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3.1. Da crítica

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corporeidade da sua pintura: nascimento, vísceras, o corpo da pintura e o corpo do artista:

Desejo atingir uma coisa simples, atingir a boa forma com economia de traços. Mas o simples não nasce logo. A matéria, retirar vísceras, para depois ser. Tudo nasce da dor. (CATTANI, 1985, p. 51)

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E é a partir daqui, deste recorte na obra de Iberê Camargo, que vou analisar a construção da imagem do corpo, ou seja, a figura humana presente nesta fase do trabalho deste pintor brasileiro dono de uma obra densa, impregnada pelo sentimento de isolamento, drama e desesperança. Entretanto, apresento antes das análises, um recorte da fortuna crítica das obras de Camargo estudadas nesta tese.

3.1. DA CRÍTICA

A crítica sempre acompanhou a obra de Iberê Camargo. Desde que o pintor voltou da Europa após seus estudos, seu trabalho esteve presente em grandes exposições individuais, coletivas e bienais. Porém se seu trabalho ainda conservava um certo distanciamento das grandes galerias comerciais, da grande crítica de arte e do reconhecimento dos artistas mais novos, em 1984 ele já estava expondo nas principais galerias do país. Como lembra o artista Carlos Zilio, que foi aluno de Iberê Camargo:

É importante destacar que as primeiras telas dessa nova tendência foram expostas no Studio Claudio Gil, no Rio de Janeiro, 1982. Não se tratava de uma galeria considerada entre as mais importantes do Rio. Lembro-me de que na abertura da exposição o público era constituído basicamente de velhos amigos. Iberê ainda não havia sido "descoberto" pela crítica e pelos novos artistas. Contudo, o novo reconhecimento não tardou. Em 1984 ele já estava expondo nas principais galerias do país. (ZILIO, 2003, p. 181)

Neste subcapítulo apresento parte da crítica realizada no período entre 1980 e 1994, que é o recorte que fiz na vasta obra de Iberê para dialogar com o livro de

Hilda Hilst. Saliento que as críticas que apresento a seguir focam na questão da figura humana e na construção da imagem do corpo nesta fase.

Grande parte dessa fortuna crítica deve-se ao acervo de Iberê Camargo presente na Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre, aque eu tive acesso e visitei por duas vezes. Lá adquiri diversos catálogos de exposições passadas e pude ver uma exposição permanente em suas galerias. Outra parte dessa fortuna crítica encontrase em diversas publicações de livros e catálogos vendidasem livrarias e sebos.

Alguns críticos como Ronaldo Brito, Ferreira Gullar, Paulo Ribeiro, Lisette Lagnado, Mônica Zielinsky e Blanca Brites produziram um número considerável de textos sobre o pintor. A partir de 1980 a obra de Iberê Camargo tomou proporções inimagináveis por parte de crítica de arte, devido aos acontecimentos trágicos ocorridos em sua vida pessoal e devido àsua volta à figuração.

Após o dramático episódio em que Iberê se viu envolvido em uma briga de rua, e que resultou na morte do engenheiro Areal, o pintor passa a povoar suas telas de figuras humanas. Isto até o fim de sua vida em 1994. No período anterior existia sim a figuração, mas eram objetos: carretéis, garrafas, pipas, dados, mesas, trabalhados junto a abstração informal . Apesar de que Iberê, em 1979, já havia pintado o quadro intitulado "Pintura", onde aparecem faces humanas em meio a signos, como carretéis e dados.

Segundo Lorenzo Mammì:

É importante [que essa tela Pintura ] seja de 1979, diga-se de passagem, para que se evite qualquer associação mecânica com os acontecimentos dramáticos de 1980, e determinaram sua volta para Porto Alegre. É evidente que sendo Iberêum artista tão preocupado com o sentido existencial de seu trabalho, aqueles fatos determinaram mudanças também em sua arte. Mas a arte não é tão refém assim da vida. É preciso que uma evolução interna da linguagem abra espaço para as novidades, mesmo quando elas parecem viradas repentinas.(MAMMÌ, 2014, p.285)

