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da tolerância e da liberdade de consciência?
Os anabaptistas no Sacro Império: longe da tolerância e da liberdade de consciência?
Astrid von Schlachta *
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“Em boa verdade, a tolerância não deveria ser senão uma atitude temporária: ela deve conduzir ao respeito. Tolerar é ofender.”1 Esta citação de Johann Wolfgang von Goethe reflecte o nível qualitativo ligado à tolerância de membros de outras confissões no decurso dos últimos séculos. “Tolerar” e “ser tolerado” têm sido objecto de negociações, em vez de se tornarem num direito fundamental com a declaração da liberdade de consciência. As autoridades políticas tinham o poder de tolerar aqueles que não aderiam à confissão maioritária, de transformar essa tolerância em privilégio e de retirar, eventualmente, esse privilégio. A tolerância não tem passado senão de uma concessão, não se tratando de uma igualdade de direitos. Foi apenas depois da instauração do Direito Natural que se deu a separação entre o trono e o altar. A religião passou então progressivamente para a esfera privada e, dessa forma, escapou, em grande parte, ao controlo do Estado. A Constituição do século XIX inscreveu, enfim, a igualdade de direitos de todos os cidadãos, independentemente das suas convicções religiosas. Examinemos precisamente o que era entendido por tolerância no início dos Tempos Modernos.
Os parágrafos seguintes concentram-se num grupo de indivíduos do Império, os quais fizeram a sua aparição na cena pública social e política na esteira da Reforma e que, até ao século XIX, e, em todos os domínios, nunca foram reconhecidos pelo Direito Imperial: os anabaptistas.2 Em 1525, a nova confissão tinha-se tornado visível por um acto ritual – o primeiro baptismo de um adulto em Zurique – opondo-se, dessa forma, abertamente às normas sociais e políticas da época. Nos anos seguintes, o Imperador, e também os príncipes, emitiram nos seus territórios ordens que condenavam os anabaptistas, quer à pena capital, quer ao banimento.
No século XVI, os anabaptistas estão representados por vários movimentos, desde os Irmãos suíços, aos menonitas e aos huteritas, passando por uma comunidade que se estendia de Estrasburgo até à Morávia e que remontava ao antigo juiz das minas Pilgram Marpeck, originário de Rattenberg. As características comuns a todos os anabaptistas eram o baptismo daqueles que consentiam na fé – isto é, de adultos – a separação do “mundo”, a não-violência, a recusa em se defenderem, assim como de prestar
juramento e, consequentemente, a dissociação entre os domínios religioso e laico. Os huteritas distinguiam-se, por outro lado, pela comunidade dos bens.
Entre as comunidades anabaptistas que se mantiveram até aos nossos dias, contam-se os huteritas, que vivem no Canadá e nos Estados Unidos, assim como os menonitas e os amish, cujas principais colónias se situam, igualmente, na América do Norte3. A comunidade amish nasceu em 1633, destacando-se dos menonitas da Suíça. Enquanto que os huteritas que vieram do Tirol se tinham instalado na Morávia, os Irmãos suíços e os menonitas encontravam-se, especialmente na Suíça, nos Países Baixos, na Frígia Oriental, assim como na Prússia Real e no Ducado da Prússia, chamadas mais tarde províncias da Prússia Ocidental e Prússia Oriental. No entanto, os huteritas tiveram mais tarde de abandonar a Morávia, em 1621-1622, depois da batalha da Montanha Branca4. Como todos os protestantes, foram vítimas da política de recatolização levada a efeito pelos príncipes de Habsburgo. Porém encontraram refúgio na Alta Hungria (a actual Eslováquia), onde senhores calvinistas os acolheram. O Príncipe imperial dos sete condados da Transilvânia, Gabriel Bethlen, também convidou os huteritas e concedeu-lhes privilégios com o fim de aproveitar as suas inovadoras técnicas artesanais. Não foi senão no século XVIII que os huteritas foram novamente perseguidos, quando uma missão jesuíta introduziu o catolicismo tanto na Transilvânia, como na Alta Hungria.
