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Crónicas de um comboio escalfado XIV - Jorge Serafim
from Revista APAT 138
by Apat
Crónica de um comboio escalfado XIV
Tenho o tempo contado. Não me sobra uma migalha para mim. Não me cuido há muitos meses. São os filhos para a escola, o marido para o trabalho, a casa para o dia a dia. O horário do emprego cumprido escrupulosamente. Tenho hora para entrar, não tenho outra para sair. Não me arranjo. O cabelo parece um molho de ervas bravas. As suas pontas estão mais secas do que a terra nos dias de agosto. A minha pele envelhece. Não conhece a palavra hidratação. As minhas rugas acentuam-se. Parecem sulcos secos. Onde um dia correram ribeiros de alegria, hoje um rosto resignado às obrigações da vida. A minha coluna já chegou tarde às massagens. Seus ossos, suas vértebras, são queixumes de manhã à noite. O meu corpo multiplicou-se em tarefas intermináveis. Há uma altura na vida em que acreditámos que somos de ferro, que aguentamos tudo, que como mães e mulheres estamos destinadas a amparar o peso do mundo. Agora são os netos! Nova alegria, nova sobrecarga. E continuamos a acreditar que somos fazedoras de alegria alheia. Os sorrisos deles fomos nós que os inventámos. As gargalhadas deles fomos nós que as construímos. E ficamos cheias de futuro efémero, porque a vida deles é também a nossa. Tiramos-lhe as dores, para as acumular dentro de nós. Mulheres mães, mulheres esposas, mulheres domésticas, em qualquer parte da alma, do corpo. E o peso do mundo profissionalizou o nosso destino. São 8h22 na estação de Beja. Destino: Lisboa, capital do império periférico. Hoje nem os comprimidos me conseguiram disfarçar os incómodos causados pelas agruras de levar uma vida inteira a cuidar dos outros. Comprei o bilhete sem me importar com o fim da viagem. Nas mãos levei um livro. Até as maleitas se esqueceram de existir. Era um livro de viagens. De alguém que conhecera o mundo e que o contava através de palavras extraordinárias. De vez em quando, levantava a cabeça e ficava a contemplar a paisagem pelo vidro da automotora. Parecia uma tela de cinema a passar diante dos meus olhos. Entre as páginas do livro e os sucessivos cenários que aconteciam fora da composição ferroviária, não sei se fui eu a voar para terras longínquas, ou se foi a minha alma a desejar uma outra vida. Não conseguia prestar atenção às conversas dos outros passageiros. Apenas embalada pelo movimento do comboio e pela evasão da leitura, sentia-me de regresso à planície dos sonhos. Em cada página folheada, em cada olhar pela janela, recuperei o significado das minhas aspirações. Um sorriso nasceu no meu rosto. Senti a pele limpa, luminosa. Nela não habitavam quaisquer sinais de aridez. Endireitei as costas, senti-me altiva. Dona de mim! Há quanto tempo não desfrutava de um horizonte? Da contemplação das coisas belas? Reparava no voo dos pássaros, na nobreza das árvores. No renascimento dos frutos. Na “pachorrice” do gado. No usufruir do tempo com tempo. O meu corpo parecia outro. Parecia-me que não o estava a reconhecer. Mas sim, é o meu corpo! As minhas mãos, os meus braços, as minhas pernas, o meu peito angustiado, o meu pensamento a planar... Esta sou eu ainda completamente cheia de realidade e de sonhos. Esta sou eu a ler e a nadar em mares tropicais, perdida em cidades maravilhosamente labirínticas, serpenteando nos mistérios dos rios. Esta sou eu, ansiosa por paixões ardentes. A matar a sede em beijos originários de fontes cristalinas. De mãos dadas com o universo e a caminhar para infindáveis horizontes. Parece que foi só à terceira vez que ouvi a voz de revisor quando a levantou, solicitando o bilhete. Perguntou-me: para Lisboa? Sim, respondi possuída por uma alegria inesperada. Vou arranjar o cabelo! Ainda insistiu, como quem faz conversa de circunstância: Regressa hoje? E ficou perplexo, de olhos completamente esbugalhados, com a minha resposta: Agora só quando terminar o livro. Tenho muito beijo para colher!
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Jorge Serafim Humorista