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D. Martin Da pertença territorial à escolha comunista? O contexto social dos Direitos do Homem
Da pertença territorial à escolha consumista? O contexto social dos direitos do Homem*
David Martin**
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Historicamente, a noção de livre pertença a uma religião tem a sua origem ma Europa Ocidental, tal como o habeas corpus, apesar de ter sido na América do Norte que ela se concretizou pela primeira vez, pelos fins do século XVIII, com a primeira emenda da Constituição, sob a expressão “livre exercício”. Na “velha Europa”, a ideia de “Igreja livre num Estado livre” não se tornou efectiva – e em parte apenas – senão no fim do século XIX e no século XX, com um sinal preciso: a separação da Igreja e do Estado em França, em 1905. Por outro lado, o pluralismo parcial anteriormente adoptado na Polónia-Lituânia assim como na Transilvânia tornou-se precária sob a pressão do nacionalismo etno-religioso.
Na prática, o exercício relativamente livre da religião toma duas formas: a semi-tolerância para com as comunidades minoritárias, tal com se exprime no Édito de Nantes de 1598, e a semi-tolerância da escolha individual na Commonwealth inglesa dos anos 1640 a 1660. As sanções restabelecidas depois de 1660 contra os dissidentes, os nãoconformistas ou os católicos foram progressivamente abrandando, apesar de, no caso dos católicos elas não terem sido abolidas antes de 1829, embora, perante os factos, a grande expansão do metodismo, de 1780 a 1840, tenha acabado por institucionalizar o princípio da liberdade de convicções. Processos paralelos tiveram lugar na América do Norte com o estabelecimento de Igrejas de Estado na Virgínia e no Massachusetts (em que a separação Igreja-Estado apenas se deu em 1830) para se interromper, bruscamente, com a chegada de imigrantes de diversas confissões diferentes (se bem que na sua maioria protestantes) e a política de abertura para com as convicções religiosas adoptada no Estado de Rhode Island. Com a Revolução Americana, o princípio da tolerância religiosa transformou-se rapidamente numa igualdade completa e absoluta.
Poder-se-á dizer que existia uma zona estendendo-se de Saxe à Nova Inglaterra, em que a tolerância era limitada e desigual, mas que foi a partir dos Países Baixos que ela se exprimiu de forma mais marcada. Foi nestas regiões, seja em Halle, Amesterdão, Londres ou Rochester (Estado de Nova Iorque), que foram
Pintura em madeira, representando o rei Guilherme II de Brandenburgo, o “Grande Príncipe Eleitor”, acolhendo no seu palácio de Sans-Souci, em Potsdam, perto de Berlim/Brandenburgo, os huguenotes que tinham fugido de França. Foto Ökumenisches Heiligenlexikon
acolhidos os huguenotes forçados ao exílio pela Revogação do Édito de Nantes, em 1685. O banimento dos huguenotes pode ser considerado como fazendo parte integrante da lógica nacionalista, que vai das diferentes expulsões que se conhecem em Espanha depois de 1492 até às das populações minoritárias na Grécia e na Turquia depois de 1922. Esta lógica toma duas formas. Uma foi encorajada sob as monarquias absolutas, desejosas de conservar a integridade e a uniformidade do Estado, mesmo se o Édito de tolerância proclamado em 1791 por José II na Áustria-Hungria indique que este não era um fenómeno universal – o Império Austro-Húngaro era, antes de mais, multiétnico e multi-religioso. A outra forma é um nacionalismo etno-religioso, praticado sob a égide de elites intelectuais nacionalistas e cuja influência se revelou mais profunda e duradoura.
Talvez as deslocações massivas de populações e a expulsão de muçulmanos (e se for necessário de cristãos) que tiveram lugar por ocasião da expansão do Império russo para o Sul façam sobretudo parte de uma política imperial absolutista tendendo para o etno-nacionalismo. É certo que o etno-nacionalismo romântico na Europa de Leste conduziu a um modelo de purificação étnica ou a forçar a emigração a que se assistiu ao longo de todo o século anterior,
ou quase, através do Médio Oriente, onde cristãos e judeus (excepto em Israel) foram progressivamente expulsos. A pressão exercida sobre os judeus na Polónia, na Roménia e na Rússia é uma reprodução flagrante deste modelo e o reflexo de uma forma de descriminação exercida no passado pelos cristãos sobre os judeus. Mesmo o nacionalismo cívico ou “cidadão” na Europa Ocidental inscreve-se nesta linha de um preconceito cristão, e muito particularmente em França, onde o caso Dreyfus foi disso uma clara ilustração. Em todo este período relativamente moderno de mobilização nacional, a religião – à semelhança da língua nacional e da exigência de que a elite no poder seja da mesmo origem étnica que o povo – tornouse um sinal de identidade. (A este propósito pode ser interessante assinalar que, segundo John Esposito, que trabalhou sobre os resultados de sondagens de opinião Gallup, a mobilização actual da identidade islâmica está estreitamente ligada a aspirações culturais e democráticas mais do que a um fervor religioso, o que mostra bem, apesar de um contexto diferente, que a religião é um sinal de identidade).
