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o estudo de um caso: os Países Baixos

A dimensão religiosa do nacionalismo – o estudo de um caso: os Países Baixos

Reinder Bruinsma*

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A religião tem sido sempre um elemento fundamental no desenvolvimento das nações. Hoje, quando os problemas surgem nos Estados-Nação por questões étnicas, com muita frequência ele desempenha aí um papel importante. Religião e nacionalismo podem formar um cocktail explosivo, como se tem constatado no decurso da História.

No início dos anos 1990, quando a ex-Jugoslávia se desmembrou, novos Estados, que envolviam fronteiras étnicas, não tardaram a surgir cada uma com uma religião dominante: católica para a Croácia e a Eslovénia, predominância muçulmana para a Bósnia-Herzegovina e ortodoxa para a Sérvia. Os conflitos na Irlanda do Norte permanecem igualmente bem presentes nas memórias: ainda nos lembramos do ódio que opunha os católicos e os protestantes de Ian Paisley se tem alimentado da diferença entre as suas respectivas tradições religiosas e as ideias que os dois campos faziam da futura nação.

Igualmente, quando as Ilhas Fiji conheceram graves perturbações políticas, há alguns anos, a instabilidade política veio, em grande parte, do facto de que uma grande percentagem da população (perto de um terço) ser indiana e adepta da religião hindu, e os “verdadeiros” fijianos serem na maioria católicos. Também no Sudão, as questões étnicas e religiosas têm contribuído, largamente, para o conflito permanente entre o Norte e o Sul, que eram um muçulmano e o outro cristão. Ambos experimentaram enormes dificuldades para encontrar um acordo de paz (concluído no início de 2005) e muitos pensaram que nunca o conseguiriam. Estes poucos exemplos escolhidos ao acaso mostram-nos como as nações são influenciadas pela religião.

Bem entendido, outros factores, não religiosos, entram em jogo quer na formação, quer no desmantelamento das nações. Contudo, numerosos exemplos, para além dos citados acima, poderiam demonstrar que a religião tem sido, frequentemente, o principal detonador. E não falamos aqui de um passado longínquo, nem de uma ameaça à paz num outro continente para além do nosso. Ainda hoje, na Europa laica, o factor religioso poderá criar sérias tensões – ou pior ainda – pelo menos em certos

Guilherme de Orange-Nassau (15331584). Foi o chefe da revolta dos Países Baixos espanhois contra o rei de Espanha Filipe II e que levou à independência dos Províncias-Unidas. Retrato realizado por Adriaen Thomasz Key cerca de 1575. Foto Wikipédia

países. O presente artigo consagrado aos Países Baixos mostrará, a partir deste exemplo, o papel fundamental desempenhado no passado pela religião no desenvolvimento desta nação e a sua influência hoje no debate sobre o futuro da nação e da consciência nacional do povo holandês.

Nação, nacionalismo e religião

Poucos entre nós compreendem que o Estado-Nação moderno, tal como o conhecemos hoje na Europa, é um fenómeno relativamente novo. Isso é igualmente verdade para outros continentes, como a África, por exemplo. Os traços que nos atlas definem as fronteiras dos cinquenta e três Estados soberanos do continente africano são muito recentes: numa carta datada de 1900, não se encontra senão uma pequena parte. Foi apenas quando o processo de descolonização se acelerou (nos anos 1950 e 1960) que as fronteiras nacionais actuais foram desenhadas e que a maior parte dos nomes actuais dos Estados africanos apareceram1 .

Isso é igualmente verdadeiro na América do Sul: um mapa desta região antes dos primeiros decénios do século XIX mostrar-nos-á unicamente as esferas de influência dos diversos poderes coloniais. A maior parte das nações modernas nasceram no decurso do século XIX. A criação dos Estados Unidos da América remonta apenas a 4 de Julho de 1776, data na qual os representantes de treze Estados assinaram a Declaração de Independência. E será necessário esperar ainda muitos anos antes que os Estados Unidos cheguem à sua composição actual.

