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T. Domanyi Calvino, precursor da liberdade relligiosa?
Thomas Domanyi*
O mundo protestante festejou no ano passado o 500º aniversário do nascimento de um dos seus fundadores e mentores: João Calvino. Cerca de 80 milhões de crentes comemoraram a vida e a obra de uma personalidade que, pelo seu brilho, transformou a Igreja ocidental assim como a ordem política europeia. Para citar Karl Barth: “João Calvino deu um futuro ao protestantismo”. Waldemar Besson, especialista em Calvino, não é menos elogioso ao afirmar que “sem o calvinismo e o liberalismo, os inícios do Estado de direito teriam sido inconcebíveis”1 .
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No entanto, quando se conhece a História e se lhe associa o nome de João Calvino aos conceitos de “tolerância” e de “liberdade religiosa”, somos inevitavelmente reenviados ao “assunto Michel Servet” que, mais do que qualquer outro episódio, lança uma sombra sobre a obra do reformador genebrino2 . Se nos apegamos ao julgamento do historiador Jacob Burckhard, natural de Basileia, é certo que o papel desempenhado por Calvino neste assunto ainda não está bem investigado, mesmo fazendo alusão à execução de um não conformista accionada por Calvino – “A tirania de um só homem jamais foi tão forte como em Calvino, que elevou a sua subjectividade ao papel da lei geral e não se contenta em reprimir ou a expulsar […] todas as outras crenças mas diariamente ofende a todos em questões de gosto, os mais inocentes3”.
Por outras palavras, a confissão obrigatória e a observação rigorosa dos ritos, que o pregador Calvino impôs e aplicou com o apoio do Estado, não só na comunidade religiosa mas também no conjunto da sociedade civil, incarnava uma situação de conflito sistemático em que, ao menor delito, o cidadão se coloca sempre sob a alçada do Conselho da Igreja e das autoridades civis. Assim, a relação de Calvino com a liberdade religiosa e a liberdade de consciência afecta diferentes domínios do seu pensamento e da sua actividade: teologia, Direito Constitucional e Político, sociedade. Para poder esclarecer e fazer um julgamento válido, é necessário utilizar diversos pontos de vista. Mas é necessário ter em conta tudo aquilo que, mais tarde, foi atribuído a Calvino, de acordo como a sua teologia, ou certos pontos particulares da sua teologia, eram entendidos. Nesta exposição a nossa atenção fixar-se-á sobre os acontecimentos e os argumentos sobre o caso Servet, assim como sobre as consequências históricas
Thomas Domanyi do debate sobre a tolerância suscitado e intensificado por Calvino4 .
A execução de Michel Servet
“A 27 de Outubro de 1553, Michel Servet, médico, jurista e teólogo espanhol foi queimado vivo por causa da heresia no campo de Champel às portas de Genebra. A acusação tinha declarado ser ele anabaptista e antitrinitário, a execução foi realizada à maneira da Inquisição5”.
Servet representava a corrente antitrinitária que acompanhou a Reforma no século XVI. Em 1531, já tinha atraído os raios da Igreja Católica e dos protestantes ao publicar De Trinitatis erroribus (Os erros da Trindade). Como o monarquismo do antigo cristianismo, ele reduzia a trindade a três manifestações de Deus6 .
A partir de 1546, Servet e Calvino trocaram cartas violentas. Em 1553, Servet escreveu uma nova obra “herética” cujo título Restitutio Christianismo (Restauração do Cristianismo) bastou para provocar uma grande cólera em Calvino. Nesse livro, Servet afirma que a Igreja de Roma e a Reforma tinham alterado o cristianismo. Esta crítica levará à sua prisão em França, em Vienne, no Delfinado. Mas rapidamente foi liberto. Entretanto, Calvino entregou ao tribunal de Vienne outros elementos de acusação contra ele, que levaram a uma segunda detenção. Servet devia ser presente à Inquisição, mas desta vez consegue escapar ao perigo através
Michel Servet (ou Miguel Serveto y Reves, em espanhol), médico, cientista, humanista, teólogo e livre pensador espanhol, nasceu a 29 de Setembro de 1511 em Villanueva de Sigena, na província de Huesca (Aragão), e morreu a 27 de Outubro de 1553 em Genebra. Ele pôs em causa o dogma da trindade. Foto John P. McGovern Historical Collections and Research Center.
de uma fuga. De Vienne, ele quis atingir a Itália. Ora, curiosamente, tomou o caminho de Genebra, onde foi reconhecido. Calvino fez, imediatamente com que fosse preso.
