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J. Baubérot O ultrapassar de um “ódio democrático”: do combate .. anticlerical à lei da separação de 1905
O ultrapassar de um “ódio democrático”: do combate anticlerical à lei da separação de 1905
Jean Baubérot*
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O anticlericalismo francês do início do século XX pode ser designado como de “ódio democrático”. É a resposta ao anti-semitismo virulento de algumas congregações religiosas por ocasião do caso Dreyfus mas transformou-se em anti-religião. A separação da Igreja e do Estado foi, desde logo, encarado numa perspectiva idêntica. Mas isso não vai acontecer. O Parlamento que tinha votado medidas anti-congregacionistas adopta uma lei liberal que vai permitir diminuir, progressivamente, a intensidade daquilo que se chama “o conflito das duas Franças”. É este ultrapassar de uma situação portadora de ódios que gostaria de analisar.
1. O anticlericalismo perante a procura da “laicidade integral”
Na segunda metade do século XIX, houve entre o anticlericalismo e o clericanismo uma relação que comportava discursos de ódio em que cada um desqualificava o adversário. O ódio anticlerical insiste na obrigação “antinatural” da castidade do clero – levando a amores venais, servis, adúlteros e pedófilos – e fala de brutalidade, da captação de heranças, de vida de opulência. Os defensores do clericalismo não se ficam atrás e fabricam uma “colecção de feras republicanas” onde macacos, porcos e cães se tornam vedetas (Jaqueline Lalouette, 1997). Na diferença do anti-semitismo e do anti-protestantismo, não se trata de uma rejeição de uma minoria, mas do conflito entre duas Franças, em que dois movimentos sociais alternam na supremacia (Jean BaubérotValentine Zuber, 2000)
Depois do caso Dreyfus, os partidários de uma laicidade dita “integral” querem pôr fim a esse longo afrontamento com uma vitória definitiva do seu campo. Criados logo após esse caso, os Annales de la Jeunesse Laïque constituem o ferro da lança ideológica deste combate. Ernest Lavisse dá-lhe um ideal nobre; não é necessário “odiar” as Igrejas mas “combater o espírito de ódio que sopra das religiões e se tornou a causa de tantas violências, de mortes e de ruínas”.
Esta injunção não é bem entendida: a recusa do ódio arrisca-se a ser desmobilizador. O director dos Annales, Georges Béret, clama: “Eu odeio a religião, porque ela é a codificação do Absoluto […] porque ela adormece as aspirações
da parte mais viva da Humanidade por mais Justiça, mais Felicidade, mais Beleza”. Aos que o aconselham a triunfar sobre o clericalismo apenas pela liberdade, Etber (anagrama de Béret) responde: “Á liberdade de ensinar, é necessário opor o ensino da liberdade”. O contrário é significativo: uma liberdade “emancipação” opõe-se a liberdade “pluralismo”. Isso implica desde logo, crer que já se chegou à sua plena liberdade e depois que só existe uma via de emancipação: a sua.
Em 1903 foi fundado o diário L’Action, órgão do livre-pensamento. Para Henry Béranger, seu director, a luta actual é “um episódio do drama eterno que se desenrola na consciência da humanidade, desde que há padres e, perante eles, homens livres1”. É necessário, portanto, fundar o Estado livre-pensador.
A política praticada contra as congregações vai no mesmo sentido. Trata-se ainda, de liberdade: “Dos dois lados recomenda-se a liberdade de consciência […] Para uns (ela) envolve o direito de escolher um modo de vida baseado nos votos contraídos mas livremente pronunciados. Para os
outros, ela autoriza o legislador a lutar contra aquilo que é entendido como um sinal de alienação perigoso para os indivíduos e a sociedade”. (Jacqueline Lalouette – JeanPierre Machelon, 2002). Instala-se então Aristid Briand (1862-1932). De 1909 a 1932 ocupou diversas funções no governo francês - com uma engrenagem cuja lógica interna se desfaz progresperíodos de intervalo: Primeiro sivamente. Cada Ministro, Ministro do Interior, dos medida é justificaCultos, da Instrução Pública, da por um discurda Justiça e dos Negócios Estrangeiros. Em 1926, depois dos acordos de Locarno, recebeu (com Gustav Stresemann) o so sobre a nocividade das congregações. E como Prémio Nobel da Paz pela sua isso se mostra acção em favor da reconciliação insuficiente, é preentre a França e a Alemanha. Foto ciso adoptar uma Wikimedia Commons outra mais radical. No fim de contas, é a própria liberdade de ensino que está posta em causa. Para o líder do Partido Radical, Eugène Lintilhac: “O Estado democrático será ensinador, ou não existirá”. Deve ensinar “um credo, o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. É necessário, portanto, a instauração de um monopólio do Estado sobre o ensino. E alguns inquietam-se logo de que, se se estabelece esse monopólio, um “clericalismo latente” poderia ganhar os concursos!
