos tão desafiados, porque não podemos esconder essa realidade que persiste [desse viés utilitarista e mecanicista]. Na verdade, é a nossa área, sobretudo, mais teórica, em que faz reflexões considerando experimentos que nunca foram realizados, ou seja, o nível de abstração vem crescendo... Claro que não deixaremos de fazer experiências do pensamento e esse é um lugar da Filosofia e da Metafisica... Sempre fomos muito aristotélico, não é mesmo? E mesmo que em tese tenhamos abandonado a Física de Aristóteles, nossa forma de construir o pensamento continua aristotélico, já que estamos sempre querendo procurar a “razão” que rege alguma coisa... Estamos sempre procurando uma razão primeira, até na vida do dia-a-dia: “é isso, a partir disso, por que então não isso?” Por quê? Compreendo que a Física contemporânea nos revela múltiplas razões, não tem aquela única razão. Compreendo que estejamos numa era da Metafisica, uma era muito mais bergsoniana... O pensamento de Bergson6, muito diferente do aristotélico, está dominando a Física contemporânea, dessa forma, é inevitável (apesar de um discurso preconceituoso que ainda encontramos na Física) misturamos Física com Filosofia, Filosofia com Ciência... Então... Eu estou colocando em primeira pessoa, a partir de minha área, por muitas vezes precisando fazer um esforço de dizer que estamos fazendo, sim, uma Física que cada vez mais nos leva à Filosofia, tendo que enfrentar o discurso (preconceituoso) da Metafisica na Física. É muito comum ver grandes estudiosos, até com grande reputação na Física dizer: “ah! Isso não é Física, isso é Filosofia!” ou “isso não é Física, isso é Metafisica.” Eu entendo que fazemos Física, essa Física de fronteira, que está muito além das nossas capacidades experimentais e observacionais.

Filósofo francês que rompeu com a tradição platônica e cartesiana para incorporar reflexões que tinham por base a sociologia, a política e a construção da psique humana.

Foi laureado pelo prêmio Nobel de Literatura.

Essa Física é Filosofia, essa Física é Metafisica, porém ela assim não se configura plenamente, por conta do uso da Matemática. Temos a matemática mais complexa que, de alguma maneira usamos para não estarmos fazendo exclusivamente Filosofia [stricto sensu]. De alguma forma, é um jogo. Estamos usando a matemática mais complexa, usando técnicas computacionais sofisticadas, mas no fundo o que estamos fazendo é colocando em prática, colocando em movimento, essas concepções filosóficas. Tenho orgulho em dizer que Filosofia para mim é Física. Para mim Filosofia é Ciência! Em minha formação tive aula com vários grandes professores, inclusive quatro deles foram prêmios Nobel de Física. Um deles, com quem mais me liguei, trabalhei por oito anos dentro do seu grupo de pesquisa, com outros também tive interação bastante intensa, do tipo que modifica a vida das pessoas, com eles aprendi muito mais, debati a Filosofia dentro da Física, ainda que permanecesse especialmente dentro Física. Esses grandes professores nunca me trouxeram uma equação complicada, o que me trouxeram foi o pensamento filosófico dentro da Física. Os discursos desses mestres confrontavam e se complementavam à visão de mundo que trazia (quanto aluno), considerava nossa visão de mundo, nossa percepção da natureza. Quer dizer, quando podemos trazer a nossa visão do mundo à Física, estamos trazendo também a nossa formação filosófica e até mesmo religiosa. Um professor em especial fiquei intensamente dentro em seu grupo, trabalhei com ele durante o meu doutorado. Esse professor, Abdus Salam, que ganhou o prêmio Nobel de 1979, era islâmico convicto, paquistanês, praticante do islamismo, religioso, lia o Corão toda sexta-feira... Ele trazia um discurso religioso, potencialmente visto com desconfiança na Física, algo nada fácil de se expor, porque em Ciência pressupõe-se o máximo de racionalidade possível, propõe-se que não haja envolvimento sentimental. Porém, não foi isso que vi. O professor Paul Dirac, por exemplo, que foi prêmio Nobel aos 31 anos, pilar da Mecânica Quântica, com quem também tive uma relação muito boa, de muito aprendizado, era fortemente comunista, com convicções sociológicas, sociais muito claras, uma pessoa fantástica, ateu! Eu tinha uma relação forte tanto com um professor que era extremamente convicto do Alcorão, sobre Alá, e um professor, Dirac, que era ateu. Para mim, esse professor ateu e o professor extremamente religioso eram muito próximos do ponto de vista das ideias, das concepções, quer dizer, para ambos a Ciência era o ponto importante que os unia, onde todas as diferenças religiosas desapareciam no fazer da Ciência. Com o professor Paul Dirac, [reitero] comunista, houve influência marcante de sua parte na ex-URSS, ao ponto de qualificar os russos à conquista de prêmios na área. A influência de Dirac de como fazer Ciência, de como fazer Física, de como perceber a natureza, influenciou muito físicos pelo mundo, da ex-União Soviética ao Japão.

Os primeiros prêmios Nobel de Física no Japão vieram também sob influência dele, por isso que eu gosto sempre de dizer “Dirac Presente!”. Dirac e Marielle estão sempre presentes! Paul Dirac presente nos primeiros prêmios Nobel do Japão, Dirac era assim uma pessoa de convicção política forte, adepto da Ciência. Por diferentes caminhos, o professor Salam, nosso guru, religioso convicto, se encontrava com Dirac por outros caminhos, tanto em relação à Ciência, quanto em relação à forma de levar a vida. Dirac, mesmo sendo um estruturalista, conhecia fortemente a Filosofia do carpe diem, considerava muito a estética na Física. Para Dirac, a Ciência tem que ser arte, a Ciência tem que ser bonita, a Ciência precisa ser elegante. Num paralelo, o professor Salam, colocava isso por uma visão mais religiosa, do Corão, na busca pela unificação. Esses elementos anteriores influenciam a Física a ser construída. “Unificar as diferenças”, de fato esse era o alvo da Física do professor Salam, essa exatamente que o levou ao prêmio Nobel de 79. Essa Física que desejou encontrar a unificação teve sua origem no Corão, esse livro da unificação, do conhecimento, da unificação da saúde, da unificação dos direitos e da unificação inclusive de várias religiões, pois, no fundo, o Corão nunca negou a existência de Jesus, não nega a existência de Nossa Senhora, não negou a existência de Moisés, se diferencia por trazer o Maomé para o centro. O Alcorão é um livro de unificação e isso foi forte na vida do professor Salam, ele trabalhou a unificação a vida inteira, morreu tentando unificar a Física. Enquanto professor Dirac, nos aspectos da simplicidade, da elegância, desejou assim construir sua Ciência. Trata-se de concepções filosóficas... Nunca esses homens me colocaram diante um quadro e me perguntaram “sobre essa equação, mostre-me qual seria o resultado... Para professor Salam, por exemplo, em todos os anos que convivemos eu nunca precisei escrever nenhuma fórmula no quadro, com ele a “Física é uma Ciência da palavra!”. Vamos discutir em palavras: ‘’quais são suas dúvidas, ou eu penso assim, você pensa assim, vamos colocar nossas diferenças em dia, usando a palavra e não usando equações?” Por tudo isso, para responder esse primeiro item aqui, que eu digo que a Filosofia é fundamental, porque a Filosofia nos dá a oportunidade de fazer a experiência do pensamento mais do que qualquer outra área da Ciência, do conhecimento humano. É a Filosofia que nos permite fazer esse grande laboratório de ideias e você precisa ter ideias para fazer uma boa Ciência, romper com paradigmas, romper com preconceitos. Quem nos liberta é a Filosofia! Eu acho que hoje em dia a própria Ciência às vezes está se tornando desinteressante quando se apresenta muito apartada da Filosofia. Entendo que é fundamental, por conta disso tudo que trabalho com muitos movimentos sociais, sempre tentando falar aos professores: não tire o discurso da Filosofia das suas aulas, tentem trazer o máximo da Filosofia para sua própria área de ensino, para sua disciplina.