Em primeiro lugar, Calvino apresentou-se como queixoso, para depois deixar a acusação com a municipalidade e foi citado como conselheiro em teologia. Por outro lado, solicitou a inquisição de Vienne para apresentar outros elementos de acusação, mas em vão.
A intransigência do pregador foi reforçada pelo conflito encarniçado que o opunha ao partido anticalvi-
Thomas Domanyi nista dos antigos genebrinos que apoiavam Servet. Mas ele pensava que podia rapidamente conseguir o fim desta querela desembaraçando--se de Servet. Enquanto este definha na cadeia em condições terríveis, pediam-lhe várias vezes que negasse a sua posição herética. Na manhã de 27 de Outubro, Calvino e Farel foram visitá-lo para lhe anunciar a sua condenação à morte. Nessa ocasião eles assediaram-no a fim de o persuadir a abandonar o seu erro para a salvação da sua alma. Mas ai!, Servet estava pronto a reconhecer Cristo como Salvador e Filho de Deus, mas não como Deus Ele mesmo. Este comportamento levou o Pequeno Conselho a condená-lo à fogueira a 26 de Outubro de 1553.
A questão da responsabilidade de Calvino
A questão permanece em suspenso: Estaria Calvino plenamente consciente da sua atitude para com Servet? O seu combate para eliminar o herético seria irreflectido – uma espécie de acidente involuntário no seu percurso de reformador? Ou, pelo contrário, devemos supor que o desaparecimento de Servet, o anticonformista, estava inscrito no modo de pensar e no conceito de renovação de Calvino? Numerosos amigos seus contestaram a sua implicação na prisão de Servet. Isso parece-lhes incrível. No entanto, algumas fontes, assim como cartas de Calvino, indicam-nos o contrário.
Em 1546, Calvino já tinha a intenção de se desembaraçar de Servet, quando compreendeu com quem estava a lidar. “Recentemente, recebi de Servet um correio a que ele juntou um grosso volume das suas ideias absurdas. Nelas dá parte, com a pretensão que o afecta habitualmente, das suas descobertas sensacionais e até então desconhecidas. Ele quer vir aqui, isso é conveniente para mim. Mas não quero, por nada deste mundo, responder-lhe. Se ele vem aqui, o que me agrada, não o deixarei voltar a partir vivo”7. Dankbaar constata: “Em todo o caso, Calvino […] não considerou Servet como um correligionário mas mais como um herético dos mais perigosos, que não merece continuar a viver”8 .
Servet foi detido pelas autoridades de Genebra a 13 de Agosto de 1553. Uma semana mais tarde, Calvino escrevia a Farel: “Espero que ele seja condenado à morte: mas desejo que atenuem a crueza da execução”9 .
A polémica em volta do levar os heréticos à morte começou pouco depois da prisão de Servet em Genebra (contrariamente ao que escreveu Teodoro de Beza) e continuou durante toda a duração do processo. Antes que as opiniões pedidas por Calvino chegassem de Zurique, Berna, Schafausen e Basileia, antes de serem traduzidas em Genebra – antes mesmo que o conjunto das Igrejas reformadas suíças tenham tomado partido
João Calvino, reformador francês e fundador do calvinismo, nasceu a 10 de Julho de 1509 em Noyon, na Picardia, e morreu a 27 de Maio de 1564, em Genebra. Foto Reformierter Bund e V.
por Calvino ou contra Servet – houve vozes que se levantaram na Confederação Helvética para criticar a forma de proceder do pregador de Genebra. Os protestos mais vivos vieram de Basileia.
