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TRÂNSITOS, TRADUÇÕES E CONTRIBUIÇÕES PARA UM DEBATE Elisa de Souza Martínez1 1
Universidade de Brasília/ABCA
A emergência de um campo de interesses curatoriais e críticos com grande diversidade de manifestações e objetos parece definir um território para novos debates, um campo de combate. Esses interesses, produzidos em contextos geralmente afastados da historiografia da arte, compõem perspectivas amplas e, ao mesmo tempo, introduzem oportunidades para situar seus antecedentes. O debate se situa, portanto, em uma longa trajetória de debates anteriores ao atual, bem como em um contexto de mudanças nos espaços institucionais brasileiros. Entretanto, o contexto brasileiro não é uma ilha ou, como afirmou Geno Rodriguez1, não há arte no vácuo. Ainda que os questionamentos que desestabilizam algumas certezas e crenças (sim, tratase de crenças) sejam recentes e, por este motivo, estejam ainda em busca de uma terminologia adequada ao tempo em que vivemos, sua presença no campo da arte não é nova. Um dos aspectos que se destacam na busca de uma adequação crítica ao momento contemporâneo no Brasil é a revisão do modernismo brasileiro, com o constante questionamento do gradiente de brasilidade atribuído a cada obra, ou cada artista, de consagrados a periféricos. Podemos imaginar o que nos reserva o centenário da Semana de 22, a ser celebrado em 2022. A primeira dificuldade oferecida pela tarefa revisionista, uma espécie de devassa da história da arte nacional, é decorrente da impossibilidade de retornar ao contexto original de fatos passados. Como dizia Wilhelm Worringer2: “Os esforços apaixonados do historiador para ressuscitar a alma dos tempos passados com a ajuda dos fatos históricos não tem, no fundo, bases suficientes.” Sem conseguir avaliar o que seriam os debates da crítica de arte no Brasil há um século, é difícil compreender qual teria sido o impacto, ruidoso ou não, das palavras de artistas, historiadores e críticos na primeira metade do século vinte. Se hoje a produção crítica ainda está muito distante do público e os cadernos de cultura dos jornais ainda incluem horóscopo, páginas sociais e palavras cruzadas, a quem teria se destinado a crítica de arte publicada em jornais paulistas por nomes como Oswald de Andrade ou Monteiro Lobato, se não a um grupo muito restrito de leitores? Ao tomar suas palavras como motivo para debates tão calorosos, estaríamos sobrevalorizando o que, de fato, só afetou um grupo pequeno de leitores e interesses neste vasto território brasileiro? Para compreender o valor do espaço ocupado por críticos de arte é necessário considerar, entre outros fatores, a hierarquia que, na mancha gráfica da página de um jornal, determina a posição do texto crítico, o seu espaço na oferta cotidiana de informações renováveis. A efemeridade do texto jornalístico, e crítico, parece responder de maneira eficaz a emergência de questões do momento. Entretanto, também nos impede de ver a repetição na medida em que a atualização de terminologias pode mascarar a persistência de velhos discursos. Por outro lado, a substituição de expressões pode ser mero exercício de retórica que disfarça o conservadorismo de discursos que, atendo-se às aparências dos termos, preserva as instituições e seus modi operandi intactos. Preservando-as, o discurso de aparência crítica complementa outro, plenamente acomodado a velhos dogmas, ainda que lhe pareça contrário. Ressaltar a relação binária de contrariedade é, também, identificar uma pressuposição recíproca que no horizonte das discussões atuais, pode ser: racista/antirracista. 1 Co-fundador, com Janice Rooney e Robert Browning, do Alternative Museum, em Nova York, em atividade de 1975 a 2000. Este museu funcionava com a proposta de realizar eventos sob a perspectiva de artistas e, sem fins lucrativos, independentemente de interesses comerciais. Outros espaços, como Art in General e Exit Art, também em Nova York, são considerados herdeiros de seu trabalho ousado e irreverente. 2 WORRINGER, Wilhelm. A arte gótica. Tradução: Isabel Braga. Lisboa: Edições 70, 1992.