Desde o século XVI, os métodos para reconduzir à Igreja aqueles que se tinham “desviado” têm evoluído ao longo das gerações. Na Eslováquia, os mais velhos tinham sido encerrados em conventos católicos, onde deviam seguir o catolicismo – uma estratégia que se revelou rendosa. Nos meados dos anos 1760, os huteritas da Eslováquia estavam integrados na Igreja Católica. Apenas uma comunidade resistia no sul da Rússia, antes de emigrar para os Estados Unidos, em 1874.
O número de menonitas ultrapassa largamente o de huteritas. Assim como comunidades tradicionais e conservadoras se mantêm na Suíça, numerosos menonitas (Doopsgezinden em holandês) se inseriram no meio da sociedade holandesa do século XVII, por causa do seu sucesso económico. Em certas regiões da Prússia Real, em Danzig, por exemplo, ou na cidade imperial livre de Hamburgo, os menonitas também se tornaram prósperos empreendedores. No entanto, ainda havia espalhadas diversas comunidades que respeitavam as antigas tradições e tentavam perpetuar todos os critérios da fé herdada dos primeiros anabaptistas.
A existência dos anabaptistas era marcada pelo conflito permanente entre as suas convicções e a sua vida quotidiana. Assim como, por um lado, os escritos religiosos anabaptistas fixavam normas de comportamento internas da comu-
nidade, por outro lado, os conflitos locais exigiam soluções que se desviavam das doutrinas, para fazer face aos problemas diários decorrentes dos contactos sociais e da prática da autoridade política5. Se se apegavam às doutrinas antigas, era o isolamento forçado; se adaptavam as suas prescrições confessionais, era a assimilação. Com todas estas variáveis, o espectro anabaptista formará, até ao século XVIII, uma paisagem rendilhada composta por várias tradições e confissões no contexto de sociedades em constante mutação.
A perseguição aos anabaptistas
Se examinarmos os marcos principais do Direito imperial que levam à sociedade moderna e tolerante, passamos da Paz de Augsburgo (1555) aos tratados de Westfália (1648), até aos Éditos de tolerância do fim do século XVIII – como, por exemplo, os do Imperador José II para os lander de Habsburgo e o Édito da religião de 1788, redigido por von Wöllner para a Prússia. Se considerarmos apenas as três “grandes” confissões – luterana, reformada e católica – então estas etapas decisivas constituem verdadeiramente para elas um fundamento seguro. No entanto, é necessário não esquecer que também para elas, até ao início do século XIX, a tolerância não significava igualdade completa entre os cidadãos. Por exemplo, o Édito de tolerância de José II estabelecia que os sinos das igrejas luteranas, ou reformadas, não deviam ser maiores do que os das igrejas católicas. A questão da tolerância não era, portanto, senão um dos lados da medalha; o outro era a visibilidade da confissão e o exercício público do culto.
A imagem deste caminho – na aparência bem pavimentado – para conduzir à tolerância tornava-se igualmente diferente quando se tratava das confissões mais pequenas. Todos os anabaptistas, mas também os quakers, os schwenckfelders (discípulos de Caspar Schwenckfeld) e outros grupos ainda mais modestos eram, com efeito, excluídos destas regulamentações. O que era determinante para o seu destino futuro era o artigo VII, § 2 do Tratado de Paz de Osnabrück, que estipulava que, “com excepção das religiões acima mencionadas [luterana, reformada e católica], não será recebida nem tolerada nenhuma outra no santo império romano”6. Assim, a tolerância de todas as outras confissões estava sujeita à negociação e dependia do conjunto de condições económicas ou políticas. Até ao século XVIII, a perseguição e a expulsão iriam permanecer espadas de Damocles para os outros mais pequenos grupos confessionais desviantes, igualmente excluídos dos éditos de tolerância do fim do século XVIII. No final do século XVII e início do século XVIII, os anabaptistas da Suíça foram particularmente tocados quando as cidades reformadas de Berna e Zurique publicaram as ordenanças, exigindo a conversão ou a expulsão dos anabaptistas. Em algumas regiões do Sacro Império, ocorreram mesmo perseguições locais, como as do Palatinado, de Jülich-
Berg (em Rhydt e Gladbach) ou as da Prússia Real.
