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J. Robert As Igrejas e as Autoridades A. von Schlachta Os anabaptistas no Sacro-Império: longe
Jacques Robert*
Há já longos anos, a Federação Protestante de França publicou – o que não estava, contudo, nos seus hábitos! – um verdadeiro panfleto de mais de uma centena de páginas – como o presente artigo, que lhe toma emprestado o título – As Igrejas e as Autoridades.
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Tratava-se de uma espécie de “licença”, no sentido próprio do termo, dada pelas Igrejas às autoridades, fossem elas quais fossem. Fim dos compromissos com as autoridades; terminada a aliança – retrógrada – do trono e do altar; às ortigas, a longa ligação com o dinheiro…
Este documento levantou, na época, um coro de protestos tanto mais compreensível quanto, se os protestantes tinham, sem dúvida, no decurso da História, exprimido sempre publicamente o seu apego visceral a uma plena liberdade em relação ao poder, a própria composição do grupo de redacção deste texto perturbador não pode senão surpreender: compreende, com efeito, altos representantes da inteligência do Estado e eminentes dirigentes de grandes bancos…
Ora, ninguém ignora que, desde 1905, as paróquias protestantes não dependem para a sua sobrevivência senão da generosidade – presumida – dos seus fiéis.
Então, cuspir, sem vergonha, na sopa? Ou sentir-se bem com pouca despesa?
Os lampiões do espectáculo estão hoje apagados. Mas o problema de fundo ainda permanece. Ele percorre toda a História nacional. Melhor, ele acompanha sempre o progresso. Os novos avanços da ciência, o desenvolvimento das tecnologias modernas, a influência de uma nova ética, criaram interrogações angustiantes que não se colocam senão agora.
Paralelamente, a paisagem religiosa mundial modificou-se consideravelmente. Algumas nações vêem florir, no seu interior, religiões até há pouco desconhecidas, e seria bom que lhes prestassem atenção!
Sem voltar aqui às numerosas fórmulas que têm sido tentadas um pouco por todo o lado, para definir as relações necessárias, obrigatórias mesmo, entre as Igrejas e as autoridades, retendo sempre que não pode haver coincidência automática entre tal regime político e uma maior ou menor liberdade religiosa, apenas constatamos que
Jacques Robert a “laicidade” parece ser hoje a fórmula mais geralmente reconhecida. Talvez porque ela veicula mais naturalmente a tolerância.
Ela convida-nos pelo menos a reflectir, neste momento, em três problemas que nos interpelam directamente: 1. Será que a religião faz parte do espaço público? 2. Serão os poderes públicos gestores de uma igualdade rigorosa, estabelecida entre todas as confissões? 3. Será necessário, e como, combater as religiões “extremistas”? *****
A célebre e antiga censura, “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, deve ser correctamente explicitada, se queremos pôr fim às interpretações erradas e contraditórias que lhe têm feito ao longo da História.
Este mandamento não implica uma separação – a fortiori hostil – entre o domínio temporal e o domínio espiritual.
Ele implica simplesmente – mas firmemente – que nenhum dos dois se deve intrometer com o outro.
O poder político não serve para reger as consciências. Da mesma forma, a contrario, a religião não tem que dominar o Estado, até mesmo orientá-lo – ou, pior ainda, ditar-lhe – as decisões.
O cristianismo foi considerado revolucionário simplesmente porque exaltava a dignidade da pessoa humana num mundo que ainda não tinha uma clara consciência disso.
O homem, criatura formada à imagem de Deus, está desde esse momento nimbado com este véu sagrado. E, por isso mesmo, deveria ser protegido. Além disso, todo o homem, sem nenhuma distinção, estava revestido dessa dignidade. Igualdade e respeito reuniam-se.
Em nenhuma época o cristianismo pregou a revolta contra os poderes estabelecidos, desde que estes últimos não saíssem das suas competências. Pelo contrário, a resistência era pregada contra o opressor quando precisamente este pretendia reger, ao mesmo tempo, os corpos e as mentes, isto é, as almas…
O tirano era aquele que, violando deliberadamente a repartição entre os dois domínios, entendia reinar sobre as consciências de cada um.