A Filosofia precisa ser resgatada, sendo fundamental para o homem, para o comportamento, ainda mais para esse mundo contemporâneo, posto em polarizações... Se estudássemos Filosofia, praticássemos Filosofia, o mundo estaria muito diferente e a Ciência também... AMB: Alguém quer pegar carona nessa primeira pergunta?

Parte 2 A ciência tem seus artistas

Aluno 1: Professor, na verdade tenho uma pergunta meio... Digamos que o conceito de Ciência costuma ser muito puritano, mas que precisamos delimitar... Assim, como o senhor conceitua Ciência? HN: Eu conceituo a Ciência como uma sigla, um jogo de ideias apenas... Vamos dizer, como que se conceituaria um escritor quando ele escreve um romance? Não tenho conhecimento próprio de muita coisa, mas a minha experiência adquirida com criadores de teoria (professor Dirac criou a teoria quântica dos campos e criou a própria Mecânica Quântica, professor Salam criou uma teoria, a teoria “eletrofraca”...) me desafia com uma questão: qual foi o impacto antes desses criadores? Coloco-me na mesma situação que um estudante de música... (eu, por exemplo, tive um contato forte com Beethoven, cuja a nona sinfonia, é um monumento musical) antes de serem “criadores de teoria”, qual era a concepção de Ciência deles? A concepção de Ciência deles seria como escrever um romance. E uma peça, por exemplo, se poderia começar a escrita pela parte dos diálogos, desenvolvendo uma produção que permitiria obter uma concepção do que a obra poderá ser. Assim, quais seriam os conceitos que levaria, quais personagens, toda a trama, para depois incrementar ainda mais os diálogos... Essa trama é o desenrolar da Ciência. Esse hábito criativo não pode prescindir de uma visão de mundo, algo que já esteja conosco antes, sejam inclusive seus ensinamentos religiosos, filosóficos, como também seus preconceitos. Na verdade, tudo são faces de um mesmo poliedro. A criação de uma teoria cientifica não pode prescindir do que vem antes, da visão de mundo prévia. Com isso, podemos abordar o mundo pela Arte, eu abordo pela Ciência. O tecido de tudo isso é a criatividade, por esse meio se faz Ciência também. Certamente utilizamos a Matemática para obter resultados, para comparar experimentos, porém, mesmo assim a Ciência de hoje, especialmente a Física, traz essa fronteira muito mais avançada, distante de nossas capacidades de verificação, então por muitos anos, talvez por muitas décadas, até por séculos talvez, algumas das ideias hoje trabalhadas nunca deixarão o plano da abstração, porque só poderão ser comprovadas, oferecer legado, daqui a algumas décadas ou alguns séculos.

Por isso é tão difícil distinguir isso do que seja a Arte. Estabelecemos um processo de concepção, a Ciência é concepção, por isso é preciso ter ideias. Referente ao professor Niels Bohr, que também ganhou o prêmio Nobel de Física (em 1922), responsável pela reformulação da moderna teoria atômica em 1913, eu tive bastante contato com o seu neto, meu colega de doutorado, o Henrik Bohr. Ao ponto de trazê-lo ao Brasil. Hoje ele é biofísico, seguiu a carreira de Física, mas hoje tem um instituto, de biofísica na Dinamarca. Henrik Bohr nos trouxe muitos escritos do avô, destaco uma frase muito interessante que era isso aproximadamente: “uma teoria precisa ser suficientemente louca para estar certa”. Quer dizer, é importante isso acontecer, deixar vir um pouco a loucura, no bom sentido, deixar a loucura vir à tona. Uma ideia louca não é para esconder. Quando ouço de um aluno: “professor eu tenho uma ideia, mas ela é muito maluca”. Reajo logo: fale! Quer coisa mais maluca que o modelo atômico de Bohr, em 1913, com aquele modelo de camadas? Aquilo era completamente fora de propósito, aquilo era tão fora de propósito quanto foi para Igor Stravinsky escrever a “Sagração da Primavera” em 1913, quando foi muitíssimo vaiado, para o balé que havia criado. O Bohr também foi vaiado pelo modelo atômico, mas era uma ideia louca, suficientemente louca para dar certo.

Parte 3 Ciência para quem ou para quê?

AMB: Recuperando o “neopositivista” Karl Popper, talvez nos atrapalhe um pouco nesse ponto, porque a concepção dele para Ciência é tão diferente... Como você vê a questão da verificação, da falseabilidade como itens que caracterizariam a “Ciência”? HN: O professor Dirac num artigo dele de 1939, em que considerava a relação entre a Física e a Matemática, curiosamente não tinha equação sequer... Os únicos números que esse artigo traria eram os das páginas... Um artigo de nove páginas muito mais para a Antropologia, Sociologia da Ciência do que para a relação da Física com a Matemática. Seus questionamentos datam de 1939, mas como continuamos a fazer uma Ciência positivista até hoje? Entendo que podemos responder a Popper pela linha do livro a “Utilidade do inútil”. Considerando que muitas vezes não possuímos a tecnologia no presente que possa nos dar uma verificação ou nos permita falsear teoria, como poderíamos prosseguir com a Ciência, já que muitas vezes isso não ocorre simultaneamente? Muitas vezes é necessário até criar tecnologia para realizar experimentos novos, de tal forma que só podem ser verificados no futuro. Nesse sentido, eu diria que o Popper atrapalha muito, diria que o Dirac é quem realmente percebeu

o modo de fazer Física. Hoje nós fazemos uma Física muito baseada na ideia “diraqueana”, ainda que mantenham-se as críticas a essa maneira de fazer Ciência Física. Dirac mostrou que ideias subjetivas podem noutro momento se fazerem muito concretas, como foi prever a antimatéria. A antimatéria foi prevista no papel por ele, ideia considerada louca, antes de ser descoberta, que foi descoberta. Hoje a gente tem tratamento de câncer, tomografia de elétron, baseada na antimatéria. Essa Ciência foi importante por isso, fez uma previsão de longo alcance que não tinha como ser falseada à época, ela induziu tecnologia. Fica claro que é preciso dar essa liberdade de pensamento, mas como se só enxergarmos ainda muito forte uma Ciência positivista e pior utilitarista. Por isso não há como desconsiderar o aspecto político, financeiro. O CNPq apoiaria uma pesquisa que não sabe para que serve imediatamente ou que não se enxerga aonde chegar? Praticamente 80% da tecnologia que nós temos hoje, utilizada pelo capital industrial mundial, foi proposta como teoria e em sua época não se sabia para que servia ou para quando poderia ser utilizada. É necessário haver liberdade para fazer Ciência. O que temos é esse jogo de ideias. A visão que Thomas Kuhn nos proporcionou é muito pertinente, importante para entender os paradigmas de uma época, onde o avanço da Ciência está também em tentar quebrar esses paradigmas.

