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H. Theisen O relativismo cultural: um perigo político

Heinz Theisen*

A cultura dos contrários na Europa.

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A Europa é uma cultura de contrários, os quais se mantêm em equilíbrio através do jogo da reciprocidade estrutural. Em domínios de tensão como Religião e Política, Cristianismo e Luzes ou Estado e Mercado, a palavra “e” desempenha um papel determinante. Na Alemanha, por exemplo, a separação e a complementaridade da Igreja e do Estado coexistem desde o Jardim de Infância e a Escola.

Este “e” europeu encontra raízes espirituais no Cristianismo. A expressão beneditina “Ora et Labora” (orar e trabalhar), com a sua reciprocidade entre o mundo interior e o exterior, espiritual e material, poderia ser considerada como a origem do Ocidente. A dialéctica cristã entre Deus e os homens, entre o amor a si próprio e o amor ao seu próximo, com o “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” lançou os fundamentos da diferenciação actual dos sistemas fundamentais da Religião, da Política, da Ciência, do Estado e da economia de mercado. Cada um deles segue a sua lógica própria mas deve igualmente completar os outros sistemas.

A liberdade de acção de que gozam estes diferentes sistemas apenas tornou possível a dinâmica das sociedades ocidentais. No ideal, a complementaridade destes contrários deveria conduzir a uma reciprocidade de motivações espirituais e materiais, entre moral e interesse e entre o bem pessoal e o bem comum. Mas as tensões e reciprocidades produtivas entre estes diferentes domínios estão sempre ameaçadas pela parcialidade totalitarista ou a dissolução relativista.

Se se renuncia à tensão entre religião e valores esclarecidos, a cultura europeia falha. Onde as relações de força entre a religião e mundo são negadas, como no caso do relativismo, ou combatidas, como no totalitarismo, está em risco de se perder esse “e” e, com ele, a identidade da Europa. O relativismo e o totalitarismo têm em comum, como todos os extremismos, a rejeição da reciprocidade. A dissolução crescente das reciprocidades na Europa fez nascer o homem bem pensante que nega o pecado e a culpabilidade, e também, a responsabilidade do ser humano. Como ele considera quase todos os homens como vítimas da “descriminação”, renuncia à reciprocidade: isso explica a ausência

de tolerância mútua e de reciprocidade dos direitos e deveres entre os imigrantes. Em virtude deste relativismo cultural, os valores culturais são equivalentes. A partir daí, mesmo culturas que recusam o princípio da igualdade dos valores e que representam uma ordem de valores contrários aos da cultura ocidental – como, por exemplo, a prioridade da colectividade sobre o indivíduo ou a união da religião e da política – são consideradas como sendo de valor igual.

Os diálogos, muitas vezes travados num espírito relativista, baseiam-se, desde logo, sobre teorias absurdas. Falta a estas discussões, que não são obrigadas à verdade, um critério comum; trata-se apenas de uma troca de opiniões. O “Diálogo de Culturas” ameaça, assim, tornar-se a incarnação de um credo relativista, no qual a sua verdade não tem mais valor do que a dos outros. A hipótese segundo a qual tudo é relativo deve começar pela sua própria excepção. É o que acontece constantemente quando o relativismo se proclama como verdade. Interditar estabelecer diferenças, mesmo que seja politicamente correcto, acaba no fim de contas com a liberdade de pensar.

Para uma cultura como “a ordem de valores” esta multidão de valores é uma ameaça. Toda a cultura tem por princípio julgar o seu próprio valor, porque ela determina o que é a cultura. A multiplicidade de valores propostos impede a aquisição do discernimento ético, a capacidade de distinguir o bem do mal e de praticar as virtudes correspondentes – a tolerância, o amor à paz e a responsabilidade. Estas atitudes e estas virtudes que tornam possível o exercício da democracia não se obtêm através de apelos ou de injunções. Devem ser vividas e praticadas repetidamente1 .

O desafio islâmico

Nada há a dizer sobre o fundamentalismo como reflexão sobre os seus próprios fundamentos, desde que estes últimos não pretendam deter uma verdade de carácter totalitário. O fundamentalismo evangélico, por exemplo, que pugna por uma separação estrita da Igreja e do Estado, não coloca nenhum problema político. Mas, se, como no islamismo, o fundamento repousa na unidade afirmada da religião e da política, é incompatível com a cultura europeia.