Sobre que base jurídica repousava a existência dos anabaptistas no início dos Tempos Modernos? No Sacro Império, como nos países limítrofes, toleravam-se os anabaptistas na base de uma regulamentação que diferia ao nível jurídico: tratava-se quer de privilégios, quer de salvo-condutos. Estes tinham, no entanto, uma data limite de validade, se bem que, mais tarde, a próxima alteração do senhor vinha a representar um facto de insegurança. Isso implicava novas negociações, cujo êxito era incerto. Apenas os Países Baixos eram uma excepção, uma vez que os menonitas já eram aí tolerados desde a União de Utreque (1579) – mesmo que isso não tenha evitado alguns conflitos7. Contudo, obtiveram privilégios que os isentavam do serviço militar e os autorizavam a fazer um voto, em vez de prestar juramento. Devido à sua integração na sociedade e às suas boas relações com as autoridades, no século XVII, os Doopsgezinden puderam utilizar as suas relações, para interceder regularmente em favor de anabaptistas perseguidos noutras regiões da Europa, junto dos Estados Gerais ou dos Conselhos das cidades holandesas.
O que é que tornava os anabaptistas tão suspeitos aos olhos das autoridades para estas agirem contra eles? Examinando com atenção os documentos que descrevem
Anabaptistas são queimados na fogueira em Salzburgo, em 1528. Gravura em cobre intitulada “Märtyrer-Spiegel der Taufgesinnten” (Exemplo do martírio dos anabaptistas), datando de 1685. os conflitos entre os anabaptistas e as autoridades, choca-nos ver que é menos o ponto teológico do baptismo dos adultos – do que a recusa de prestar juramento, ou do uso de armas, ou ainda a sua visão das autoridades – que estava em causa. A ordenança geral de 27 de Outubro de 1527, publicada por Cyriak von Polheim, governador da província da Alta Áustria, ilustra isso de forma exemplar. Lê-se que, segundo o seu autor, os anabaptistas iriam perturbar o “’bom funcionamento’: os seus ensinamentos e as suas reuniões causariam perturbações, dissensões e alteração da unidade cristã e do amor fraternal”. Assim como “a agitação e a queda das autoridades e o desaparecimento do homem simples8”. Com isto, a linha de base foi definida. Se recuperarmos as diferentes declarações das autoridades contra as confissões de fé anabaptistas, o resultado é surpreendente: a perse-
guição aos anabaptistas baseava-se na ambivalência significativa entre as declarações, os seus actos e a forma como eram entendidos. Se bem que, por seu lado, eles tivessem, continuamente, afirmado aceitar as autoridades, não planear revoltas e, dada a sua doutrina pregar a não-violência, nem mesmo pensar em agir contra as autoridades pela violência, a sua separação fundamental entre o mundo secular e o mundo espiritual constituía sempre o argumento de que as autoridades se serviam para apresentar os anabaptistas como um perigo.
