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Bertran Romero Sala

Alguns jornais, online, insistem em transmitir ao vivo o centro das cidades vazias. E a legenda é alguma coisa parecida com “Incrível, a cidade como nunca a tínhamos visto”. Mas não é verdade, estamos habituados a vermos as ruas vazias, as multidões com medo, estamos habituados aos filmes apocalípticos que periodicamente passam nos cinemas, com aquelas cidades instaladas no desastre.

É inegável, há algum prazer na destruição, mesmo que seja para ver como os Estados Unidos têm problemas dentro de casa em vez de exportá-los, ou porque estamos fartos de como se organiza o mundo. Mesmo entre o público norte-americano estas imagens apocalípticas têm certo sucesso. Talvez seja porque se não temos uma ameaça constante à nossa normalidade não podemos viver tranquilos? Porque o medo de perder os nossos privilégios é o motor para justificá-los sem pensar muito? Mas, realmente, sabemos que as ameaças de destruição são coisa de filmes, que não estamos perto do colapso e que isto vai continuar em frente para sempre. Afinal, estes filmes são bem úteis! O medo é a ferramenta mais eficaz contra a liberdade, o medo controlado ao irreal, à possibilidade impossível dum apocalipse à Hollywood: evita que pensemos nos medos reais, nos apocalipses possíveis (por muito que menos espectaculares), evita que vejamos o sofrimento dos outros, ocupados como

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estamos em manter os nossos frágeis privilégios. Porque para ter medo de perder alguma coisa é preciso ter alguma coisa. E porque os discursos apocalípticos situam-nos no irreversível, na impotência, como se qualquer mudança estivesse fora do nosso alcance. Fechados em casa, no meio duma pandemia estranha, conseguimos ver a fragilidade dos alicerces sobre os quais está construída a nossa sociedade. Mas nem sempre sabemos reagir; não é (só) que não queiramos ver as enormes desigualdades porque não é confortável, mas porque todas as possibilidades de tecer redes foram sistematicamente destruídas. E nestes dias vemos ainda mais claramente que não conseguimos estar presentes no que fazemos e pensamos, estamos sempre a projetar para a frente, ou para o passado, ou com medo, ou com possibilidades futuras que se assentam sobre falsidades. Ou nos estamos a proteger dos dias que passam. Ou temos três reuniões ao mesmo tempo, um deadline para ontem, uns apoios da câmara municipal que nos obrigam em contrapartida a fazer quem sabe exactamente o quê. E então é sempre amanhã: amanhã vai-se aos copos, amanhã pensa-se nisso, amanhã muda-se a vida, amanhã tento recuperar aquela amizade. Estamos a perder o presente, estamos sempre algures noutra parte. Mas olha, as redes vieram para resolver a distância que provoca o confinamento.

Aulas online, reuniões online, sessões online, coros online. Nascimentos online! Seria demasiado fácil ficar naquela demonização das redes, nada nova e que nada acrescenta. Mas que não nos

queiram convencer de que a nossa vida pode ser online, porque uma aula também se faz no movimento pela sala, porque para uma assembleia é preciso poder cheirarmo-nos uns aos outros, porque para cantar num coro é preciso tocar o outro. E quando sairmos das casas, se é que vamos conseguir, a solução não será só podermos organizar-nos telematicamente, criar resistências no facebook, trabalhar desde casa para poder conciliar a vida laboral e familiar. Será talvez preciso trabalhar menos. Trabalhar diferente. Marcar umas novas prioridades e (continuar a) tecer redes. Virtuais também, mas não só.

Este apocalipse de ruas vazias só se poderá resolver com encontros não adiados, com palavras ditas uns ao pé dos outros, podendo estar presente naquilo que se faz, com colaboração e sem heróis. Aqueles heróis perigosos dos filmes, que não precisam de nada porque eles já são tudo. Precisamos de muito, de paz, de pão, de habitação, de saúde, de educação. Porque para poder estar presentes naquilo que se faz é preciso não estar em risco.

(E a cultura? A cultura sempre entre parênteses: tudo aquilo que não seja actividade produtiva não cabe num mundo urgente, com prioridades marcadas por governos de salvação. Só, talvez, das margens do texto é que se pode pensar...)

A Vida é um Acontecimento Local por Sofia Ferreira Andrade

“A vida é um acontecimento local”, disse-me Chaplin n’As Luzes da Ribalta. A vida só é porque a fazemos acontecer. E acontecer num espaço, mesmo que este seja só o lugar que vai da minha pequena casa à nespereira do quintal do meu vizinho. Num momento em que nos embriagamos na suspensão do presente, na ausência de um tempo social, e que a vertigem de sermos um pequeno ser histórico a quem a História acontece nos aninha, venho à superfície da apatia e inspiro aquele instante gélido de realidade para encher os pulmões de consciência. Mês de Abril. O homem elevou-se a indivíduo ao conquistar um tempo para a sua solidão, ao subtrair-se cadenciadamente ao calendário da vida comunitária, e ao inscrever esse tempo num momento concreto da sua vida íntima. A conquista desse tempo pensante deu-nos o espaço individual de onde despertámos para a realidade, dando um passo para indagá-la e outro em volta para tomarmos consciência. Porque a consciência histórica nasce do pensamento e ter essa consciência é ser um agente da História, é ter responsabilidades, deveres e garantias, é escrutinar o seu sentido como problema, onde a nossa condição é activa na sua resolução. O tempo comum no espaço social é o encontro do tempo solitário de cada indivíduo, é a minha mão na tua e os nossos passos acertados que calcorreiam a avenida. Mês de Abril. O tempo social é o sustento do tempo histórico, nós sentimos e somos a História através do tempo de convivência com a nossa sociedade, o lugar antropológico dentro do qual estamos e nos movemos, de cujas revoluções e ecos somos responsáveis. No lugar que vai da minha pequena casa à nespereira do quintal do meu vizinho estou só, mas o meu tempo de solidão é um tempo de liberdade concreta, de liberdade local que me prepara, e a ti, para o espaço da liberdade comum. Faço a vida acontecer, devagarinho, espicaço o ser pensante com os instrumentos culturais que me chegam lá de fora, da comunidade da minha memória de todos os meses de Abril. A cultura que me abraça a ti é aquela que nos educou, que nos narra e reactualiza, agilizando-nos o passo no compasso de todos os tempos. Acontecerei também a 25 de Abril, da minha janela verás uma consciência solitária num quadradinho de luz, ainda mais pronta a unir-se à tua para sermos a multidão que acontece, real, no lugar da nossa História. Porque a poesia só está na rua no instante em que sai de casa.

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