Na época da perseguição, os protestantes levantaram-se contra o poder monárquico, não por ele ser autoridade ou católico, mas porque, revogando o Édito de Nantes, entendia não continuar a tolerar no seu solo “a heresia da Reforma” e não permitia escolha aos protestantes, senão a abjuração ou o exílio. Assim, a revogação do Édito de Nantes era inaceitável e ilegítimo, porque entendia confundir os dois domínios, o de César e o de Deus.
Ele foi, ao mesmo tempo, um erro político maior e uma falta contra o espírito.
Jacques Robert
Os dois mundos deviam estar separados.
A prova disso é hoje reportada por todo o lado, por uma prudência extrema na apreciação, por cada um, do direito do outro.
Quando se põe, por exemplo, no seio da Igreja nacional, um problema de apropriação de edifícios ou um problema de detenção do direito de ocupação, os tribunais franceses têm sempre em linha de conta reenviar a interpretação das regras canónicas ao Ministério dos Negócios Estrangeiros que, tratando-se da Igreja Católica, pede directamente ao Vaticano qual é a sua apreciação. É apenas quando a ordem pública está ameaçada no seu território, pelas acções dos fiéis ou dos ministros de culto, que o Estado retoma os seus direitos.
Mas esta reserva – muito naturalmente – não pode levar, de qualquer forma, a uma espécie de imunidade jurisdicional das Igrejas e dos seus ministros. Nenhuma religião está acima das leis comuns do país de acolhimento. E não poderá evitar nem as perseguições, nem as sanções, se os propósitos a partir do púlpito se revelarem constituírem delitos previstos pelas leis do país.
Salvo para a sua disciplina estritamente interna, as religiões não estão submetidas a um direito especial, derrogatório ao Direito Civil e Penal do Estado.
Se, por outro lado, uma prescrição ou um rito da religião vem a infringir a lei penal francesa, será julgado e punido segundo as disposições dessa lei.
Neste sentido, a distinção dos dois domínios (o de César e o de Deus) não implica, de forma alguma, que haja no Estado dois “espaços” diferentes, com fronteiras rigorosamente estanques. Não seria de conceber a existência de um “espaço privado” próprio das religiões e de um “espaço público” do qual elas seriam excluídas. As religiões fazem parte integrante do espaço público; e, pela mesma razão, os Estados não podem desinteressar-se da actividade e finalidade das Igrejas ou permanecerem indiferentes perante elas. Por seu lado, as religiões também não podem ignorar a existência dos poderes públicos, dos quais têm necessidade.
Importa, portanto, que se nutra entre uns e outros um diálogo permanente, não para se vigiarem mutuamente, mas muito mais para coordenarem as suas acções respectivas ao serviço das comunidades que estão a seu cargo.
Como tal – e constata-se isso correntemente em numerosos países e especialmente em França – é necessário, para conduzir este diálogo constante e confiante, que existam, de parte a parte, estruturas representativas e aptas para travar as discussões necessárias e levá-las a acordos úteis.
Estas estruturas representativas oficiais existem, desde há longo tempo, entre as antigas religiões instaladas solidamente no seio de nações estáveis.
Porém, outras religiões, mais
Jacques Robert recentes, ou cuja importância numérica cresceu bruscamente, estão sem defesa. Convém, portanto, que os poderes públicos das pessoas interessadas ajudem esses novos movimentos a dotarem-se de instituições que se tornarão interlocutoras legítimas do Estado.
Mas será verdadeiramente aos poderes públicos que cabe dar o seu concurso para se porem de pé esses fundamentos indispensáveis, correndo o risco de se ver acusado de pisar o princípio da laicidade que, para muitos, constitui o pilar da sua relação com as confissões?
A França sempre conheceu este problema.
Nesse país, o Ministério do Interior – apesar da lei da separação da Igreja e do Estado de 1905 – tenta, com resultados diversos, criar estruturas representativas do culto muçulmano, e essa lei é regularmente criticada, prejudicando assim o princípio da laicidade que postula a interdição de toda a ingerência do Estado na vida eclesiástica. Mas não é esta a única forma de criar as condições de um diálogo frutuoso entre as Igrejas e os poderes? Esse diálogo é imperativo e deve ser construído e mantido custe o que custar. Se não, a “separação” corre o risco de se tornar em “ruptura”, o que seria catastrófico para a homogeneidade da sociedade civil, assim como para a solidez do Estado.