Deixemos falar os anabaptistas e estudemos as declarações com a ajuda da Doutrina e vida dos anabaptistas huteritas. Exposição da nossa doutrina e da nossa fé, obra doutrinária fundamental dos huteritas, escrita por Peter Riedemann em 1545. Segundo o autor, “A autoridade tem a sua razão de ser fora de Cristo mas não em Cristo9”. Deduz-se que “um cristão não será, portanto, magistra-
do e um magistrado não será cristão”. A maior parte dos grupos anabaptistas subscrevia este princípio. Se a identidade cristã das autoridades, como tal, era já aqui posta em questão, então a recusa de prestar juramento constituía um acto suplementar de desobediência. No início dos Tempos Mo-dernos, o juramento era um instrumento importante A vida comunitária, para estas mulheres hute- da relação entre o senhor e ritas, consiste em, por vezes, partilharem a aquele que lhe estava sujeito mesma actividade. Foto Stefan Kuhn/Wikipedia. – por exemplo, no decurso da cerimónia da homenagem em cada sucessão ou, periodicamente, por ocasião dos “dias de juramento”, em que o senhor feudal se assegurava da fidelidade dos seus subordinados. Na comunidade jurídica e política pré-moderna, o juramento significava o envolvimento moral da consciência ao sujeito de um acto – não apenas nos assuntos jurídicos, mas também no Direito Civil e nas relações entre os sujeitos. Os princípios anabaptistas de-sempenharam um papel central na comunicação política até ao século XVIII. Eles levaram as autoridades a pensar que os anabaptistas eram pessoas que, em caso de urgência, não combateriam pelo seu país e, portanto, não se podiam assegurar da sua lealdade. Além disso, o facto de serem vistos como um grupo de sujeitos que dizia uma coisa e fazia outra, deu origem a conflitos. Por exemplo, os redactores do édito lançado em 1659 contra os anabaptistas de Berna escreveram que estes últimos pagavam certos
impostos e o dízimo, mas pregavam, ao mesmo tempo, que, segundo o ensino cristão isso não era, de facto, correcto10 .
As colónias que viviam em comunidade de bens, como a dos huteritas, representavam também um perigo potencial aos olhos das autoridades: e se os sujeitos se reunissem em grupos e crescessem em segredo de uma forma demasiado rápida para escaparem, de um dia para o outro, ao seu controlo? Nos espíritos, a associação “comunidade de bens” e “reunião em grupos” recordava a guerra dos camponeses alemães de 1525, que os anabaptistas continuamente faziam lembrar e que se tornou, até ao século XVIII, o ponto de referência para as sevícias contra eles. Uma alusão a esta guerra legitimou, por exemplo, a perseguição de 1656, quando o Duque Frederico III de Schleswig-Holstein-Gottorp, no seu “Decreto sobre os menonitas e os anabaptistas”, advertia que os anabaptistas tolerados em Gut Fresenburg, “desde que tenham suficiente liberdade e encontrem ocasião, levantar-se-ão contra a autoridade que serve Deus, revoltar-se-ão e levarão regiões inteiras à agitação e ao caos, como os exemplos dos séculos precedentes o provaram11”. No entanto, se bem que a guerra dos camponeses tenha sido usada com o argumento contra os anabaptistas, as investigações não têm demonstrado senão ínfimas semelhanças de pessoas entre os diferentes levantamentos do início dos Tempos Modernos ou as guerras dos camponeses, como a de 1653, na Suíça, por exemplo.
Depois dos conflitos militares com os anabaptistas, em Münster, em 1534, os argumentos usados oficialmente pelas autoridades, para se justificarem, ganharam ainda em qualidade. O “Spiritus Munsterianus”12, que dizia respeito ao levantamento contra as suas autoridades legais, determina, igualmente, a comunicação política até ao século XVIII. Além disso, os anabaptistas de Münster tinham criado um reino que, com as suas insígnias e cerimónias, punham em causa imperadores e reis, não só de forma simbólica mas também de alguma forma real.
Contudo, mesmo que os anabaptistas separassem claramente os domínios profano e espiritual, no fim de contas reconheciam o fundamento das autoridades. Por outro lado, a sua recusa ao porte de armas, e da violência em geral, tornava pouco provável uma revolta sob a bandeira anabaptista. Como escreveu Peter Riedemann na sua Exposé, “Ele (Deus) estabeleceu sobre eles uma autoridade para ser o bordão da sua cólera para castigar e punir o povo mau e malvado”. Ele prossegue e relembra, baseando-se nas palavras do apóstolo Paulo, que toda a organização humana deve estar sujeita à vontade de Deus13. No entanto – e aqui a sua opinião é muito similar à de Lutero – as autoridades não devem atentar contra a consciência dos homens, nem procurar dominar a sua fé14. Existia uma tensão entre, por um lado, o reconhecimento das autoridades, e, por outro, a fron-
teira nítida entre a política e a religião a fim de evitar influenciar a consciência. Isto é o que, aos olhos dos outros – e também a recusa em prestar juramento – mantinha os anabaptistas numa situação de crise, sempre no limite da revolta e das perturbações. As calúnias fizeram o resto.