Parte 4 Ciência exata?

Aluno 2: Professor, sobre essa questão da matemática na Física, não seria uma maneira de afastar a Física da Filosofia e de racionalizar a Ciência? Como docente da disciplina Química Geral II, na Licenciatura de Química, tenho evitado usar o cálculo matemático, algo já completamente destoante do que é recorrente, mas como fazer isso diante do fato que nas outras disciplinas haverá a excessiva cobrança em relação à Matemática? HN: Bom, eu acho o seguinte... Concordo que devemos primeiro trabalhar com as ideias. Volto-me aos mestres que me influenciaram, com eles aprendi a colocar as ideias no lugar, nos lugares certos, trabalhar com as ideias e no momento em que você domina as ideias, com os códigos abstratos, para só depois, num certo momento, vir a Matemática. Nunca dissemos que Matemática é inevitável para a Física. Porque também não podemos deixar eles criarem a falsa expectativa que não “tem matemática pesada’’, porque vai ter sim! Nossa indicação é que eles a encontrem no final. Primeiro, você tem que montar o enredo, trazer os conceitos de sua obra, os personagens, as relações e depois com os diálogos virá a inevitável matemática.

Um dos maiores matemáticos que viveu até recentemente [morreu em janeiro de 2019], o Michael Atiyah, libanês, professor da Universidade de Cambridge, muito amigo do professor Abdus Salam, com quem também tive muito contato, dizia sempre isso: “como matemático eu não consigo fazer uma boa Matemática sem relacionar com a Física, eu vou buscar instigações, estímulos para a minha Matemática através da Física”. Então, a Física é importante para trabalhar os conceitos, pois sustentar uma ideia é muito mais importante do que mostrar uma equação, a equação está ali, os símbolos não falam por si, é você quem articula mecanismos. Na verdade, quanto mais equações complicadas você coloca, mais você exerce o seu poder, porque a plateia simplesmente fica impactada com aquelas equações complicadas, fica perdido com aqueles símbolos todos. É muito mais fácil dominar os códigos matemáticos, usando uma plateia assim, trazendo um monte de equação em que a pedagoga não conhece, que às vezes o químico não conhece, para que todo mundo te respeite pelo medo, não pelo que você sabe, não pelo que você está fazendo. Muitas vezes essa fala mostra o resultado desse ato educativo: “o cara é muito bom, embora não tenha entendido nada”. Isso recorrente demais na Física, você sai respeitando o palestrante porque disse um monte de coisa, mas que você não entendeu. Uma frase que vale reproduzir atribuída a um matemático da década de 30: “a gente não deve trazer os nossos problemas para matemática, nós devemos criar matemática para os nossos problemas”. No fim, então, a ideia é essa. O problema independe da matemática, existe antes, e o desafio maior pode ser conceitual, sobre princípios universais etc. A matemática é importante na formação, mas não pode ser tecnicista, não podemos reduzir o ensino da Física às fórmulas, ao mesmo tempo precisamos retirar de alguns estudantes o fascínio pelas fórmulas. As fórmulas são importantes, mas é importante lidar com a concepção filosófica... AMB: Helayël, o Paul Dirac defende a beleza... HN: Isso, a estética, a beleza... Pois é... Eu não estou com a camiseta hoje, mas eu fiz no ano passado, uma camiseta comemorando os 90 anos da “equação do Dirac”, que ele fez em 1928, na qual revia a existência da antimatéria. Todo ano, lá no CBPF, faço uma camiseta de referência para o ano em questão. Este ano é o da descoberta da elementaridade. Depois, vou ter a equação do espaço, ano que vem vai ser a equação dos neutrinos, 90 anos da percepção de neutrinos na natureza... Vale uma pequena história. Então, eu estava com a camisa que trazia a equação do Dirac no ônibus, realmente é uma equação bonita, quando uma pessoa falou “que coisa linda”... Concluí: camiseta né... Não poderia ser eu... Comentei: a senhora se encantou pela camiseta? “Sim, mas o que que é isso?” Aí expliquei, isso é uma equação da Física, que foi formulada pelo... Ela prosseguiu:

“quem foi esse cara?” Foi uma pessoa, um cientista que eu conheci, tive aulas com ele, quando ela pediu para fazer uma selfie... Vamos fazer (isso dentro do ônibus) e perguntei para ela, por que você se impressionou? E ela respondeu pela beleza. Declarei que Dirac – onde estiver – ficaria feliz, porque ele havia trabalhado muito para que a Física fosse bonita. Para vocês terem ideia do trabalho de estética, aquela equação, se você começa a folhear, as vísceras da equação são horrorosas, ela é uma equação que ocupa uma página inteira, na verdade ela não era uma equação, na verdade ali dentro tinha codificado dezesseis equações, ele consegue reescrever essa equação de dezesseis super equações reduzindo-a a cinco símbolos. Expliquei que era uma equação com símbolos gregos... A Ciência também pode trazer alegrias, pode trazer beleza, uma equação bonita é tão bonita quanto você ver o jardim de Monet. AMB: Pode ser uma das entradas para a Educação, para a Ciência... HN: Exato, exato... Sou muito sonhador nesse sentido, assim, pode haver uma relação afetiva semelhantes entre um quadro de Monet ou de Van Gogh com uma equação bonita... Espera-se da Ciência muita coisa, menos a felicidade. Com a Ciência vem sempre a compreensão de ser um jogo rígido, onde só o cientista é inteligente. Porém, quando começamos a exercitar essa horizontalidade, o jogo vira. É uma forma de quebrar tabu. AMB: Agora, considerando a “História da Ciência”, o que fizemos de errado nesse percurso? E o que está por vir? HN: Antes vale mais uma vez reiterar, esses grandes pensadores tinham sua própria Filosofia. Porém, vale sempre lembrar que são homens de seus próprios tempos e lugares. Por exemplo, Einstein tinha uma cabeça filosófica de quem estava no início do século XX, quando fez a teoria da relatividade geral de 1915, ele precisou enfrentar conflitos internos. A sua equação indicava como solução um universo que não seria estático, um universo que evolui, que se mexe, o que para Einstein deveria ser detestável, pois era um homem que achava que o universo tinha que ser estático. Ele adultera sua própria teoria, introduzindo elementos que fizessem com que o universo no final do dia fosse estático, ele interferiu fortemente. Einstein introduz o conceito de constante cosmológica, ele traz sua cosmogonia para o mundo da Ciência, tem seu teor esotérico quando ele cria a teoria da relatividade ... AMB: Mas essa influência dele rende o contrário, não acaba atrapalhando? HN: Não... porque a Física que ele estava construindo estava dando um resultado que não era compatível com o que ele mesmo acreditava (da perfeição do universo, da percepção de universo simétrico, eterno). Ele quis paralisar o universo, então é uma interferência, é o homem de seu próprio tempo que derrota o homem científico, vamos dizer... Bem, estou dizendo isso por quê? Para responder sobre a sua questão, sobre o que deixamos no meio do caminho... Num sentido oposto a Einstein que nos indicou o estudo cósmico,