Por outro lado, pode dizer-se que há nações há milhares de anos. Alguns especialistas avançam mesmo que o conceito de nação é, de facto, “natural”2 e que já existiam nações na Antiguidade. Este assunto foi objecto de um aceso debate entre os “modernistas” por um lado e os “perenialistas” por outro. Os primeiros, como John Breuilly e Eric Hobsbawm, admitem algumas excepções, tais como a Inglaterra, os Países Baixos, a Sérvia, Castela, talvez a França e a Irlanda3, mas mantêm que quase todas as nações são um fenómeno contemporâneo

posterior ao Século das Luzes4. Esta opinião é violentamente contestada pelos perenialistas, como Adrian Hastings e outros, que afirmam que muitas nações são bem mais antigas. Hastings acredita que antes da nossa era os reinos do Antigo Testamento como a Judeia, mas também Samaria e o Egipto e ainda a Arménia e a Etiópia, já apresentavam as características principais de uma nação: diz também que um certo número de países europeus – principalmente a Grã Bretanha e os Países Baixos – eram verdadeiras nações bem antes do que os modernistas pretendem5 . Ele estima que se pode definir uma nação seguindo critérios menos estritos do que aqueles que os modernistas avançam e, por consequência, encontrar exemplos de nações talvez já na Europa da Idade Média, certamente nos séculos XVII e XVIII. Os modernistas respondem, com razão, parece, que os perenialistas têm a tendência de confundir etnicidade e sentimento de pertença a uma nação6. Mas todos concordam em dizer que a nação moderna é uma “invenção” europeia. Desde a Era Contemporânea que existem nações (com algumas raras excepções) onde a consciência nacional não é limitada a algumas classes mas partilhada por todo – ou quase todo – o povo de um Estado, mesmo se este é constituído por diversos grupos étnicos.

A maior parte dos especialistas acabam por dizer que a língua e a religião, têm, de diversas formas, desempenhado um papel preponderante na formação das nações. Segundo Adrian Hastings, a religião cristã tem estimulado o desenvolvimento de uma consciência nacional, muito mais, do que as outras religiões do mundo. Ela adianta que o aparecimento da literatura na língua popular, e em particular a publicação e a grande difusão da Bíblia traduzida na língua falada pelo povo, foi um factor essencial na construção das nações: o exemplo do reino de Judá, tirado do Velho Testamento, devia suscitar as esperanças do povo. Hastings cita a Inglaterra, como o principal exemplo7 . A criação de uma Igreja nacional e a harmonização dos textos litúrgicos traduzidos na língua falada por todos – como o Book of Common Prayer na Inglaterra, contribuíram, de uma forma significativa para o processo de formação da nação. [A província de Skåne, no sul da Suécia, constitui um outro exemplo interessante. Mostra como harmonizando os textos religiosos na língua vernácula, as autoridades podem reforçar o sentimento de consciência nacional. Esta província era dinamarquesa até ter sido ligada à Suécia, em 1658, depois de uma série de guerras. Os habitantes de Skåne não aceitavam a vitória dos suecos, e estes últimos apressaram-se a dar vida à Igreja tão sueca quanto possível. Este era para eles um dos meios mais seguros de fazer nascer e reforçar uma consciência nacional sueca nessa parte do país8.]

Numa primeira abordagem, poder-se-á acreditar que numa boa parte do mundo, a religião desempenha hoje um papel menos importante de que no passado, na consciência

nacional. No Ocidente laicizado, tem o aspecto de ser cada vez mais marginalizada e privatizada. Cada vez mais é posta à parte da política, da economia, da ciência, etc., e é relegada para a sua esfera própria. Em consequência, as convicções religiosas, os envolvimentos religiosos e as instituições vêem a sua importância social declinar9. Alguns pensam mesmo que o nacionalismo poderia ser considerado como uma religião laicizada10 .

Com efeito, pode pôr-se em dúvida que a secularização tenha modificado a paisagem política em muitos países do mundo. Estados tão diferentes como a França e a Turquia orgulhamse de ser hoje nações completamente laicas. Muitos outros marcaram bem a separação total entre a Igreja e o Estado na sua Constituição. Na Escandinávia, o conceito de Igreja e de Estado foi praticamente abandonado11. E, assim, as tradições religiosas permanecem por vezes bem fortes mesmo em ambientes muito laicos. Por exemplo, nos Estados Unidos, se bem que o princípio de uma separação total entre a Igreja e o Estado seja estritamente aplicado hoje, a religião continua, de forma evidente, a intervir em quase todos os domínios da vida pública. Trata-se, sem qualquer dúvida, de um aspecto que os candidatos à eleição presidencial não se podem permitir ignorar. Seria preciso ser verdadeiramente ingénuo para subestimar a influência dos lobbies religiosos nacionais em Washington12 .