O caminho da tolerância – a luta dos anabaptistas (pela comunicação)
Muito se tem escrito sobre a contribuição dos anabaptistas para a separação entre a Igreja e o Estado, e o desenvolvimento da liberdade de consciência como direito para todos os indivíduos. Geralmente estima-se que esta contribuição foi muito importante. Por exemplo, Harold S. Bender escreveu, em The Anabaptist Vision: “Não se pode duvidar de que os grandes princípios da liberdade de consciência, da separação entre a Igreja e o Estado, do voluntarismo na religião, tão fundamentais no protestantismo americano e tão essenciais à democracia, nos vêm dos anabaptistas da Reforma, que foram os primeiros a enunciá-los claramente e que desafiaram o mundo cristão a aplicá-los”15 . Walter Klaassen constata também, em 1981, que os anabaptistas fazem parte dos pioneiros que exigiram do Estado que este garantisse a liberdade de confissão16 .
Uma das obras pré-anabaptistas mais significativas sobre a tolerância, Von ketzern und iren verbrennern (Dos heréticos e da sua condenação à fogueira), data de 1524 e pertence a Balthasar Hubmaier. Ele ainda não era anabaptista mas fez-se baptizar depois. Segundo ele, “heréticos” são aqueles que combatem voluntariamente as Santas Escrituras e que as revestem de uma interpretação diferente da que é exigida pelo Espírito Santo17 . Mas este desvio ainda não justifica a condenação à morte dos “heréticos”, uma vez que Deus permanece como único juiz. Balthasar Hubmaier usa como prova a parábola da boa semente e do joio (Mateus 13:30). Jesus pede aos servos que trabalhem nos campos, à espera do tempo da ceifa, para recolher o joio e atá-lo em molhos para poder ser queimado. Os “mestres-heréticos” são, portanto, de facto, os “maiores heréticos”, uma vez que arrastam o trigo com o joio antes da época da ceifa18. Balthasar Hubmaier refere-se ali a uma parábola do Novo Testamento em relação com a tolerância muitas vezes citada na Idade Média. Ele foi mesmo vítima de intolerância: foi condenado à morte no cadafalso, em Viena, em 1528.
Numerosos outros escritos anabaptistas contribuíram, também, para aplanar o caminho que levará à tolerância. Os anabaptistas holandeses do século XVII deram o seu contributo, fornecendo dados escritos muito práticos. Eles lançaram-se no esforço intenso da comunicação escrita, para obterem a liberdade de confissão para os seus correligionários perseguidos. Já evocámos o facto de que, por causa dos êxitos dos seus empreendimentos económicos e da sua assimilação na sociedade, os ana-
baptistas dos Países Baixos ocupavam posições que lhes permitiam pedir às autoridades para intercederem em favor dos seus correligionários perseguidos. A Suíça, entre outras, tornou-se uma região pela qual, durante a segunda metade do século XVII, todos iriam interceder19 .
Os Estados Gerais, mas igualmente o Conselho da cidade de Amesterdão e de Roterdão, enviaram numerosos pedidos de intervenção para Zurique, Berna e Basileia, a fim de implorar a tolerância para com os anabaptistas da Suíça. Tratava-se, para eles, em primeiro lugar, de demonstrar a semelhança entre os anabaptistas suíços e os anabaptistas holandeses, a fim de dissipar toda a suspeição de revolta por parte dos anabaptistas suíços – um argumento que devia ser igualmente invocado contra eles na Suíça – e insistir no seu pacifismo. Assim, por exemplo, a cidade de Roterdão explica, numa carta dirigida, em 1660, ao Conselho Municipal da cidade de Berna, que nunca até então os Doopsgezinden dos Países Baixos tinham conspirado contra a república a coberto da religião – o que teria sido destruidor para qualquer república20. Tenta também refutar a ideia, recorrente na Suíça, de que o facto de se tolerar os menonitas concorria no risco de enfraquecer o Estado; a atitude dos menonitas, que recusavam ser magistrados ou prestar juramento, não era incómoda para uma república, porque, apesar dessas recusas, os anabaptistas encontravam-se moralmente envolvidos com as autoridades.