A 9 de Setembro, numa carta para Simon Sulzer, deão da catedral de Basileia, Calvino reconhece que fez com que Servet fosse preso e informa o seu correspondente que reprova a heresia do espanhol, que se envolveu contra ele e que ainda tem a intenção de continuar10 .
Os detalhes contidos nesta carta provocaram a indignação e o pavor em Basileia, não só nas altas esferas políticas e eclesiásticas, mas igualmente entre os refugiados religiosos, os humanistas e os impressores. Muitos dos refugiados sentiram-se pessoalmente muito atingidos, porque criticavam a doutrina trinitária, mesmo que não a condenassem totalmente. Eles sentiam toda a simpatia pelo individualismo religioso e pelas minorias. Alguns deles inclinavam--se para a doutrina dos anabaptistas. Eles foram para Basileia para fugirem das perseguições religiosas e encontrarem liberdade religiosa. A sua cólera era compreensível. Ninguém podia, com efeito, garantir que os acontecimentos de Genebra não se reproduzissem noutras cidades suíças11 .
A 28 de Setembro, Sulzer conta ao seu colega de Zurique, Heinrich Bullinger, que muitas pessoas em Basileia criticam violentamente o comportamento de Calvino e do Conselho de Genebra no assunto Servet. David Joris foi o primeiro a levantar a voz. No início de Outubro escreveu aos cantões protestantes da Confederação Helvética uma carta na qual dava parte das reflexões que a perseguição de Servet lhe despertava. Não defendia as teorias do espanhol mas declarava-se contra o princípio da sua condenação à morte ou de qualquer outro representante de uma opinião herética. Segundo ele, isso não podia senão levar a outros casos de perseguições e condenações. Neste género de casos, era necessário não recorrer à violência. Se Servet era realmente um herético ou um homem teimoso, não se lhe devia fazer mal mas
Thomas Domanyi muito mais chamá-lo gentilmente à ordem. Poderia ir até bani-lo se a sua doutrina provocasse agitação. A Condenação à morte de Servet, e a sua execução nada mais fariam do que intensificar as perseguições religiosas e a repressão violenta contra as minorias. Ignoramos se esta carta foi traduzida e difundida.
No entanto, esta carta mostra os inícios do movimento da tolerância em Basileia antes mesmo da execução de Servet. Este movimento rapidamente se espalhou. Paralelamente, as críticas a Calvino amplificaram-se. Em Zurique, nos Grisons e em Neuchatel, começaram a inquietar-se com os acontecimentos de Basileia.
Pierre Toussin, o reformador do condado de Montbéliard, escreveu a Farel dizendo que tenha recebido más notícias de Basileia sobre os incidentes de Genebra. Pensava que ninguém devia sofrer a pena de morte por questões religiosas, se nenhum levantamento geral, ou outras circunstâncias excepcionais o justificassem. Esta declaração chegou aos ouvidos de Pierre Viret em Lausana e também aos de Calvino.
Calvino deve ter reconhecido, no início de Outubro, ou mais tarde, que estas dúvidas se propagavam mesmo entre os seus amigos13 . Contudo, isso não o impediu de levar até ao fim a execução de Servet.
Quando em Novembro, a notícia da execução de Servet chegou a Basileia, a opinião pública inflamou-se de novo. Aqueles que criticavam Calvino faziam valer, antes de mais, que as autoridades seculares de um Estado cristão não tinham o direito de infligir uma pena como a que Servet tinha sofrido14 .
