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Serge Abramovici

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Regina Guimarães

Regina Guimarães

Serge Abramovici (Saguenail)

O que é a liberdade nas circunstâncias que estamos a viver hoje? Em 1924, há quase um século, numa época em que gozava como qualquer outro bicho careta da licença de circular, André Breton escrevia no «Manifesto do surrealismo»: «A simples palavra liberdade é tudo o que ainda me exalta. (…) Responde porventura à minha única aspiração legítima. No meio de tantas desgraças que herdámos, há que reconhecer que nos concedem a maior liberdade de espírito.» Nesta perspectiva, a situação de confinamento não muda nada. As restrições incidem sobre as possibilidades de consumo e distracção, eventualmente de labor. Em nenhum caso a liberdade de pensamento é atingida, podendo, bem pelo contrário ser estimulada pela reclusão que nos confronta com nós mesmos, confrontação da qual nos desabituámos e que só pode revelar-se positiva. Como aproveitar esta mudança radical para, sem voltar atrás, construir alternativas ao mundo de ontem? Parece-me que quem não foi capaz de construir alternativas quando tinha à sua disposição mais meios e mais ferramentas não haverá de se mostrar mais eficaz quando as restrições impostas lhe fornecem um álibi perfeito. A consciência é fruto das condições materiais exteriores no seio das quais se elabora. Talvez as populações confinadas se apercebam de que se pode viver sem consumir tanto, que é possível ocupar o tempo com actividades que não as que a classe dirigente lhes impõe, que o contacto, única fonte de eclosão dos sentimentos (sair de si próprio,

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projectar-se no outro) e da reflexão (conhecer-se a si próprio graças à imagem que o outro nos devolve) é o acto (e o valor) supremo. Após a catarse e o arrebatamento que o fim do confinamento desencadeará, poderemos fazer balanços.

E a cultura, é sempre pra depois? O que tem a cultura a ver com isto? A palavra «cultura» remete para muitas noções e isso permite fugir com o rabo à seringa. Convém pois definir os termos: a cultura é o que se transmite, o que se debate, o que serve de referência (positiva ou negativa), o que alimenta a memória social. A «arte», palavra que adquire a sua actual acepção há três séculos atrás quando o mercado se abre às produções que dela emanam, não tem nada a ver. O «divertimento», que nos permite esquecer, pelo menos provisoriamente, os verdadeiros problemas a resolver, também nada tem a ver. Criar consiste em transformar positivamente – sublimar – um sofrimento tal que o acto de criação se torna vital, independentemente de qualquer consideração mundana; a «cultura» leva geralmente algum tempo a assimilar essas criações. Os «artistas», que formam uma casta privilegiada, herdeiros da função outrora exercida pelos bobos e as cortesãs, que querem a receita das vendas e a subvenção do Estado, são globalmente agentes destruidores da cultura, submetendo-se aos imperativos da cultura de massa – aquela que é concebida pelos «decisores» para os «consumidores» ou‒protegendo o seu domínio como «coutada privada» – quando «a poesia [deveria] ser feita por todos, não por um». Pelo que não choraremos pela sua sorte. A cultura em tempo de confinamento consiste em divulgar e discutir as obras, no sentido mais lato, a fim de repensar o presente, numa situação que não é tão nova quanto pretendem fazer-nos crer.

Grand Loup (Yann Prost) Tendo em conta a situação de confinamento prolongado até 11 de Maio [em França], sou incapaz de alinhavar opiniões precisas sobre assuntos tão vastos como a liberdade e a cultura. Nestor Makhno dizia em 1924 que «a liberdade de cada um é responsabilidade de todos». Belo princípio filosófico desse comunista libertário ucraniano, mas o que resta dele hoje quando a economia capitalista se apoderou em seu proveito das liberdades de cada um, controlando a cultura, entre outras coisas? Os Estados e os seus governos estão às ordens da Organização Mundial do Comércio e do Fundo Monetário Internacional. Para mim, é evidente que a cultura se deve exprimir com toda a liberdade em todas as suas formas. Actualmente, seria preciso talvez vislumbrar a criação de mil núcleos de liberdade e de cultura situados localmente e independentes de todos os poderes vigentes. Grand Loup (Yann)

Jorge Silva Melo

O que é a liberdade nas circunstâncias que estamos a viver hoje? Para nós, burgueses que podemos estar confinados, é simples: acordar, lavar corpo e casa, pensar, ler, discutir, pensar, contrapropor, falar com outros por todos os modos possíveis, dormir. Mas somos poucos. Para a imensa maioria não é nada. Nem nunca foi. Como aproveitar esta mudança radical para, sem voltar atrás, construir alternativas ao mundo de ontem? Não sei. Não sei. E a cultura, é sempre pra depois? O que tem a cultura a ver com isto? Não sei o que é a cultura. São as artes? O entreteninento? As ciências? As igrejas? Não sei responder, eu faço teatro, fiz cinema e escrevo o que me dá na gana. Isso é o quê? Cultura? Não creio. São coisas que se fazem...

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