Da Suíça veio uma história bem diferente. As cidades helvéticas tentaram deliberadamente colocar em evidência as diferenças entre os anabaptistas holandeses e os seus correligionários suíços. Interpretados de forma diferente, o comportamento e as tradições religiosas dos anabaptistas suíços podiam, com efeito, servir. Assim, era possível, jogando-se com as palavras, sublinhar o carácter rebelde dos anabaptistas suíços, e, utilizando-se o método discursivo para fazer uma descrição deformada do seu comportamento e dos diversos elementos da sua fé, distingui-los dos seus homólogos holandeses, para não serem obrigados a agir. Assim, não se falava do mesmo grupo e esquivavam-se aos pedidos holandeses. No decurso do Verão de 1660, o Conselho da cidade de Zurique escreveu, por exemplo, às comunidades holandesas que não se pode tolerar sem risco as comunidades da Suíça, porque estas não deixam de tratar os servidores e os dirigentes da Igreja Reformada como “serpentes/escorpiões/lobos ferozes/e gafanhotos […] vindos dos abismos” e “falavam vergonhosamente da Igreja Reformada”21. E não deixavam de invocar a sua recusa ao porte de armas e prestar juramento. A experiência é, sob este ponto de vista, um argumento, uma vez que o Conselho assinala ter “tido já de tratar com os insurgentes rebeldes, não ajuramentados”, o que resultou em grandes prejuízos – uma alusão à guerra de 1653. No fim de contas, esta intercessão não serviu
de nada. Numerosos anabaptistas foram obrigados a deixar a sua pátria e a encontrar refúgio, entre outros lugares, no Palatinado.
E, contudo, apesar de algumas criseseconflitos–igualmentebem importantes – a perseguição dos anabaptistas diminuiu progressivamente até ao século XVIII. Para além das tentativas de intercessão descritas acima, que colocaram os anabaptistas na frente da cena europeia, no início dos Tempos Modernos, foram, acima de tudo, as mudanças nas teorias do Estado que promoveram para uma aproximação. Anabaptistas e autoridades foram ao encontro uns dos outros, o que diminuiu, em muito, o risco de conflito. O problema do juramento é um exemplo particularmente representativo, porque, por volta de 1700, ou mais tarde, os protagonistas das duas partes estavam prontos a assumir um compromisso neste domínio. Entre os anabaptistas, a diferença entre a teoria e a prática, como entre a sua confissão e a evolução do seu papel no espaço político, tornou-se manifesto. Alguns de entre eles já prestavam o juramento de cidadão no século XVII, outros ocupavam mesmo funções oficiais – em Friedrichstadt, por exemplo. Em contrapartida, as autoridades estavam igualmente prontas a fazer concessões. As reclamações para exigir tolerância e neutralidade nas questões confessionais levaram, na base dos Direitos Naturais, a uma atenuação da responsabilidade de consciência perante a prestação de juramento, perdendo este, assim, pouco a pouco, o seu conteúdo social e jurídico22. Para julgar a lealdade dos indivíduos, alguns magistrados já não se limitavam só à prestação do juramento ou à repetição exacta da sua fórmula – a história anabaptista reflecte esta evolução. Criaram-se formulações especialmente adaptadas aos anabaptistas. No seu envolvimento transcendente e na sua implicação para com Deus, eles foram julgados de forma tão fiável como pelo juramento tradicional. Por exemplo, os diversos “juramentos menonitas”, ou “protestos”, tomaram o lugar do juramento tradicional por um ”sim” ou um “não”. Encontraram-se igualmente compromissos relativos à questão do porte de armas ou de fazer a guerra: era permitido aos anabaptistas dar, em compensação, um soma definida de dinheiro, o que representava um apoio, não negligenciável, para os cofres dos principados.