E não é tudo! Pelo fim de 1553, em círculos bem informados apareceu uma História de morte Serveti que resumia os acontecimentos de Genebra reportando-se ao herético espanhol. Isso demonstra que em pouco tempo já se sabia tudo em Basileia15. Mas do que isto é claramente revelador, para além da parte principal e descritiva do pequeno opúsculo, é o parágrafo da conclusão. Ele expõe as razões pelas quais a perseguição e a execução de Servet foram sentidas por “numerosas pessoas piedosas” como um “scandalum scandalorum”. Esta indignação é justificada como segue:
Um homem tinha sido morto por causa de sua religião, o que, se nos referirmos à parábola do trigo e do joio, ia contra a vontade de Deus. Se Calvino invocava a aprovação das outras Igrejas reformadas suíças, os “piedosos” respondiam-lhe como argumento que eles eram igualmente parte do processo, pois que Servet também os tinha acusado. Por outro lado, o próprio Calvino tinha abertamente desaprovado Zwínglio e Œcolampade sobre a questão da Santa Ceia. Não só ele tinha autorizado a execução de Servet, mas tinha-a consciente e voluntariamente provocado: a acusação
tinha sido apresentada por um dos seus domésticos (“alguém muito próximo”) que não sabia nada de Servet ou das questões relacionadas. A crueldade da execução deixava supor que os “Genebrinos desejavam, de novo, cair nas graças do Papa”. A condenação à morte de Servet fazia o efeito de uma conspiração entre protestantes e papistas. O facto de Servet ter sido queimado com os seus escritos tinha igualmente esse sentido. Recordava-se, com razão: se a doutrina de Calvino – a predestinação e a eleição da graça16 – era verdadeira, ele jamais deveria crer que Servet pudesse desviar da fé autêntica alguém predestinado17 .
Mais notáveis ainda, são as reprovações deixando entender que a Igreja e as autoridades de Genebra teriam utilizado os métodos da Inquisição na forma de agir contra Servet, o herético. Com toda a evidência, havia já, nos círculos protestantes humanistas da época, o forte sentimento de que a coerção física não tinha a ver com o domínio da fé e da consciência. Ora, o reformador de Genebra não era, também ele, protestante e humanista?
Como Calvino justifica a condenação à morte do herético
Calvino apercebeu-se muito cedo de que a morte de Servet na fogueira tinha provocado uma imensa indignação em Basileia. É possível que estas notícias o tenham impressionado porque ele decidiu fazer face aos seus opositores renanos. Foi assim que ele fez aparecer Defensio orthodoxae fidei de sacra trinitate contra prodigiosos errores Michaelis Serveti Hispani. Esta obra, impressa em Fevereiro de 1554, é uma espécie de defesa onde Calvino revela as suas próprias convicções numa argumentação teórica desprovida de toda a autocrítica e de qualquer dúvida sobre a condenação do herético18 .
Calvino aí argumenta sem compromisso. Trata-se, para ele, de defender a sua forma de agir, mas também de refutar uma vez por todas a doutrina do herético, ainda partilhada por alguns. Segundo ele, Servet – possuído por Satanás – tinha, não só pronunciado heresias monstruosas, mais também encontrado discípulos que, depois da sua morte, iriam continuar a espalhar as suas “fantasias absurdas”19 .
À questão de saber se as autoridades cristãs tinham o direito de punir os heréticos, Calvino responde particularmente: “Seria um erro pensar que a Igreja se torne uma tirania porque não tem o direito de exprimir a sua opinião particular em público. Isso significaria que seria melhor arrancar a fé do coração dos crentes do que punir aqueles que a fazem vacilar”20 .
Os papistas perseguiam bem os “ortodoxos”. Não se pode, portanto, contestar a uma “autoridade ortodoxa” o direito de punir pela espada os apóstatas se estes levavam a renegar a verdadeira fé, a
destruir a paz da Igreja e a quebrar a unidade da piedade (“pietatis consensus”)21 . Sem dúvida, o reino de Cristo não existe por ser protegido pelas armas mas graças à pregação do Evangelho. Contudo, é necessário salvaguardar a perenidade da Igreja, mesmo se, em princípio, não se possa forçar ninguém a crer22 .