Figura 14-Iberê Camargo, Pintura, 1979. óleo sobre tela. 65 x 92 cm

Para Mammì é significativo que Iberê tenha experimentado, mesmo que esquematicamente,a figura humana antes de torná-la explícita nas obras seguintes. Mammi não corrobora a ideia do reaparecimento da figura humana na obra de Iberê. Para ele, o que houve foi o aparecimento da figura humana na obra do pintor. "porque anteriormente Iberê mal se dedicara a esse tema: apenas em algumas telas iniciais, todas, se não me engano, da década de 1940". (MAMMÌ, idem)

Para Ronaldo Brito assim como para Lorenzo Mammì, o "retorno" de Iberê Camargo à figuração humana nos anos de 1980, muito pouco ou quase nada tem a ver com um retorno. Brito ressalta também que:

A exceção de alguns bons auto-retratos de meados de 1940, poucas telas esparsas, ao longo dos anos, apenas confirmam a regra: a aventura de Iberê Camargo nunca havia se concentrado sobre a figura humana. (BRITO, 2005, p. 235)

Figura 15-Iberê Camargo, Retrato de Figura 16-Iberê Camargo, Sem título,1942. Lápis Estácio Kramer da Luz, 1947. óleo sobre conté sobre papel. 29,6 x 31,3 cm tela, 91 x 63 cm

Em 1994, para o caderno especial "Mais!" do Jornal Folha de São Paulo, Mário César Carvalho e Augusto Massi são enviados a Porto Alegre para uma entrevista com o pintor. Massi questiona a relação do aparecimento da figura humana com a tragédia de 1980:

Iberê: Não. O que aconteceu comigo é claro que marca, que machuca, que dói, e é horrível, mas a vida é essa surpresa, é o inesperado. As coisas marcam mas continuam caminhando. Folha-Isso não trouxe marcas na pintura do senhor? Iberê-Não, acho que essa tristeza sempre existiu. Sempre foi triste foi solitária. Folha - Tem crítico que diz que a pintura do senhor renasceu após a tragédia de 1980. Maria (mulher de Iberê) -Antes da tragédia o Iberê já estava inserindo figuras tinha um quadro, inclusive, eu acho que era o teu retrato. Folha-A volta a figura não foi determinada pela tragédia? Iberê- Quando eu fazia os carretéis, aqueles espaços, aquele chão trabalhado, eu estava muito impregnado da lembrança da terra, dos quintais, das coisas que estão sepultadas, que a terra cobre. Eu sentia fisicamente, vivenciava as coisas da minha cabeça. Nunca fiz uma forma gratuita, um gesto em vão. Fiz sempre uma coisa ligada a uma experiência muito profunda minha. Este é o suporte da minha pintura esse contato direto com uma realidade, que é uma realidade subjetiva, mas queé tão real quanto essa mesa. Mas a gente escreve uma história e faz uma premonição, não sei.22

22 Iberê Camargo o último dos pintores. Folha de São Paulo: Caderno Mais! - Domingo, 6 de março de 1994. (Arquivo do autor).

Decerto, nessa fase da vida do homem-pintor, como Iberê se auto referia, acontece uma busca pela sua memória, uma faturade sua vida. Lorenzo Mammìacredita que dados e carretéis, presentes na obra de Iberê a partir de 1980 não são apenas "lembranças de infância, mas citações de fases anteriores da pintura de Iberê, restos cristalizados de gestos antigos." (MAMMÌ, 2014, p. 285)

A temporalidade e a memória sempre foram questões centrais na obra de Iberê, mas Mammì ressalta que,após 1980, "remexer na matéria pictórica comporta trazer à tona fragmentos de memória já enrijecidos antes mesmo de sua feitura." (MAMMÌ, 2014, p. 287) São fragmentos autobiográficos que o próprio Iberê esclarece: "Carrego comigo o fardo do meu passado... Os quadros que pinto são visões que breve serão os fósseis semeados à margem de meu rastro" (LAGNADO, 1994, p. 54)

O crítico Ronaldo Brito ressalta essa arqueologia na obra de Iberê:

No limiar da modernidade, Goya antecipou os horrores à espera da imaginação livre moderna no ato mesmo de exorcizar os persistentes fantasmas feudais. Iberê Camargo, no curso da modernidade tardia, constata a impotência da imaginação criativa perante a enormidade opaca da realidade contemporânea - só lhe resta escavar e escavar a essência histórica da pintura até ressuscitar a sua atualidade. (BRITO, 2005, p. 33)