O aparecimento das “pessoas tranquilas do país”
As diferentes tendências dos conflitos sociopolíticos, que se inflamaram a propósito da questão dos anabaptistas, no início dos Tempos Modernos mostram que não devemos interpretar o movimento anabaptista como um movimento puramente religioso, mas que os anabaptistas se envolveram na história política. Sem dúvida, a sua declaração teológica, vista do interior e no propósito da sua intenção, pode ser, em certa medida, apolítica – a sua teologia política visando o seu isolamento e a
separação relativamente às estruturas políticas. Mas, cada ritual de culto que singularizava os anabaptistas, equivalia precisamente a uma mensagem para o exterior. É o que se tornou evidente por ocasião do primeiro “baptismo de adultos sobre profissão de fé” ou (“baptismo de fé”), em 1525.
Mesmo se os motivos mais íntimos, puramente espirituais, prevaleceram, sem dúvida, quando os proto-anabaptistas de Zurique decidiram proceder aos baptismos, considerando o acontecimento como uma repetição do Pentecostes23, não se pode considerar o acto do baptismo, como tal, sem ter em conta as suas implicações sociopolíticas.
Finalmente, as acções dos anabaptistas, e todos os debates para saber se eles deveriam ser tolerados ou não, foram marcos essenciais no caminho da imposição da diversidade confessional e da preparação da redacção constitucional dos direitos fundamentais que, por volta de 1800, deram, por fim, lugar ao nascimento de novas normas, entre as quais a liberdade de consciência.
* Conselheira científica no Instituto de História e de Etnologia da Universidade de Insbruque, na Áustria.
Notas
1. Harald Schultz, Lessing Toleranzbegriff. Eine theologische Studie, Vandenhouck & Ruprecht, Göttingen, 1969, p. 11; acerca da discussão sobre “tolerância e tolerar”, ver também Rainer Forst, Toleranz im Konflikt, Suhrkamp, Francoforte/Maine, 2003. 2. Para uma visão geral, Hans-Jürgen Goertz, Die Täufer. Geschichte und Deutung, 2ª edição, Beck, Munique, 1988; John D. Roth/James M. Stayer, A Companion to Anabaptistm and Spiritualism, 15211700 (Brill’s Companions to the Christian Tradition, 6), Brill, Leiden/Boston, 2007. 3. Ver John A. Lapp/C. Arnold Snyder, Testing Faith and Tradition, Pandora Press, Kitchener, Ont., 2006; Hans-Jürgen Goertz, Das Schwierige Erbe des Mannoniten, Evangelische Verlagsanstalt, Leipzig, 2002. 4. Sobre os huteritas em geral, ver Astrid von Schlachta, Die Hutterer zwischen Tirol and Amerika. Eine Reise durch die Jarhunderte, Wagner, Insbruque, 2006; sobre os huteritas no Tirol e as suas relações com os outros anabaptistas na Morávia, ver Werner O. Packull. Hutterite Beginnings. Communitarian Experiments During the Reformation, Johns Hopkins Univ. Press, Baltimore e Londres, 1995. 5. Sobre as Escrituras anabaptistas, ver Karl Kopp, Anabaptist-Mennonite Confessions of Faith. The Development of a Tradition, Pandora Press, Kitchener, Ont,. 2004. 6. Citação original tirada de Arno Buschmann, Kaiser und Reich. Klassische Texte zur Verfassungsgeschichte des Heiligen Römischen Reiches Deutscher Nation vom Beginn des 12. Jahrhunderts bis zum Jaher 1806, Teil II. Vom Westfälischen Frieden 1648 bis zum Ende des Reiches im Jahre 1806, 2ª ed., Baden-Baden mip.univ-perp.fr/traits/1648osnabruck.htm. 7. Sobre este assunto, ver Samme Zijlstra, Om de waare gemeente en de oude gronfen. Geschiedenis van de dopersen in de Nederlanden 1531-1875, Hilversun et Leeuwarden, 2000; Piet Visser, “Mennonites and Doopsgezinde in the Netherlands, 1535-1700”, in John D. Roth/James M. Stayer. A Companion to Annabaptism and Spiritualism, 1521-1700 (Brill’s Companions to the Christian Tradition, 6), Brill, Leiden/Boston, 2007, pp. 299-345. 8. Grete Mecenseffy (Ed.), Österreich, I. Tell (Quellen zur Geschichte der Täufer, 11), Heidelbregue, 1964, p. 27.