****** Porque as religiões fazem parte do espaço público (de onde seria insensato excluí-las) é que elas devem contribuir para o debate político, dando, inclusivamente, a sua opinião – publicamente – sobre os grandes problemas da nossa sociedade. Ainda é necessário que o façam com discernimento e moderação, e não sob a forma de editais dirigidos aos seus fiéis…
Não tivesse ela como única vantagem o informar o poder político do que pensam os seus dirigentes, a livre expressão do pensamento concedido às religiões seria infinitamente valiosa para o conjunto da opinião pública…
E, depois, em nome do quê interditar as Igrejas de defenderem o seu ponto de vista em todas as discussões sobre as questões essen-
“Mihrab” ou nicho de oração indicando a direcção de Meca numa mesquita. Foto Ulrike Mueller / churchphoto.de.
As duas torres, a da igreja protestante (em primeiro plano) e a da igreja Católica, simbolizam a paz religiosa na cidade de Augsburgo. Foto Simon Brixe/ Wikipedia Commons.
ciais da nossa época?
Mesmo se algumas hierarquias parecem, na verdade, terem feito em contratempo a evolução da nossa sociedade, que não tomam bem consciência de que já não são seguidas pelos seus fiéis, não é, apesar de tudo, útil que outros preguem no deserto e façam ouvir, mesmo com a desaprovação da maioria, uma voz que se sente só, mas que permanece digna?
Com uma condição, no entanto: é que, em democracia, se o povo estatuiu, seja directamente (por referendo), seja por intermédio de uma lei votada pelos seus representantes, todos se inclinem, desde logo que o texto em questão esteja conforme a Constituição – a lei, não é, com efeito, a expressão da vontade geral, senão no respeito pela Constituição.
Ninguém saberá, neste caso – por causa das suas concepções religiosas pessoais – opor-se à aplicação desta lei.
O entrave à aplicação de uma lei é um delito punível. Que se seja hostil ao aborto, quem o poderá contestar? Mas desde o instante que, segundo certas condições bem precisas, a lei autorizou a interrupção voluntária da gravidez, ninguém se pode opor – organizando comandos que utilizam a violência – a que as mulheres recorram a esta lei. Acrescente-se que se professores de medicina, ou chefes de serviços hospitalares, têm perfeitamente o direito, por razões religiosas e em nome da “cláusula de consciência”, de se recusarem a praticar um aborto, não podem opor-se à organização no seu serviço de um sector onde esta intervenção poderá ser praticada.
Vamos pôr fim ao eterno debate – totalmente vão – entre a lei positiva e a lei natural!
Há muito tempo que a doutrina dita do “Direito natural” não tem defensores sérios… e, contudo, num discurso pronunciado por ocasião do jubileu, em Novembro de 2000, o Papa João Paulo II não hesitou em dizer: “A lei positiva não pode contradizer a lei natural […]. Isto porque uma lei que não respeita o direito à vida – da concepção ao nascimento – do ser humano, qualquer que seja a con-
Jacques Robert dição na qual ele se encontre – no estado embrionário, idoso, ou em fase terminal – não é uma lei de acordo com o desígnio divino. […] Um legislador cristão não contribuirá para a formular ou aprovar.”
Sem dúvida que o ideal seria que a lei “moral” (e não a lei natural) coincidisse com a lei “política”. Mas quem definiria a moral? As Igrejas? Isso não se põe num contexto de laicidade! Um colégio de sábios? Mas designados por quem? E na base de que critérios?
Não confundamos o Direito, a política, a moral e a religião. Pelo menos enquanto não formos um povo de deuses.
Mas da mesma forma que nenhuma religião, fosse ela maioritária, deveria ser autorizada a fazer prevalecer o seu ponto de vista sobre os outros, igualmente faria bem, sem qualquer a priori filosófico, tratar todas as religiões no mesmo plano.
A neutralidade – e não a tolerância, que é um termo ambíguo – que postula a laicidade não significa apenas que o Estado não deve pregar nenhuma doutrina nem fazer propaganda de nenhuma fé.
Ela também não implica indiferença para com as religiões – a fortiori um grande cuidado para não entrevar o seu exercício. Esta não é uma noção puramente negativa. Também não deve ser positiva tratando igualmente todas as religiões, isto é, não privilegiando nenhuma.
Nem sempre este é o caso, mesmo no quadro das democracias. Não por um desejo intencional e público de fazer uma escolha deliberada em favor de tal ou tal religião – o que implicaria, de facto, um prejuízo causado às outras, pelo jogo da História e o peso das tradições – mas por necessidade lógica e incontornável.
