7 minute read
Destaque
DESCARBONIZAÇÃO DA INDÚSTRIA: PILAR PARA A NEUTRALIDADE CLIMÁTICA
por Júlia Seixas, Professora na FCT NOVA1 e Francisco Ferreira, Professor na FCT NOVA1 , Presidente da ZERO2
Advertisement
As múltiplas crises ambientais que a União Europeia enfrenta, num mundo altamente interligado, precisam ser abordadas por políticas horizontais – o Pacto Ecológico Europeu, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o 8º Programa de Ação Ambiental, o Quadro Financeiro Plurianual e o Pacote de Recuperação e Resiliência (PRR) – e também por políticas temáticas específicas e comerciais. O Pacto Ecológico Europeu é uma grande oportunidade para responder às ameaças existenciais de degradação do clima, perda de biodiversidade e poluição, incluindo riscos de produtos químicos. Constitui a peça central na resposta à crise COVID-19, ajudando a impulsionar a transição da economia para um mundo mais resiliente. A descarbonização da Europa e de Portugal deve ser enquadrada neste contexto, em que se pretende aumentar a ambição de redução de emissões de gases com efeito de estufa (GEE) para 2030 através da Lei Europeia do Clima, com objetivos finais, ainda em negociação, de (a) reduzidas emissões em pelo menos 55% entre 1990 e 2030, consubstanciada no Plano Nacional de Energia e Clima para 2030 (PNEC 2030) e (b) atingir a neutralidade carbónica em 2050. Outros objetivos pertinentes do Pacto incluem o fornecimento de energia limpa, a mobilização da indústria para uma economia circular, a construção e renovação eficiente na utilização de energia e recursos, e ainda a ambição de poluição zero por um ambiente livre de substâncias tóxicas. O PRR será um instrumento fundamental de investimento na próxima década, onde Portugal excede em 10% o objetivo mínimo de 37% relacionado com a transição climática, com um foco muito grande na descarbonização. Convém realçar que muitos outros países fora da Europa3 assumiram o objetivo da neutralidade climática, incluindo a China para 2060, aspeto fundamental para garantir condições de equidade na competitividade da indústria europeia e nacional.
Professora FCT NOVA Júlia Seixas -
1 Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa – https://eciu.net/netzerotracker 2 ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável 3 https://eciu.net/netzerotracker
Lidar com as alterações climáticas tem obrigado a mudar a forma como pensamos na sua solução, pelo menos em três aspetos. Não sendo um problema específico a um setor económico, é necessário abordar de forma sistémica todas as atividades económicas e a sociedade, levando-nos a questionar transversalmente modelos de produção e de consumo. Não sendo um problema específico de um país, é necessário ter em conta os esforços de redução das emissões de GEE noutros países por questões de competitividade dos produtos e serviços, bem como os esforços de adaptação e resiliência às alterações climáticas nos países fornecedores, sobretudo a eventos climáticos extremos, que podem pôr em causa a cadeia de fornecimento das indústrias. Não sendo um problema rápido de resolver por mera substituição tecnológica, é necessário considerar perspetivas de futuro, mais ou menos longínquo. A descarbonização das economias requer uma visão de longo prazo, mesmo para lá de 2050, enquanto as metas do PNEC acautelam o prazo de uma década (2030), alinhadas com o objetivo da neutralidade carbónica que se pretende alcançar nos próximos 30 anos (2050). Esta perspetiva temporal é importante para a definição dos ciclos de investimento na indústria. A neutralidade climática coloca a indústria em geral, incluindo a indústria cerâmica, perante desafios estruturais. Bastará a substituição das fontes energéticas fósseis para renováveis? As tecnologias de produção poderão permanecer iguais no essencial, embora mais eficientes, ou terão de ser transformadas? Os mercados de produto final permanecerão iguais, mesmo sabendo que os produtos já são produzidos com baixa intensidade carbónica? Quais os novos produtos a surgir, fruto da inovação e mudança de paradigma dos modelos de consumo e dos novos consumidores? Planear, a prazo, a atividade de um setor industrial intensivo em energia, não é fácil pela incerteza que decorreda fortíssima inovação que se avizinha, seja tecnológica seja de novos produtos substitutos. A opção mais segura é fazer parte deste processo, enquanto agente ativo, orientado por uma visão de longo prazo. Em Portugal, o total das emissões de GEE da indústria, originadas pelo consumo de energia e pelos processos industriais, tem variado entre as 14 e 20 milhões de toneladas de CO2 e anuais nos últimos 28 anos, com uma representação entre 28% e 21% do total das emissões nacionais. A evolução das emissões das duas componentes tem sido em sentido oposto, ou seja, as emissões do consumo de energia têm-se vindo a reduzir (-15,5% em 2018/1990), muito embora em 2019, 75% do total de energia consumida na indústria tenha sido assegurada por energia fóssil (DGEG, 2020), enquanto as emissões de processo têm vindo a aumentar (+20% 