Por outro lado, é necessário dizer que se, no clima pós-moderno actual, o interesse pela religião institucional regrediu consideravelmente, a atracção pela espiritualidade e as formas de religião não institucionalizadas permanece viva e até mesmo tem progredido. Excluir as noções religiosas e filosóficas da política é cada vez menos entendido como uma prova de intransigência. Pode notar-se que muitos grupos religioso fundamentalistas não param de dar a conhecer os seus avisos sobre as questões étnicas e que utilizam todos os meios de pressão política à sua disposição e todos os media ao seu alcance – e por vezes outros meios bem mais discutíveis – para fazer valer as suas ideias. Em muitos casos, os grupos religiosos fazem, parece, prova de uma ainda maior determinação do que no passado para se fazerem ouvir e para fazer valer os seus pontos de vista.

A isso, acrescenta-se, bem entendido, o facto de que os muçulmanos participam cada vez mais, no debate político. Quando há menos de um século, a maior parte dentre eles viviam em ambientes políticos que tornavam o aparecimento de nações muçulmanas improvável, hoje, a situação mudou completamente. Estamos perante uma nova realidade extremamente complexa. Assim como a religião cristã contribuiu para favorecer a distinção entre dois mundos (o de Deus e o da Terra) que estão muitas vezes em interacção, mas permanecem separados, a concepção muçulmana do mundo aceita muito menos o dissociar a fé e a vida pública13. E o facto de que milhares de muçulmanos tenham emigrado para países de tradição cristã teve

um impacto considerável sobre a consciência nacional nesses países. Até que ponto esses emigrados, cuja fé difere totalmente da da maioria, podem realmente, fazer parte dessas nações? Que influência advém de tão numerosos elementos “estranhos” como tal, sobre a consciência nacional da população indígena?

O papel da religião na história dos Países Baixos

Guardando na mente estas observações gerais, examinemos de mais perto o caso de uma nação em particular e vejamos que papel desempenhou a religião na sua História. Bem entendido, não podemos permitir-nos entrar nos detalhes. Segundo Hastings, a Holanda14 é, depois da Inglaterra, uma das nações mais antigas do mundo15. Dito isto, é necessário reconhecer que o actual reino dos Países Baixos é bem diferente do que era antes do século XIX, quer seja em termos de espaço ou de organização. Na sua origem, o Estado holandês era constituído por um certo número de províncias autónomas (a Holanda, a Zelândia, a província de Utreque, a Frísia, Overijssel e a Gueldra); a Holanda era a mais importante. Esta federação era encimada por um governo, os Estados Gerais, mas dispondo de uma grande autonomia. O território de Drenth dependia um pouco mais directamente dos Estados Gerais, assim como certas regiões que correspondem, mais ou menos, à actual província de Brabant estavam sob a administração directa desses Estados Gerais. Durante a Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), uma parte desses territórios permaneceu ocupado pela Espanha até que a Paz de Vestefália pôs termo ao conflito, em 1648. A República das Sete Províncias Unidas, tendo conquistado a sua independência, tornou-se, então, numa grande potência colonial, que englobou durante muito tempo o actual território belga.

De 1795 a 1815, os Países Baixos foram fortemente submetidos à influência da França e chegaram mesmo a fazer parte do Império Francês durante um breve período (18101813). Depois da retirada das tropas napoleónicas, em 1813, a dinastia de Orange, que tinha dominado a região antes do período francês, regressou aos Países Baixos e retomou o poder. Em 1815, o Reino dos Países Baixos foi fundado e Guilherme I tornou-se o primeiro soberano. Em 1830, a Bélgica sublevou-se e obteve a sua independência, até que em 1890 a união pessoal com o Luxemburgo (os dois países tinham o mesmo monarca) chega ao fim. A partir de 1830 o território dos Países Baixos, praticamente, não evoluiu16. As razões que explicam a secessão dos territórios do Sul são múltiplas, mas o aspecto religioso deve, sem qualquer dúvida, ter-se em linha de conta: a Bélgica era – e permanece – de predominância católica, enquanto que a população dos Países Baixos era maioritariamente protestante17 .

Até que, há algumas dezenas de anos, a vida nos Países Baixos estava, em grande parte, dividida em diferentes “pilares”. Ainda hoje, a educação está segmentada em função

das diversas tradições religiosas, e isso bem mais estritamente do que na maior parte dos países. A organização – única no seu género – da rádio e da televisão públicas provém, também ela, dos vestígios da pilarização religiosa (em holandês: verzuiling). É necessário dizer que durante uma boa parte do século passado, a sociedade holandesa foi caracterizada pela pilarização e pela forte influência dos partidos políticos que se definiam pela sua religião.