É aí que Calvino vê a responsabilidade essencial do Estado cristão: “Assim, a autoridade piedosa velará sobre a doutrina da fé, não forçando os mais recalcitrantes em crer, mas para que Cristo não […] seja excluído do Seu domínio de soberania”. Para que os fracos, que ele deve proteger em virtude do mandamento divino, não sejam corrompidos e que não se escarneça da doutrina de Cristo23 .
Depois, Calvino aborda as passagens da Bíblia citadas por aqueles que se opunham à execução dos heréticos, em particular a parábola do trigo e do joio assim como o julgamento de Gamaliel a propósito dos apóstolos. Ele rejeita os argumentos de tolerância tirados desses textos e opõe-lhes a sua opinião: mesmo quando actua como defensor das Suas obras, Deus serve-se dos homens24 .
Era absurdo pensar em repousar no facto de que Deus protegeria a Sua vinha. A missão da comunidade cristã era garantir a ordem legal entre os homens. Isto está ameaçado cada vez que a “ordo pietatis” é negligenciada25 .
Sem dúvida, as autoridades seculares não devem punir com a morte cada erro de doutrina. Não seria necessário recorrer a tal extremo senão nos casos mais graves. Havia representantes da heresia que se poderiam suportar com paciência e, nesse caso, punir com moderação. Mas quando a religião era abalada até aos seus fundamentos, quando Deus era odiosamente ultrajado, quando as almas eram corrompidas por teorias ímpias e perniciosas e, quando, por fim, há o risco de ver Deus e a Sua doutrina renegados, era necessário apelar a este remédio extremo a fim de evitar que o veneno fatal se espalhasse cada vez mais26 .
Por fim, Calvino defende-se por ter apoiado as autoridades católicas francesas e italianas. Ele tinha, é verdade, feito acusar o espanhol em Genebra. Mas tinha tentado chamar Servet à razão: “Se este pudesse ser curado do seu erro, não teria, certamente, sido ameaçado por uma sanção tão severa”27 .
Em conclusão, Calvino reitera a sua tese principal: é necessário agir com o maior rigor contra os instigadores de falsas doutrinas quando não deixam de se obstinar e quando o seu ateísmo e a sua heresia já não são suportáveis. Estes dois argumentos aplicavam-se a Servet28 .
A difusão do livro de Calvino foi rápida. Logo no mês do seu aparecimento chegou a Zurique, Tübingen e Basileia. Na época, as opiniões foram partilhadas entre os seus leitores. Mesmo os reconhecidos partidários do autor emitiram as suas reservas: teria sido melhor, segundo eles, não abordar a questão
Thomas Domanyi do castigo do herético, de forma escrita29 .
O âmago do problema “CalvinoServet”
Ao se defender por escrito, Calvino não pôde impedir que fossem publicadas as críticas daqueles que, em Basileia, reagiram contra a intolerância para com Servet30 . Em Março de 1554, o humanista Sébastien Castellion, um dos seus antigos colaboradores, publicou um livro que se tornaria numa etapa decisiva na história da tolerância e da liberdade religiosa: De haereticis na sint persequendi (Tratado dos heréticos, a saber se devem ser perseguidos, e como se deve agir com eles).
Além disso, quando se estuda Calvino, permanece em suspenso outra questão preocupante: porque é que ele se mostrou tão intransigente e impiedoso na sua vontade de eliminar fisicamente um anti-conformista sem defesa? Porque razão varreu, tão categoricamente, as reticências dos seus amigos e os argumentos, sensatos, dos seus adversários, contra a execução de Servet? Não é mencionando a sua interpretação literal de Bíblia ou a sua fidelidade à teocracia do Velho Testamento que se responde a estas perguntas. Calvino era suficientemente teólogo para saber que as declarações e as ideias que se encontram na Bíblia não se aplicam sistematicamente às circunstâncias da vida presente. Temos mais a impressão de que o seu recurso à Bíblia servia para justificar o seu comportamento em vez de o inspirar.
