CARGA DE RISO
Crónica de um comboio escalfado V Virgolino Revés Ferradura, em matérias de sorte, nunca foi abençoado pelos caminhos sinuosos da vida. À beira dos setenta anos, concluíra que todo o seu trajeto fora uma desgraça. Desde o dia do nascimento que lhe preconizaram o anjo da morte, pois assim que a mãe o deu à luz vinha roxo como as pétalas das orquídeas, sintoma de que a função respiratória ainda não se encontrava completamente formada. Foi encaminhado para uma incubadora, onde esteve a terminar a gestação durante quatro fastidiosos meses, sem direito a qualquer mama da mãe. Quando saiu do aquário de respiração artificial, já não teve direito a mamar. Os seios da progenitora secaram como acontece às fontes e aos poços quando não chove durante uma remessa de anos. Ainda hoje assume perante toda a gente que aquela asma crónica que o obriga mensalmente a visitar a capital do pretérito perfeito para tratamentos no hospital Curry Cabral foi derivada à privação do leite maternal. E que para contrariar os destinos de nascença, agarrou-se, logo que entrou na escola primária, às artes do tabagismo em contexto de socialização vadia. Foram anos letivos desenvolvendo a técnica de inspirar azares e tristezas, para depois expirar inércias e resignações. A partir dos vinte anos, três maços e meio por dia assentavam-lhe praça no interior dos pulmões. Explicava a quem o advertia das consequências do vício que o cigarro na boca colmatava as carências da chucha maternal. Não poderia remediar o passado, mas poderia minguar as insuficiências no presente. À custa destes sólidos argumentos, frequentava médicos, boticários, tratamentos e hospitais há mais de trinta anos. Obviamente que nenhuma consulta, nenhum exame e nenhuma terapêutica surtiriam efeito. Perante a incredulidade de médicos, enfermeiros e outros técnicos de diagnóstico, de lágrimas penduradas
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Jorge Serafim Humorista
nos cantos dos olhos, respondia, com a voz embargada, que não poderia deixar de fumar porque não abandonava de forma alguma as mamas da mãezinha! O único período em que, de facto, não usufruía do prazer maternal “anicotinado” era nas deslocações de comboio de ida e regresso a Lisboa por causa das consultas. Era proibido! Nessas alturas, Virgolino Revés Ferradura, possuído por uns tremores e suores deveras evidentes aos olhos dos outros passageiros, assim como de uma desregulação acentuada do trânsito intestinal, encontrava refúgio na casa de banho da moderna automotora dos anos cinquenta que ainda hoje faz parte do trajeto. A antiguidade da carruagem fazia-la trepidar de tal forma que havia dias em que todos os utentes, incluindo revisor e maquinista, mais pareciam um aglomerado de doenças nervosas. Tais os abanões que constantemente sofriam. Quando as viagens terminavam, e se alguém do outro lado do fim os aguardava, nem conseguiam acertar um aperto de mão ou um beijo no rosto, até que a tremedeira amansasse no corpo de cada um. Sentado na sanita, sentia a redobrar a carência do mamar maternal. Pois somada que estava a antiguidade da automotora, não conseguia fazer obra em condições. Ao invés de evacuar as amarguras da vida e outras obstipações difíceis de ultrapassar, calças em baixo, ceroulas à altura do joelho, calcanhares no chão e biqueiras dos sapatos flectidas para cima, ainda
dava por si a bater com a cabeça em tudo quanto era coisa da exígua casa de banho. Ai porra! Ai mãezinha! Ai merda! Nem eu consigo obrar, nem a automotora para de abanar! Ai meu Deus, porque me abandonaste à nascença? Enquanto soltava estas pragas, parecia que o Senhor o ouvia para o castigar ainda mais... Era cada cabeçada no lavatório que está localizado mesmo defronte da sanita, que acabava por acrescentar às suas desgraças um somatório de arredondados hematomas. O que lhe justificava um soltar de impropérios tão gritados que atravessavam todas as carruagens, causando profundos incómodos a outras moralidades passageiras. Tudo isto arrematado por uma sonora e fragrante flatulência que abafava o apito do comboio quando chegava ou partia de um destino. É sabido que os revisores ao longo da sua carreira profissional vão alicerçando uma relação de amizade com os utentes. Era este o caso, pois trinta anos de passageiro ferroviário a tentar tratar o incurável, levaram a que o revisor tomasse conhecimento das suas particulares carências “mamais”. Aliás, ele próprio, homem moderadamente dedicado ao deleite de um cigarrinho, não perdia oportunidade de resolver umas passas, quando o comboio cumpria paragem nas estações intermediárias. Nessas alturas, partilhava com Virgolino uma cigarrada apressada, dois dedos de conversa e mais uma inútil advertência sobre os malefícios do tabaco. Aprendeu a conhecê-lo de tal forma, que sempre que o sabia enclausurado na casa de banho, batia-lhe à porta, ele abria uma fresta e passava-lhe uma terapêutica com filtro... Virgolino, assim que o punha na boca, enquanto o fumo se expandia no comboio, acendia-se-lhe um sorriso no rosto e dizia docilmente, Mamã “áléviu”! O revisor dizia aos outros passageiros: Não quero protestos! Até a automotora parou de abanar!