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2.2. Fluxo floema: a imagem do corpo estranho

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2.2. FLUXO-FLOEMA: A IMAGEM DO CORPO ESTRANHO

Fluxo-floema é o primeiro livro em prosa de Hilda Hilst, que até então tinha se dedicado exclusivamente à poesia e ao teatro. Lançado primeiro em 1970, pela Editora Perspectiva, teve seu relançamento pela Editora Globo, em 2003. Na primeira edição temos um texto de abertura do crítico Anatol Rosenfeld que , além de grande conhecedor da obra de Hilda, era um amigo próximo. Na segunda edição, temos uma abertura não menos importante do professor, pesquisador e escritor Alcir Pécora. Aliás, a reedição da obra completa de Hilda Hilst, pela Editora Globo, teve naorganização e plano de edição o próprio Pécora. O livro tem uma maneira peculiar de construção poética narrativa. O leitor desavisado sente uma certa estranheza na forma como Hilda constrói seu texto. Em primeiro lugar, pela pontuação incomum às regras gramaticais, onde muitas vezes é difícil identificar imediatamente quem fala e com quem falam os personagens no texto. Diversas vezes a autora abdica de travessões, dois pontos antes de uma fala e até, às vezes, de maiúsculas no início de uma frase. A obra impressiona pela junção de diversos gêneros literários em um único texto: a poesia, o diálogo dramático, a prosa narrativa ficcional, a paródia, a fábula e o texto bíblico.

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Os personagens de Fluxo-floema transitam entre o sublime e o grotesco que é construído na narrativa, no momento em que Hilda cria situações antagônicas, colocando lado a lado palavras e situações de beleza, erudição e até palavras singelas, e situações de linguajar chulo, grotesco e violento, utilizando palavras de baixo calão. Isso provoca a sensação de incerteza e desconforto, construindo assim uma poética grotesca e desarmônica. Como por exemplo, no trecho do conto "Fluxo" :

As doces, primaveris, encantadoras manhãs do campo. As ervinhas, as graminhas, os carrapichos, o sol doirado, e os humanos cagando e mijando sobre as ervinhas, as graminhas, os carrapichos e o sol doirado (HILST, 2014,p. 20).

Mais do que desnudar, Hilda Hilst disseca seus personagens expondo vísceras, ossos, corrente sanguínea, fluxos de humores. E assim se aproxima da estética do grotesco.

No livro,a escritoralança mão de imagens grotescas que, alinhadas às tendências do século XX, se aproximam ou se igualam aos conceitos de grotesco de Wolfgang Kayser (1986) e Mikhail Bakhtin (1999). E também aproxima-se dos conceitos de abjeto de Julia Kristeva(1982).

Assim, em Fluxo-floema destaca-se a prosa poética dramática, onde a junção dos gêneros literários funciona como fluxo natural de ideias, um fluxo de consciência13 , sem obstáculos e sem respeito a convenções pré-estabelecidas. Como o próprio título Fluxo-floema, que pode ser traduzido como a seiva a percorrer os vasos internos das plantas. Porém, para Alcir Pécora,

Não se trata, contudo, de um "fluxo de consciência" usual, em que a narração ou o enunciado se apresenta como realista de pensamentos do narrador. O "fluxo" em Hilda é surpreendentemente dialógico, ou mesmo teatral: o que dispõe como pensamento do narrador não são discursos encaminhados como uma consciência solitária supostamente em ato ou em formação, mas como fragmentos descaradamente textuais, disseminados alternadamente entre diferentes personagens que irrompem, proliferam e disputam lugares incertos, instáveis, na cadeia discursiva.(PÉCORA, 2010,p.10)

No livro de Hilda Hilst, seus personagens-narradores se veem imersos num fluxo de consciência fragmentado, em um espaço que se fundem uma profusão de gêneros textuais utilizados pela escritora como estratégias de construção narrativa. Essa junçãodos gênerosliterários amplia a potência da linguagem quando mostra esses personagens transitando entre a paródia, a poesia, o drama, a prosa, a fábulaetc.