Avaliando os argumentos de Calvino, já citados, apercebemo-nos de que é o conceito “ordo pietatis-consensus pietati” que domina. Assim, o debate não se baseia numa ideia teológica mas mais sobre a obra pessoal de Calvino na reforma da Igreja da república de Genebra. Por outras palavras, se a heresia de Servet apenas tivesse que ver com um conceito teológico, não se teria dado seguimento ou, poderia ter-se contentado em excomungar o anti-conformista. Apenas, é essa a questão, a verdade de Calvino já existia sob diferentes formas: uma Igreja institucional e organizada, locais onde se ensinava um dogma que se tornou a identidade colectiva, uma comunidade bem real e largamente dotada em capital social – resumindo, bens que era necessário preservar e administrar. Neste caso preciso, estando em jogo a comunidade que apoiava o Estado – como pretextava Calvino – Servet e as suas “opiniões heréticas” incarnavam um elemento subversivo que não podia ser tolerado, em nome da ordem e da salvação.
Por outro lado, a biografia de Calvino, incarnação do espírito do génio, articulava-se já com uma época bem diferente da de Servet. Contrariamente ao espanhol, ele não era um pedinte ou o representante de uma opinião, ele tinha uma situação: era – contrariamente há vinte anos atrás – um funcionário e um diri-
gente. Portanto, tinha muito mais a perder do que o seu adversário.
Uma coisa pleiteia particularmente em favor desta diferença biográfica entre Calvino e Servet: é que, na sua juventude, Calvino, como anti-conformista na sua pátria, membro de uma minoria perseguida e refugiada em Basileia por causa da sua fé, empenhou-se, tão apaixonadamente como o faziam os defensores de Servet, contra a perseguição dos heréticos. Não é, portanto, obra do acaso se Castellion, na sua obra já mencionada, o cita como opondo-se à condenação à morte dos heréticos. Ele extrai este ensino do Institutio Christianae religionis (Instituto da Religião Cristã), impresso, pela primeira vez em 1536 em Basileia e na qual o jovem refugiado religioso reclamava clemência para com os excomungados, os turcos e os sarracenos31 .
Mas pode ver-se que Calvino rapidamente mudou as suas ideias, porque as frases correspondentes já não aparecem nas edições seguintes do Institutio32. Se considerarmos que Calvino se dedicou à segunda edição do Institutio pouco depois da sua chegada a Estrasburgo, em 1538, pode supor-se que a sua opinião original sobre a forma de tratar os heréticos se modificou após a sua nomeação em Genebra e das suas experiências com os anti-conformistas anabaptistas. Sem dúvida as tendências para a tolerância da sua juventude foram vítimas desta mudança de paradigma biográfico.
Trata-se, antes de mais, de uma situação existencial fundamental pela qual o homem (o indivíduo como o grupo) passa no decurso do seu desenvolvimento e da evolução inelutável do seu papel no seio da comunidade. “A função transforma” – sejam quais forem os termos de responsabilidade ou de poder. Na verdade, o risco não está ligado à função em si mesma, mas mais à visão parcial que se tem do presente quando o caminho se afasta da experiência do passado. Se Calvino tivesse feito a sua autocrítica sobre a sua evolução pessoal como reformador, teria provavelmente evitado levar Servet à fogueira. Os julgamentos sobre a sua acção permanecem ainda hoje divididos, como a formulou H. R. Guggisberg: “Pela primeira vez no debate sobre Servet, a oposição fundamental entre Calvino e Casttelion aparece aqui claramente: oposição entre o reformador, que se bate pela renovação da Igreja como bastião de uma nova unidade espiritual, e a crítica humanista, que contesta a opressão da liberdade de espírito individual e da liberdade religiosa ”33 .
