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G. Nissim Coesão social, pluralismo, liberdade de consciência

Gabriel Nissim*

A mundialização coloca de forma completamente nova o problema da coesão nas nossas sociedades. O modelo europeu de coesão, construído essencialmente nestes últimos séculos, na base do Estado/Nação, deve, hoje, ser repensado em função de dois factores ligados um ao outro:

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Desde logo o quase desaparecimento das fronteiras económicas e financeiras – a globalização digital tem vindo a reforçar a globalização através de uma ferramenta tecnológica oportuna – e em menor medida, a das fronteiras políticas, donde migrações e uma mistura de diversas populações no mesmo território como jamais conhecemos. Os nossos Estados são daqui para a frente plurais, do ponto de vista cultural e religioso.

Em segundo lugar, e em consequência dos reflexos da individualização e de afirmação das identidades, a abertura resultante do desaparecimento das fronteiras tem como resultado, não como se poderia pensar, um sentimento mais forte do universal, mas bem ao contrário a afirmação do particular, quer seja de ordem local, regional, nacional, religiosa, ou que tenha que ver com a forma de viver, etc. Com efeito, a ausência de fronteiras tangíveis provoca um reflexo, não de acolhimento, mas de reafirmação da identidade sob as suas formas primárias, a fim de recriar as protecções para essa identidade, que parece desde logo ameaçada na sua existência e na sua durabilidade. A afirmação das identidades tanto individuais como colectivas é de facto necessária, porque fazem parte do património da humanidade. É totalmente legítima porque cada um tem o direito de ser ele mesmo. Mas, por um lado, neste contexto de mundialização, as identidades afirmam-se, de forma geral, de forma simplista, como se a identidade fosse unívoca e fixada uma vez por todas, enquanto que, precisamente porque é humana, é sempre plural, complexa e evolutiva com o tempo e em função do ambiente, por outro lado, a afirmação identitária deve-se, frequentemente, à recusa da presença do “outro”. E, em particular, do migrante. Assiste-se a um forte crescimento de discriminações, de actos de racismo ou de xenofobia em geral, especialmente para com o imigrados, por vezes até à segunda, quando não, à terceira geração.

É por isso que os dois principais modelos de coesão social aplicados hoje na Europa para dar lugar aos imigrantes, a saber a assimilação/integração, por um lado, e o

Cabeça de bronze do imperador Constantino I (IV século depois de J.C.). Museu do Capitólio em Roma. Foto Jastrow/Wikipedia. Os cristãos que recusavam oferecer sacrifícios aos imperadores eram perseguidos, em particular sob Décio e Diocleciano. Depois da morte deste último, em 313, Constantino I trouxe mudanças políticas em matéria de religião. Com efeito, ele previlegiou consideravelmente a jovem Igreja cristã em relação aos outros cultos que existiam na época.

comunitarismo, por outro, não são adaptados. A assimilação, porque trata por omissão as diferentes identidades, como se, vindos da Europa, os migrantes devessem ver as suas ligações ao país de origem desaparecer rapidamente. O comunitarismo, porque se torna muitas vezes em gueto, fechando as comunidades e separando uns dos outros. Este segundo modelo supõe, com efeito, um mínimo de consenso entre as diferentes comunidades assim como uma base linguística e cultural comum, pelo menos de um lado. Era o caso, até ao presente, de lugares como o Reino Unido (cujo próprio nome exprime esta filosofia política) ou dos Países Baixos. Mas, nestes dois países, constata-se o fracasso do modelo comunitarista, uma vez que as “comunidades” em questão têm as suas raízes culturais e religiosas noutro lugar, e permanecem fortemente ligados às suas terras de origem e não através dos media1 .

Coesão religiosa e coesão social: o “Cujos regio, ejus religio”

No modelo europeu de coesão política e social, a religião tem desempenhado, ao longo do tempo, um papel central. Isso também não é uma característica própria da Europa. Com efeito, esta relação entre uma religião e o Estado não tem nada de “natural” – é mais o regime de separação que é a excepção nas sociedades humanas. Estas têm, com efeito, tendência natural para procurarem um fundamento transcendente do tipo religioso, e até mesmo os regimes ateus não se têm privado dele (por exemplo as “liturgias” nazis e os “dogmas” marxistas). Em muitos locais – em África, por exemplo – o chefe político é ao mesmo tempo, o chefe religioso. Houve mesmo, no tempo dos reinos bárbaros europeus (de Clovis, Alarico e outros Godos e Vândalos), em que o soberano deveria ser capaz de obter dos deuses a vitória na guerra e boas colheitas, na falta do que procuravam outro rei, que se fizesse ouvir melhor pelas divindades2 . O modelo europeu do “cujus regio, ejus religio” (dito de outra forma, as pessoas devem adoptar

a religião do seu chefe político) está, portanto, muito espalhado nas sociedades humanas.

