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2.2. O corpo grotesco

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Fig. 8-Iberê Camargo, Os pés do mingote, 1989. Guache e lápis stabilotone sobre papel, 70 x 50 cm. . Fig. 9-Iberê Camargo, Acidente em Angra, 1989.Nanquim sobre papel, 33,5 x 22,7 cm.

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1.2. O CORPO GROTESCO

Um dosconceitosde grotesco que utilizei nesta tese foi o estudado porWolfgang Kaiser em sua obra O grotesco na literatura e na pintura (1957). No tratado, Kayser conceitua o grotesco como um artifício muito usado, especialmente pelos espanhóis e pelos ingleses. Já no século XVI, o grotesco, segundo Kayser, era caracterizado como uma mistura do animalesco e do humano. O monstruoso era a característica mais importante do grotesco, e já aparecia no primeiro documento da língua alemã. Kayser define o grotesco como "elemento lúgubre, noturno e abismal, diante do qual nos assustamos e nos sentimos atônitos, como se o chão nos fugisse debaixo dos pés." (KAYSER, 1986, p.16). O grotesco é um elemento muito presente no livro de

Hilda Hilst e nas pinturas de Iberê Camargo como apresentarei nos respectivos capítulosde cada obra aqui estudada.

O conceito de corpo grotesco também é largamente estudado por Mikhail Bakhtin (1999), em seu livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, onde o autor dedica um capítulo à questão do corpo grotesco. Questão que pude relacionar com os trabalhos de Hilda e Iberê, principalmente quanto às questões do baixo corporal e do baixo material. O livro de Hilst está repleto de elementos corporais que dialogam com questões levantadas por Bakhtin:

(...)no grotesco interessa-se por tudo que sai, procura sair, ultrapassa o corpo, tudo o que procura escapar-lhe. Assim todas as excrecências e ramificações tem nele um valor especial, tudo que em suma prolonga o corpo, reúne-o aos outros corpos ou ao mundo não corporal. (BAKHTIN, 1999,p. 277)

Outro autor importante na conceituação do grotesco foi Victor Hugo, no livro Do grotesco ao sublime: tradução do prefácio de Cromwell, publicado em 4 de dezembro de 1827/2007, em Paris, França. Hugo define o artista moderno como uma fusão do grotesco e do sublime. Para Hugo o contraste entre o sublime e o grotesco era a potência criadora do modernismo: "A musa moderna sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz" (HUGO, 2007, p. 26). Dessa formao drama romântico, por coexistir com o grotesco, deveria caracterizar-se pela mistura de gêneros, abandonar as fronteiras entre a comédia e a tragédia para produzir a síntese do homem moderno, cômico em meio à tragédia, o que aproxima-se dos objetos estudados nesta tese.

A aproximação de elementos orgânicos da natureza ao reino demoníaco, por transmutações, como se tivessem sido despertados para uma vida sinistra,também fazparte dos elementos ornamentais da estéticagrotesca, segundo Kayser.

As plantas crescem com abundância premente e grandeza super dimensional, produzindo flores que terminam em caretas animalescas. Os animais rastejantes compõem-se, por seu turno, de formas tipo vegetal. Até mesmo os entes humanos e

demoníacos se entrelaçam na vegetação luxuriante de um jângal maligno (KAYSER, 1986,p. 140).

Segundo Kayser, o grotesco reside na mistura com o incompatível: "Ao lado do grotesco mais louco surgem na vida os dramas mais horríveis; no riso contrafeito das máscaras mais obscenas choram por vezes os sofrimentos mais dolorosos" (KAYSER, 1986, p.117). Como na estética expressionista, que aproxima-se do grotesco pelo contato com a imperfeição e com a deformação. Uma estética que suscita no espectador o terror de se observar ao espelho, relacionando-se assim, não só com a angústia, como também com a morte libertadora. Como afirma Kayser, no caso do grotesco nãose trata do medo da morte, porém da angústia de viver.

Tanto no livro de Hilst, quanto na obra de Iberê, a morte é presença marcante. A imagem da morte grotesca, angustiante. A morte como um dos contextos principais do corpo, pois um corpo é aquele que nasce, cresce e morre. Apresentarei nos capítulos correspondentes a Hilst e a Iberê, como em suas obras a morte, a imagem do cadáver ou a angústia de viver na certeza da morte, articulam-se com a construção da imagem do corpo grotesco.

O corpo grotesco, o feio está sempre na iminência de outra possibilidade. A possibilidade de, ao lado do belo, do sublime, gerar um lindo contraste capaz de suscitar a mais potente sensação. O belo ao lado dobelo é sempre monótono. Victor Hugo ao comparar o belo e o feio, em seu Prefácio de Cromwell, propõe um "sem cessar de novos aspectos":

O que chamamos de feio, ao contrário, é um pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza, não com o homem, mas com toda a criação. É por isso que ele nos apresenta, sem cessar, aspectos novos, mas incompletos. (HUGO, 2007,p.36)

Nota-se que o conceito de grotesco de Bakhtin é um pensamento que está em movimento contínuo.

O corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está pronto ou acabado: está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo; além disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele. (BAKHTIN, 1999, p. 277)

Esse corponão cessa de se conectar a infinitas cadeias semióticas que o significam e ressignificam em diversas combinações.

O corpo grotesco também é heterogêneo pois o grotesco caracteriza-se pelo hibridismo. Tem-se a junção de partes diferentes formando um único corpo. O grotesco é a aproximação dos inusitados, um encontro fortuito, uma colagem, uma assemblage onde diferentes se encontram formando novas conexões. Como em Cantos de Maldoror, que evidencia a experiência da metamorfose moderna.

No autor de Cantos, as tranformações são urgentes e diretas surpreendendo até mesmo o pensamento [...] Lautréamont destrói uma forma para imediatamente criar outra lançando-se num violento desejo de viver. (MORAES, 2002, p. 86)

Segundo o pensamento de Moraes,pode-se afirmar que a metamorfose é uma das particularidades do grotesco.

Como no conto "O Unicórnio" do livro de Hilda Hilst, onde o personagem principal transforma-se em um unicórnio, ou no conto “Fluxo” quando o personagem do anão conversa com uma serpente e chega a ter até uma relação sexual com ela. O livro Fluxo-floema apresenta diversas passagens onde a relação homem-animal se dá de forma grotesca. Segundo Kayser (1986, p. 20), o grotesco é a transição dos corpos humanos para formas de animais e plantas, ou seja, uma metamorfose, onde há um entrelaçamento turbulentodeobjetos, plantas, ornamentos e corpos meio humanos meio animais. O grotescopara Kayser, apesar de parecer, como nas fábulas infantis, algo lúdico e alegre, leve e fantasioso, também é algo angustiante e sinistro:

em face de um mundo em que as ordenaçõesde nossa realidade estavam suspensas, ou seja: a clara separação entre os domínios dos utensílios, das plantas, dos animais e dos homens, bem como da estática, da simetria, da ordem natural das grandezas. [...] O grotesco indica a rupturade qualquer ordenação, a participação de um mundo diferente. (KAYSER, 1986, p. 20)

Pode-se perceber nas palavras de Kayser a formação de uma estética do fragmento, da reunião desordenada e violenta de partes distintas. Esse corpo híbrido, resultado de metamorfoses baseadas em fragmentos distintos, convoca a categoria do monstruoso, do monstro híbrido, como explica Kayser: "omonstruoso, constituído justamente da mistura dos domínios, assim como, concomitantemente, o desordenado e o desproporcional surgem como característica do grotesco." (KAYSER, 1986, p. 20)

A história do corpo monstruoso caminha junto à modernidade e o interesse pelo diferente e pelo exótico. Nas famosas feiras populares monstros humanos eram exibidos como atrações principais, e movimentavam dinheiro. Crianças com microcefalia eram expostas ao lado de chipanzés, obesos como homens elefante, homens tronco, mulheres barbudas etc.

O grotesco das aparências, a animalidadedas funções corporais, a crueza sangrenta dos costumes, a barbárie da linguagem, ao passo que no palco do Egyptian Hall de Londres danças frenéticas e batalhas tribais se sucedem sem parar desde a primeira metade do século, na feira do Trono a mulher "antropófaga" tritura pedras e engole cobras. Só resta então a antropologia teratológica vulgarizada de Debay selar os seguintes termos a legitimidade do parentesco entre o animal, o monstro e o selvagem." (CORBIN, CORTINE, VIGARELLO, 2011, p. 253/258)

Segundo Corbin, Cortine e Vigarello, tais feiras eram mais um instrumento de poder utilizadas também como forma de controle.

por trás das grades do zoológico humano ou nos cercados das aldeias indígenas das Exposições universais, o selvagem serve para ensinar a civilização, para lhe demonstrar os benefícios, ao mesmo tempoque funda esta hierarquia "natural" das raças, reclama pela expansão colonial. Por trás das vitrinas do necrotério, o cadáver que recebe a visita dominical dos basbaques reforça o medo do crime. Na penumbra do museu de moldes anatômicos de cera, os moldesde carnes devastadas pela sífilis hereditária inculcam o perigo da promiscuidade sexual, a prática da higiene e as virtudes da profilaxia.(CORBIN, CORTINE, VIGARELLO, 2011, p. 260)

O corpo monstruoso, o selvagem, o diferente, o disforme, o híbrido, tudo aquilo que foge à normatividade tornou-se uma forma de resistência e uma oposição à

tirania do bom gosto e das certezas banais da ciência. Num mundo onde a vida sofria tal ordem de ameaças e violências, não havia outra forma de afirmar a existência sensível senão recolocando o corpo humano em questão. É o que apresentarei no capítulo do conto "O Unicórnio", quando o personagem se metamorfoseia em um unicórnio e é levado para um jardim zoológico e fica exposto à população, sofrendo as mais violentas agressões físicas e verbais. Evidenciando assim, o preconceito ao diferente.

