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E. Poulat Nacionalismo e religião: o caso francês R. Bruinsma A dimensão religiosa do nacionalismo

Émile Poulat*

O nacionalismo francês, é uma longa história com raízes profundas. É também, por isso, uma história complicada. É, talvez, igualmente, uma história ultrapassada, uma página virada, da história de França, restando, apenas, uma parte importante da sua herança.

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O caso complica-se ainda mais desde que se dê atenção às palavras que designam esta história ou a contam e aos embaraços da linguagem donde derivam. Nação surge desde o século XII, mas para designar grupos linguísticos no seio da Universidade de Paris. No início da Revolução Francesa (1798) a palavra passou a designar a federação das províncias nas fronteiras do país que ainda não eram as “fronteiras naturais” do Hexágono. Um dos primeiros actos será o “colocar os bens do clero à disposição da Nação”. Neste sentido, ao longo do século XIX, a Nação vai distinguir-se do Estado e até mesmo opor-se-lhe. Um século ainda e o primado passará para a República, transcendendo o Estado e as colectividades territoriais.

Mas nação encontra um forte concorrente em pátria, que apareceu no século XVI por oposição a país (em alemão Vatreland, por oposição a Heimat). O “país” é a freguesia, a aldeia, o pequeno país fechado sobre si mesmo que vai, lentamente, descobrir a grande pátria. É dessa forma que o camponês se torna patriota, assim como o patriota, olhando para além das fronteiras, se afirma nacionalista: temos compatriotas, não “conacionalistas”. A pátria integra, a nação separa. Patriota e patriotismo, formados no século XVIII, têm o seu início sob a acção da Revolução Francesa, conotados com a “esquerda”. O aparecimento da III República, em 1870, e o aspecto anticlerical do novo regime farão com que o patriotismo passe para a “direita”: a pátria é Joana d’Arc, assim como a República é a “meretriz”.

O paradoxo da França e o ser um ramo dos povos indo-europeus, vindos em vagas sucessivas e integrados no cadinho das “fronteiras naturais” (mar, rio ou montanha, exceptuando o Nordeste): Celtas (que não foram os primeiros ocupantes), Gauleses, Romanos, Germânicos, Visigodos, Burgundos, etc., com, na periferia, a excepção basca.

A França é um Estado fortemente centralizado desde há vários séculos, onde o provincianismo tem permanecido poderoso, onde o culto da língua francesa desde o Século XVII e o Cardeal Richelieu têm, desde há

muito, coexistido com as línguas regionais, os dialectos e os patoás locais: é a escola de Jules Ferry e o serviço militar obrigatório que acabarão por triunfar sobre estas particularidades sem as eliminar. Ainda hoje permanecem vivas as línguas basca, da ocitânia, bretã, flamenga, alemã (Mosela), alsaciana e corsa. No século XVII a França será mesmo governada por uma rainha regente e um cardeal ministro italianos. Nos séculos XIX e XX a imigração não parou, seguida pela assimilação, até à última vaga actual, massiva e, por isso, criando problemas, de populações muçulmanos, além disso, heterogéneas. Toda a história interior da França se resume assim, na articulação desse centralisJoana d’Arc (1412-1431) apelidada de a Donzela de Orléans, é uma heroína nacional francesa. Após mo (“os quarenta reis que fizeram a França”), perante as visões que ela teve, acreditou ser investida de o inimigo exterior, e das uma missão: libertar a França dos ingleses, a fazer suas particularidades irrecom que o Delfim Carlos VII subisse ao trono de dutíveis. Mas esta história França. Depois de alguns inícios triunfantes, foi capturada pelos burgonheses e vendida aos ingleses que a enviaram a um tribunal católico. Este é também subdeterminada pela fractura, desde a condenou-a à morte à ordem do rei inglês. Foi Revolução Francesa entre elevada ao papel de mártir em 1909 e canonisada “as duas Franças”: a França em 1920, sob o pontificado de Bento XV. católica e a França laica, a Miniatura datada da segunda metade do século XV, propriedade do Centro Histórico dos Arquivos Nacionais de Paris. França de Joana D’Arc e a França de Voltaire, as raízes Foto Wikipédia. cristãs da França e as Luzes para as quais não há nem a história nem a religião, mas a razão que é o nosso código. As raízes cristãs da França – fontes de um debate apaixonado peran-

te o projecto da Constituição Europeia e o seu preâmbulo – remonta a um passado bem antigo: ao baptismo de Clovis em 496, que fez desse rei – católico num ambiente ariano – o “filho primogénito da Igreja”. Esse não foi um acto de vassalagem, mas um serviço voluntário assumido com toda a independência após uma missão recebida directamente do Céu: “Gesta Dei per Francos”, os francos são os missionários de Deus. O Reino da França não cessa de afirmar a sua posição singular entre “o Sacerdócio do Império”, sem todavia escapar à sua querela, que era a da supremacia; ou o poder temporal, ou o poder espiritual.