Na Europa, está profundamente enraizado nas nossas memórias colectivas, uma vez que vem do Império Romano, em que a religião era religião do Estado, desde logo, a religião romana pagã, depois com Constantino, o cristianismo “romano”. Os locais de culto da religião romana pagã foram, então, pura e simplesmente transferidos para a nova religião do Império, tal como o clero pagão foi substituído pelos sacerdotes cristãos. Todas as outras religiões eram “ilícitas”3. Foi o modelo “romano” que se manteve até hoje, sem dúvida com algumas pequenas alterações, através das diferentes formas de “religiões do Estado”, sempre presentes pelo menos na mente quando não nas instituições: desde o Leste com os encontros regulares entre o patriarca de Moscovo e o presidente da Federação Russa, até ao Ocidente com o “Established Church of England” de que a rainha de Inglaterra é o chefe (à maneira do que se passava na Idade Média) e depois a Norte com as Igrejas do Estado dos países escandinavos, até ao Sul com as concordatas italiana, maltesa, espanhola e portuguesa.

É bom não esquecer que o princípio “cujus regio ejus religio” foi, portanto, a regra na Europa durante dois milénios. Eis porque, mesmo se hoje o regime institucional na Europa é geralmente a separação da religião e do Estado, o modelo da religião do Estado não pode deixar de permanecer nas mentalidades colectivas, consciente (ver: o desejo de um regresso ao “cristianismo” entre os tradicionalistas) ou inconscientemente. Ele tem conhecido diversos aspectos nos nossos países europeus, mas permanece inscrito nas nossas paisagens como nos nossos calendários e mais ainda, nas mentalidades: é, por exemplo, a principal “razão” do lado da cá de todos os argumentos racionais, para a reticência em acolher a Turquia, país muçulmano com uma Constituição laica, na União Europeia.

Esta ligação entre nação e religião tem sido, de facto, criador de coesão social e de uma coesão de que muitos têm a nostalgia nestes tempos de mundialização e de mistura de culturas, convicções e religiões.

Mas esta sacralização religiosa da “nação” comporta riscos em si mesma. Enquanto que a ligação entre religião e cultura tem sido muitas vezes uma fonte de enriquecimento considerável para o património da humanidade, é bastante diferente desde que se misturou com a política. Toda a sociedade humana tem necessidade de manter a sua coesão, mas esta é na essência, frágil; para assegurar a sua sobrevivência, a sociedade deve ultrapassar as tensões inevitáveis que a atravessam, exorcizar a violência nativa que a qualquer momento pode fragmentar o grupo, portanto criar regras, dotar-se de uma autoridade e de um sistema de poder. Para evitar que este conjunto de mecanismos seja posto em causa, procura-se,

então, uma referência e uma garantia da ordem, transcendente. A religião é assim o cimento que assegura a coesão do grupo sacralizando a vida política em nome dos deuses. Os actos litúrgicos tornam-se actos políticos (mesmo até por vezes na Europa laicisada do século XXI, com as exéquias religiosas dos Chefes de Estado, por exemplo) e os laços sociais, laços sagrados. E como a violência está sempre pronta a surgir no seio da sociedade por causa dos conflitos de interesse, ou outros, a religião lança a violência sobre um culpado escolhido – seja no interior, mas se possível no exterior do grupo – que preenche a função de “bode emissário”. É assim que ao longo dos séculos se têm sacrificado tantos e tantos uns aos outros: desde as crianças que eram postas nas fundações das muralhas da cidade, até aos migrantes de hoje, passando pelas “bruxas”, os Negros ou os Judeus. Perversão da sociedade, perversão daqueles que se lançam numa vingança cega designando vítimas inocentes como causa das suas infelicidades, perversão da religião quando sacrificamos aos deuses que se nos apresentam como estando ávidos de sangue humano.

Assim, a coesão sacralizada do “cujus regio…” foi paga muito cara por todos aqueles que sofreram as consequências: ela tem-se feito

na Europa a custo da exclusão de “outros”, por vezes tolerados com um estatuto discriminatório, mas mais frequentemente vítimas de violências e de perseguições, levando à escravatura ou à conversão forçada. Para não apresentar mais do que um exemplo, uma das suas expressões mais desastrosas foi Jupiter Otimus Maximus era a revogação do Édito o maior dos deuses roma- de Nantes em França. nos. chamavam-lhe “o pai dos deuses e dos homens”. Foto Jastrow/Wikipedia Dito de outra forma, esta coesão tem-se feito à custa da perseguição das minorias e, sobretudo, da negação da liberdade de consciência.