2018/1990), convergindo para montantes similares a partir de 2013, como se observa na figura. Muito embora a oportunidade para a descarbonização na indústrias eja visível, uma análise mais consequente requer informação detalhada sobre a indústria da cerâmica. As oportunidades variam consoante o tipo de indústria, pelo que o posicionamento da indústria da cerâmica no processo de descarbonização a que está obrigada exigirá a compreensão de vários aspetos. Importará desde logo avaliar o impacto do preço do carbono no mercado europeu de licenças de emissão (CELE) que abrange 32 unidades industriais portuguesas e que, de acordo com a Agência Europeia do Ambiente4, têm recebido licenças gratuitas em número superior ao montante das emissões verificadas até 2019, o que indicia um impacto negligenciável deste instrumento. Importará antecipar o impacto da IV fase do CELE que se iniciou no início deste ano. Será importante avaliar o sector da cerâmica de forma integrada, nomeadamente sobre o potencial de redução das suas emissões, os custos das opções alternativas de redução, do impacto destes custos na competitividade dos seus produtos e a exposição destes a cenários diferenciados de custo de carbono nos mercados de exportação, para além do potencial de inovação que o setor deve tornar visível. O setor da cerâmica é caracterizado pelo uso de fornos de alta temperatura para fazer produtos que vão desde produtos familiares como tijolos, azulejos e louças até produtos especializados como refratários de alta temperatura. Será importante identificar antecipadamente opções de descarbonização até 2050, isto é, combinação de opções tecnológicas (e.g. eficiência energética, substituição de fontes de energia, alterações de processo, novos produtos) para níveis crescentes de redução de emissões, identificando custos de investimento, formação e know-how adicionais, exigência denovos inputs, com o objetivo de
4 https://www.eea.europa.eu/data-and-maps/dashboards/emissions-trading-viewer-1 Evolução das emissões de Figura 1 - gases comefeito de estufa na indústria em Portugal, geradas pelo consumo de energia e processos industriais (eixo da esquerda) e representatividade no total nacional de emissões (eixo da direita). Fonte: Dados APA (2020)
manter a competitividade internacional. Numa altura em que muitos mercados começam a ficar sujeitos a instrumentos regulatórios para a neutralidade climática, e dada a taxa de cobertura das importações pelas exportações da indústria da cerâmica de 350%verificada em 2019, é crucial antecipar aqueles aspetos. Ao mesmo tempo, convém referir que a prevenção e controlo integrados da poluição têm sido determinantes para todo um vasto conjunto de setores industriais. A Diretiva inicial 96/61/CE, do Conselho, de 24 de setembro de 1996 substituída posteriormente pela Diretiva 2008/1/ CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de janeiro de 2008, têm procurado assegurar a concretização de uma abordagem integrada do combate à poluição. No contexto da indústria cerâmica, foram quase quatro anos entre 2003 e 2007 para a Comissão Europeia e os Estados-Membros, em conjunto com os representantes de organizações não-governamentais da indústria e do ambiente chegarem a um documento de referência das melhores tecnologias disponíveis (MTD), o denominado BREF em Inglês. No processo de revisão do documento de referência sobre as MTD, que está atualmente em curso para o setor da cerâmica, há um conjunto de elementos fundamentais que estão em discussão e que deverão refletir uma maior integração e sustentabilidade rumo à descarbonização e à implementação de uma economia circular. Entre estes elementos, salienta-se: a necessidadede uma análise mais abrangente para a cadeia de valor na implementação das tecnologias, incluindo uma perspetiva intersectorial, o reconhecimento da importância das emissões de CO2, procurando identificar e avaliar caminhos para a descarbonização, ou ainda a consideração do consumo específico de energia e a sua origem no sentido de melhorar o seu desempenho, com impactes diretos no esforço de redução de emissões. A redução de consumo matérias-primas, na embalagem dos produtos e na produção de resíduos num contexto de economia circular, é um objetivo também a ter em conta, dada a redução indireta de emissões de CO2 a que pode conduzir A indústria da cerâmica deve conhecer as oportunidades e barreiras que a neutralidade climática lhe proporciona, levando em conta as especificidades das unidades industriais nacionais e os mercados que tem conquistado. Sistematizar informação e conhecimento e antecipar cenários de evolução do setor deve ser o primeiro passo. As medidas previstas no PRR atribui uma verba de 715 milhões de euros para a descarbonização da indústria, nomeadamente para apoiar processos e tecnologias de baixo carbono, medidas de eficiência energética, a incorporação de energia de fonte renovável e armazenamento de energia, a capacitação das empresas e a elaboração de instrumentos de informação. Esta é uma oportunidade fundamental que a indústria cerâmica não pode perder.