Ao longo de toda a História, a religião tem, com efeito, contado muito na sociedade e na política holandesas. No século XIX, a emancipação completa dos protestantes ortodoxos, que se separaram da Igreja nacional para fundarem as suas próprias Igrejas, ocupou a cena política durante vários anos, um dos objectivos do seu combate era conseguir que o governo subvencionasse completamente os estabelecimentos educativos de todas as confissões religiosas18 .

Poder-se-iam citar muitos outros casos em que a religião teve impacto sobre a política. Depois dos Países Baixos terem adoptado o calvinismo, no século XVI, as querelas religiosas dos primeiros decénios do século XVII causou perturbações políticas muito sérias. O debate teológico travou-se em redor do papel da vontade humana no processo da salvação. Os discípulos de Armínio, ou arminianos, insistiam na importância da escola do Homem e no poder da sua vontade, enquanto que Gomarus e os seus adeptos, mantinham que a salvação dependia unicamente da vontade soberana de Deus: os que tinham sido predestinados para serem salvos acederiam à eternidade, e os que não tinham sido eleitos seriam condenados para sempre. Os arminianos eram chamados remonstrantes e os gomaristas contra-remonstrantes. A controvérsia teológica que os opunha tornouse num conflito político sangrento entre o príncipe Maurício de Nassau, um dos filhos de Guilherme de Orange e leal contra-remonstrante, e Johan Oldebarnevelt, o mais alto funcionário provincial, pertencendo ao campo dos remonstrantes e que acabaria a sua vida no cadafalso19 .

Se a religião tem tanta importância na vida pública holandesa, não é de admirar: quando o país se bateu contra a Espanha para ganhar a independência (durante a Guerra dos Oitenta Anos) isso tratava-se muito mais de um combate pela liberdade religiosa do que uma luta pela liberdade política. Para Guilherme de Orange, o “pai” da Nação holandesa, a religião revestia-se de uma importância capital. Nascido numa família católica, foi marcado, muito cedo, pela influência luterana. Mais tarde, identificou-se com a religião reformada, se bem que a data da sua conversão ao calvinismo seja incerta. Filipe II rei de Espanha, que governava também os Países Baixos, qualificava o príncipe de “refinado hipócrita”20 assim como Pierre Dathenus, uma figura maior do calvinismo, também não era muito elogioso em relação à vida religiosa de Guilherme: acusava-o de mudar de religião como quem muda de camisa21. Esta crítica não era, segundo parece, merecida. Contudo, podemos dizer que o

Réplica de um navio de comércio da Companhia das Índias Orientais, no porto de Amesterdão. em 602, todas as companhias comerciais holandesas estavam agrupadas sob a Vereendigde Oostinsche Compagnie. o governo tinhalhes concedido o direito de soberania nacional e o monopólio do comércio marítimo. o seu poder económico consistia, sobretudo, em controlar a rota das especiarias que partia das Índias para a Europa. Foto Wikipédia

envolvimento de Guilherme I em direcção à revolta contra a Espanha funda-se na convicção religiosa que, como príncipe de sangue nobre, tinha o Direito divino de conduzir a resistência armada contra a tirania. É fascinante constatar que ele encontrou uma justificação para o seu papel de chefe da rebelião contra os espanhóis, na teoria calvinista do Direito de resistência ao magistrado tirânico22. Se alguém ainda tem dúvidas do ardor religioso que animou a guerra da independência e do contexto religioso do nascimento do Estado holandês como da sua consciência nacional, deveria estudar de perto o texto completo (quinze estrofes de oito versos cada) do hino nacional holandês, que parece mais cântico religioso do que um manifesto político.

Antes de passar aos Países Baixos de hoje, resta acrescentar uma coisa: se a religião e os conflitos religiosos têm sido elementos recorrentes na História24, a tolerância religiosa tem sido, igualmente, uma das grandes características da Nação e tem conseguido, ao longo dos tempos, bastantes vitórias.