Religiões e liberdade de consciência

Com efeito, uma das vítimas – e não das menores – desta religião instrumentalizada pela política é a liberdade de consciência. Eis porque a separação da Igreja e do Estado tal como de hoje em diante mais ou menos adquirida em todos os países da Europa, longe de ser um refúgio da Igreja ou das religiões, permite, pelo contrário, que estas reencontrem um dos fundamentos da fé: não fé no sentido bíblico do termo sem uma relação pessoal de amor com Deus, portanto, sem liberdade como fundamento desta relação. Assim, a liberdade de consciência é a expressão civil e política da liberdade que é e deve ser sempre a base da fé.

Uma liberdade de consciência que a Igreja Católica, por exemplo, não reconheceu senão após o Concílio Vaticano II e não sem dificuldade. Para isso, foi necessário que em certos países, na época moderna, cristãos fossem privados da liberdade. É necessário dizer que do lado das religiões há muitas vezes consentimento ao “cujos regio…” e consequentemente a que o poder político (“o braço secular”) obrigue as pessoas a seguirem a religião do Estado.

Há muitas razões para uma tal atitude por parte das religiões. Mencionaremos três que são essenciais.

A primeira é a relação entre cultura e religião. De facto, uma religião inscreve-se necessariamente numa cultura. Ela exprime-se e cria formas artísticas, filosóficas ou morais que se contam entre os mais belos tesouros da humanidade. Reciprocamente, as formas religiosas são elas mesmas diversas segundo as culturas em que se inserem. Não há apenas a dimensão religiosa da diversidade cultural, mas também a dimensão cultural da diversidade religiosa, incluindo o interior da própria religião. Uma tal diferenciação cultural levou muitas vezes a oposições internas às religiões, ou até mesmo a cismas, cujas causas tenham muito menos a ver com divergências de ordem doutrinária do que com incompreensões de ordem cultural.

Assim, esta ligação entre cultura e religião pode ser de tal maneira proveitosa que se torne, de qualquer forma, obrigatória. A maioria das pessoas pertencentes a tal cultura e a tal religião tem difículdade em ver como podem partilhar da sua identidade cultural, sem pertencer também à sua religião. Quanto aos responsáveis religiosos, esta ligação é, conscientemente o não, um dos meios de assegurarem a perenidade dessa religião. Também o aceitar a presença de “outros” como a liberdade de consciência, é ameaçar a identidade religiosa assim como a cultural. “Católicos e Franceses sempre!” cantava-se nas igrejas em França, não há ainda muito tempo. Era uma forma de subentender que não se pode ser verdadeiramente francês se não se é católico. Tal era também uma das razões pela qual muitos queriam afirmar no projecto do Tratado Constitucional europeu as “raízes cristãs” da Europa. Mas não querer citar essas raízes, assim como muitas outras, era dar a entender – volens nolens, a apesar de todas as denegações – que não se pode ser verdadeiramente europeu se não se é cristão.

Uma segunda razão para em certas religiões recusar a liberdade de consciência é o clericalismo. A palavra “clérigo” diz, ela mesma, que há uma diferença entre os que sabem e os que não sabem, aqueles que são competentes e aqueles que apenas têm de seguir docilmente o que lhes é dito. Aceitar a liberdade de consciência é, então, reconhecer uma liberdade e uma responsabilidade àqueles que, afirma-se, não são verdadeiramente capazes. Não será melhor tratá-los como menores? Os “cléri-

gos” seja no domínio religioso, ou, por extensão, no domínio escolar, universitário, bem como na da informação, etc., não gostam que o “vulgum pecus” se permitam ter opinião e pôr em questão a sua competência. Por outro lado, no meio religioso, os clérigos têm exercido muito frequentemente um verdadeiro domínio das consciências em vez de estimular cada um a assumir a sua própria responsabilidade. A prática católica da confissão tem sido muitas vezes desviada no sentido de uma vontade perversa de poder e de controlo sobre as consciências – tornou-se actualmente, e muito felizmente, insuportável para muitos. Portanto, não nos devemos admirar se as coisas mudaram, e se esta prática seja hoje de escolha livre. Por fim sublinhamos que o controlo se tem exercido muitas vezes prioritariamente sobre as mulheres que, diferentemente dos homens, não têm os mesmos meios para se revoltarem, especialmente no domínio da sexualidade conjugal, o que lhes tem feito carregar fardos bem pesados e culpabilizantes. Aí, também, a liberdade de consciência tem sido fortemente posta em causa.