É o que Flávio de Aquino, em uma matéria intitulada "Iberê Camargo: Quadros de uma tragédia",para a Revista Manchete, Rio de Janeiro 1981,escreve acerca dessas camadas de memória das figuras presentes na obra de Iberê:

Assim como houve a volta às ruas azuis e sombrias, o retorno dos carretéis, que marcaram a fase de Iberê no final dos anos 1950. Mas então ele sempre afirmava que tais carretéis eram reminiscências de sua infância. Agora eles se transformam em figuras femininas esquematizadas povoando os seus quadros. São mulheres angustiadas, crucificadas, de braços erguidos. Às vezes, se transfiguramem taças ou em ossos humanos. Olhos enormes ou cabeças desmesuradas chamam atenção no meio dessas formas. As mulheres carretéis são jogadas de um lado para o outro, mas conseguem se equilibrar no vendaval da composição de azuis profundos, pinceladas espessas que trilham a tela com espátula, como arados lavrando a terra. (AQUINO, 1985, p. 87)

O crítico Frederico Moraes disserta para a imprensa carioca em agosto de 1984:

Os dados de sua nova pintura foram então lançados, os carretéis voltaram a se movimentar, mais fantasmagóricos do que nunca, aqui e ali surgem cruzes, setas, sinais, losangos, um ex-voto, um rosto que se projeta num perfil espasmódico, os signos se metamorfoseiam: dado-carretel-fantasma - um puro sinal linguístico ou gráfico significando interdição ou perigo. Os objetos e figuras traçadas em branco, como um grafitti nervoso, à Penck, à Schanabel, à Salle, arqueológico ou préhistórico, sobre a pasta de tinta. Mas também, aqui e ali, neste rio noturno, surgem nesgas de luz: pequenos toques líricos de azul, amarelo ou verde, transparências. Iberê é hoje uma artista possuído por verdadeira compulsão de pintar -mas ao final, o que emerge, mais do que o drama do artista é o drama da própria pintura. (MORAES, 1985, p.89)

Para Ronaldo Brito assim como para Lorenzo Mammì, o retorno de Iberê Camargo à figuração humana nos anos de 1980, muito pouco ou quase nada tem a ver com um retorno. Brito ressalta também que:

A exceção de alguns bons auto-retratos de meados de 1940, poucas telas esparsas, ao longo dos anos, apenas confirmam a regra: a aventura de Iberê Camargo nunca havia se concentrado sobre a figura humana.(BRITO, 2005, p. 235)

Lídia Vagc, em 1984, escreve para a Revista da Gávea, nº1, e destaca o descompromisso das últimas telas de Iberê com o belo e com o decorativo:

As obras produzidas segundo o impacto do inédito levam tempo para serem captadas pela percepção vigente. A positividade de Iberê extrapola o grande domínio técnico que sua obra exige e revela: ela não pretende o belo, porém contém um belo, ou melhor, guarda em si "o belo e a fera ". Será inevitável, iniludível que lhe dáa compulsãodo pintar e produz o outro do belo. (VAGC, 1985, p.89)

E completa:

Por isso o artista se coloca de frente, de perfil, como duas silhuetas que se entreolham, no branco e no preto, no positivo e no negativo, como ícones autobiográficos. O pintor que se vê como o indivíduo que sofre transfigurado pelo trágico, mas que tem como tarefa inesgotável a pintura, o instrumento doseu pesar. (Idem)

Figura 17-Iberê Camargo, Face, 1984. Óleo sobre tela, 40 x 57 cm

Figura 18-Iberê Camargo, Sem título, 1984. Guache, 56 x 76 cm

É também a partir de 1980 que a crítica se mostra chocada com a potência das pinturas de Iberê. Antes disso, elas estavam mais para agradar o público burguês do que chocá-lo. Decerto o expressionismo de Iberê Camargo, até então, tinha se mostrado coerente com o expressionismo abstrato em voga no mundo e com o sucesso de Willen De Kooning e Jacson Pollock na América do Norte, nos anos de 1950.