Se, por exemplo, o Islão não vê aplicado a si, em França, o mesmo regime que o catolicismo ou o protestantismo, não é isso o resultado de um preconceito apresentado do Estado contra si, mas o fruto de uma longa evolução social e política.
Com efeito, assim que foi votada, em 1905, a lei da separação da Igreja e do Estado, que definia, nas suas diversas modalidades, a relação entre as religiões e os poderes públicos, o Islão praticamente não existia em França. Não se conhecia senão o catolicismo, as duas religiões protestantes (reformada e luterana) e o judaísmo…
Quando foi decidido que as igrejas, catedrais, templos e sinagogas, já construídos na época, seriam propriedade quer das colectividades locais, quer do Estado – que devia, portanto, prover a sua manutenção – não havia, no nosso território, um número significativo de mesquitas.
A quase totalidade dos locais de culto muçulmanos foi construída depois disso. Assim, o resultado foi que o ónus da manutenção –
Jacques Robert ou inicialmente, a construção desses locais – recaiu inelutavelmente sobre os fiéis desse novo culto. Não que, evidentemente, o Islão fosse em si uma religião nova nessa época, mas porque a importância numérica da população muçulmana em França era ainda irrisória.
Se a esta situação – da qual ninguém, obviamente, é responsável – juntarmos a pobreza desta população, não é muito de admirar que as religiões muçulmanas tenham apelado ao estrangeiro para financiar a construção dos seus edifícios. E o mesmo para a formação dos imãs: a falta de escolas apropriadas para formar estes ministros de culto em solo francês levou a apelar a imãs formados fora do país. Foi isso uma boa coisa? Seguramente que não.
Esta é a razão pela qual – como vimos acima – os poderes públicos franceses decidiram ajudar esta nova comunidade religiosa, cujo número aumentava com a chegada – imposta pela História – de populações expulsas das terras árabes ou forçadas ao êxodo por causa da fome. Mas pode uma República laica, para combater uma situação que ninguém tinha seriamente previsto, quebrar o pacto social da laicidade acordado com as outras religiões?
Foi então que nasceu o conceito de “descriminação positiva”, expressão claramente pobre, mas que dá conta deste novo desequilíbrio, que desfaz a igualdade, e para o qual era necessário, com urgência, criar uma solução.
Na falta de vontade de modificar uma lei mítica que tinha assegurado à França uma paz religiosa durante um século, baralhou-se todo o sistema. A interdição das subvenções às Igrejas, postulada pela laicidade, desapareceu insensivelmente por detrás da bruma de vantagens diversas, concedidas às novas confissões… Estabeleceu-se de facto uma desigualdade de jure!
Iremos fazer o mesmo com as seitas? O problema põe-se de forma diferente, porque, se havia a pretensão de identificar as religiões com as seitas, estamos perante uma situação inédita… E, depois, sobretudo, a sorte reservada às seitas variava de acordo com os Estados. Se, à evidência, as relações destes últimos com as religiões já apresentava uma complexidade variada, a posição de cada um face às seitas traía uma divergência fundamental nas suas sucessivas abordagens.
Em alguns países – e não nos menores – acolheram-se abertamente as seitas em nome de uma liberdade religiosa entendida de uma forma ampla. Noutros, pairava sobre elas uma suspeição difusa.
Dividem-nas em categorias: as boas e as más; as aceitáveis e as nocivas; as verdadeiras e as falsas; as desinteressantes e as gananciosas; as inofensivas e as perigosas…
Acusam-nas frequentemente – em bloco – de métodos perniciosos e ilegais. Mas porque não as perseguir? Nenhuma religião está acima
Jacques Robert das leis.
As condenações eram raras e os reconhecimentos oficiais mais frequentes.
Poder-se-á, globalmente, aplicar-lhes o regime das Igrejas? Muitos eram os que lhes negavam a qualificação de Igrejas. Por outro lado, sabemos o que em Direito era uma religião? Chegamos então – especialmente em França – a definir a seita pela qualificação de um novo delito que ela poderia eventualmente cometer! Flutuávamos no absurdo. Seria necessário que um dia saíssemos desta situação. Mas primeiramente era necessário que nos defendêssemos contra o integrismo.
