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poema de Ernest Hemingway
from PVEC25Abril20
by casadaachada
Os tempos exigiram um poema de Ernest Hemingway
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Os tempos exigiram que fluíssemos Mas martelaram a rolha no barril.
Os tempos exigiram que dançássemos Mas vestiram-nos calças de aço.
E por fim os tempos foram brindados Com a espécie de merda que tinham exigido.
Tradução de João Rodrigues
Poema de juventude de Hemingway, escrito em Paris, em 1922. O título é «roubado» da segunda parte do poema «Hugh Selwin Mauberly», de Ezra Pound, de 1920.
Escadinhas do Duque por Mário de Carvalho
É tão importante falar nisto. E exprimir, mesmo toscamente, mesmo resgatando lances desencontrados de uma memória já vacilante, sentimentos de gratidão pelo que fizeram por nós e, sobremaneira, de nós fizeram.
Escadinhas do Duque, sensivelmente a meio. Espaço alargado. Por detrás dum muro, a velha, airosa Lisboa, alçando-se harmoniosamente até às torres severas do Castelo. Em tantas ocasiões, galguei com alegria aqueles carcomidos degraus, direito à Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal…
E desde muito miúdo. O meu pai, cooperativista activo durante toda a sua vida e ligado também a outros transes da política oculta da Oposição, fazia questão de assistir, com a família, a convívios e festas, designadamente de passagens do ano. Lembro-me de correr por ali, com outra miudagem da minha idade, por entre os pares que dançavam naquele espaço não muito vasto. Cóbois e índios. Tiros. Havia rifas, ganhei uma gaitinha, muito esganiçada e alegrete. O dinheiro apurado por aquelas rifas, calculo hoje, destinar-se-ia aos presos políticos ou a outras finalidades beneméritas de resistência.
E foi ali que comecei a ouvir o coro da Academia dos Amadores de Música, conduzido por Fernando Lopes Graça. O maestro, de modos sempre discretos e reservados, não se furtava ao convívio. A dada altura o coro reunia-se ao fundo da sala. Os circunstantes dispunham-se, sentavam-se, em silêncio. Lopes Graça enunciava o nome da canção, em voz baixa: «Canta Camarada Canta.» E insistia, muito sério: «Canção de contrabandistas da Beira-Baixa.» Mas todos, mesmo nós, gaiatos, sabíamos que aquela canção significava muito mais e que aquele «camarada», entoado com força, era muito mais que o azougado companheiro contrabandista.
Aliás, ali fui aprendendo que as palavras tinham vários sentidos, conforme quem as dizia e quem as estivesse a ouvir. Teria mais ocasiões (sempre gratas) de ouvir o coro, designadamente nas Associações de Estudantes, mais tarde. Sempre momentos de afirmação de dignidade e de honrosa rebeldia.
Mas não ficou por aqui a minha frequentação da Cooperativa dos Trabalhadores. No final do curso do Liceu e, mais tarde, na Faculdade, circulava, numa sequência de boca-a-boca a notícia de que Fulano ou Beltrano iria estar em tal data na Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal. E então, chovesse ou ventasse, arranjávamos sempre maneira de comparecer naqueles colóquios que nos davam a conhecer, em carne e osso, gente admirada dos jornais, das artes, da literatura, do cinema…
Havia ali uns instantes de diálogo franco, de partilha de vivências e de problemas, que era um refrigério e uma libertação, no mundo compartimentado e abafadiço em que então vivíamos. Todos aqueles homens e mulheres (ditos «intelectuais») eram mal vistos, ou censurados, ou ocultados pelas censuras do regime vigente. Ali nos eram trazidos, muito simplesmente, para que os pudéssemos conhecer, e às suas obras. Acto de coragem deles e dos dirigentes da cooperativa também. Eram diálogos livres, francos, reveladores, completamente ao arrepio das charangas propagandísticas do regime.
É certo que havia sempre, lá ao canto, encolhido, um sujeito bisonho, desconhecido de todos. Mas éramos muito novos. Estávamo-nos nas tintas.
Lembro-me de alguns dos convidados. E de um ou outro interveniente. Não cito alguém para não esquecer outros. Apenas quero deixar aqui registada esta nota de reconhecimento e assinalar como aquele trabalho, na aparência modesto, desviado e modestamente participado, acabou por ser fundamental, na formação democrática de não poucos jovens desse tempo.
Mário de Carvalho 11. 04. 20