A actualidade: a religião e a consciência nacional holandesa

Tão longe quanto remonta o sistema parlamentar, com os partidos políticos no sentido moderno do termo, as organizações políticas cristãs têm, geralmente, tomado uma parte essencial na vida política da sociedade holandesa. Desde a fusão em 1980, dos três principais partidos religiosos (um católico e dois protestantes) numa formação única, o CDA, este tem dirigido o Governo durante vinte dos últimos vinte e oito anos, em coligação, seja com os socialistas, seja com os conservadores. Actualmente (em Novembro de 2008), o chefe do Governo pertencente a este partido chama-se Peter Balkenende. Por sua vez, depois de um período de formação assaz longo, o Partido Trabalhista (o PvdA) aceitou unir-

-se à coligação governamental, mas faltava um terceiro partido para ter a maioria (o Parlamento tem 150 lugares). A grande consternação de muitas pessoas é um partido de predominância evangélica, o ChristenUnie, que ocupa seis lugares no Parlamento (mais três lugares do que os obtidos nas eleições de 2006) se ter unido ao gabinete, e o seu dirigente André Rouvoets, ter obtido um dos lugares de Vice-Primeiro-Ministro. O que resultou daí? Que as leis “liberais” sobre temas como a eutanásia, as drogas leves, o aborto ou o casamento entre homossexuais tenham sido revistas? Sem dúvida, muitos holandeses leigos pensaram que a sociedade tinha o dever de pagar um preço elevado pela intrusão não atendida do sentimento religioso ortodoxo e da ética tradicional no Governo, e reclamaram um regresso ao passado em muitos domínios. Outros, pelo contrário, acolheram como uma boa notícia a perspectiva de uma influência cristã mais marcada. Em todo o caso, todos chegaram a acordo para dizer que se iam colocar na ordem do dia assuntos religiosos que ainda não tinham (ou não muito) sido abordados há muitos anos: a abertura do comércio ao domingo, a falta de respeito na utilização do nome de Deus, a alusão a Deus na mensagem pronunciada cada ano pela Rainha para a abertura do ano parlamentar.

Mas outras razões podem explicar porque é que a religião surge novamente em cena. Com efeito, desde que os Países Baixos têm uma longa tradição de acolher os que pedem asilo e outros imigrantes, recentemente, os holandeses têm mostrado, claramente, que havia limites à sua vontade de autorizar sempre mais pessoas a entrar no seu país e de os deixar disputar-lhes os recursos nacionais. Pim Fortuyn, homem político tão brilhante como oportunista, soube fazer-se entender e dessa forma ganhar uma imensa popularidade, declarando que o país estava cheio e que as pessoas residentes nos Países Baixos se deviam comportar como os holandeses. Por detrás destas observações de ordem geral, a sua mensagem era muito explícita: o número sempre crescente de muçulmanos, e a sua vontade de viver de acordo com a sua própria cultura, constitui uma ameaça para a consciência nacional holandesa. No seu livro Contre l’islamisation de notre culture, Pim Fortuyn afirma que o Islão, na sua forma radical como nas suas variantes mais liberais, deve ser considerado como sendo o oposto do “nosso” modo de vida25 . É impossível adivinhar que papel Pim Fortuyn poderia desempenhar se não tivesse sido assassinado em Maio de 2002, apenas algumas semanas antes das eleições nacionais parlamentares.

Em 2002, os partidários de Pim Fortuyn (mas sem ele) fizeram a sua entrada no Parlamento com vinte seis membros, o que é um resultado notável para um novo Partido. Mas na ausência do seu líder, este Partido teve falta de coesão e foi rapidamente dissolvido. Os sentimentos para que Fortuyn tinha apelado, no entanto, não desapareceram. Em Setembro de 2004. Geert Wilders, um membro

do VVD, facção conservadora do Parlamento, decidiu deixar o seu Partido e prosseguir a sua carreira como deputado independente. Tem sido notado que ele partilha as ideias de Pim Fortyun, segundo as quais, não só os Países Baixos devem fechar as suas fronteiras à maior parte dos imigrantes, mas que também os holandeses devem proteger a sua herança judaico-cristã e tomar medidas para limitar a influência da religião e da cultura muçulmanas. Geert Wilders, cujo Partido conta agora com oito deputados no Parlamento, estima que as mesquitas e os imãs são muito mais numerosos nos Países Baixos. Segundo ele, a dupla nacionalidade – de que beneficiam numerosos imigrantes turcos e marroquinos – e o lenço não deveriam ser autorizados, sem falar da burca, que deveria ser interdita. Ele chega a dizer que o Islão é uma religião “atrasada” e que, uma vez que o Corão incita à violência também deveria ser proibido. No início de 2008, o seu filme antimuçulmano Fitna, provocou uma revolta semelhante à do “affaire” das caricaturas dinamarquesas de Maomé em 2006. Felizmente, antes da sua apresentação, as autoridades holandesas fizeram todo o possível para explicar que o filme de Geert Wilders não representava a opinião do Governo holandês, mas que tinha sido autorizado em virtude da liberdade de expressão holandesa. Isto permitiu evitar que as perturbações levassem a manifestações internacionais contra as embaixadas e as empresas holandesas.