II. A lei da separação e a ultrapassagem do ódio democrático
Na engrenagem que se instalou entre 1899 e 1904, os caminhos da “laicidade integral” afastam-se, portanto, dos da “democracia liberal”. Isso provoca um discurso de Georges Clemanceau no Senado: “Eu rejeito a omnipotência do Estado laico porque vejo nisso uma tirania […] Para evitar a congregação, fizemos da França uma imensa congregação. […] Os nossos pais acreditaram que faziam a Revolução Francesa para se libertarem; não foi, de forma alguma, para mudarem de mestre. […] Hoje onde destronámos os reis e os papas, querem que tornemos o Estado rei e papa”. Clemenceau calcula que recusar a liberdade aos seus inimigos levaria a aprisionar a própria liberdade em nome da liberdade.
Ferdinand Buisson, por seu lado, opôs-se – sem sucesso – ao envolvimento do Partido Radical, a favor do monopólio do ensino público. Ele refuta esta posição: “Para fazer um republicano, é necessário tomar o ser humano […] e dar-lhe a ideia que ele deve pensar por si mesmo, que não deve nem fé nem obediência a ninguém, que ele é que deve procurar a verdade e não recebê-la de um mestre […] quer ele seja temporal ou espiritual”. Para Boisson, a emancipação pela liberdade de pensamento obriga a dar lugar à liberdade pluralista, incluindo a dos inimigos da liberdade. Todo o monopólio da liberdade de pensamento constitui, de facto, a abolição da liberdade de pensar.
Mas quando o Presidente do Conselho, Émile Combes, no Outono de 1904, apresentou o projecto de lei sobre a separação das Igrejas e do Estado, este parece uma nova etapa na direcção da “laicidade integral”. Com efeito, tratou-se de um reforço da vigilância do Estado. Muitos projectos anteriores iam no mesmo sentido (Baubérot, 1990).
Contudo, Aristide Briand (relator da Comissão parlamentar sobre a separação) já tinha começado um trabalho de “acalmia”. Chegou a pôr a trabalhar em conjunto, deputados com opiniões divergentes. Estes últimos elaboraram uma proposta de lei que manifestava “um equilíbrio de funâmbulo” (Christophe Bellon, 2005), foi neste contexto que teve lugar a campanha do diário republicano Le Siècle, em que o filósofo Raoul Allier, membro de uma Igreja protestante já separada do Estado, militava por uma separação liberal.
Por que razão a mesma maioria pôde apoiar sucessivamente Émile Combes e Aristide Briand, votando medidas muito duras contra as congregações, após a lei de 1905? É habitual falar desta lei como resultado de um combate anticlerical; em 2005, por ocasião do centenário dessa lei, usou-se e abusou-se do termo “compromisso”. Com efeito, a reviravolta operada é a passagem de um conflito frontal para uma pluralidade de conflitos. Não houve uma ruptura mas três.
Primeira ruptura: o fim da França “nação católica”
A lei da separação rompe com a Concordata, com os laços oficiais
e seculares que faziam da França a “filha primogénita da Igreja” (artigo 2). Do início ao fim dos debates parlamentares, tanto adversários como partidários da separação sublinharam este aspecto. Mas é preciso situar claramente a ruptura: o Estado francês do século XIX já se tinha liberto da Igreja Católica; já está largamente “laicisado”2. No entanto, a França é sempre considerada como uma “nação católica”. Ruptura mais importante que a perda, pelos cultos, dos apoios do Estado esta laicisação da identidade nacional é ainda considerada, por muitos católicos, com um ateísmo nacional. No entanto, se a lei da separação constrói um novo edifício, contrariamente à Revolução, tem o cuidado de não a desenraizar do antigo (Baubérot, 2006).