O islão é mais do que uma religião. Ele constitui uma visão global do mundo, segundo a qual a vida quotidiana, a política e a fé formam uma unidade indivisível. Todos os movimentos totalitários repousam sobre a aspiração a uma solução definitiva dos problemas, e, portanto, a uma redenção (“O islão é a solução”). Esta concepção está em contradição com a imagem que a sociedade tem de si mesma, a que deixa Deus decidir a solução absoluta2 .

A dinâmica totalitária não se detém nem diante das fronteiras dos sistemas funcionais e parciais

modernos, nem diante das fronteiras das outras culturas. O imperialismo islâmico, sob a forma da Djihad, incarna o novo inimigo declarado da sociedade aberta. Este terceiro totalitarismo é, ele também, desconhecido e subestimado ainda hoje pelos mediadores, os pacifistas e os partidários do diálogo das culturas3. Como, segundo eles, “temos o direito de proteger a nossa liberdade até à morte”, eles privam a democracia dos métodos da “democracia defensiva” desenvolvidos contra os nazis e os comunistas, a saber: “nenhuma liberdade total para os inimigos da liberdade”. Na medida em que eles concedem “a liberdade religiosa” mesmo para os djihadistas e consideram--nos, sem razão, “combatentes da liberdade oprimidos”, passam ao lado do seu carácter fundamentalmente totalitário. No estudo sobre a Djiahd, Walid Phares descreveu como, em 2001, os utopistas, os pacifistas americanos tinham por isso sido responsáveis pela cegueira perante a – não tão nova – ameaça islamita. Os atentados praticados durante os anos 1990 contra as instituições americanas, tendo como resultado a morte de centenas de pessoas, foram considerados como obra de criminosos isolados ou como a expressão de conflitos ou movimentos de libertação locais. Foi necessária a tragédia do 11 de Setembro para que a maioria dos americanos compreendesse a quem ele se dirigia. A resposta atabalhoada dos serviços secretos americanos foi a consequência tardia da má avaliação de um desafio mortífero.

Ainda hoje se encontram, regularmente, intérpretes do Corão que reduzem a Djihad a uma espécie de ioga espiritual, uma forma de lutar contra os seus próprios vícios. Esta interpretação particular existe efectivamente, mas não tem nada que ver com a política. Refere-se-lhe, unicamente, para negar toda a interpretação política – contudo, pertinente – releva já da traição intelectual relativa às nossas legítimas necessidades de segurança.

Em contrapartida, na interpretação política, a Djihad serve para preparar a guerra contra os infiéis. A lógica totalitária do “califado” – na qual os assuntos seculares e religiosos se confundem – compreende-se como um todo onde se faz um esforço para ser “autêntico” sem se perder na contradição. A traição para com a sua “cultura da morte” fornece aos islamitas munições para os seus ataques. Basta-lhes recopiar as frases – se necessário tiradas do seu contexto – de críticas da cultura ocidental. Bibliotecas inteiras foram escritas contra Huntington, como se ele tivesse inventado a guerra das culturas, que apenas se contenta em descrever.

Quanto a nós, uma tal negação da ameaça acaba por trair os muçulmanos que lutam por uma renovação democrática do mundo muçulmano. A jurista de origem somali, Ayaan Hirsi Ali, saudou os liberais europeus que se opuseram ao facto

A mesquita Mevlâna, centro espiritual da comunidade islâmica turca em Constança, na Alemanha. Foto Eli Diez-Prida/church-photo.de. de se forçarem as pessoas a crer e a seguir os costumes e que, dessa forma, despertaram o pensamento crítico nela e noutros muçulmanos liberais. Reprovou, no entanto, uma tendência singular a acharem que são os únicos responsáveis por todos os males e a considerarem o resto do mundo como vítimas. Eles criticam os Estados Unidos e não o mundo islâmico, assim como no passado também não criticaram os golagues. Não se aperceberam de que, evitando escrupulosamente submeter à sua crítica todas as culturas não ocidentais, encerram-nas no seu “mundo atrasado”. Ele interpreta este comportamento desta forma: com efeito, os liberais sentem-se superiores e não consideram os muçulmanos como interlocutores de nível equivalente, mas mais como pessoas diferentes, com os quais se deve ter cuidado pois podem, face à crítica, encolerizar-se e recorrer à violência4 .