Menos extremista, mas potencialmente tão influente, Rita Verdonk, uma outra personalidade política, deixou, também ela, o VVD por causa das sua opiniões ainda mais radicais para este Partido, e foi excluída do seu grupo parlamentar em Setembro de 2007, mas escolheu conservar o seu assento no Parlamento, agora como deputada independente. Está actualmente em vias de formar um novo partido chamado Trots op Nederland (Orgulhosos dos Países Baixos). Na época em que ela era Ministra da Imigração, era muito admirada (sobretudo pelos antigos partidários de Pim Fortuyn) pelas suas tomadas de posição intransigentes em matéria de imigração. As sondagens mostram que ela teria um grande sucesso se as eleições fossem hoje. Quando ela fala em público sobre o Islão, as suas propostas são um pouco menos agressivas do que as de Geert Wilders, mas anuncia claramente que aqueles que vêm de uma outra cultura devem aprender, rapidamente, o que significa ser holandês e adaptar-se ao modo de vida holandês.

Sem dúvida, hoje o debate ocupa-se, a maior parte do tempo, dos assuntos que não são abertamente religiosos, como a língua e a dupla nacionalidade, e todos os discursos a propósito da consciência nacional holandesa não falam de política interna. Muitas pessoas pensam que o alargamento e o aumento de poder da União Europeia são uma ameaça terrível para a consciência nacional, mesmo havendo ainda muito poucos elementos concretos para provar que o facto de um Estado pertencer à União Europeia

se traduz, inevitavelmente, num abaixamento da lealdade nacional26 . [É interessante notar que no debate sobre o projecto de Constituição Europeia, a questão de saber se se deveria, ou não, mencionar o nome de Deus ocupou um grande espaço. Este é um exemplo que mostra como o papel da religião ainda é importante.] Contudo, também não devemos subestimar a importância do religioso no debate sobre o presente e o futuro da Nação holandesa. Um estudo realizado no país, junto de jovens de todas as origens, revelou que apenas 5,7% dos jovens de origem holandesa consideram a religião como sendo o primeiro elemento da sua identidade. Entre os jovens não indígenas, esta percentagem é bem mais elevada: mais de 56% para os jovens de origem turca e quase 73% para os que são de origem marroquina.

Em geral, parece estar-se de acordo, em dizer que há uma oposição completa entre o Islão e a verdadeira democracia. Para alguns, é uma razão – e um argumento – mais para que os holandeses assegurem a preservação da sua cultura tradicional, a cultura judaico-cristã, como cultura dominante28 . Muitos dos que são desta opinião pretendem, também, que há um núcleo de identidade nacional que é necessário preservar das influências “estrangeiras”. Daí a crer que a “nossa” cultura tradicional é verdadeiramente superior às culturas imigradas, em particular a cultura islâmica, vai apenas um passo. Os acontecimentos do 11 de Setembro nos Estados Unidos e o assassinato do realizador provocador holandês Theo van Gogh (a 2 de Novembro de 2002) servem de catalisador aos sentimentos anti-islâmicos latentes – ou não tão latentes como isso. Escritores e intelectuais conhecidos, tais como B. J. Spruyt e o professor Paul Cliteur, contam entre os defensores mais cultos, mas também mais intransigentes, da opinião segundo a qual a cultura única, holandesa é superior às culturas árabo-islâmicas29 .

A tolerância religiosa

Num artigo como este, não podemos estudar todos os aspectos das relações entre a religião e a consciência nacional. Contudo, os poucos pontos de vista apresentados acima podem ajudar-nos a adoptar um comportamento responsável relativamente aos desafios presentes e futuros que representam a dimensão religiosa do multiculturalismo. 1. O facto de a religião continuar a desempenhar um papel fundamental na sociedade (quer social, quer política) não deveria perturbar demasiadamente os holandeses. No decurso da História, a religião sempre tem sido um dos aspectos essenciais da sua sociedade, chegando mesmo, em certas épocas, a ser um elemento da sua identidade. 2. A ideia de uma cultura holandesa relativamente coerente e estável no tempo trata-se, geralmente, de uma utopia. Aqui, como quase por todo o lado, as culturas nacionais desenvolvem-se no decorrer do tempo e estão constantemente sujeitas a evoluções maiores, devidas em parte, a influências externas, e em parte,