Porém, nas últimas pinturas, precedidas do seu acontecimento trágico, suas obras passaram a ir na contramão do bom gosto vigente. Como o próprio pintor afirmou na entrevista para a Folha de São Paulo em 1994: "Não sou um decorador, sou um homem que se expressa. Expresso os meus e os teus sentimentos. Acho que isso é a pintura."23

Ronaldo Brito no texto "O eterno inquieto" para o jornal O Globo, a 5 de maio de 1987:

As últimas telas de Iberê Camargo assustam e encantam, ao mesmo tempo. Assustam pela sobriedade terrível com que põe em evidência o drama do sujeito moderno, aparentemente no estágio final de sua dissolução; encantam pela qualidade da matéria pictórica que resistiria, paradoxalmente, a todas as violências e degradações. Diante do presente incerto e conturbado, onde há dúvida "nuclear" quanto ao futuro do mundo, a resposta do artista é urgente: os seus gestos decididos e abruptos se precipitam, se incrustam imediatamente na superfície da tela e criam um espaço denso, calcinado, intensamente pessoal e singular. Massa de energia, quantum imponderável de real, em meio à diluição generalizada. A rigor, essas pinturas não se oferecem a contemplação, sim a absorção. A começar pela escala enorme, elas existem para ser experimentadas, pelos poros, com o corpo todo. (BRITO, 2005, p. 224)

Também em outro texto "Destino de Pintura", Brito destaca o tom agônico das pinturas de Iberê pós 1980:

Retomar a figura humana, reelaborá-la obsessivamente, raspá-la e refazê-la dez, cem vezes, repassar a sua história enquanto a forma por excelência do ocidente é justamente a tentativa de reviver a sua agonia primitiva. E assim, saturadas todas as etapas, e aproximar-se diz uma verdade primordial. No mesmo espírito radical, a terra sumária, o anti ambiente a que essas figuras pertencem, sugere algo como o primeiro dia depois do fim do mundo. Nessa versão conclusiva do Sul, uso a enormidade elementar, nenhum excesso é permissível, paisagem básica reduzida a

23 Idem

traços essenciais. E o brilho ácido, terroso, plúmbeo ou quase púrpura, desmente a naturalidade do real; no limite, parece duvidar que o homem moderno consiga resgatar qualquer gênero de conaturalidade. (BRITO, 1994, p. 93)

Nestas palavras, Brito foca na questão do expressionismo na obra de Iberê. Obsessão, refação, agonia primitiva, verdade primordial, terra sumária são vocabulários típicos da poética expressionista na qual Iberê se insere. Porém, não se tratade um expressionismo importado. Segundo Brito:

Nessa modalidade latina de expressionismo, porém, estão curiosamente ausentes dois outros impulsos básicos do expressionismo nórdico, flamengo ou germânico - a religiosidade e a imaginação. Contra a dissipação dos valores, iniqüidade da vida, Iberê não propõe um mito de redenção, tampouco recorre a liberação do imaginário. Justamente parece se aferrar à simplicidade e casualidade diárias e recusar tudo o que estiver fora do alcance das mãos e dos olhos. Para transfigurá-las, é claro. Quase como se a tarefa do pintor fosse a de salvar o momento íntegro, o instante vivo, do fluxo de irrealidade corrente. Por isso talvez a inesperada participação neste universo trágico, de humores diversos e irreverentes, as ironias e os sarcasmos eventuais, a aceitação do ridículo, enfim. (BRITO,2005, p.225)

Ou seja, enfim o grotesco. O expressionismo de Iberê Camargo destila-se no grotesco ao abordar o universo trágico, irônico, sarcástico e ridículo. O pintor evidencia, com imenso grau de virtuosismo, a miséria e a demência do presente e capta a fugacidade da vida e o peso da angústia de viver, inerente à nossa finitude.

Neste subcapítulo procurei mostrar uma pequena parte davasta fortuna crítica da obra de Iberê Camargo.Enfoquei exclusivamente o que diz respeito àconstrução da imagem do corpo, àfigura humana, presente nos textos críticos daépoca. São textos escritos no calor da produção das obras de 1980 a 1994, ano da morte do pintor. A seguir apresentarei outros textos relevantes sobre o assunto porém são textos póstumos, que certamente apresentam outras abordagens.

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