Dirac indicou estudarmos o ínfimo, o que poderia ser ínfimo no conhecimento da natureza? O que está dentro do átomo? O que está dentro do núcleo? O que está dentro do próton? E o que está dentro do que está dentro do próton? Então, ele quis chegar à estância mínima da natureza, à busca pela elementaridade mais radical. Todos os dois (Einstein e Dirac), um no extremo cosmológico e o outro no extremo sub-microscópico, construíram grandes teorias baseadas nos seus próprios “conhecimentos filosóficos”, eles tinham um conhecimento prévio que os levou a debater suas questões... Ou seja, são suas questões levadas até o fim... Não necessariamente é uma questão de certo ou errado. A Física que se tornou muito prática, para que está servindo? Não vamos ter uma Ciência básica exploratória? A Ciência já precisa considerar imediatamente a aplicação? Ou será que quando a gente fala de aplicação, na verdade estamos falando do Capital, da Ciência que vai gerar renda ou vai gerar poder? Temos feito sim uma Ciência hoje para o grande capital. Até existe uma Ciência que não atende ao grande capital, mas se a gente for olhar bem para percepção hegemônica do que seja útil, útil tem sido aquilo que gera capital. Nos anos 80, o professor Dirac falou que a Física estava atolada, porque precisamos de novas ideias, estamos precisando talvez de um princípio novo, uma descoberta. O que gerou a Mecânica Quântica, qual foi o princípio fundamental que gerou a Mecânica Quântica? A Mecânica Quântica, por exemplo, nasce do interesse de entender a relação entre a matéria e a luz...

Parte 5 A Ciência que “sabe que nada sabe...”

AMB: Aqui no Doutorado nós vimos há pouco tempo a entrevista do Marcelo Gleiser com o Bial, laureado pelo prêmio Templeton, uma espécie de “prêmio Nobel de Espiritualidade”. Na entrevista ele tem uma ilustração interessante sobre o avanço da Ciência, em que a assemelha a uma ilha, em que o mar seria o desconhecido, dessa forma quanto mais cresce a ilha, mais aumenta suas fronteiras para o desconhecido... O que acha dessa visão? E mais, quando o Gleiser propõe que no tripé “Filosofia, Religião e Ciência” há uma relação de igualdade, no fundo não foi pôr a Ciência num lugar de reflexão e status que não possuía antes? Porque, assim, ele está colocando a Ciência numa relação de igualdade... HN: Bom... Uma curiosidade, eu conheço bastante o Marcelo, pois foi meu colega, até quando morava lá fora. Eu ainda não tinha terminado meu Doutorado em Trieste e ele foi uma vez lá vindo da Inglaterra buscar orientação com o

professor Salam, mas o professor nessa época estava muito ocupado e não pode orientá-lo. Gleiser ficou em minha casa, passou três dias conosco, conversamos... Ainda não vi essa entrevista, já me falaram dela... De qualquer forma, concordo com essa ilustração da ilha. É isso mesmo, quanto mais a gente avança, à medida que você vai expandindo, à medida que vamos aprofundando na teoria, tendo novas visões de mundo, vamos também expandindo nossas fronteiras... A gente vai encontrando muitas coisas desconhecidas, entra aí inclusive a Metafísica. O que é na verdade a realidade? A realidade é apenas a superfície do que a gente conhece, do que a gente consegue arranhar de algo mais profundo. Algo profundo que gera essa própria realidade. Eu acho que isso é muito a Metafísica de Bergson, que é exatamente o virtual tomando conta do real, aquilo que percebemos como realidade é fruto de uma grande virtualidade que nós nem conseguimos perceber e nem nunca vamos perceber, porque é virtual e vai ser sempre virtual. Quando a gente olha para natureza, certamente aquilo que a gente não vê é o mais importante, aquilo que está por detrás, que são os bastidores. A virtualidade é o desconhecido, é sobre o que nunca vamos poder ter acesso. A própria teoria diz que os quarks não são detectáveis, mas eles existem, nós sabemos que eles existem de forma indireta...À medida que a Ciência vai avançando a gente vai penetrando cada vez mais no mundo da virtualidade, que é um mundo desconhecido, a gente sabe que ele existe, mas a gente não vai conseguir chegar até ele... Sobre ter o Marcelo Gleiser proposto que no tripé há uma relação de igualdade (entre Filosofia, Religião e Ciência), talvez sim, sou inclinado a pensar que uma pessoa do século XXI tende a dizer que somente a Ciência é racional, enquanto a Religião é bobagem ou mesmo Filosofia. Para mim, a mais fraca é a Ciência, pois a Filosofia é fundamental. Da mesma forma, que acho difícil não se acreditar em alguma coisa. Alguém pode até não acreditar em nada, pode não acreditar em Deus, mas tende a acreditar em algo, numa força suprema, pode acreditar no dinheiro... A Religião é intrínseca ao homem, em alguma coisa você acredita, não conheço uma pessoa que diz “eu não acredito em nada”, já vi pessoas acreditando em muitas coisas, mas não acreditar em nada... Para mim, a Religião é uma coisa que está dentro do homem, alguma convicção que ele tem, a Ciência que é o supérfluo, a Ciência que é o menos relevante. A Ciência é importante, mas sendo confrontado a pensar: “você acha qual elemento do tripé o mais importante aqui?” Com a Filosofia e a Religião você sempre chegará à Ciência, porque a Ciência é fruto da Filosofia e digo mais, essa Ciência que nós fazemos hoje em Física vem de pessoas como Einstein, Dirac, Bohr, Enrico Fermi, Salam, todas essas pessoas, uns eram mais filósofos e outros mais religiosos, acabaram fazendo Ciência, então eu acho que aqui a gente está dando à Ciência uma estatura que talvez ela nem mereça... Que meus colegas não me ouçam!

Aluno 3: Mas, isso também pode ter relação justamente com a questão da projeção da realidade, o que seria a virtualidade, a maioria das religiões tem essa, tem esse círculo, o virtual que gera o real... Não é? HN: Sim... Você tem alguma coisa que nunca viu, que não pode ver, que não é detectável, mas você sempre está querendo ver. A gente está sempre buscando Religião, acho que ainda é assim no século XX. Isso não impede que façamos Ciência, na verdade, acho que é até o contrário... Sempre buscamos alguma coisa, a maior fome que o ser humano tem é pelo conhecimento. A construção da Ciência é apenas fruto disso! Não estou negando a Ciência, nunca direi que a terra é plana, nem que tomar vacina é bobagem, na verdade estou dizendo que a Ciência é muito importante, mas que a gente não negue outras buscas do ser humano.

Parte 6 A educação em ciências...

AMB: Claro que o Gleiser mais ajuda em colocar os três pilares (Filosofia, Religião e Ciência) em condição de igualdade, e que isso mais nos ajuda do que atrapalha em termos políticos e em termos educacionais, mas o que quis foi realmente fazer essa provocação... Porque ao colocar os três em pé de igualdade, trouxe a Ciência para um patamar acima... A Filosofia e a Religião acompanham o ser humano há mais tempo... HN: São buscas do ser humano... E é importante a gente falar isso aqui, é importante porque todo mundo aqui é professor, todo mundo é formador de opinião, não podemos negar nossa influência... Eu, por exemplo, fui muito mais influenciado pelos meus professores do que pelo meu pai... Graças a Deus! AMB: E somos responsáveis por muita balbúrdia... HN: Muita balbúrdia! Ainda bem! Meu pai era imigrante e veio para o Brasil, uma pessoa simples que pouco estudou, ensinou ainda assim os seus princípios, o de ser honesto, sobre tudo aquilo que se aprende em casa, mas não foi ele quem modificou a minha vida. Ele me colocou no mundo, mas não me deu o mundo, quem me deu o mundo foram os meus professores. Fui muito mais influenciado por meus professores do que pelo meu pai, se dependesse dele não teria passado da ponte do Rio Bonito com Tanguá, eu teria ficado em Rio Bonito para sempre. A gente está em sala de aula, os alunos estão nos ouvindo, levam o que a gente fala para os pais, os pais podem ficar contra um professor, mas isso faz parte de nosso desafio.

