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E. Poulat O que é a verdade?

O que é a verdade?

Émile Poulat*

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“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, afirmou Jesus. Palavra do Evangelho. A Igreja cristã tirou uma conclusão fundamental: Fora d’Ele, é o impasse, o erro e a morte, quer para os indivíduos, quer para a sociedade. O Reino de Deus – a Cidade de Deus – começa aqui em baixo com a Igreja e na Igreja.

“O que é a verdade?” É a pergunta de Pilatos, dos filósofos e dos modernos. Ela era um absoluto sobre a qual não se transige. Ela cai no relativo, perante questão de opinião, de apreciação, de julgamento pessoal. Cada um tem a sua ideia, de acordo com as suas opiniões. A sociedade deve adaptar-se-lhe para aceitar esta diversidade. O primeiro dos direitos do Homem e a sua pedra angular em nome da liberdade de consciência. Problema terrível: como conciliá-la com o princípio da realidade na vida e com o princípio da ordem na sociedade?

A resposta vem do Direito e da ciência. Os juristas dizem-no em latim: “Dura lex, sed lex”. A Lei é a lei. Não se pode senão submeter-se a ela, transgredi-la ou contentar-se com ela. Ela já não é a expressão de uma vontade superior, mas a da vontade geral, pelo menos a da maioria. Cada um permanece livre de pensar o que quiser, mas deve conformar a sua conduta exterior com ela. Neste ponto, permanecemos os fiéis herdeiros do Antigo Regime, apesar da grande mudança que se operou: a “liberdade religiosa” foi adquirida e já não é a religião que está no coração dos litígios…

Quanto à ciência, ela restabeleceu os direitos da objectividade e fez tábua rasa de tudo o que não respondia aos seus critérios ou não entrava nas suas categorias. Ela não pode constatar o milagre senão nas condições do laboratório. A alma não se encontra na ponta do bisturi, nem Deus na ponta do telescópio ou, como dizia Gagarine, na órbita do Sputnik.

Dessa forma nasceu o conflito entre a Ciência e a Fé. A verdade da Ciência pregou a partida à verdade da Fé. Alguns autores apelaram a uma teoria de “dupla verdade”. Outros esperaram a falência ou a bancarrota da Ciência, ou, ao contrário, o fim da Religião. Uma literatura abundante, polémica ou apologética, ocupa as prateleiras das bibliotecas. Uma equipa inter-disciplinar da Universidade suíça de Zurique esforçou-se para agrupar as posições tomadas pelos cientistas perante a Fé e pelos

teólogos perante a Ciência**; convergência (em três versões), conflito, complementaridade (em três níveis).

Esta problemática – a Fé obstáculo à Ciência, a Ciência destruidora da Fé – cujos efeitos culturais e sociais foram consideráveis, remonta ao caso Galileu, desembocou na crise modernista há um século e perdura largamente nos espíritos apesar do seu arcaísmo. É tempo de reconhecer que já não corresponde à situação actual. A Ciência avança, sem se preocupar com a Fé e as suas objecções; a Fé não resiste às descobertas da Ciência, sabendo que para ela isso não é essencial. Já no tempo de Galileu se dizia: “O importante é ir para o céu, não o saber como o céu é feito”. Já não é o tempo em que Bíblia Galileo Galilei, chamado Galileu (14641642), matemático, físico, astrónomo e filósofo italiano, fez descobertas revolucionárias. Retrato de Justus Sustermans, 1636. Foto Wikipeida. era a nossa única enciclopédia, a nossa única imagem do mundo e dos seus habitantes. E eis que, por seu lado, é a Ciência que depois da Fé, se encontra em análise pelas ciências humanas e a reflexão filosófica.

A Ciência permanece um poderoso factor de descrença, não porque ela ataque a Fé, mas porque a ultrapassa. Ela naturalizou o conhecimento – não há nisso verdade construída e validade pelo espírito humano – mas, por isso, ela regionalizou-a. Ela não ensina o relativismo de toda a verdade: ela não se ocupa senão de si mesma e das suas aplicações, num universo fechado donde são banidos todos os enunciados que não respondam aos seus critérios e se podem constituir em universos paralelos. Cada um é livre de circular entre elas: é o que se chama a cultura.

Se há algo que nestes trinta últimos anos foi adquirido como “científico”, foi, certamente, a ideia de uma interpretação infinita da Bíblia. Nenhuma forma de leitura detém a chave do seu sentido verdadeiro e exclusivo, por fim descoberto e fixo. Houve uma época em que a exegese histórica partilhou esta ilusão, como a Ciência perante a Fé. Ela não tem invalidado e desqualificado senão as leituras infantilmente historicistas.

Esta verdadeira revolução cultural tem maltratado a verdade segundo a tradição cristã e confundido o seu estatuto público, sem contudo a afastar e até mesmo deixando-lhe largos espaços. A menos que surja uma impro-

vável contra-revolução, a questão é doravante medir exactamente o que aconteceu e trabalhar com conhecimento de causa.

* Professor Universitário, director da investigação no CHRS, França ** Pierre Bühler et Charlotte Karakash, ed. Science et foi font sistème¸ Labor ef Fides, Genebra, 1992, 216 p.

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