As consequências desta interdição de marcar as diferenças revelam-se fatais se nem mesmo é permitido distinguir entre os amigos e os adversários, ou os inimigos da nossa cultura. O islamita não tem opinião. Toda a sua existência é consagrada a assumir a sua identidade. Ora, para ele, um “melhor argumento” não é um argumento mas exactamente uma ameaça para a sua identidade. O islamismo repousa, portanto, essencialmente na recusa do discurso liberal.

Relativismo e universalismo

O relativismo cultural apega-se resolutamente a uma justaposição de culturas, o que é sempre mais realista do que a mistura “transcultural” de que se ouve, frequentemente, falar. Esta forma de relativismo, não toma a sério, nem os seus próprios valores nem os das outras culturas. Para os relativistas, estes valores parecem relativos, opcionais, mutáveis, manipuláveis e adaptáveis.

As réplicas americanas contra o islamismo depois do 11 de Setembro foram muito precipitadas e pouco empenhadas, porque elas nos arrastaram para muito longe num território desconhecido. O intervencionismo liberal das potências ocidentais não se contenta em

querer dar uma ajuda humanitária, como no caso de uma intervenção ética, mas quer também impor novas estruturas políticas. Nada menos de 70 000 soldados provenientes apenas dos países membros da União Europeia, estão estacionados ao redor deste território. Este paradoxo do mundo ocidental, onde o relativismo cultural e o universalismo político coexistem, explica-se pela origem comum destes dois conceitos. Um e outro renegam a particularidade da cultura ocidental, as suas tradições e os seus pressupostos.

A tentativa de integrar os islamitas, assim como a universalização da democracia nos países islâmicos, são ambas a expressão do relativismo. Os direitos do Homem e a democracia repousam em valores especificamente ocidentais. Nas culturas dos clãs pré-modernos, as eleições livres conduzem, quase inevitavelmente, a guerras civis ou a sistemas híbridos terríveis a “democraturas”, oligarquias e “mafiocracias”. Sem o pensamento esclarecido de cidadãos maiores e de indivíduos responsáveis, os compromissos são impossíveis. Sem os princípios morais da solidariedade anónima, as “economias de mercado” chegam ao darwinismo social. Os perdedores desiludidos voltam-se então contra aqueles que vieram para os ajudar e que eles consideram, desde logo, como ocupantes: sem o querer, estes últimos violam ainda e sempre a lógica própria das culturas estrangeiras.

Não é um esquecimento involuntário se no projecto da Constituição europeia não é feita nenhuma referência à origem desta e às suas relações com os valores das Luzes, assim como aos laços entre filosofia, direito e religião, entre Atenas, Roma e Jerusalém. Apenas o silêncio sobre estas raízes ocidentais permita a hipótese do seu universalismo. A evocação da origem e das relações entre os valores teriam mostrado, claramente, que a nossa cultura tem um início e um fim e teria significado que há uma fronteira entre nós e aqueles que estão apegados a outros valores5 .

Colocar entre parêntesis sistematicamente o cristianismo nos processos de comunicação intra-europeus, sem dúvida, não era a melhor táctica. Uma tolerância universal que não exclua ninguém também não inclui aqueles que se sentem particularmente implicados na cultura europeia. Acreditou-se poder acabar com o apoio às Igrejas cristãs, às quais, contudo, dois terços dos europeus estão ainda ligados. Eis o comentário horrorizado de Papa Bento XVI sobre a Declaração de Berlim. “Como podem os governos da União excluir um elemento tão essencial da identidade europeia como é o cristianismo, com o qual a maioria dos cidadãos continua a identificar-se? […] Esta forma única de se negar a si mesmo antes de renegar Deus, não levará a Europa a duvi-

dar da sua própria identidade?6”

Novas reciprocidades entre a Europa e o Islão?

Os países ocidentais da Europa agem como íman para os migrantes e os candidatos à adesão, mas é menos em razão dos seus valores do que pelas bases materiais da civilização. A integração cultural começaria se se estudasse a relação entre valores e os seus resultados sobre a civilização. Enquanto nós não transmitimos estas relações aos imigrantes, eles integram-se unicamente na civilização mas não na nossa cultura.