Nós, enquanto professores num pré-vestibular comunitário, quantas vezes recebemos pais, pastores que vieram comigo confrontar o que os filhos levaram para casa. Não podemos negar esse impacto na vida, quem de nós nunca foi impactado por um professor? Talvez a maioria de nós seja professor porque teve um bom professor. O professor é fundamental na vida de um jovem, de um aluno, na vida do jovem, confrontamos doutrinas.

Parte 7 Ciência, Religião e a pessoa humana

Aluno 4: Professor, além da Ciência e Filosofia, o senhor pratica Religião? HN: Sim, não frequento nenhum templo, mas para mim a oração é importantíssima, você está me indagando pessoalmente, correto? Então, sendo honesto com você, para mim, rezar é muito importante, fazer a comunicação com alguém que está muito acima de mim, ou seja, acredito fortemente em Deus, inclusive muito por conta da Mecânica Quântica. A Mecânica Quântica me dá todos os princípios fundamentais para eu acreditar que existe um Deus onipresente e onisciente, o princípio da incerteza resolve isso para mim fácil. Eu até brincava com o meu pai um pouco, ele falava “isso vai te deixar descrente” e eu dizia “pai o senhor é religioso porque tem medo, eu estou me tornando religioso porque a Física está me oferecendo isso”. Poderia me tornar ateu, conheço muito físico ateu, pois é até mais fácil ir para o lado do ateísmo do que para o da Religião, mas eu não percebi na Mecânica Quântica algo que negue a existência de Deus. Claro que não consigo provar a existência de Deus pela Mecânica Quântica, mas vejo com a Religião que o ato de fé é também de humildade, pois olhar para natureza serve para reverenciar. A natureza é muito majestosa, um vírus pode derrubar um grande cientista, um micróbio, uma bactéria... Precisamos dar ao homem apenas o poder limitado que possui, o que a Ciência dá. Eu pratico sim Religião, prático bastante, minha mulher é muito religiosa, busca meditação. Nós não vamos para nenhuma Igreja, mas, eu gosto de ler a Bíblia, adoro ler o antigo testamento, sou fascinado por Abraão, acredito realmente em Moisés. Acredito nisso tudo e dessa forma faço Ciência. Sem Religião eu fico fora de mim, se eu não rezar, eu fico muito mal. AMB: Independentemente de Dirac ser ateu, ele acreditava na humanidade... HN: Exatamente, ele acreditava na capacidade do homem, ele acreditava fortemente na natureza. E a natureza pode ser a forma de Deus. Essa natureza também se apresenta assim para mim, porque, para mim, Deus é onipresente, Deus era o Big Bang, esteve nesse início, nesse elemento menor do que o trilionésimo do trilionésimo do trilionésimo de um cabecinha de alfinete...

Esteve em tudo ali e hoje se espalhou, ou seja, essa consciência universal é disso tudo, não é especulação. Considero muito o budismo, considero muito bonito, considero esse sentido que Deus está em nós, porque de alguma forma é minha compreensão da Física também... Aluno 5: Acho válido falar da questão da onipresença relacionada ao princípio da incerteza... Já o vi falar numa entrevista sobre isso... Vemos com você que não é só uma questão de Religião, mas de como a Física trata disso... HN: Isso... Eu, por exemplo, acho que a Mecânica Quântica nos oferece uma grande lição de humildade, de humildade mesmo, porque ela nos diz o seguinte: é impossível, matematicamente provado, que o homem possa conhecer tudo sobre o universo. Poderíamos conhecer trilhões de coisas, mas uma ficaria faltando, pois é isso que caracteriza “o princípio da incerteza”. Porque não há como se conhecer duas coisas que são ditas complementares ao mesmo tempo. No mundo microscópico que rege o universo, se você tiver plena certeza da posição do elétron, você não saberá qual a velocidade dele e viceversa. Caso você consiga medir a velocidade do elétron, estará em qualquer lugar do universo. Caso meça a velocidade, perde a posição. Haverá sempre um conhecimento que vai ficar faltando. Vejo isso como uma lição de humildade que a Física nos oferece.

Parte 8 A ciência, a pseudociência, os avanços tecnológicos: como se dão nossas lutas?

AMB: Vamos continuar, passar por outros pontos. Então... Lembrei de Cesar Lattes quando perguntado sobre qual seria a Ciência mais importante, e ele, mesmo sendo um físico, nos surpreende dizendo que é a História. Para mim, isso é muito importante, porque ele parece nos mostrar que a História já seria imprescindível quanto registro, porém que seria mais do que isso. A História poderia, por exemplo, responder sozinha aos “terraplanistas”, sem a contribuição até da Astronomia. Com a História poderíamos nos perguntar, por exemplo, como aconteceu o ataque a Pearl Habor? Para ser pelo Pacífico, somente sendo a Terra redonda, não? Enfim, se der, comente essa reflexão, mas deixe-me acrescentar logo outra... AMB: Considerando uma entrevista sua que assisti, em que você pontuou que o tempo de espera entre a Ciência e o desenvolvimento da Tecnologia estava cada vez menor, como você avalia essa relação entre a evolução científica e o avanço tecnológico?

HN: Está certo, eu estava falando um tempo atrás sobre a questão da Ciência ser de base exploratória, mesmo considerando a Ciência experimental, em que você vai para o laboratório, neste caso também não se sabe o que será descoberto. Ou seja, seja de base teórica ou experimental, o momento da descoberta é diferente do momento da aplicação. O avanço tecnológico, seu resultado, pode demorar a ser aplicado ou não, não há como prever ou garantir. Por exemplo, voltando mais uma vez no tempo, o professor Salam dizia uma frase muito importante para a reflexão que estamos fazendo, vou só tentar trazer a ideia... Dizia ele que se aperfeiçoássemos continuamente a parafina e a vela, nunca chegaríamos à luz elétrica. Então, fazemos a Ciência básica para poder chegar à luz elétrica que não foi o aperfeiçoamento da vela. O professor Salam uma vez publicou uma reflexão sobre as equações de Maxwell e de como tardou para outros pesquisadores aproveitarem suas contribuições alcançadas em 1865, porque, por exemplo, só em 1888 Hertz comprovou Maxwell. Passaram-se quase 40 anos. Dirac previu a antimatéria em 1931, mas só recentemente foi usada no tratamento do câncer, ou seja, passaram 70, 80 anos entre a Ciência básica e o incremento tecnológico. Qual é o tempo de uma descoberta para uma nova tecnologia? Até posso considerar que esse tempo tem diminuído bastante, mas não podemos esquecer que nenhuma dessas tecnologias nasceu sem que antes existisse a Ciência! A Ciência não pode ser refém do utilitarismo. Ah, vamos acabar com a Filosofia nas escolas porque a Filosofia não leva à nada, vamos acabar com a Sociologia... Não é o que a gente está vendo hoje em dia? Um desmonte total. Então, qual é a Ciência que sobra? A Ciência que vai gerar capital? Quando eu falo capital, refiro-me aos que estão filiados a esse tipo de utilitarismo, que não estão preocupados com o bem-estar da humanidade, porque a morte dos pobres não incomoda, quanto mais gente morrer melhor, porque o interesse se restringe à obtenção do lucro. Qual foi a tecnologia que não foi Ciência inútil há um tempo? Todas as grandes descobertas, todas as grandes descobertas da Ciência que levaram posteriormente a uma tecnologia, ou a maior parte, quando elas nasceram não eram nada, eram Ciência básica exploratória, exploração pura e simples, só virou tecnologia. E só a Ciência básica nos permite não ficarmos presos a melhorar o que já existe, ela quem pode realmente trazer a inovação (conceito tão em moda). Vale o exemplo do professor Salam, sem uma Ciência que busca o novo, teríamos velas cada vez melhores, mas jamais uma vela que chegaria a ser uma lâmpada LED. Importante fazermos sempre essa explicação, trazermos esse posicionamento, porque às vezes até mesmo o nosso aluno pergunta: professor estou estudando isso para quê? Para que isso serve? Muitas vezes a Ciência vem simplesmente para dar significado para nossa inteligência, significado para nossa própria existência.