Em Fluxo-floema sua intermidialidade se funda na pluraridade de gêneros textuais. Como explica Solange Ribeiro Oliveira:

13 O conceito de “fluxo de consciência” foi cunhado por William James e se referia ao turbilhão de pensamentos na mente consciente, isto é, toda a gama de impressões, sensações, raciocínios que se desenrolam em nível superficial. Disponível em:https://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/1657679> Acesso: 16/11/2018

Haroldo de Campos considera que o novo paradigma abre espaço para procedimentos que ele endossa: [...] Quanto à literatura, Campos acolhe a criação polifônica, a carnavalização dos gêneros, o estilhaçamento do tema e a relativização do tempo. (OLIVEIRA, 2012, p.131)

Isso se dá na obra de Hilst na forma de uma infinidade de gêneros. A escritora lança mão de estratégias de construção de linguagem, como trechos de discurso meta narrativo, solilóquios,simulacros de textos teatrais dramáticosno formato de pequenos diálogos com indicação de fala de personagens, registro coloquial de linguísticas regionais, palavras, expressões e citações de obras literárias estrangeiras no idioma de origem, anotações esparsas, poemas, cartas, perguntas dirigidas diretamente ao leitor, enfim um "manancial enciclopédico de discursos." (RODRIGUES, 2007, p.162)

Ao utilizar a técnica do fluxo de consciência e a "anarquia dos gêneros" como parte criativa do seu corpo de linguagem, Hilst realiza uma colagem, um discurso fragmentado, vertiginoso e impreciso, que se assemelha a ousados experimentos artísticos e literários das vanguardas do início do século XX. Essa tendência ao fragmentário e à imprecisão também a insere na criação literária contemporânea. (RODRIGUES, 2007)

Pode-se afirmar que o caráter de multiplicidade e de fragmentação faz com que o livro não se apresente como obra fechada, estática, mas como que em processo. Isso se evidencia nas referências aoutras obras e nas mensagens quase codificadas que remetem para além da estrutura da obra. Onde a utilização de diferentes signos, de naturezas bem distantes, são fortuitamente aproximados e ressignificados, formando assim um corpo poético único. Como a referência ao filme Morte em Veneza no conto "O Unicórnio":

Você sabe, eu dizia para ele, é muito bonito quando dois amigos se querem bem. Nós falávamos da Morte em Veneza, que é belíssimo, você conhece? Lógico, mas nem tudo acaba como Morte em Veneza, tira da cabeça, acabam mesmo é abaixando as calças e aí vem o pedaço pior. (HILST, 2003, p. 149)

Ou citando filósofos gregos: "... ele dava aulas, você compreende, Parmênides, Pitágoras. Aí é que está, o moço tinha logicidade, os gregos e a bunda, você não vê que é muito lógico? que estória." (HILST, 2003, p. 150)Ou citando o escritor Nikos Kazantzákis, quetanto a influenciou:

O Nikos, assim para te dar um exemplo, escreveu que quando ele encontrava um mendigo na rua, tinha vontade de dizer: me dá seu tempo, me dá seu tempo. Só isso é que ele pensava quando encontrava um mendigo na rua? Às favas com teu Nikos. Você não compreende. (HILST, 2003, p. 151)

Assiste-se em Fluxo-floema a uma multiplicidade de fragmentos diversos como que extraídos de uma biblioteca. É possível observar na obra um hibridismo de linguagens que nos faz perceber as inúmeras referências aoutros autores. Como na passagem: "Você sabe que o Proust fazia muitas maldades? ... Olha, o Proust era um pederasta. Pois é, era o Proust. O Guide também era um pederasta. Pois é, o Guide, o Genet. pois é, é o Genet." (HILST, 2003, p. 154)

No livro a escritora mostra os seus inventários de elementos, que são continuamente rearranjados no decorrer dos enredos. Pode-se perceber, pelos procedimentos de Hilst, uma busca incessante, uma batalha com a linguagem, uma maneira de dizer o que não tem palavras."Porque o anão não teria surgido se o meu filho não tivesse morrido. Querem que a gente escreva com uma língua dessas. Surgido, morrido. Queporcaria." (HILST, 2003, p. 33)ou em outra passagem:

Será que estão me entendendo? O difícil desse meu jeito é que as frases ficam sempre mais complicadasdo que seria sensato, porque o sensato, o criterioso, seria dizer assim: a claraboia e o poço têm o mesmo eixo. Às vezes uso recursos extremos para me fazer entender em casos extremos. (HILST, 2003, p. 35)

Ou quando a escritora usa a poesia junto à prosa:

...vida que eu bebo a cada dia, fogo sobre mim de amor, eu alegria, fogo, sobrevida, eu cantiga. Já sei. Te lembras? Cantemos juntos: Ai como eu queria

te amar, aai como eu queria te amar sem o verso ai como eu queria reverso de mim mesmo te amar AAIIIIIIIII IIIIA Aicomoeuqueriateamarrrrrrrrrrrrr Respirando alegria. Vem, vamos descendo e cantando.(HILST, 2003, p. 49)

Pode-se notar nesta passagemdo conto "Fluxo" que,além da mistura genérica de prosa e poesia, a escritora também se preocupou com o corpo do texto. Percebe-se um esmero com a diagramação, onde os versos do poema são dispostos de forma descendente e, simultaneamente, ao fim da poesia, o personagem Ruiska diz: vem, vamos descendo e cantando.