É a este nível que é preciso notar um outro contraste entre a Europa do Noroeste e os países da América do Norte, por um lado, e a Europa de Sudoeste e os países da América do Sul, por outro. Durante séculos, o catolicismo exerceu uma tutela permanente na América Central e do Sul, aceitando o sincretismo. Conceder uma exigência legal a organizações religiosas não católicas tem sido problemático até uma data bem recente, e a coabitação não tem sido aceite senão a contragosto naquilo que tem sido considerado como um território intrinsecamente católico.
Encontramos aí o mesmo princípio territorial, tal como hoje é aceite nas regiões da Europa de Leste e numa lei recentemente aprovada na Federação Russa. No caso da Rússia, é simultaneamente censurável e compreensível: não é possível sofrer uma perseguição massiva durante setenta anos e depois fazer face com serenidade a missionários “sectários”. Na Rússia, conhece-se mal a religião ortodoxa, mas há uma forte identificação com ela. Além disso, a participação nas peregrinações daqueles que não fazem parte da Igreja é quase tão importante como em Espanha ou na Polónia e pode, também, ganhar uma ressonância política como exprimir a religiosidade popular. De facto, as peregrinações são populares por todo o lado.
Encontram-se as formas mais evidentes da etno-religiosidade e o princípio da pertença territorial por todo o lado, em que se faça sentir uma ameaça às terras consideradas como sagradas ou como fazendo parte integrante na nação, e onde se disputam as fronteiras com grupos aderentes a uma etno-religião potencialmente hostil. A Sérvia, como consequência da sua posição de Estado-fronteira com o Islão otomano ao longo de toda a sua história, e por causa do ressentimento que mantém devido aos deslocamentos que se seguiram à sua derrota histórica na batalha de
Kosovo Polié em 1389, considera-se como uma nação mártir. Não é tanto que a prática religiosa seja tão grande ou que por ser de fé ortodoxa, mas é mais que a Igreja se envolve com o povo num ambiente hiper-nacionalista, para com os católicos na Croácia e os muçulmanos na Bósnia e porque é possuída por uma nostalgia histórica. Este tipo de nacionalismo estabeleceu a ligação da identidade política panjugoslava e comunista forjada pelo marechal Tito. Em certos aspectos, a Grécia assemelha-se à Sérvia, se bem que a questão fronteiriça com a Macedónia seja menos espinhosa. Mas o vivo debate para saber se a Grécia se deveria conformar com as normas da União Europeia e renunciar a mencionar nos seus passaportes a religião professada mostram que paixões estão em jogo.
Podemos encontrar outras expressões de pertença territorial na Geórgia e na Ucrânia, se bem que existam ali grupos religiosos livres e activos nos dois países e uma competição entre Igrejas territoriais na Ucrânia ocidental. Na Roménia, sob Ceausescu, as Igrejas de minoria húngara, tanto católicos como protestantes, sentiram pressões e, a partir de 1989, a Igreja Uniata (suprimida depois) do oeste do país colocou-se como o verdadeiro guardião da identidade romena, face à Igreja Ortodoxa Romena. A integração nacional torna sempre a coexistência problemática, e isso é verdade mesmo num país profundamente laico como a Estónia, onde a Igreja protestante luterana reúne cerca de 16% da população, principalmente entre os estónios, e a Igreja Ortodoxa 17% maioritariamente russos. Esta divisão aparece em paralelo com outras divergências sobre a língua, num contexto de paganismo reavivado, a que se juntam interpretações opostas da história recente e dolorosamente do país sob os domínios alemão e russo, também eles fonte de tensão e de discórdia.