A tecnologia é importante, mas temos que vencer o discurso utilitarista que a mídia propaga, porque isso é terreno fértil para políticos oportunistas proferirem suas sandices: “Ah, vamos acabar com todas os projetos que não levam a nada”. “Isso é projeto inútil”. Na maior parte das vezes essa avaliação é preconceituosa. A Ciência tem que ser exploratória e deve considerar que muitas vezes descobridor não sabe aonde chegará. Caso perguntássemos ao Dirac se ele sabia para que que servia a antimatéria, provavelmente não saberia o que dizer, talvez dissesse que chegou a duvidar de sua própria teoria. O próprio Dirac demorou para acreditar que um pesquisador viu a antimatéria. AMB: Vamos nessa toada... Como seria assistir o aprisionamento a partir de outro ponto? Deixe-me explicar... Entendo plenamente que não deveríamos ficar aperfeiçoando a mesma materialidade (sofisticando a parafina, por exemplo), que deveríamos preferir fazer uma Ciência mais livre que pudesse construir a novidade (como a lâmpada de LED), mas como lidar com a pressão que vem das relações de força de uma sociedade? As guerras são baseadas nisso, por exemplo. Há grupos que mantém velhas tecnologias independentemente das questões de inovação, porque são grupos fortes e impõem isso hegemonicamente. O carro, por exemplo, está com a gente há mais de um século e sua base continua sendo um motor à explosão com um combustível de origem fóssil, ou seja, deveria estar obsoleto. O quanto a tal “utilidade” estará realmente no futuro, como se houvesse um imperativo categórico de uma Ciência que fosse verdadeira que revelará essa condição? Na verdade, a gente não está sempre operando dentro de amarras? HN: Entendo que teríamos sempre o lugar do significado... AMB: Deixe-me desenvolver um pouco mais esse questionamento... Permitame uma ilustração... Independentemente da possibilidade de que estaríamos realizando algo útil, que só revelaria e seria assim entendido (como útil) no futuro, será que não são as amarras prévias e da atualidade os maiores impeditivos para o que fazemos? Como podemos sair das caixinhas que estabelecem para nós ou mesmo das caixinhas que aceitamos? Aluno 5: Acho que posso complementar a essa ideia, num sentido próximo e dando algo mais concreto... Como lutar contra esse ideário massacrante que chega ao aluno, em que ele vê as disciplinas hierarquizadas, por exemplo? Como fazer algo diferente numa sociedade que diz ser a Matemática importante e que a Sociologia e a Filosofia são supérfluas? HN: Exatamente... Estava conversando com um rapaz que quer ingressar no CBPF, mas sua pegada é muito tecnológica e vem de uma Instituição pública que trabalha com cinema... Para tentar me agradar, começou a criticar os investimentos que são feitos em Cultura, dando a entender que o mais adequado seria investir nas exatas...Ele pensou mesmo que fosse me agradar com isso... Ele não foi nada, nada estratégico. Fui eu quem o alertou da necessidade de investir em Cultura, em cinema, em História. Aquilo foi muito inusitado,

um rapaz dentro do Ministério da Cultura, defendendo investir mais em Matemática e menos nas humanidades... É um absurdo negar investimento em Cultura... Aluno 6: Infelizmente as pessoas que acabaram entrando no poder estão muito longe dessa visão, fico me sentindo um peixe fora d’água... Eu, como professor de Física, faço de tudo para fugir dessa visão tradicional da Física, mas como lidar com a pressão dos próprios alunos, do sistema de ensino? Como fugir do conteúdo e currículo impostos a nós, como desconsiderar a ementa? Como sair da doutrinação do Enem? HN: Então... Qualquer cidadão diz que as coisas mais importante são: Educação, Saúde... Mas esse mesmo cidadão coloca o professor lá embaixo, acha que a Educação é importante, mas não valoriza o professor... Conheci um rapaz agora que estava terminando um Mestrado lá em Volta Redonda, no IFRJ, no polo de Volta Redonda, Mestrado em Ensino de Física, mas teve que se formar em Engenharia para poder fazer Física... Porque precisou entregar ao pai a Graduação de Engenharia primeiro, para depois fazer o que queria, trabalhar com o Ensino de Física. De maneira geral, a Educação é vista como importantíssima, mas o professor não! Aluno 8: Eu queria complementar essa visão... Como convencer pessoas fora de nosso meio, da Educação, diante de tantos outros ataques advindos de outros lugares que promovem a pseudoeducação? HN: Nesses 24 anos que trabalho com pré-vestibular social, venho assim aprendendo, a cada ano a gente aprende mais um pouquinho... Eu tenho lá minhas inocências sociológicas... Meu filho é sociólogo e me ajuda a ver algumas coisas nesse sentido... Mas, como sou espontâneo, em alguns momentos acabo pegando um pouco pesado, mas julgo necessário... Muitas vezes desafio as pessoas que nos procuram a pensar: você está aqui nesse curso, para quê? E pergunto também: quantos de vocês querem ser professor? E quase ninguém quer ser professor. Vou problematizando com os alunos, acho que os faço pensar um pouco, assim sinto que eles param um pouquinho para pensar no papel do professor, porque a sociedade nega o papel do professor... AMB: Esse é o país do bacharelismo... A ideia de que o bacharel que obtém a licença para dar aula é o mais qualificado, infelizmente ainda persiste muito... Enquanto é mais escassa a ideia de que ser professor exige qualificação específica ou a compreensão de que é um ofício que requer outras reflexões, pesquisas e caminhos metodológicos a serem somados ao conteúdo... Enfim... AMB: Deixem-me fazer menção a algumas questões que foram enviadas previamente, em respeito aos alunos... Ainda que reconheçamos que será difícil responder no tempo que possuímos... Há uma aqui sobre o Stephen Hawking, expondo seu medo pelo desenvolvimento da inteligência artificial... Há uma aqui sobre como deve seguir o jovem pesquisador... Outra que pergunta qual