As estratégias ilusórias, no sentido de um simples encorajamento e de uma “transformação por aproximação” devem ser substituídas por uma estratégia de reciprocidade verdadeiramente pragmática – isto é, orientada para aquilo que é possível e necessário – entre encorajamento, exigência e “aproximação por transformação”. Necla Kelek aplicou esta estratégia no quadro da construção de uma mesquita. Uma vez que uma mesquita é mais do que um centro espiritual, colocam--se questões políticas a esse respeito: Será que estamos a respeitar a lei? Será que estamos a prevenir a discriminação das mulheres? Será que favorecemos a integração, ou será que ela serve apenas como célula de uma sociedade?7

No que concerne as últimas questões sobre a verdade em matéria de religiões, apenas nos podemos colocar de acordo sobre o facto de que não estamos de acordo. No diálogo inter-religioso, trata-se de instaurar virtudes secundárias como a tolerância e o respeito mútuos. Os diálogos entre a religião e o mundo secular deveriam ter mais importância do que diálogos sobre o conteúdo das crenças. Eles são realizados na Europa desde há pelo menos 500 anos e o mundo muçulmano também não lhes escapou.

A laicidade, tal como é praticada em França, com uma estrita separação entre a esfera religiosa privada e a política, é também uma excepção na Europa. É por isso que não seria apropriado. Quando os critérios de apreciação religiosa são excluídos da vida pública, isso leva, por um lado, à decadência moral e por outro ao fundamentalismo. Nisso é necessário dar razão a Hans Küng: devemos encontrar uma medida justa entre a ideologia islamita e a ideologia secular; é necessário não confundir a secularização com secularismo. Nas sociedades islamitas também, a política, o direito, a economia e a ciência devem tornar-se domínios autónomos, livres e secularizados, emancipados de todo o controlo religioso. Por seu lado, no Ocidente, os sistemas funcionais não podem permanecer sem base religiosa e moral nem deixar de crer num sentido último das coisas. Tal como a fé absoluta, a razão absoluta liberta, também ela, energias destrutivas, que poderiam ter consequências devastadoras traduzindo-se pela imergência de ideologias pseudo-religiosas8 .

Todas as tentativas visando ins-

taurar um poder secular ou religioso único na cultura ocidental fracassaram; isso não é fruto do acaso. Depois de muitos conflitos, o cristianismo poderá mostrar-se disposto a reconhecer a autonomia da esfera política. Isso seria impensável se o cristianismo não estivesse já interiormente disposto a limitar-se a si mesmo, tendência instaurada por Jesus, cujo reino não deveria ser deste mundo. No coração do cristianismo encontra-se o mandamento do amor e não um conjunto de leis para pôr em acção sobre o plano político.

A liberdade religiosa já não é um valor absoluto: ela deve ser colocada em equilíbrio com outros direitos fundamentais como a liberdade de opinião. De igual forma, a liberdade religiosa garantida pelo Estado constitucional não o é verdadeiramente senão na medida em que a religião que a reivindica respeite os direitos fundamentais de cada um. O respeito pelos direitos do Homem está no coração do cristianismo9. O cristianismo não pode, por sua vez, reconhecer um Estado que se volta contra ele, Peter Graf Kielmansegg qualifica este reconhecimento mútuo de “consonância normativa”. Esta aparece hoje no primeiro artigo da Lei fundamental alemã: “A dignidade do ser humano é intangível. Todos os poderes públicos têm a obrigação de a respeitar e de a proteger”. Sem esta consonância normativa, seria difícil imaginar estas duas instâncias tentando coexistir impondo-se mutuamente limites. A abordagem europeia não é, portanto, neutra religiosamente mas muito mais ligada a tradições e a religiões específicas.

Será a consonância normativa responsável na sociedade islâmica? Esta questão poderia ser decisiva para o futuro da Europa. Hoje, podemos considerar que a laicidade turca fracassou. Ela contribuiu, por um lado, para um relativismo dos valores chegando até à corrupção do antigo sistema político e, por outro lado, ao islamismo. A Turquia é hoje um país dilacerado. Os poucos cristãos praticantes (numa antiga região cristã eles não representam senão 0,2% da população) estão em perigo. O governo islâmico moderado não lhes presta nenhum auxílio. As minorias em perigo não dependem da neutralidade, mas antes do apoio do Estado. A laicidade turca também não contribui para o desenvolvimento do Islão. Ela serve frequentemente como argumento em favor da reaproximação da Turquia e da Europa. Mas observando isto de mais perto, apercebemo-nos de uma diferença fundamental nas suas respectivas formas de aplicar este princípio. A laicidade europeia consiste numa oposição entre o cristianismo latente e a aplicação dos valores cristãos.