Segunda ruptura: o fim do galicanismo e do anticlericalismo do Estado
A segunda ruptura é constituída pela passagem da vigilância a priori que o Estado exercia para uma liberdade que se exerce no limite da “ordem pública” democrática. A República encarrega-se de “ assegurar” e de “garantir” esta liberdade, segundo as expressões fortes do artigo primeiro. Este aspecto foi sublinhado em 2005, mas o seu carácter de ruptura foi minimizado. Trata-se, contudo, de uma dupla ruptura: ruptura com o galicanismo da realeza, sobre os longos tempos da continuidade histórica; ruptura com os tempos curtos das tentativas republicanas de anticlericalismo de Estado. E isso deixou descontentes
Terceira ruptura: a marcação da distância com o universalismo abstracto republicano
Última ruptura, a do artigo 4: ele é necessário, para que os edifícios religiosos sejam devolvidos às “associações culturais”, que estas se constituam legalmente, “conformando-se com a regras de organização geral do culto de que elas se propõem assegurar o exercício”. Esta formulação, por detrás da qual está a questão do “respeito” (o termo volta, por vezes ao debate) da organização hierárquica da Igreja Católica, visa os católicos que se desejam libertar dela. Isso provocou um conflito na maioria da Câmara, porque estava em contradição com “o universalismo republicano”, que queria que “os cidadãos católicos” – mas não a Igreja Católica – sejam considerados como corpo intermediário entre o cidadão e o Estado.
Este discurso republicano é inaceitável por Roma, que ainda receia mais o “cisma”, o desenvolvimento de um “catolicismo republicano”, do que a perda dos apoios do Estado. Ora Briand martela que a lei deve ser “aceitável” pela Igreja Católica. O artigo 4 é o retomar da legislação de alguns Estados americanos e de uma lei sobre uma Igreja livre na Escócia. Nestes dois modelos, o poder político. Em coerência com a concepção anglo-saxónica da democracia, tinha respeitado a constituição de Igrejas dele separadas. No seio desta cultura política, com efei-
“A Liberdade guiando o povo”, óleo sobre tela de Eugéne Delacroix (1830). Este célebre quadro comemora a Revolução de Julho de 1830. Louvre, Paris. Foto Wikipedia Commons.
to, a liberdade colectiva não é o simples prolongamento, mas uma dimensão da liberdade individual. Esta forma de raciocínio é estranha à tradição republicana francesa. A lei da separação comporta, portanto, um elemento da cultura política anglo-saxónica transplantada para a cultura política do republicanismo francês.
Foram, portanto, três rupturas que permitiram a ultrapassagem do conflito odioso entre clericalismo e anticlericalismo. A primeira ia no sentido da vitória do campo anticlerical mas limitando já um pouco o seu sucesso. As outras duas permitiram, a prazo, fazer a paz. Tal era desde logo o objectivo de Briand: “Querem fazer uma lei […] susceptível de assegurar a pacificação dos espíritos? Se é isso, façam com que esta lei seja franca, leal e honesta. Façam-na de tal forma que as próprias Igrejas […] sintam que têm a possibilidade de viver ao abrigo deste regime”. Aqui temos um discurso de pacto, completa reviravolta do discurso da “laicidade integral”, que é um discurso de combate.
Estudos citados
Baubérot, J., Vers un nouveau pacto laïque, Paris, Le Seuil, 1990 Baubérot, J., Laïcité 1905-2005, entre passion et raison, Paris, Le Seuil, 2004 Baubérot, J., L’intégrisme républicain contra la laïcité, La Tour d’Aigle, L’Aube, 2006 Baubérot, J. – Zuber V., Une haine oubliée, l’anti-protestantisme avant le “pacte laïque”, 1870-1905, Paris, Albin Michel, 2000. Bellon C., “Les parlementaires socialistes et la loi de 1905”, in Parlement(s), Histoite Politique, 2005, nº3, 116-136. Lalouette, J., La libre-pensée em France 1848-1940, Paris, Albin Michel, 1997 Lalouette, J. – Machelon J., 1901, Les congrégations hors la loi?, Paris, Letouzey &Ané, 2002.
* Presidente de honra da Escola Prática dos Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira da História e Sociologia da laicidade na “PHE, Paris, França