A terceira razão, ainda mais grave, e mais perigosa para a liberdade de consciência, é a pretensão, que as religiões, por vezes têm, de deterem uma verdade absoluta e universal que querem impor a todos.

Porque a verdade que as religiões procuram tem a ver com aquilo a que se pode chamar o Último. Por um lado, com efeito, procuram formular o que consideram como a verdade sobre o Último. Por outro lado – e sobretudo – desde que comportam uma “revelação” divina, pensam deter uma verdade vinda de Deus, a propósito do Homem e do mundo. Muitos chefes religiosos tiram, então, a conclusão de que estão investidos de uma autoridade divina para dizer a verdade e que, consequentemente, devem ser escutados e obedecidos em todos os domínios da existência humana. Mas a verdade, sobretudo relativamente ao Último, nunca é uma coisa que nenhum indivíduo, nenhuma instituição possa “possuir”, governar ou dominar. Desde que alguém pensa possuir a verdade, esta torna-se fonte potencial de violência. Isso é válido para a verdade religiosa, bem como para as verdades seculares. Toda a relação com a verdade deve ser da ordem da busca, uma busca jamais atingida, e, portanto, deve ser modesta. Ninguém pode possuir a verdade: apenas posso dirigir-me para a verdade, a fortiori se essa verdade tem que ver com o Último.

No ano 2000, por ocasião do “Ano Santo”, o Papa João Paulo II tinha decidido que a Igreja Católica Romana devia pedir, publicamente, perdão pelos seus pecados. Entre esses pedidos de perdão, havia um específico relativo aos pecados cometidos “em nome da verdade contra a caridade”. Aquele que foi encarregado disso foi o Cardeal Ratzinger (hoje Bento XVI), responsável pelas questões da verdade no seio da Igreja. Gesto corajoso e significativo, destinado a mostrar que, se o gozo da verdade é essencial para cada ser humano, para

a humanidade e para cada religião, não se trata de uma verdade abstracta que se impõe de forma absoluta: a verdade inscreve-se em algo que a ultrapassa e que é o mandamento do amor, incluindo, portanto, o respeito por cada um. Porque para o crente, apenas Deus “é” a verdade – não palavras humanas nem conceitos acerca de Deus. Aquilo que eu posso dizer sobre Deus pode ser “verdade”, no sentido de que aquilo que é dito é correcto, mas não exaustivo, como nota S. Tomás de Aquino. Isso não é nunca “exacto”, porque Deus ultrapassa infinitamente as palavras que podemos pronunciar, os pensamentos que podemos formular sobre esse assunto. E especialmente para os cristãos, apenas Jesus “é” a verdade. Como poderia eu, portanto, deter esta verdade, seja de que forma for, e ainda menos impô-la a quem quer que seja? É na relação pessoal que tem com Cristo, sob uma forma, ou outra, portanto, de forma inteiramente livre, que cada um é convidado a aproximar-se da verdade.

Logo, a liberdade de consciência deveria ir sempre para além de si própria, numa Europa herdeira da tradição cristã.

Desde logo, porque ao longo da Bíblia vê-se elaborar, progressivamente, uma clara separação entre o poder religioso e o poder político, que chegará à afirmação: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. E justamente uma das originalidades da Bíblia, em relação ao antigo Médio Oriente é como “dedivinisar” o rei. Este mesmo recebe a unção com o óleo sagrado e, portanto, o seu poder vem de Deus. Porque sem ele permanece um homem comum.

Mas também porque, para o pensamento bíblico, a relação com Deus é uma relação de aliança. Quem diz aliança diz livre aceitação, quase uma relação de igual para igual, escolha deliberada de responder positivamente à proposta que Deus faz, de entrar em relação com ele nessa base. Esta aliança, de ordem sobretudo colectiva no início – Deus a estabelece com o povo no Sinai – será concebida cada vez mais, uma aliança de pessoa a pessoa, uma aliança baseada no amor entre Deus e cada crente: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração”.

As religiões e os outros

É por isso que hoje, no contexto da mundialização e da mistura das culturas e das religiões que conhecemos na Europa, recai sobre as religiões não só a responsabilidade de aceitar (o que por vezes fazem com a boca…) mas de quererem realmente promover a liberdade de consciência como parte da sua mensagem e em nome da sua própria tradição.

Em primeiro lugar, evitando todo o “abuso da posição dominante”, o que é de evitar no domínio económico tanto como parte integrante do domínio ideológico e religioso! Com efeito, a experiência mostra que todo o grupo maioritário está sujeito à tentação de marginalizar, de excluir, até

mesmo de perseguir ou de procurar eliminar os grupos minoritários.