Portanto, o livro de Hilst possui características intermidiáticas, quando apresenta em seu corpo poético um fenômeno híbrido de mídias diferentes. Esta relação de hibridismo ocorre quando Hilst se vale de uma profusão de gêneros: prosa, poesia, música e até receitas culinárias. Com isso ficam evidentes em Fluxo-floema o conceito de intermidialidade, no que diz respeito à forma de composição dos fragmentos, caracterizada por uma grande polifonia semântica, ultrapassando os limites tradicionais da literatura e subvertendo a forma de se contar uma estória. Ao dialogar gêneros textuais em um mesmo corpo de linguagem, Hilstnos abre um leque intermidiático, ao considerarmos o gênero textual como uma mídia. Como explica Irina 0. Rajewsky em seu artigo "A fronteira em discussão: o status problemático das fronteiras midiáticas no debate contemporâneo sobre intermidialidade”:

Condições análogas informam, por exemplo, as discussões acerca das concepções de gêneros, para introduzir um parâmetro de comparação; todavia, diferente do que se deu nos questionamentos recentes sobre o conceito de intermidialidade, agora se confere um potencial heurístico às concepções de gêneros, bem como às de mesclagem de gêneros ou ao próprio ato de minar as fronteiras genéricas. Mais propriamente, os estudos literários esclarecem que -apesar da sua construtividade e variabilidade histórica -as convenções de gênero, tal qual as tradições discursivas, desempenham um papel importante no processo de atribuir sentido(s) aos textos literários. Isto se verifica tanto no decorrer da sua produção, quanto durante a sua recepção. (RAJEWSKY, 2012, p. 56)

Essa multiplicidade genérica utilizada por Hilst também é uma característica comum na arte contemporânea, assim como o gosto dos artistas pela citação e pela exploração de grandes arquivos de imagens, como se fossem parte de uma grande biblioteca visual pessoal. A citação entre obras deu um novo dinamismo àprática da intermidialidade. Além da multiplicidade genérica, Hilst também se vale de estéticas específicas como a do grotesco e do abjeto, na construção de sua poética.

É por meio do grotesco e do abjeto que a autora questiona a época atual da sociedade de massa, construída sobre um simulacro que nos causa a agonia e a angústia de viver em um real distorcido, e que destrói a capacidade de sermos originais. A reflexão sobre as atrocidades humanas chama a atenção pela força das imagens do corpo, trazidas por Hilst por meio de seus personagens.

Hilda Hilst caracteriza seus personagens com imagens apresentadas na forma da fragmentação e da multiplicidade. Em Fluxo-floema, a fragmentação do corpo aparece de forma grotesca e abjeta, trazendo à luz a sensação de fragilidade e o medo do abandono de seus personagens desvalidos. Vê-se em Fluxo-floema uma fragmentação onde a fratura da estruturado corpo funciona como, segundo Deleuze e Guattari (1995), uma desterritorialização do uno, como uma linha de fuga à trama do caos contemporâneo.

Como explica Eliane Robert Moraes: "diante da falta de sentido de qualquer valor absoluto, a atenção volta-se para o detalhe, para o insignificante, para o momentâneo. Diante de um mundo em pedaços e do amontoado de ruínas que se tornaria a história." (MORAES, 2002, p. 57).

Hilda vale-se da ironia trágica, do uso de paródias, justaposições de elementos díspares, e principalmente do fluxo de consciência. Tais atitudes criativas, como explica Moraes, articulam os procedimentos de Hilda Hilst aos procedimentos modernos:

A arte moderna respondeu à trama do caos através de formas fraturadas, estruturas parodísticas, justaposições inesperadas, registros de fluxos de consciência e da atmosfera de ambiguidade e ironia trágica que caracterizam tantas obras do período. (MORAES, 2002,p. 57)

Pode-se observar em Fluxo-floema a fragmentação do corpo, onde a fratura da estrutura do corpo funciona como, segundo Deleuze e Guattari (1995), uma desterritorialização do uno, como uma linha de fuga à trama do caos contemporâneo. Hilda vale-se da ironia trágica, do uso de paródias, justaposições de elementos díspares, e principalmente do fluxo de consciência.