à chegada de novos cidadãos. Os Países Baixos têm sido sempre uma sociedade relativamente aberta o que tem, certamente, incidência sobre o “carácter holandês” da Nação. 3. Não há qualquer dúvida de que a língua holandesa contribuiu para a formação da Nação. No entanto, o facto de numerosos imigrantes não o falarem não vai, necessariamente, conduzir ao processo inverso (o desmantelamento da Nação), como alguns receiam. Esta língua tem mostrado a sua capacidade, ao longo do tempo, de absorver elementos de numerosas outras línguas. Quando à popularidade dos dialectos regionais, actualmente, não põe em causa o estatuto da língua holandesa. 4. No passado, os Países Baixos foram capazes de assimilar um grande número de imigrantes, huguenotes e judeus, no decurso dos séculos XVI e XVII, até centenas de trabalhadores imigrantes espanhóis e portugueses, nas décadas de 1960 e 1970. Estes desafios foram ultrapassados sem que a consciência nacional desaparecesse. Porque razão a situação actual suscita tantos receios? 5. A dimensão religiosa do presente desafio é, certamente, mais importante do que os anteriores, uma vez que a sociedade holandesa não teve, no passado, que se adaptar à presença de numerosos muçulmanos que representam, agora, cerca de 5,3% da população (número de facto bem inferior ao que a maior parte dos holandeses imagina!). 6. Qualquer abordagem da sociedade multicultural deve ser pragmática. Não se pode regressar à História recente: o carácter multicultural e pluriétnico da sociedade holandesa (como da maior parte dos outros países europeus) é definitiva. Crer que uma cultura seria superior às outras só pode conduzir a rancores, ou pior ainda. 7. Não esqueçamos que está em jogo uma importante questão de princípio. No decurso da sua História, os Países Baixos têm no conjunto dado prova de tolerância para com todas as religiões. Mesmo se esta atitude tem sido, em certas épocas, inspirada, à partida, por considerações mercantis que, por uma certa ética, forjou uma verdadeira tradição, que fez, daí em diante, parte da identidade holandesa. por causa dessa tradição, o povo holandês deveria interessar-se pelas crenças dos outros e praticar a tolerância positiva para com todos (salvo, bem entendido, quando as ideias religiosas entrem em conflito flagrante com os outros direitos do Homem) 8. Assim, podemos concluir que a tolerância religiosa não é um conceito ultrapassado a rejeitar em troca de uma abordagem totalmente laica da vida pública. Uma tal abordagem não poderia, de resto, funcionar, dado o papel permanente (mesmo crescente) da religião na vida pública holandesa. É necessário, portanto, promover largamente a tolerância religiosa porque ela faz parte integrante do nosso génio nacional. É igualmente a única abordagem sensata e pragmática, e, certamente, também uma questão de princípio de grande valor. Os acontecimentos recentemente ocorridos nos Países Baixos dão matéria de reflexão sobre o papel da

religião na formação da consciência nacional. Um estudioso dos outros países encontrará, sem dúvida, muitos aspectos idênticos. Porque, então, não tentar noutros países aqui que tem “funcionado” nos Países Baixos? Isso valeria verdadeiramente a pena!