Calvino e a liberdade religiosa do ponto de vista histórico
Este resumo é tão mais importante, como Calvino estava provavelmente consciente do carácter problemático da união total entre a Igreja e a comunidade citadina. Como o jovem Lutero, tinha uma simpatia particular pelo conceito
de comunidade religiosa livre pregada pelos anabaptistas. Durante decénios, bateu-se pela Libertas Ecclesiae face aos abusos do poder das autoridades genebrinas34. É verdade que se podia mostrar tolerante para com as outras Igrejas, quando elas estavam situadas fora da sua esfera de influência. Mas não permitia que na sua circunscrição o direito à liberdade individual de religião e de culto, fosse aplicada, nem na teoria nem na prática. Para ele a Ordo Pietatis tinha valor de razão de Estado.
Convém, no entanto, recordar que a reforma da Igreja conduzida por Calvino, ultrapassou largamente as fronteiras geográficas mas igualmente temporais da sua esfera de influência. Se queremos ter uma visão de conjunto do nosso assunto – Calvino: precursor da liberdade religiosa? – é necessário igualmente que nos interessemos pelas consequências mais tardias do herança da obra de Calvino, isto é, pelo facto dos discípulos do reformador por vezes terem interpretado e aplicado os seus ensinos de forma diferente da dele. É o caso, por exemplo, da concepção que Calvino tinha da acção inalienável do Espírito Santo. Noção de que se serviu para ilustrar a sua doutrina da predestinação, mas que se tornou para os seus discípulos um bastião contra a compulsão moral e religiosa.
Calvino raciocinava desta forma: a soberania ilimitada faz parte integrante da natureza de Deus. Caracteriza igualmente a Sua acção na salvação. Deduz-se que Deus decide livremente da salvação dos homens. Pela Sua acção, seja pelo Verbo, seja pelo Espírito, une-se ao homem de forma exclusiva e liberta-o, ao mesmo tempo, de qualquer outra autoridade. “Ora uma vez que Ele é assim a consciência dos fiéis, pelo privilégio da sua liberdade que têm em Jesus Cristo, são libertos dos laços e necessárias observações das coisas as quais o Senhor os quis tornar indiferentes, concluímos que eles estão livres e isentos do poder de todos os homens”33 .
Se seguirmos a lógica deste princípio até ao fim devemos exigir a liberdade de religião e de consciência. Contudo, já sob a influência do absolutismo moderno que começava, Calvino não estava pronto a aplicar aos domínios social e político o corolário radical da sua teologia. O mérito de uma tal abertura histórica acaba por pertencer ao seu discípulo independentista Roger Williams, que foi o primeiro, na História Moderna, isto é em 1663, a obter a validade legal da liberdade de religião e de consciência na Constituição de Rhode Island36 .
Williams baseou o seu acto memorável no facto de que a acção do Espírito Santo na eleição e no novo nascimento exige uma total liberdade de convicção. Recordase a que ponto, um século mais tarde, os Pais da Constituição americana se preocuparam com a ancoragem constitucional da liberdade
de culto e da liberdade de consciência. Assim é fácil dar razão a Waldemor Besson, já citado, que constata que “sob o calvinismo e o liberalismo, os começos do Estado de direito liberal teriam sido irreconciliáveis”.
Conclusão
João Calvino não foi um precursor directo da liberdade religiosa individual. Graças ao seu combate vitorioso pela reforma da Igreja, tornou-se um funcionário oficial de uma comunidade religiosa e política de que ele não estava pronto a sacrificar a posição e a integridade em proveito das liberdades de convicção e de consciência individuais. Ele representava uma posição então largamente aceite – mesmo no contexto da Reforma – em que se fechavam os olhos para os direitos dos anti-conformistas. Contudo, a sua obra teve uma influência positiva sobre a evolução da liberdade religiosa. Com efeito, os seus adeptos mais tarde extraíram conclusões da sua teologia que iam no sentido do ideal de liberdade de convicção e de consciência. Assim, ele contribuiu para progressos importantes – um pouco como os pais que se tornam avós quando os seus filhos formam uma família.
* O autor que vive em Vernes, na Suíça, é professor de ética e de teologia social na Faculdade de Teologia de Friedensau, na Alemanha.