Assim, notamos duas tendências maiores: uma a favor de uma Igreja livre num Estado livre, com o abandono do princípio de território estabelecido pelo Tratado de Westfália em 1648, e a segunda a favor de uma etno-religiosidade ou de um nacionalismo religioso baseado no princípio de pertença a um território. Grosso modo, isso corresponde a uma diferença de base entre o nacionalismo étnico e a nacionalidade assente sobre a cidadania (e sobre um certo grau de consenso político e moral), independentemente de outros critérios. A forma pela qual o nacionalismo étnico se exprime depende de factores históricos particulares, entre os quais o mais determinante é a reacção de um nacionalismo oprimido por um domínio estrangeiro e a colonização. Encontram-se alguns exemplos entre os irlandeses face à colonização britânica, entre os polacos e os lituanos perante à dos russos e entre os romenos, búlgaros, gregos e sérvios face à colonização da Turquia. Os casos mais extremos representados nestes exemplos representados pelo nacionalismo civil oposto ao nacionalismo étnico encontram-se fora da Europa. Assim, a Arábia Saudita não autoriza mesmo a construção de locais de culto não muçulmanos, em virtude do facto de que a Arábia é considerada como um território sagrado e inviolável. Há, é verdade, um preço a pagar por qualquer conversão na
A ponte Stari Most (a ponte velha), inscrita como património mundial pela UNESCO, símbolo da cidade de Mostar, na Bósnia-Herzegovina. Esta ponte que atravessa o Neretva, ligou, durante séculos, os bairros muçulmanos e croatas desta cidade. Foi destruída durante a guerra civil que grassou na Jugoslávia e reconstruída com a decisão da União Europeia, graças à generosidade de doadores. foi oficialmente reaberta à circulação em 2003, depois de seis anos de trabalhos. É, para um grande número de pessoas, um símbolo de esperança: a esperança de reunir novamente as duas comunidades. Foto WWEDU WORLD Wide Education – Center for European Security Studies http// www.european-security.info.
maior parte do mundo muçulmano, de Marrocos à Malásia e a democracia não oferece nenhuma garantia contra uma tirania mantida pela maioria. No Qatar, os não muçulmanos apenas podem adquirir territórios ganhos artificialmente ao mar. Na Europa, os exemplos mais próximos que se podem encontrar são a Sérvia onde a religião se tornou hiper-nacionalista, depois, mais longe, a Grécia, sempre consciente da proximidade da fronteira entre cristianismo e o islão, da situação de Chipre e do milhão e meio de gregos expulsos da Turquia depois de aí terem vivido durante cerca de mais de dois milénios e meio.
No entanto, pondo de parte as reacções etno-religiosas face ao colonialismo, o nacionalismo laico radical pode dar lugar a conflitos e a restrições legais, como em França, onde a ideologia republicana unificadora tem sido confrontada com
um modelo unificador alternativo constituído pelo catolicismo. Isso hoje reflecte-se na forma como o Estado francês, nas suas relações com as entidades religiosas, quer se trate de muçulmanos ou de “seitas” reproduz um modelo baseado na sua experiência histórica com a Igreja Católica: a França deve ser promovida como sede suprema de lealismo. A ideologia republicana tem estado inevitavelmente associada às formas não católicas de religião, em particular, com os protestantes e os judeus, mas é sobre a base da exigência do princípio da “laicidade”, que finalmente triunfou sobre a Terceira República, após 1870. A República tornou-se, ela própria, um objecto de veneração à maneira de uma entidade sagrada. O conceito cristão de glória foi traduzido por “a glória”, e a santa Virgem transformada em “Marianne”. O “assunto do lenço” sobre o uso apropriado pelas mulheres muçulmanas nada mais fez do que ilustrar a aplicação prática do princípio da “laicidade”, tal como o fizeram as leis limitando as actividades sectárias. As restrições legais na Bélgica são, de uma forma geral, também elas baseadas no modelo francês e conseguiram atrair para as suas fileiras entidades religiosas todavia reconhecidas, tais como os “cultos”.
Se olhamos para a Europa do Sul, ou do Leste, notamos que a imagem do secularismo francês e da “laicidade” encontrou o seu equivalente em países ou regiões nas quais permanecem profundos vestígios do monopólio católico tradicional ou, no caso dos kemalistas turcos, do monopólio islâmico. Por exemplo, no início do século XX, os pentecostistas podiam ser apontados, na Itália, como sendo “piores do que animais” assim como a presença institucional das Igrejas protestantes era assaz precária em Espanha. Nos nossos dias, as restrições abertas parecem reduzir-se mais à pressão subtil de uma quase uniformização. Com efeito, nessas regiões, principalmente ao longo do litoral mediterrânico, como no sul da Itália e na Sicília, um processo de selecção e uma mistura de influências cristãs com outras influências faz-se quase naturalmente sob a capa da uniformidade e de uma formas que os católicos situados mais a norte acham, muitas vezes, primitivo e chocante.
