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O Relógio Avariado
by Anaclo
Santiago De La Torre
Meu bisavô Mariano era um homem que nunca foi amarrado ao tempo. Tive o prazer de conhecê-lo quando eu era uma criança e ia no verão para sua cidade natal de Guadalajara. Ele era um homem muito alto, calmo e de fala mansa. Ele sempre parecia ter tempo para conversar com quem cruzasse seu caminho. Lembro-me de muitos detalhes sobre esse grande homem, particularmente, o amor pelo saxofone que ele costumava tocar para mim, seu cheiro distinto de colônia e seus óculos grandes que sempre usava. No entanto, havia um detalhe específico sobre ele que sempre me marcou quando criança: seu relógio de ouro avariado. Durante a escola primária, fui instruído a tentar ler relógios para poder praticar a contagem das horas. Ainda assim, nas poucas vezes que pedia para ler o seu, sempre mostrava doze horas em ponto independentemente da hora do dia. Nunca se preocupava em consertá-lo. Quando eu ingenuamente dizia que seu relógio estava quebrado, ele respondia que era assim porque não gostava de ser pressionado pelo tempo. Naquela idade, não entendia o que ele queria dizer com isso e eu aceitava como era.
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Conforme eu crescia, e me contavam mais histórias sobre a vida dele, entenderia como essa frase era a essência definidora do meu bisavô. Ele trabalhava no gabinete do governador para a subdivisão de Zapopan em Guadalajara, era encarregado de arrecadar e alocar fundos para campanhas políticas. Dizia-se que, embora vivesse uma vida agitada com um trabalho
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exigente, ele nunca tinha uma rotina. Alguns dias ele acordava cedo, mas chegava tarde para o trabalho e era o último a sair. Outros dias, ele ia apenas para cumprimentar os colegas e depois saía do escritório e desaparecia durante horas do dia. Ele era conhecido como um homem muito espontâneo e ninguém conseguia decifrá-lo. Sua esposa e chefe ficavam bravos porque ele tirava vários dias de folga do trabalho e da vida doméstica para passar o dia todo na escola de música do bairro e tocar saxofone. Mesmo assim, ele compensava as ausências frequentes com sua família planejando viagens aleatoriamente à praia ou levando os filhos ao parque em vez de deixá-los na escola. Ironicamente, mesmo sendo político, as pessoas diziam que ele tinha uma vida muito indisciplinada. Mas, conforme argumentava, “viver uma vida arregimentada matava a alma e só levava você mais perto do caixão”. É por isso que ele nunca se importava em olhar para o relógio. Isso seria verdade pela maior parte de sua vida, e parecia ser uma filosofia de sucesso para uma vida longa, considerando que aos 99 anos ele continuava a fazer as coisas tão extensivamente ou tão rapidamente conforme precisasse até se sentir satisfeito com pouca consideração pela obrigação. Ele não tinha muito respeito por tempo ou autoridade; fazia o que queria.
No entanto, é evidente que na vida nem tudo pode ser vivido em extremos; sempre chegará a hora em que as consequências do seu estilo de vida baterão à sua porta. Para meu avô, todas essas consequências se acumulariam em um momento, a noite chegaria onde a pressão do tempo seria necessária. Semanas antes de seu centésimo aniversário, no início da noite, ele se levantou da cama e começou a dizer ao seu cuidador e à filha que sentia fortes dores por todo o corpo; um fato muito
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atípico para um homem que foi muito saudável durante toda a sua vida, sem grandes complicações de saúde. Parecia que ele viveria para sempre. Entretanto, nesse instante era óbvio que sua ideologia de ser relaxado com o tempo se espalhou também para aqueles ao seu redor. Eles o ignoraram e disseram a ele para voltar para sua cama. Afirmaram que iriam ao médico pela manhã. Ele não recuou muito, mas insistiu em sua dor. Ele continuava acordando com dor, mas, sem saber quanto tempo havia passado a cada vez, ele aceitava seus pedidos e continuava tentando dormir.
Quando a manhã chegou, chamaram por ele, mas não obtiveram resposta. Eles abruptamente abriram a porta do seu quarto e o encontraram esparramado na cama, mal respirando. Eles não podiam acreditar, a onda de culpa e percepção de que ele não tinha exagerado na noite anterior os atingiu imediatamente. Neste ponto, a única coisa que eles podiam fazer era chamar os paramédicos. Ele estava em estado crítico e o levaram ao hospital de ambulância. Tarde demais, seu coração já havia infartado.
Essa foi uma notícia horrível para a família e deixou muitos com pesar. Um fim de vida evitável e trágico que impactou a história de nossa família e ficará em nossos corações como um lembrete de que, enquanto não se deve sucumbir a ser um escravo do tempo, o tempo ainda tem que ser respeitado. Embora ele tenha vivido a maior parte da sua longa vida sem se importar com o tempo, foi a falta de urgência que o tempo proporciona que encurtou sua vida, quase com cem anos completos. Por causa disso, agora sempre vivo com duas imagens em minha mente: a de seu relógio avariado e a de sua morte trágica. O relógio quebrado me motiva a viver
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muitos momentos da minha vida com tranquilidade e sem pressa; gostando das coisas que quero fazer e gastando o tempo que preciso para ter certeza de que estou vivendo minha vida ao máximo, independentemente de minhas obrigações. A tragédia me adverte para agir quando for devido e assumir a responsabilidade por minha vida. Algumas coisas requerem grande atenção e foco e devem ser tratadas como tais.
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Juliana Pascual, 14