Notas
1. Waldemar Besson, “Die Christlichen Kirchen und die moderne Demokratie”, in Walther Peter Fuchs, 1.c., 204. 2. Ver Willem F. Dankbaar, Calvin, Hamburgo (2ª edição) 1966. 105, 119. 3. Segundo W. Kaegi, Jacob Burckhardt, Bd. 5, 1973, 90 4. Como as pesquisas de H.H.Guggisberg e outros o demonstraram, a questão da tolerância religiosa em relação aos não-conformistas já se punha aos representantes da primeira geração de reformadores: Ver Hans R. Guggisberg, Sebastian Castellio 1515-1563 – Humanist uns Verteidiger der religiösen Toleranz im konfessionellen Zeitalter, Göttingen, 1997. 5. H.H.Guggisberg 6. A divindade não é constituída por três pessoas, mas trata-se de três forças ou manifestações de Deus: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Servet não era, portanto, unitarista estrito (que nega completamente a Santíssima Trindade). As suas ideias aproximavam-se mais das de Sabellius que, no seu tempo, tinha sido rejeitado e qualificado de herético pela antiga Igreja. Dankbaar, Lc. 106. 7. Corpus Reformatorum (CR) XII, ep. 767 /13 de Fevereiro de 1576), in Dankbaar, i.c., 107 8. Dankbaar, Lc., 107, 108. 9. Dankbaar, Lc., 113. 10. CR XIV 614 e seg. Ver Guggisberg, 1.c., 80f 11. Ver Guggisberg, 1.c., 81 12. Ver Guggisberg, 1.c., 82
13. Ver Guggisberg, 1.c., 82 14. Ver Guggisberg, 1.c., 83 15. Ver Guggisberg, 1.c., 83 16. Michal Paluch. Jean-Pierre Torrell, La profunder de l’amour divin, Biblioteca filosófica J. Vrin, 2004, p.44 books.google.fr/books?isbn=2711616967… 17. Ver Plath Calvin und Basel, 92f assim como Guggisberg, 1.c., 84. 18. Ver Guggisberg, 1.c., 85 19. Ver CR VIII 461 e Guggisberg, 1.c., 85 20. Ver CR VIII 464 e Guggisberg, 1.c., 86 21. CR VIII, 464f. 22. CR VIII 467f, ver Guggisberg, 1.c., 86 23. CR VIII, 477, ver Guggisberg, 1.c., 86f 24. CR VIII, 427f, ver Guggisberg, 1.c., 87 25. CR VIII, 474, ver Guggisberg, 1.c., 87 26. CR VIII, 477, ver Guggisberg, 1.c., 87 27. CR VIII, 480, ver Guggisberg, 1.c., 88 28. CR VIII, 480f, ver Guggisberg, 1.c., 88 29. A crítica mais acerba veio do magistrado de Berna, Nikolaus Zurkinden, que disse que não se podia das mais prazer aos papistas do que seguir o seu exemplo. Ver CR XV, 21 (10 de Fevereiro de 1554), CR VIII, 427f, Guggisberg, 1.c., 88 30. Ver Guggisberg, 1.c., 88. 31. Sébastien Castellion, De Haereticis an sint persequendi, 107, CR VIV, 239f, ver Guggisberg, 1.c., 90f 32. Ver Guggisberg, 1.c., 90, nota 38. 33. Guggisberg, 1.c., 86 34. Ver sobre este assunto, Thomas Domanyi, Zum Einfluss reformatorischen Denkes auf das moderne Staatzwesen, in Religion als Gesellschaftliche Kraft – interdiszplinäre Beiträge zu Religion und Gesellschaft, Bernhard Östreich, (Verlag Peter Lang) Francoforte-sur-le-Main, 2004, 89-92, sobretudo, 92. 35. Calvino Institutio, tomo III, cap. 19, al, 14: ver também, tomo I, cap. 7 al. 4 e tomo III, cap. 2, al. 33. Ver Joachim Staedtke, “Calvins Genf und die Entsyehung politischer Freiheit”, in Staat und Kirche im Wandel der Jahrhunderte, Geschichte und Gegenwart.