* Presidente da Federação das Igrejas Adventistas dos Países Baixos. Autor de numerosas obras de teologia ética e prática. Notas 1. Colin McEvedy, The Penguin Atlas of African History, Penguin Books Ltd. Harmonsdsworth, Reino-Unido, 1980. 2. Anthony D. Smith, “Nations and History”, in Monserrat Guiserrat and John Huttchinson, eds. Understanding Nationalism, Polity Press, Cambridge, Reino Unido, 2001, p. 9. 3. Idem., p.12. 4. Benedict Anderson ocupa um lugar importante entre os “modernistas” e deve a sua fama ao seu best-seller sobre o nacionalismo, L’Imaginaire National publicado pela primeira vez em 1983 e vendidos centenas de exemplares, La Découverte, Paris, 1996. 5. Adrian Hastings, The Construction of Nationhood: Ethnicity, Religion and Nationalism, Cambridge University Press, Cambridge, 1997, p. 8-13. 6. Smith, op. cit, p. 19-26. 7. Hastings, op. cit., p. 35-65. 8. Herman Lindquist, Historien om Sverige: Från istid till framtid, Norsteds Verlag, Estocolmo, 2002, p. 227, 228. 9. Talal Asad, “Religion, Nation-State, Secularismo”, in Peter van der Veer and Hartmut Lehymann, ed., Nation and Religion: Perspectives on Europe and Asia, Princeton, University Press, Princeton, 1999, p. 178. 10. Idem., p. 183-188 11. Para um estudo muito útil da relação entre a Igreja e o Estado na maior parte dos países europeus, ver Gerard Roberts, ed., State and Church in the European Union, Nomos Verlagsgellschaft, Baden-Baden, 1996. 12. Ver Allen D. Hertzke, Representating God in Washington: The Role of Religious Lobbies in the American Polity, The University of Tennessee Press. Knoxville, TN, 1988. 13. Steven Grosby, “Nationality and Religion” in Monserrat Guibernau and John Hutchinson, eds. Understanding Nationalism, Polity Press, Cambridge, Reino-Unido, 2001, p. 109-113. 14. A Holanda é o nome da parte ocidental dos Países Baixos, mas os dois nomes são muitas vezes utilizados quase como sinónimos. É o caso deste artigo. 15. Hastings, op. Cit., p. 8 16. Bons livros de História dos Países Baixos foram publicados em inglês. Um dos mais recentes, de Thomas Colley Grattan, Holland: The History of the Netherlands, BiblioBazaar, 2006. Para um estudo aprofundado, ver também, Jonathan Irvine Israel, The Dutch Republic, Its rise, greatness and fall, 1447-1806,Oxford University Press, Oxford/Nova Iorque, 1995; e por fim, um grande classico: John Lothrop Motley, The Rise of the Dutch Republic, Harper and Brothers, Nova Iorque, 1978.

17. John Myhill, Language, Religion and National Identity in Europe and the Middle East, John Benjamins, Amesterdão/Filadélfia, PA, 2006, p. 184, 185. 18. Eginhard Meijering, Het Nederlands Christendom in de Twintigste Eeuw, Uitgeverij Balans, Amesterdão, 2007, p. 81-112. 19. Para um estudo deste período da História dos Países Baixos e dos principais personagens da época, ver A. Th. Van Deursen, Maurits van Nassau: de Winnaar die Faalde, Aula Pecketboeken, 2000, p. 253-278; P. Geyl, Geschiedenis van de Nederlandse Stam, vol. 2, Wereldbibliotheek, Amesterdão/Anvers, 1961, p. 445-473. 20. L. N. Lehman, The Drama of William of Orange; Being a Reprint of the Actual Ban of Proscription of King Philip of Spain against him, etc., Agora Publishing Campany, Nova Iorque, 1937, p. 34 21. Ver A. Eskhof, De Drie Fasen is de Godsdienstige Ontwikkeling van Prins Willem van Oranje, Stemmen des Tijds, 1933, p. 267,268. 22. Para um estudo e uma bibliografia complete, ver Reinder Bruisma, The Calvinistic Theory of the Right of Resistance and its Influence on the Dutch Revolt against Spain, Andrews University, Berrien Springs, MD. Tese de Mestrado não publicada, 1966. 23. A maior parte dos livros de cânticos holandeses incluem o Wilhelmus – o Hino Nacional – na sua selecção. Ver por ex. Liedboek van de Adventkerk, Kerkgenootschap der Zevendedags Adventisten, 1982, p. 740-745. 24. Para conhecer em detalhe um exemplo notável de conflito religioso, ver Reinder Bruisma, “The 1834 Secession and its Aftermath: Intolerance in a mostly Tolerant”, in John Graz, ed., Bilding Bridges of Faith and Freedom – a Festschrift written in honor of Bert Beach, Silver Spring, MD, 2005, p. 76-89. 25. Pim Fortuyn, Tegen de Islamisering van onze cultuur, A. W. Bruna, Utreque, 1997, p. 17,18. 26. John Hutchinson. “Nations and Culture, in Montserrat and Hatchinson, ed. op. cit. p. 91. 27. Maria Grever et Kees Ribbens, Nationale Identiteit en Meervoudig Verleden, Amsterdam University Presse, Amestardão, 2007, p. 21. 28. C. C. van Baalen, e out., Jaarboek Parlementaire Geschidenis 2007: De Moeizame Worsteling met de Nationale Identiteit, Boom, Amesterdão, 2007, p. 21. 29. Fleur Sleegers, In Debat over Nederland, Amsterdam University Press, Amesterdão, 2007, p. 56-58.

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