O primeiro acabará por prevalecer sobre o segundo. Para o papado, o advento da Europa das nações marca o fim do sonho da cristandade medieval. Os interesses nacionais ultrapassam a unidade religiosa. O papa Leão XIII (1878-1903) relança a ideia de uma ordem pública internacional cristã: o seu pensamento está na origem da democracia cristã e dos partidos de inspiração democrata cristã, principalmente na Europa e na América Latina. Esta corrente triunfará em França em 1944 depois da Libertação com o M.R.P. (Movimento Republicano Popular), de uma forma efémera, demonstração política de que em França o nacionalismo era a barreira contra a qual se quebrou o ideal internacional da Santa Sé e da Democracia Cristã.

O palácio Bourbon, em Paris, foi construído em 1722 pela duquesa Louise-Françoise de Bourbon, filha legítima do rei Luís XIV e da senhora de Montespan. Foi ocupado pelo povo durante a Revolução Francesa e pela Assembleia Nacional, em 1827. Napoleão I modifcou-lhe a fachada e enriquece-a com doze colunas de estilo grego semelhantes às da Igreja de la Madeleine. Hoje o palácio abriga o Parlamento francês, que é constituído pela Assembleia Nacional e o Senado. Foto www.gothere-guide.com A Revolução e o Império eram herdeiros deste nacionalismo conquistador e laicizado. Napoleão I sonhará com a “Grande Nação”, incluindo a Bélgica a Renânia e para além dessas fronteiras históricas, unificando a Europa – Alemanha,

Espanha, Itália – sob a sua autoridade. No século XIX, a França deveria rever as suas ambições. O seu nacionalismo tornar-se-á defensivo: por um lado contra os poderes exteriores que a ameaçam, tendo à cabeça a

Grã-Bretanha e a Alemanha; por outro lado contra o perigo interior, protestante, judaico e “estrangeiro”.

Charlis Maurras (1868-1952) tornar-se-á o chantre do “nacionalismo integral” ao serviço do qual colocará o seu movimento: A Acção

Francesa.

O nacionalismo francês reencontra uma dimensão expansionista, principalmente, com a colonização da África, mas também na Ásia e na Oceânia, em nome da “civilização”, herança de uma mistura de cristianismo e de Luzes. Forçoso é constatar que as missões católicas deram origem a Igrejas daí em diante independentes, ao passo que o colonizador teve de se retirar deixando situações difíceis.

O nacionalismo francês atravessa, assim, toda a história da França e remonta as suas origens até mesmo quando ainda não tinha esse nome. As suas “raízes cristãs” tiveram durante muito tempo as suas credenciais de nobreza. Desde então, o seu combate em duas frentes tem duas faces: por um lado, para responder à sua “vocação divina” e assegurar no mundo a sua posição eminente; por outro para lutar contra todas as forças que se declaram contra esta vocação, sem a renegar, mas laicizando-a**.

Nascido de uma iluminação mística, este nacionalismo submergiu-se nas paixões políticas. E está hoje vazio da sua substância e da sua energia, sob a influência da secularização e da actual mundialização europeia e também no momento em que a tradição política de “defesa nacional” venceu. Não subsiste mais do que de uma forma residual na extrema-direita do xadrez político ou na reacção de “soberania” perante a unificação da Europa. Poderá dizerse que o seu último refúgio seja o desporto, que o fundador dos Jogos Olímpicos, Pierre de Coubertin, considerava em 1894, como uma “nova religião”.

* Professor Universitário, director de investigação no CNRS, França

** Jocques Marx, Le Péché de la France, Surnaturel et politique au XIXe siècle, Edições da ULB Espaces de Liberté, col. “Laïcité”, Bruxelas, 2005, 442 pág. (prefácio de Émile Poulat).

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