A complexidade do Corão constitui um perigo, porque mesmo o terror pode encontrar nele uma justificação, mas é igualmente uma oportunidade porque o texto permite também as interpretações mais

moderadas. Nas escolas corânicas, as crianças não aprendem apenas o que seu imã julga com justiça. Numa escola alemã o curso de religião islâmica deve ser supervisionado pelo Estado, que deve assegurar que as religiões encorajem e reivindiquem os direitos fundamentais como a liberdade científica assim como a liberdade de expressão e de religião. O curso de religião na Alemanha pode servir de modelo no que respeita a necessidade de uma coexistência da separação e da cooperação entre a religião e a política. É uma matéria à parte que é ministrada “de acordo com os princípios das comunidades religiosas”. O Estado alemão é neutro no que respeita às confissões e, ao mesmo tempo, trabalha com elas. Ele não está alheado, mas espera que as religiões, com as quais coopera, sejam leais à Constituição.

Como para ensinar os professores das outras matérias, o Estado cuida que os professores de religião sejam formados nas faculdades de teologia. Estes não são eclesiásticos, mas sim funcionários como os outros professores. Eles comprometem-se, portanto, a respeitar a Constituição. As aulas de religião enquadradas pelo Estado contribuem para uma “civilização das religiões pela formação” e, ao mesmo tempo, mantêm a civilização, uma vez que vai contra uma educação bárbara “desprovida de valores”10 .

Segundo Josef Isensee, cada Estado mantém relações mutáveis com a cultura; ele alimenta-se da substância e procura influenciar servindo-se dos meios postos à sua disposição pela Constituição. A expressão “cultura dominante” suscita desconfiança, porque arrisca-se a dar ao Estado o poder de oficializar uma imagem definida de Estado, o que é inadmissível. A cultura não é imposta de cima; ela constrói-se a partir de baixo. Enquanto que os direitos fundamentais bastam, o Estado não está habilitado a distinguir a boa da má cultura, a cultura tradicional da cultura moderna. Ele é culturalmente neutro, mas não é cego. Trata-se sempre de um Estado cultural. Isso deriva, primeiramente, de sua missão educativa, paralela à educação fundamental garantida pelos pais, que a completa e, em certos casos, a equilibra. A escola renova as bases da formação da sociedade e assegura, ao mesmo tempo, a coesão da comunidade de solidariedade democrática.

O pluralismo considera as discussões tensas como um dado adquirido. Numa sociedade diferente, organizada em guetos, não há discussão, de forma alguma. Mas porque a obrigação escolar se aplica em todo o tempo aos filhos de todos os cidadãos, qualquer que seja a sua religião, ela dá-lhe uma oportunidade de se integrar. A aula incarna o exercício da autoridade escolar alemã, ligada aos direitos fundamentais. Não se trata de um objecto de desenvolvimento pessoal privado, ligado à religião, ou à última tendência11 .

Desviar-se do universalismo não deve fazer cair no excesso inverso, a saber, o relativismo cultural. Um diálogo com o Islão no decurso do qual não se aborde nem a falta de liberdade religiosa nem as perseguições contra os cristãos no mundo islâmico não passa de um logro. Uma tal forma de aprendizagem intercultural, implicando uma renúncia à tolerância recíproca e à liberdade mútua, constitui uma forma de traição de si mesmo.

Conflitos e reciprocidades

Podem-se atenuar as delimitações entre as culturas, na medida em que as reciprocidades foram instauradas no passado. As culturas chocam-se frequentemente por causa da seguinte contradição: todos reconhecem a “regra de ouro” do equilíbrio entre o dar e o receber, entre participar e associar-se (uma regra que pode demonstrar-se indispensável nos processos de alargamento e de integração), mas a necessidade de uma reciprocidade entre participar e associar-se com fins de integração está em conflito com a obrigação de renunciar a uma universalização da sua própria cultura.