Segundo o Petit Robert, “o integrismo é a atitude que consiste em recusar toda a evolução de uma doutrina (especialmente de uma religião)”, citando como único exemplo o integrismo muçulmano.
Hoje temos uma concepção mais vasta do integrismo.
Se, em rigor, uma tal definição pode aplicar-se à Igreja Católica Apostólica e Romana, cujos “integristas” (que ela reintegra, aliás, sem perturbações de consciência aparente depois de os ter excomungado) são precisamente aqueles que fazem questão de escamotear os avanços de um Concílio recente voltando às práticas antigas, outras religiões são mais exigentes antes de aplicarem a algumas das suas minorias esse qualificativo – infamante – de “integristas”.
É verdade que os “integristas religiosos” recorrem muitas vezes a métodos que não têm uma relação muito distante com os “mandamentos” da sua confissão. Pode mesmo dizer-se, sem risco de estar muito enganado, que se afastam da sua religião, não recusando toda a evolução da sua doutrina, mas pisando os fundamentos mais sagrados.
Porque – nunca nos esqueçamos – toda a religião é, antes de mais, paz e amor. Procurar-se-á em vão através do mundo uma religião que oficialmente pregue outra coisa.
É verdade que, no passado de uma História sombria, as grandes confissões monoteístas nem sempre demonstraram uma tolerância caridosa e cheia de compaixão. As guerras de religião estiveram entre as mais atrozes e as mais mortíferas. Mas cada religião – mesmo levada pelo seu fanatismo – estava persuadida da sua razão. E algumas épocas aceitaram voluntários que foram autorizados a fazer o bem aos outros, se necessário, contra a sua expressa vontade.
Se se consente em examinar as “doutrinas” e “finalidades” de cada religião, forçoso é contudo reconhecer que elas se ligam, antes de mais, a enquadrar o homem e a ditar-lhe sãs (e não santas!) acções.
Que religião ousaria negar todo o direito ao homem e condená-lo à guerra, ao crime e ao ódio? É verdade que pequenos grupos
Jacques Robert fanáticos pregam a violência, mas ninguém pretendeu que eles fossem representativos da sua comunidade, nem simplesmente aceites ou desculpados por ela. Suportam-nos por medo. Quem adere voluntariamente a uma tal loucura?
Além disso, é necessário colocá-los em posição de não prejudicar, quando, pelos seus comportamentos e ideologias, não hesitam em atentar contra a existência da própria democracia.
Que meios usar para os combater ou diminuir a sua influência?
Cada religião deve esforçar-se – desde logo – por combater a minoria integrista existente no seu próprio seio. Isso supõe que ela seja excluída da Igreja, para mostrar claramente que não representa, de forma alguma, a maioria da comunidade. Mas isso implica, por outro lado, que as autoridades, falando em nome dessa maioria, adoptem posições e uma linguagem que não a choque quando se defendem, num combate de antemão perdido, opiniões que assentam seja em mentiras, seja em inverdades evidentes.
Sim, para as tomadas de posição éticas ou políticas que podem ter a sua própria lógica perfeitamente aceitável! Não, para as denegações dogmáticas de verdades científicas verificadas!
Por outras palavras, sim, para combater o princípio da gestação para outrem, e, não, para contestar a utilidade do preservativo no combate contra a sida.
Podemos, com efeito, admitir, perfeitamente, que seja condenável a gravidez por outrem, porque o corpo humano não deve ser objecto de um qualquer comércio, remunerado ou não. Mas também se pode ver esta questão com outra abordagem e considerar, pelo contrário, que para uma mulher que tem a possibilidade de tomar a seu cargo o embrião de outrem – que não pode acolhê-lo até ao fim – representa um acto do maior altruísmo que se possa conceber, porque após o nascimento deverá entregar a criança à sua mãe biológica.
Em contrapartida, interditar a utilização do preservativo para combater a sida sob o pretexto falacioso de que ele não pode descartar a 100% o risco de uma eventual doença infecciosa, é um pecado contra o espírito, porque não é apoiado pelas fontes científicas mais seguras que o preservativo permanece, actualmente, como o meio mais eficaz para evitar a propagação da epidemia.
Mas é necessário ir mais longe. Uma religião – seja ela qual for – não deverá demonstrar arrogância e desprezo ao querer impor aos outros o seu próprio credo.
Da mesma forma, não deverá – sob pena de abalar os fundamentos da sua própria filosofia – utilizar, para combater o integrismo, as armas que este utiliza contra si.