Por conseguinte, e em segundo lugar, aceitando, sem reservas, uma verdadeira separação entre Estado e religiões (o que não quer dizer generalizar o modelo da laicidade francesa, que tem raízes históricas bem particulares – os outros modelos de separação praticados noutros países europeus são também viáveis). É preciso, portanto, vigiar para que nenhuma corrente de pensamento ou grupo ideológico monopolize o aparelho do Estado. Esta responsabilidade releva do Estado, mas também dos próprios responsáveis religiosos: há ainda hoje na Europa, apesar da separação afirmada, muitos conluios e alianças doentias entre o poder político e o poder religioso, nenhum deles insatisfeito por poderem beneficiar de apoio um do outro. Como cidadãos, tal como crentes, temos de recusar categoricamente, toda a instrumentalização recíproca do Estado e da religião.

Em terceiro lugar, uma vez que para certos responsáveis religiosos a liberdade de consciência e as suas consequências são, por vezes, difíceis de compreender e de aceitar, são, sem dúvida,outrosresponsáveisreligiosos que estarão melhor colocados para a discutirem com eles. Tratar-se-á de se interrogar sobre o significado e o benefício, para as próprias religiões, desta liberdade de consciência assim como de uma separação pacífica entre a religião e o Estado. Este deveria ser um dos objectivos do diálogo entre as religiões: abordar e discutir estas questões. Isto é vital para as religiões, porque numa sociedade como a nossa, que tende a recusar toda a forma de magistério, a religião, a prazo, não se manterá senão através da fé pessoal dos crentes. Isso é igualmente vital para a credibilidade das religiões aos olhos da sociedade no seu conjunto: esta credibilidade será ainda mais forte porque as religiões deixarão de aparecer nos média como um factor de afrontamento, mas como um elemento de coesão social e de paz. No seio de sociedades pluriculturais e pluri-religiosas, como as nossas, elas serão julgadas à vista do respeito da sua própria mensagem: a sua contribuição para o respeito mútuo e a fraternidade universal.

Isso significa que, numa sociedade futuramente múltipla, as religiões devem – e é talvez o maior desafio que enfrentam na hora actual – ser levadas a recomeçar a “pensar” no lugar dos “outros” na sua própria visão do mundo.

Não se trata apenas do diálogo inter-religioso nem de tolerância. Também não se trata de “fazer das tripas coração” resignando-se ao facto de que há pessoas que não partilham as nossas convicções. Trata-se, por um lado, de procurar qual é o lugar legítimo e a contribuição benéfica das outras convicções no nosso próprio sistema de crenças e, por outro lado – e mais ainda – de se questionar como é que esses “outros” devem ser considerados no seio do nosso próprio sistema religioso: dito de outra forma, de que maneira os incluímos no

modo como pensamos Deus e sobre as suas relações connosco. Todos temos feito a experiência de ter sido enriquecidos, esclarecidos, alimentados, pelos outros, aqueles que não estão do nosso lado, que não pertencem à nossa cultura, à nossa língua ou à nossa convicção. O encontro com o outro diferente é uma experiência agradável que me permite sair do orgulho de pensar que sou o único a ter razão. Bem longe de me levar a renegar-me a mim próprio, é um caminho que me humaniza. Bem longe de levar as religiões a renegar o que quer que seja da sua mensagem, será para elas um caminho de humanização e de universalização: “Qual é, com efeito, o caminho para a universalidade de uma ordem política? Ele consiste em confrontar múltiplas crenças – uma multiplicidade de discursos coerentes – para procurar um discurso coerente que os englobe a todos, e que é precisamente de ordem universal. Um discurso coerente já está aberto sobre o universal logo que aquele que o tem e que permanecia até então fechado na sua particularidade – o seu discurso era coerente – sem receio da coerência interna de outros discursos diferentes do seu – para ultrapassar a sua própria particularidade. […]

A verdade de cada um pode chegar ao seu verdadeiro estatuto de verdade universal, em vez de empalidecer diante do seu esplendor.” (E. Lévinas)

* Presidente da Comissão dos Direitos do Homem na Conferência das OING do Conselho da Europa, em Estrasburgo.

Notas

1. Ver o Livre Blanc sur le dialogue interculturel, “Viver ensemble dans l’égal dignité”, Conselho da Europa, Junho 2008, §3.3, p. 19. 2. Ver, por exemplo. Bruno Dumézil, Les racines chrétiennes de l’Europe, conversion et liberte dans les royaumes barbares des Ve-VIIIe siècles, Fayard, Paris, 2005 3. Com a única excepção do judaísmo que tinha o estatuto de “religio licita”.

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