9. Peter Riedemann, Rechenschaft unsrer Religion, Lehere und Glaubens. Von der Brüdern, die man die Huterischen nennt, Falher, Alb., p. 103. 10. Ver Ernst Müller, Geschichte der Bernischen Täufer, Huber, Frauenfeld, 1895, p. 155; Hermann Rennefahrt (Ed.), Die Rechtsquellen des Kantons Bern. Erster Teil. Stadtrechte. Das Stadtrecht von Bern, 6. Bd., 2e Hälfte (Sammlung Schweizerischer Rechtsquellen, 2. Abteilung), Saurerländer, Aarau, 1961, p. 447. 11. Citação tirada de Robert Dollinger, Geschichte der Mennoniten in Schleswig-Holstein, Hamburg ubd Lübeck (Quellen und Forschungen zur Geschichte Schleswig-Holsteins, vol. 17), Neumünster, 1930, pp. 131 e seguintes. 12. De “Vorwürfe 1607 in Eiderstedt”, in Robert Dollinger, ob. cit., p. 78. 13. Riedemann, Exposé de notre religion, de notre doctrine et de notre foi (ver nota 9), p. 100. 14. Idem, p. 101. 15. Harold S. Bender, The Anabaptist Vision, Herald Press, Scottdale, Pa., 1944, p. 4. 16. Walter Klaassen, Anabaptism in Outline (Classics of the Radical Reformation), Herald Press, Scottdale, PA., 1981, p. 290. 17. “Von Ketzern”, citado por Gunnar Westin/Torsten Bergsten (Ed.), Balthasar Hubmaier. Schriften (Quellen zur Geschichte der Täufer, 9), Heidelberg 1962, p. 96. 18. “Von Ketzern”, citado por Gunnar Westin/Torsten Bergsten (Ed.), ob. cit.., p. 98. 19. Para generalidades, ver: Urs B. Leu/Christian Scheidegger (Ed.), Die Zürcher Täufer 1525.1700. TVZ, Zurique, 2007, pp. 203-245. 20. Jeremy Dupertius Bangs, Letters on Toleration. Dutch Aid to Persecuted Swiss and Palatine Mennonites 1615-1699, Picton Press. Rockport, ME, 2004, CD, p. 597. 21. James W. Lowry, Documents of Brotherly Love. Dutch Mennonite Aid to Swiss Anabaptists, vol. I, 1635-1709, Millersburg, OH, 2007, pp. 242, 244. 22. Meinrad Schaab, “Eide und andere Treugelöbnisse in Südwestdeutschland zwischen Spätmittelalter und Dreißigjährigem Krieg”, in Paolo Prodi (Ed.), Glaube und Eid. Treueformeln, Glaubenskenntnisse und Sozialdisziplinierung zwischen Mittelalter und Neuzeit (Schriften des Historischen Kollegs, 28), Oldenbourg, Munique, 1993, pp. 11-30; ver também, Paolo Prodi, Das Sakrament der Herrschaft. Der politische Eid in der Verfassungsgeschichte des Okzidents (Schriften des Italienisch-Deutschen Historischen Instituts in Trient), bd. 11, Duncker und Humbolt, Berlim, 1997, pp. 373 e seg. 23. Segundo a nova argumentação de Andrea Strübind, que interpreta o movimento dos anabaptistas essencialmente como “uma renovação religiosa (ou um movimento religioso) entusiasta”. Ver, sobre este assunto, Eifriger als Zwingli, Der frühe Täuferbewgung in der Schweiz, Duncker & Humbolt, Berlim, 2003, p. 576.