seria a melhor convergência entre as Humanidades, as Ciência duras e as Artes? Até chegarmos a uma mais pessoal... Você tem conseguido fazer uma Ciência despojada e ao mesmo tempo engajada? Quais são os seus segredos? Verdade, algo é impressionante em sua trajetória, Helayël, como você consegue se fazer presente em tantos lugares? (Por falar em onipresença, hein?) HN: A onipresença, você quer que eu diga um exemplo de uma pessoa, de um ser humano onipresente é o presidente da SBPC... Quando ligo para ele pergunto: em qual galáxia você está hoje? Ele é capaz de estar em qualquer lugar ao mesmo tempo, não chego a esse ponto não... Acho que a Ciência despojada é aquela Ciência que pode te levar lá na fronteira, mas a qualquer momento você é capaz de voltar para se comunicar. E para ser especial, a Ciência tem que ser despojada dos ritos que muitas vezes se impõem. Ciência é para compartilhar! Mesmo que você saiba um pouco sobre um tempo, mesmo que seja avançada demais, como a “teoria das cordas”, é importante exercitar a comunicação. De alguma forma, precisamos dizer, mesmo o mais complexo, para um garoto do Ensino Fundamental, para um menino do Ensino Médio, para a mãe dele, para a pessoa que trabalha na sua casa, para sua diarista... Acho que a Ciência tem que ser isso, tem que ser despojada de ritos. Ela tem que ser autêntica, eu acredito muito numa Ciência franciscana. Acho que São Francisco de Assis foi uma pessoa muito interessante, porque foi de muita simplicidade, nesse caminho atingiu a profundidade da simplicidade, adquiriu o olhar simples para as coisas. A Ciência tem que ser franciscana, você tem que procurar sempre estar falando com o mais humilde dos humildes. Além disso, precisamos ter compreensão da construção coletiva que realizamos... Eu vejo as faxineiras que trabalham lá no CBPF e que moram lá na Posse, Nova Iguaçu. Para chegar lá no CBPF acordam às cinco horas da manhã, às vezes essa mesma pessoa chega de volta a casa às oito horas da noite, sobrando pouco tempo de colocar alguma coisinha no lugar, preparar uma comidinha, pois no dia seguinte precisa novamente acordar muito cedo para chegar ao CBPF. Dessa forma, eu e os demais podemos encontrar o corredor limpo, o banheiro limpo, essas pessoas para mim são sagradas; se a minha Ciência não chegar a essa pessoa de uma forma ou de outra, para que serve? Esse se torna o desafio, como fazer a Ciência chegar a essa pessoa? Ela tem que se aproximar de algo, ela está limpando a sua sala e vê uma fórmula complicada no quadro... Se a gente não ajudar essas pessoas a pensarem, isso será uma grande derrota. Essa preocupação, eu tenho muito... AMB: Vamos aproveitar esse fechamento de pensar uma Ciência despojada e ao mesmo tempo engajada... Sobre os dilemas atuais que estamos enfrentando, sobre o que seria a pseudociência, sobre itens insanos como avanço dos terraplanistas, como os apologistas da antivacina... Vamos com uma questão simples: por que isso está acontecendo? Claro que há fatores externos fortíssimos para o avanço desse obscurantismo, há quem os

deseja, inclusive, mas qual nossa mea-culpa nisso tudo? E como tem sido lidar com isso no pré-vestibular social? HN : Então, é uma preocupação de todos nós, de todo mundo que está aqui... A questão da pseudociência, da anti-ciência, que, francamente falando, tenho que reiterar o que venho dizendo desde o começo: estão nos tirando a capacidade de pensar! Entendo que algumas coisas estão sendo apresentadas de forma enganosa. Claro que a Ciência não é a busca daquela verdade absoluta, porque não existe uma verdade absoluta em Ciência. Mas isso é completamente diferente de se dar crédito para quem faz pseudociência. Por exemplo, na minha área da Física, tem pessoas que são partidárias da “Teoria de Cordas”, que seria uma teoria fundamental que vai nos colocar diante da evolução do universo, porém tem grupo de físicos, igualmente renomados, igualmente conceituados, que são contra a Teoria das Cordas” porque buscam uma teoria alternativa que possa descrever as mesmas características do universo que a Teoria de Cordas descreve. A Ciência é uma forma da gente perceber a natureza, então não existe uma forma absoluta de perceber a natureza, a fórmula não é única, como acontece com a Arte. Um artista pode perceber uma árvore frutífera de uma forma, digamos, mais impressionista, outro, de forma cubista, pois possuem olhares distintos. É possível olhar a evolução do universo do ponto de vista da Teoria de Cordas, pela Teoria da Gravitação em Laços, mas elas prosseguem (ao menos por um bom tempo) sem se caracterizarem como pseudociências. É possível haver divergência em Ciência, mas a pseudociência se constitui no que é leviano, no que é deturpado. Com a Filosofia vamos buscar uma verdade que a gente é capaz de defender, o que não tem a ver com imposição. A anti-ciência que se criou e que é fenômeno mundial, caminha por outro lugar, vem para negar a Ciência. A pseudociência é realizada por pessoas menos críticas, pessoas muito mais passionais, talvez seja uma forma de negar a crítica à própria sociedade. Ou seja, algo que interessa a parte do sistema. Venho me perguntando, a pseudociência tem o mesmo espaço na Coreia do Norte que tem no Brasil? Vamos por exemplos nos mais emblemáticos, pegar o exemplo da Coreia do Norte, vamos pegar Cuba... Como está a anti-ciência em Cuba? Como está a anti-ciência na Rússia? Vamos pegar esses países que são considerados, digamos assim, “países inimigos”, como está a anti-ciência por lá? Pensando de uma forma meio conspiratória, será que nossa Ciência não é uma forma atualizada de controlar a sociedade, nos oferecendo menos criticidade, nos colocando ainda mais como refém de um sistema político? Eu sempre me pergunto isso, e já perguntei várias vezes para meus colegas cubanos, “tem espaço para a anti-ciência em Cuba?” Eles me disseram que praticamente não há espaço. Mas, por que ela está ganhando tanto espaço no Brasil? Ganhando espaço até em países ocidentais desenvolvidos? Agora, tem espaço para a

anti-ciência na China? Tenho muitos colegas na China, fiz doutorado com alguns e me relaciono ainda por e-mail.... São categóricos! Não tem esse movimento anti-ciência na China! Temos visto no Brasil e em alguns países da Europa, mas isso não vem junto com a onda ultradireitista? Não tem como entrarmos aqui para dizer quem vem primeiro, a onda ultradireita conservadora ou a anticiência, mas dá para dizer que há uma ligação forte entre as duas. AMB : Pois é... Acho que há uma confusão que está sendo estimulada, com verniz de que é democrática, mas é falaciosa... Não podemos confundir o legítimo e saudável debate científico com o falso debate entre a Ciência e a pseudo ou anti-Ciência... Ciência disputa construções de verdades, mas pode enxergar o que é nitidamente mentira. Na minha área, por exemplo, há os que defendem o “aquecimento global” (que migraram para “mudanças climáticas”) debatendo com os cientistas que negam (os negacionistas); há os que dizem ser tais fenômenos não-antrópicos contra os que afirmam ser antrópicos (a partir do ser humano), há os que afirmam haver ciclos meteorológicos de longa data e outros que afirmam que enfrentamos ciclos adiantados pela ação humana... Ou seja, há disputas saudáveis, como a que você apresentou sobre a “Teoria das cordas”, mas, no fundo, as pessoas podem estar enxergando apenas disputas de interpretação de mundo... Não é esse aí o espaço de disputa que temos e que paira sobre as cabeças de nossos alunos? Não é esse aí o espaço que abrimos para legitimar essa insana discussão com os toscos anticientistas? Como ajudar as pessoas a distinguirem um legítimo debate científico de um falso debate instalado só para confundir a plateia? HN: São todas disputas de princípios... A Filosofia sempre nos ofereceu esse debate, o debate da epistemologia, as discussões sobre a teoria do conhecimento... O que é a teoria? O que nos leva a uma teoria? Quais são as correntes que nos levam a uma teoria e não para outra? Que dizer da Filosofia da Ciência, da epistemologia? Viu como precisamos voltar ao debate filosófico até mesmo para voltarmos a compreender e problematizar o próprio debate. Quando tudo isso é deixado de lado ficamos puramente tecnicista. Um lugar de pouca ou nenhuma serventia. Claro que a Ciência é um debate de “verdades”, você vai a uma conferência internacional em qualquer área e as pessoas estão debatendo, depois de uma fala, vem outra diferente, talvez oposta ou mesmo antagônica. Há uma disputa, há a mediação, há o contraditório, há o debate, isso não é a imposição de uma verdade. Contraditoriamente, a pseudociência impõe a verdade! Há quem não acredite que o homem foi a Lua, não acredita no efeito da vacina, nega a própria forma da terra, mas por que essa mesma pessoa usa o GPS se acredita que a terra é plana? Precisamos mostrar essas contradições, mostrar que essas pessoas estão erradas, que no fundo há mecanismo aí de manipulação.