Não pretendemos resolver os conflitos antediluvianos que opuseram as Luzes aos Românticos, a tradição ao progresso, a comunidade ao indivíduo; podemos explicá-los em função de acontecimentos históricos. No conflito entre culturas, põem-se questões éticas, também elas no seio de um contexto cronológico. Sybille Tönnies dá-nos um exemplo concreto quando descreve as relações entre os direitos individuais do homem e os deveres colectivos. Nas colectividades, os direitos individuais do homem têm, muitas vezes, efeitos explosivos, que destroem a lealdade e a segurança tradicionais. Mas podemos completar esta série de oposições prevendo a próxima. “Onde os indivíduos já não fazem parte de associações tradicionais, onde vivem de forma anónima uns ao lado dos outros e têm contratos de trabalho que não estão protegidos pelos bons velhos hábitos, onde a família alargada se decompôs e onde a pessoa sozinha se encontra isolada – em resumo, onde a sociedade moderna se impôs – são necessárias as disposições dos direitos do Homem. Devem tomar o lugar da solidariedade que desapareceu das comunidades. Mas onde este não é o caso – onde a “vida em comum” tem ainda realmente um significado tradicional e autêntico, podem eles retirar-se!”12

Não existe a longo termo alternativa à democracia e aos direitos do Homem comuns a todos. Mas a universalização dos valores ocidentais não se pode fazer senão por etapas e de forma indirecta. As culturas aproximam-se mais facilmente pela via de temas e de grupos do que pela transposição directa das estruturas e das leis. Assim como a ingerência do Estado aparece, antes de mais, como uma falta de soberania e suscita resistências, das Igrejas, das organizações não

governamentais e dos cientistas a quem cabe a missão de lutar em favor dos direitos do Homem.

As fronteiras de uma sociedade aberta situam-se, precisamente, na sua própria abertura, cuja manutenção depende de uma tolerância recíproca. Nos processos de integração visando imitar o modelo da cultura europeia, poderíamos, no ideal, lutar ao mesmo tempo contra o relativismo e contra o islamismo. O islamismo deve relativizar interpretando e adaptando-se; o relativista nesses debates com o islamismo será reenviado aos fundamentos e aos limites indispensáveis da sociedade aberta.

* Professor de ciências políticas na Escola superior de Westfália do Norte em Colónia, na Alemanha.

Notas

1. Armin G. Wildfeuer, “Begriffsbestimmung: Wert/Werte” in W. Becker (Ed.) Lexikon der christlichen Demokratie in Deustschland, Pederborn, 2002, p.648 e seg. 2. Deixemos ao escritor israelita Chaim Noll, originário da RDA, o cuidado de chamar a atenção particular para os totalitarismos comparáveis do comunismo e do islamismo. Ver “Die Aura der Angst. Kommunismus, Islam und ihre Wirkung auf Europa”, in Mut. Forum für Kultur, Politik und Geschichet, Asendorf, Novembro 2007. 3. Ver sobre este assunto Efraim Karsh, Imperialismus in Namen Allahs. Von Muhammad bis Osama Bin Laden, Munique, 2007, e Walid Phares, Future Jihad. Terrorist Strategies against America, Nova Iorque, 2005. 4. Ayaan Hirsi Sli, Ich klage an. Plädoyer für die Befreiung der muslimischen Frauen, Munique, 2006, p. 13f. 5. Heinz Theisen, Die Grezen Europas. Die Europäische Union zwischen Erweiterung und Überdehnung, Opladen, 2006. 6. Ver Frankfurter Allgemeine Zeitung de 26.03.2007. 7. Nekla Kelek, “Das Minarett ist ein Herrschaftssymbol. Islam in Stein gehauen: Im Streit um den Bau dert Moschee in Köln geht um die Zukund unserer Städte”. In Frankfurter Allgemeine Zeitung de 05.06.2007. 8. Hans Küng, Der Islam. Geschicht, Gegenwart, Zunkunft, Munique, Zurique, 2006, p. 770f 9. Peter Graf Kielmansegg, “Vorbild Europa”, in Frankfurter Allgemeine Zeitung de 15.05.2007. 10. Ver Rolf Schieder, “Der Zivilisierung der Religionen als Ziel staatlicher Religionpolitik?”, in Aus Politik und Zeitgeschichte, 6/2007, p. 23. 11. Josef Isensee, “Leitkuktur als Idee und Politischer Begriff”, in Leitkultur. Vom Schlagwort zur Sache, editado pela Stiftung des Geschichte der Bundesrepublik Deutschland, Bona, 2006, p. 20 e seg. 12. Sybille Tönnies, “Wir sind nicht alle gleich. Darf man die Menschenrechte anderen Kulturen aufzwingen, gar mit Gewalt? Seit Aufklärung und Romantik beschäftigt uns diese Frage” [“Nós não somos todos iguais. Podem-se impor os direitos do Homem a outras culturas mesmo com a violência? Esta questão preocupa, desde as Luzes e o romantismo”], in Frankfurter Allgemeine Sonntagszeitung de 2.11.2008.

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