As bombas humanas são inaceitáveis. Mas Guantanamo também o é…
O problema não é realizar, no julgamento que cada um é leva-
Jacques Robert do a fazer relativamente a uma outra religião, amálgamas fáceis, rejeitando misturar no domínio do “mal” as diversas correntes que, em todos os tempos, penetraram nas Igrejas.
É necessário separar – em todas as religiões – os fiéis que são “moderados” daqueles que se reclamam serem nebulosos “extremistas”. A este respeito não podemos senão felicitar as tentativas feitas em França para distinguir e organizar um “Islão moderado” que tomaria legitimamente o seu lugar no concerto das outras religiões.
Porque, como se diz, o Islão – para continuar com este exemplo – é uma religião que, nas suas bases profundas, é perfeitamente pacífica e calorosa.
Guy de Maupassant sentiu-o instintivamente por ocasião das suas primeiras viagens pela Argélia, apenas alguns anos depois da chegada dos franceses.
Entrando numa mesquita depois de se ter descalçado, avançou sobre os tapetes “no meio de colunas claras, cujas linhas irregulares enchem este templo silencioso, vasto e sob uma enorme quantidade de pilares. Porque estes últimos são muito largos, tendo um dos lados orientado para Meca, para que cada crente possa, colocando-se diante dele, não ver nada, não ser distraído por nada e, voltado para a cidade santa, envolver-se profundamente na oração”.
“Tudo é simples, todo está nu, tudo é branco, tudo é doce, tudo é pacífico nestes asilos da fé, tão diferentes das nossas igrejas decorativas, agitadas, quando estão cheias, pelo ruído dos oficiantes, o movimento dos assistentes, a pompa das cerimónias, os cânticos sagrados e, quando estão vazias, tornam-se tão tristes, tão dolorosas que fecham o coração, que têm o ar de uma câmara mortuária, de uma fria câmara de pedra onde o Crucificado ainda agoniza…
“Sem cessar, os Árabes entram, os humildes, os ricos, o carregador do porto e o ancião-chefe, o nobre na sua brilhante estamenha de seda branca. Todos, pés nus, fazem os mesmos gestos, oram ao mesmo Deus com a mesma fé exaltada e simples, sem poses e sem distracção.
“[…] São cativos sob a vontade do Mestre!
As mulheres, certamente, podem entrar como os homens. Mas quase nunca vêm. Deus está muito longe, muito alto, muito imponente para irem a Ele. É necessário um intermediário mais humilde entre Ele – tão grande – e elas – tão pequenas. Este intermediário é o morabito. Na religião católica não temos os santos e a Virgem Maria, advogados naturais dos tímidos, junto de Deus?**”
Os homens têm necessidade de sonho – como também de pão: o sonho de uma vida mais fácil e de um futuro melhor.
Para atingir este fim, autoridades e Igrejas devem colaborar em plena confiança. E não oporem-se.
Há um integrismo da religião, como um integrismo da laicidade. Os dois são condenáveis.
O Estado tem, sem dúvida, as suas obrigações de segurança. Mas, mesmo assim, deve ouvir a mensagem das Igrejas, mesmo se, por vezes – e com razão – esta última lhe possa parecer obsoleta. Por seu lado, as Igrejas deveriam evitar chocar o Estado com as suas condenações e os seus exageros. Que elas se acautelem de se opor a toda a inovação. Mas quando elas constituem um aguilhão, que o Estado as escute em vez de as sufocar!
Se, algum dia, se devesse constituir – sob novos céus – uma nova aliança entre o trono e o altar, que não fosse para governarem juntos, mas para olharem juntos na mesma direcção.
* Presidente honorário da Université Panthéon-Assas (Paris II), antigo membro do Conselho Constitucional. Ver Jacques Robert, Droits de l’homme et libertés fondamentals (com Jean Duffar), Montchrestien, Paris. 8ª edição, 2009; Libertés fondamentals et droits de l’homme (com Henri Oberdorff), Montchrestien, Paris. 8ª edição, 2009; Jacques Robert, La liberté religieuse et le regime des cultes, Colecção SVP, Presses universitaires de France, Paris, 1977, La fin de la laicité?, edições Odile Jacob, Paris, 2004. ** Ver Guy de Maupassant, La vie errante, Paris, 1890.