Em muitos momentos me vejo acreditando em teorias da conspiração, porque não é possível aguentar tanto retrocesso. Parece haver um movimento mundial que torna as pessoas mais ignorantes. Como podem falar que é contra a vacina? Imagina um país da África que opte em abdicar a vacina, vai dizimar milhares de pessoas, nem será preciso fazer guerra. Não parece conspiração? Qual seria o outro interesse, por exemplo, de você tentar convencer as pessoas de que a terra é plana quando você tem toda uma tecnologia, o GPS, por exemplo, a previsão do tempo, a utilização do fuso-horário na aviação, o próprio movimento do dia e da noite? Como pode conseguir eco essa sandice dos terraplanistas? Para mim, são imbecis! Acreditem, conheci um doutorando em Física que é terraplanista. Juro! Caso queiram posso dar o nome dele... Estaria até fazendo propaganda para ele. Bem, ele é discípulo assíduo do Olavo de Carvalho, deve se sentar na primeira fileira, o que explica um pouco essa loucura. Conheci outro professor também... Na verdade, essas pessoas criam os seus discípulos, criam uma teoria toda complicada para edificar o terraplanismo, tudo me parece muito mal-intencionado. Vejo uma movimentação subliminar para reger as pessoas. AMB: Não há aí uma canalhice, porque sabem de suas mentiras... No fundo, o que está por detrás não é um projeto de poder que se estabelece pela alienação? AMB: Eu vou sair um pouco desse tema... Vou trazer algo que tem a ver um pouco com nosso grupo de pesquisa, sobre Educação Ambiental, tudo bem? Aluno 9: Professor, antes de você mudar de assunto, permita-me ficar mais um pouco sobre o que é Ciência ou pseudociência, mas por outro caminho? Vi há pouco tempo um pesquisador bem-conceituado dizendo que a Ciência chinesa era uma pseudociência... O que é Ciência e o que não é Ciência? Outros tipos de Ciência seriam tipos de pseudociência? Há uma Ciência oriental ou não há Ciência no Oriente? HN: Nós temos que ver com que olhos estamos vendo a Ciência, nós temos uma Ciência muito baseada numa ótica Ocidental, negar a Ciência Oriental, por exemplo, é um equívoco. Eu tive contato com muitos chineses e indianos, uma coisa que me tocou muito foi a maneira com que pensavam a Física, prestava muita atenção nisso. É impressionante como a cultura influencia a maneira de pensar, eu tinha colegas de países europeus, do Leste Europeu, colegas da Polônia, da Romênia, colegas da China, da Índia. Os chineses escrevem muito “diagramaticamente”, o pensamento deles em Física era diferenciado. A nossa forma de pensar ocidental é diferente, por isso eu não negaria aquilo que é diferente do método científico, diferente da visão de Galileu, diferente de Newton. Não deixa de ser Ciência por ser diferente. Essa forma diferente de ver que possibilita novos caminhos à própria Ciência.

A verdade absolutizada é que pode engessar. [Paradoxalmente] Entendo que a pseudociência se expressa nos mesmos que parecem ter encontrado a “verdade absoluta”, legitimada ou não pela Matemática. No momento que reduz a Ciência a uma forma única de pensar, é que se constrói também a pseudociência. AMB: Essa percepção de que tanto a Filosofia quanto a Cultura influenciam no fazer da Ciência é muito importante... Eu tive um professor que dizia que talvez nossa dificuldade de fazer Filosofia fosse por conta da necessidade de tradução... “República” em latim é exatamente isso “res pública”, a coisa pública. “Polis” é a cidade e pronto para o grego. Ou seja, não estão abstraindo o tempo todo, estão refletindo também a partir de coisas que lhes são concretas. Estão falando de praça, de cidade, de encontro das pessoas, quer dizer, estão pensando e esquematizando a partir de sua própria cultura, de sua própria materialidade. Assim, vamos às questões... Como é o fazer Ciência? Como é fazer Ciência a partir da visão do brasileiro? Nesses espaços tão cosmopolitas que você participou, com tantos colegas de tantas nacionalidades, como era sua contribuição de brasileiro? HN: Verdade, eu sentia que havia também minha maneira de realizar a Física... Observando os colegas dos países da cortina de ferro, Polônia, Hungria, reconhecia neles uma formação matemática muito sólida, assim como uma formação muito abstrata, que a pegada deles na Ciência era pela Matemática. Eles observavam tudo o que eles queriam observar pela Matemática; os chineses que trabalhavam pelos diagramas, consideravam muito as formas geométricas; os indianos faziam uso de muita numerologia, faziam verdadeiras poesias com os números. Enquanto eu, quanto brasileiro... Bem, eu percebo que a pegada do brasileiro é mais literária, que consideramos muito a “palavra”. O brasileiro tem uma tendência a fazer poesia, a mexer com a palavra... Essa, ao menos, era a minha pegada, assim se constitui a base dos meus conceitos. Eu me sentia o mais conceitual entre os meus colegas. Nossa cultura no Brasil traz muito disso, tem uma poesia muito rica, um cancioneiro muito rico, a gente desde criança está sempre ouvindo música, música popular brasileira, encontra poesia na escola, recita muito... É isso, nossa Física está assentada na palavra! AMB: Ou seja, a poesia ajuda na Física... E nossa forma de fazer Ciência é mais poética... HN: É por aí mesmo... O próprio Marcelo Gleiser ministrava uma disciplina intitulada “Física para poetas”. Entendo que é por aí mesmo, que essa é a nossa forma de fazer Ciência, com essa cultura brasileira que leva poesia, música... AMB: Ótimo momento para terminarmos a nossa “Parte I”, para depois voltarmos, sempre nessa possibilidade de “crer que é possível realizar uma Ciência mais filosófica, bonita, engajada, conceitual, enfim uma Ciência poética!”

Por meu povo

em luta, vivo

Com meu povo

em marcha, vou

Tenho fé de guerrilheiro

e amor de revolução.

Dom Pedro Casaldáliga

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