Assim, é possível classificar os textos de Fluxo-floema como textos híbridos construídos, a partir da mistura dos gêneros literários, onde a literatura de Hilst dialoga com grandes nomes da literatura e usa o grotesco para expor a imagem do corpo de seus personagens imersos na angústia humana. A presença do grotesco também aparece na afirmação da completude dos binômios como o amor-ódio, vidamorte, grotesco-sublime, feio-belo, ser-estar. A arte grotesca, representante das manifestações das crises profundas, é uma arte contrária aos padrões clássicos,que buscavam na mitologia as fontes para suas inspirações e representações. O grotesco é apresentado também como forma híbrida do homem com o animal ou várias partes de animais diferentes que formam um outro ser imaginário. Os personagens de Fluxo-floema são representados por meio de rebaixamentos, em que a autora compara suas atitudes, feições e sensações às de um animal. Por meio do grotesco Hilst mostra as várias possibilidades de construção da imagem do corpo pela ótica do feio, do podre e asqueroso. Hilda nos apresenta personagens caracterizados no "baixo" e "repulsivo", transgredindo assima imagem do belo e do bem acabado que se espera do mundo e das artes.

O abjeto, na literatura e nas artes, funciona como algo político. Como uma subversão da beleza e dos interditos do excremento e de tudo que é considerado obsceno. Entretanto, como já apresentei em Kristeva (1982), o abjeto, além da ausência de limpeza, é também aquilo que não respeita os limites, os lugares e as regras. Segundo Kristeva, a abjeção em si é imoral, tenebrosa e suspeita, como um amigo que nos apunhala. O abjeto em Hilda Hilst funciona como um afronta, uma arma apontada para a face do leitor desavisado em sua zona de conforto.Isso prova o cunho político de Fluxo-floema, como de toda a obra de Hilda Hilst.Aescritora em momento algum faz concessões para agradar ou cativar o leitor. Pelo contrário, busca afetá-lo de forma profunda e visceral. Embora ela não tenha produzido sua

obra de forma panfletária, a escritora não era alheia aos problemas do Brasil e do mundo:

Hilda Hilst não está engajada no sentido político do termo porque a sua escritura é uma subversão dentro do Infinito atemporal, que não se prende às contingências das mudanças de poder. Não que ela esteja alheia à miséria, à fome, à bota na cara dos totalitarismos de todos os matizes, mas a privação da liberdade está encaixada numa realidade plural e maior: a do homem e sua solidão nos siderais espaços mudos. (RIBEIRO, 1977, p. 8)

E Leo Gilson prossegue:

Se a escritora se mantém num plano especulativo, não deixa porém de abordar frequentemente as injustiças sociais, a exploração que os poderosos exercem sobre os fracos, as prisões, as torturas sádicas, o estupro da liberdade, mas não se limita a essa constatação sociológica. (RIBEIRO, 1977, p. 8)

Hilda Hilst sempre tratou com escárnio a temática brasileira. Até quando se referia à língua brasileira, o idioma, fazia questão de se expressar pelo grotesco. Uma vez uma repórter perguntou para a escritora qual conselho daria a uma jovem escritora? "Escreva em inglês, ninguém lê em português." (HILST, 2014, p. 262) Ou no conto "Osmo" : "a Mirtza era lituana, ela falava a minha língua também, a minha língua é uma língua de bosta, ninguém fala a minha língua." (HILST, 2003, p. 92) Segundo Alcir Pécora, Hilda trata o Brasil como o país da bandalheira, da corrupção e onde todos querem levar algum tipo de vantagem:

ela trata o Brasil como país bandalho por antonomásia: terra devastada onde o poder injusto e ilegítimo pactua com a venalidade e a ignorância por meio da celebração da malandragem e do triunfalismo nacional-popular-carnavalizante. (PÉCORA, 2010, p. 27)

A seguir, apresento separadamente cada uma das estórias do livro Fluxo-floema, que são: "Fluxo" , "Osmo" , "Lázaro" , "O Unicórnio" e "Floema" .

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