A negação do antropocentrismocomo forma de negação do establishment era uma das propostas de Breton e dos surrealistas. E nesse ponto Bataille alinhava-se ao movimento. "É preciso que o homem passe com armas e bagagem para o lado do homem." Dizia Breton (MORAES, 2002, p. 88) "O ódio à autoridade do Estado deve ser fundamento da luta revolucionária." Bradava Bataille na revista Acéphale. A proposta era utilizar as armas do fascismo contra o fascismo. (SCHEIBE, 2013, p. 12)

E foi sob acusação do humanismo e do antropocentrismo que Bataille atribuía a desgraça que o mundo se tornara. As guerras sangrentas, o assassínio e a mutilação dos corpos. "Foi em nome do humanismo que as mais graves usurpações foram cometidas e as mais belas ideias acabaram em matanças." (MORAES, 2002, p. 88)

Essa era a proposta de Bataille quando ele veio com o seu acéfalo, o monstro sem cabeça, o monstro híbrido: "O acéfalo é justamente a força incondicionada do heterogêneo. A negação da cabeça é a negação da razão e do telos, do líder, de Deus, do capital e, em última instância, do eu". (SCHEIBE, 2013, p. 12) Com o acéfalo, Bataille propõe a teoria do informe em oposição violenta à exigência acadêmica que todas as coisas tenham forma e sentido, fazendo oposição à homogeneização e uniformização, enaltecendo o heterogêneo. Michel Leiris e Georges Bataille publicam no número 7 da revista Documents, de 1936 (MORAES, 2002, p. 198) os seguintes verbetes: Leiris, com o verbete Escarro: "O escarro é enfim, por sua inconsistência, seus contornos indefinidos, a imprecisão relativa à sua cor, sua umidade, o próprio símbolo do informe, do inverificável, do não-hierarquizado." (LEIRIS, apud MORAES, 2002, p. 198)

Bataille em sua nota: "Para que os homens acadêmicos ficassem contentes, seria preciso que o universo tomasse forma. [...] Em compensação dizer que o universo

não se assemelha a nada e que ele é só informe equivale a dizer que o universo é algo como uma aranha ou um escarro." 10 Posto que toda forma vive e morre sem cessar de seus próprios acidentes precipitando o incessante jogo de deformação. O que pode-se perceber aquié a relação explícita entre a teoria do informe de Bataille e a experiência do abjeto. Na mesma Documents Michel Leiris desenvolve em um artigoaspectos monstruosos em órgãos diversos, como a boca por exemplo:

a boca ocupa uma situação privilegiada, sendo o lugar da palavra, o orifício respiratório, o antro onde se selao pacto do beijo;de outro, ela produz o cuspe, para de um só golpe cair ao último grau da escala orgânica com uma repugnante função de dejeção. O ato de cuspir rebaixa a boca -signo visível da inteligência -à categoria dos órgãos mais vergonhosos, aproximando o homem desses animais primitivos que têm uma só abertura para todas as suas necessidades. (LEIRIS, apud MORAES, 2002, p. 198)

Assim Leiris põe no mesmo patamar a boca, e fala palavras de amor, e escarra o informe, apresentando o princípio de inversão onde as contradições entre o ideal e o abjeto se confundem. Para Bataille as forças excremenciais, como forma de expressão humana. "Violação excessiva do pudor, excreção violenta do objeto sexual, projetado para longe ou suplicado no momento da ejaculação, interesse libidinoso pelo estado cadavérico, o vômito, a defecação..." 11

Tanto o livro de Hilst quanto as pinturas de Camargo estão repletos de passagens onde excrementos, fluídos corporais, vômito são evidenciados. Iberê Camargo produziu uma série de desenhos e pinturas baseada em um conto de sua autoria, onde o personagem revira uma fossa, repleta de fezes a procura de um relógio que acidentalmente caiu lá dentro. No livro de Hilst, em todos os contos aparecem a figura das vísceras, excrementos, cuspe e deformações corporais. É a presença do abjeto na obra destes dois artistas que demonstro aseguir.

10 MORAES, Marcelo Jacques de. Georges Bataille e as formações do abjeto. Santa Catarina: Revista outra travessia, n.5, 2005. 11 Idem, p. 112.

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