Para resumir a situação nas regiões do sul, do leste e particularmente do sudeste da Europa, poder-se-á dizer que a viga mestra do monopólio ainda está de pé. No entanto, o quadro legal da livre escolha religiosa também está em vigor e de uma certa forma é admitido que as normas católicas e ortodoxas específicas não podem constituir a base de uma legislação laica. Isto é cada vez mais verdade na Espanha após Franco, na Itália depois do referendo de 1974 reconhecendo o divórcio, e mesmo na Polónia pós-comunista. Mesmo que quase metade da população tenha uma prática religiosa regular, a Igreja estima que uma identificação permanente com o catolicismo não se pode traduzir, ao nível do legislador ou da população, pela adopção das normas católicas. Geralmente, a identificação pessoal e nacional no sul e no leste da Europa exprime-se pela religião, ou a língua em associação com a cultura, ou pela união religião-lín-
gua. A Turquia, cujo carácter laico é protegido pelo exército e onde os partidos islâmicos se tornam cada vez mais poderosos, constitui um caso à parte. O debate actual está em saber se o envolvimento do partido islâmico maioritário para a adesão da Turquia à União Europeia e às normas europeias sobre os direitos do Homem é táctico ou real.
Na Europa do Norte, do Oeste ou do Noroeste, o pluralismo é profundo e o multiculturalismo mais vastamente admitido, frequentemente num contexto em que as Igrejas são pouco institucionalizadas. A Alemanha é um exemplo de um Estado bi-confessional que conhece aquilo a que se chama um recuo da religião e um crescimento deste “espiritualidade” livre e de geometria variável que está muito expandida no noroeste da Europa. O seu principal problema diz respeito a vários milhões de turcos que têm o estatuto de trabalhadores imigrantes. Por razões que remontam ao seu passado nazi, os alemães desconfiam dos “cultos”. Não os reconhecem automaticamente e, tanto o Estado Federal como os Länder, tratam conjuntamente as questões levantadas como problemas concernentes às duas principais confissões as quais estimam, por sua vez, que se trata de um problema de juventude, das quais se devem ocupar, entre outros, as autoridades morais como o pastor Haack1. Os Países Baixos e o Reino Unido figuram entre os casos mais avançados de laicisação. Nos Países Baixos, os “digues” (fossos) criados pelo sistema de pilares (ou de gueto) com culturas protestantes, católicas e calvinistas fechadas sobre si mesmas, quase entraram em colapso no decurso dos anos 1960-70. O problema actual de segregação cultural não é inter-confessional, mas centrado numa importante subcultura muçulmana extremamente sensível a toda a erosão liberal da sua coesão assim como aos insultos. Como no Reino Unido, a distância cultural entre uma minoria muçulmana, com as lealdades internacionais, e a maioria cristã e laica colocam os pressupostos de uma sociedade multicultural em grandes dificuldades. Os liberais holandeses e britânicos, assim como a maior parte dos cristãos empregam todos os esforços para responder às sensibilidades e/ou às exigências dos muçulmanos, mas, ao mesmo tempo, estão conscientes de ameaça de violência e de questões ligadas às mulheres e aos homossexuais. No Reino Unidos, se bem que as populações vindas das Caraíbas, os africanos do ocidente, os polacos e os romenos estejam por vezes implicados numa contestação cultural, a distância cultural é menor do que no caso dos muçulmanos do subcontinente indiano. A cena europeia ocidental, na medida em que reflecte “o virar-se sobre si mesmo” e o “triunfo da terapêutica” de que tanto se fala, encontra-se confrontada com outras formas culturais no seio dos seus migrantes e igualmente entre os novos membros da União Europeia. Algumas vezes, estes podem apelar para os direitos do Homem sem se apropriarem deles completamente, ou eles mesmos os praticarem.
Há um domínio de contestação em que não são as normas europeias que sofrem a pressão crítica por parte dos novos membros, mas em que são estas normas que exercem, de forma
sistemática, uma pressão incontestável contra todas as subculturas religiosas. Um incidente que teve lugar recentemente no Reino Unido serve para ilustrar o que pode acontecer quando os direitos dos indivíduos (neste caso preciso, os dos homossexuais) chocam com os direitos colectivos de subculturas religiosas (no caso a Igreja Católica). Tratouse de uma directiva legal obrigando as agências de adopção católicas a tratar os casais homossexuais em plano de igualdade com outros casais para colocação de crianças a adoptar. Este problema faz parte de uma questão mais vasta, que é a de saber em que medida todas as questões de moralidade pública devem ser traduzidas na linguagem – que se supõe comum – do liberalismo laico. Mas esta é uma questão que ainda não está resolvida.
* Notas sobre a exposição que o autor apresentou em Manchester em Outubro de 2006, por ocasião de um encontro Faith in Europe – associação sediada na Grã Bretanha.
** Professor emérito de sociologia na London School of Economics e autor de numerosos livros e publicações de sociologia da religião, Grã Bretanha.
Notas:
1. Ver Elisabeth Arweck, Researching New Religious Movements, Routledge, Londres, 2006. 2. Ver Calvin Smith, “The Re-Privatisation of Faith and Evangelicals in the Public”, editorial in Evangelical of Society and Politics, vol. 1, nº 1, Fevereiro de 2007.