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soluções das palavras cruzadas

Disparates por Pitum Keil do Amaral do seu livro 100 Anedotas que me fizeram rir

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A recarga da banana

Um velho, com uma gabardine coçada, sapatos rotos, entra na Frutaria Almeidas.

Remexe no bolso. Tira uma casca de banana. –Por favor... Têm recargas para isto?

O gato

No Pátio das Osgas, ao Casal Ventoso, uma vizinha que ia sair para o trabalho vê outra debruçada sobre o tanque de lavar a roupa, a esfregar o gato com sabão. –Ó vizinha, olhe que não se deve dar banho aos gatos. Dá-lhe p'raí uma pneumonia que o bicho morre! –Alguém lhe perguntou a sua opinião? Meta-se mas é na sua vida, sua enxerida!

À tarde, quando a primeira vizinha voltou, estava o gato morto, na sarjeta. –Eu não lhe falei? Eu não a avisei que os gatos não se lavam assim? –E você sempre a meter-se onde não é chamada! Quem lhe disse que o gato morreu do banho? Ele morreu, sim, mas não foi do banho. Foi do torcer!

Descubra as 6 diferenças por Sónia Gabriel [A partir de Nuno de Sousa, 1975. figuras 1. Forja Editora]

Descubra as 6 diferenças (II) por Sónia Gabriel [citação de um desenho de Mário Dionísio]

O jogo do desconfinamento de Regina Guimarães

Precisas mais duma carta de amor ou dum extracto mensal de conta? Precisas de mais uma noite de verão ou de mais um candeeiro design? Precisas mais de sopa de legumes ou de suplementos alimentares? Precisas de mais um parque arborizado ou de mais um parque de estacionamento? Precisas mais da conversa no café ou dos tweets dos poderosos analfabetos? Precisas de mais uma mercearia gourmet ou de mais um mercado de frescos? Precisas mais dum consultor de imagem ou duma consulta no médico de família? Precisas de mais escolas livres e gratuitas ou de mais coaching e de gestores de talentos? Precisas mais de hospitais públicos ou de bancos de investimento? Precisas de mais dramaturgos sem travão ou de mais opinion makers? Precisas mais de prados e florestas ou de cenários virtuais sofisticados? Precisas de mais filósofos na rua ou de mais influencers na net? Precisas mais de serras e oceanos ou de paisagismo planificado? Precisas de mais companheiros ou da companhia de mais hipsters? Precisas mais de diversidade biológica ou de transumanismo galopante? Precisas de mais geografias rebeldes ou de mais geolocalização dos párias? Precisas mais do conto a cada encontro ou do story-telling da netflix? Precisas de mais do teu preciso tempo ou de mais tempo para money-making? um jogo a solo e à suivre em que o jogador joga com e até contra si mesmo

Precisas mais de ler e andar nas nuvens ou de alimentar o éter da tua cloud? Precisas de mais companheiros de estrada ou de mais likes no facebook? Precisas mais do saber-fazer do lavrador ou das performances do analista de big data? Precisas de mais instantes inimagináveis ou de mais fotografias no instagram? Precisas mais de ideias para mudar mundo ou dos softskills dum Scrum master? Precisas de mais professores talentosos ou de mais horas de e-learning? Precisas mais da fantasia duma horta louca ou de roupa trendy e acessórios tendance ? Precisas de mais ver melhor o que te olha ou de mais selfies em toda a parte e hora? Precisas mais do café do teu bairro ou duma casa de chá rétro na baixa? Precisas de mais gente a bater à tua porta ou de mais aplicações no teu smartphone? Precisas mais da sombra das árvores ou dum bunker com todas as comodidades? Precisas de mais bancos de jardim ou de mais garantias de sigilo bancário? Precisas mais de paraísos fiscais ou de mais paraísos artificiais? Precisas de mais saltimbancos ou de câmaras de vídeo-vigilância? Precisas mais de cantinas comunitárias ou de templos da nouvelle cuisine? Precisas de mais contraditores ferozes ou de mais animais de estimação? Precisas de mais funambulismo na mioleira ou de mais arame farpado na fronteira? Precisas mais de ver crianças a brincar na rua ou de visitar dreamlands e parques temáticos? Precisas de mais razões para uma longa vida ou de mais lazer e escapismo organizado? Precisas mais de quem te ouça e console ou dos videojogos da consola? Precisas mais de brincar aos cozinhados ou de oscilar entre low-food e fast-food? Precisas de mais memória para pensar ou de mais ram para te esqueceres disso?

Entrevista a Luiz Rosas Regina Guimarães entrevistou Luiz Rosas, um dos “inventores” da Leitura Furiosa e membro da Association Cardan, associação de luta contra a iliteracia com sede em Amiens, França. Luiz Rosas conta-nos muito da sua vida e do seu percurso, entre o Brasil e a França, e de como se tornou “possibilitador de projectos que envolvem humilhados e ofendidos”. Luiz Rosas, que é também membro da Casa da Achada-Centro Mário Dionísio, deixa-se levar pelo pensamento e pelas palavras que puxam outras palavras, embora este tipo de entrevista à distância não permita aquilo de que ele mais gosta: “aquilo que é dito entre olhares”.

Pois é, Regina, acho engraçado escrever uma entrevista. Pois para mim uma entrevista é aquilo que é dito entre olhares. Dois, quatro, seis, oito... pares de olhos. Isso não vale para as entrevistas de ciclopes. Essa história de entrevistas fica nas fronteiras do que estamos vendo, daquilo que vimos. Tendo vistas sobre o que querem pensar os olhares. Olho para a tela do computador. A câmara vesga me encara cegamente. Entrevista com o teclado como eixo de simetria. Então escrevo o que me passa pela cabeça, sem olhar, sem olhares. Não é muito profundo. Sou raso demais. Isso me convém senão teria de compreender coisas complexas.

Da tua infância, conta-nos aquilo que te resta e te parece relevante. Da praia do Zumbi, na ilha do Governador, de onde moravámos perto até aos meus seis anos, ficou o Zumbi relevante. Zumbi era um escravo. Ele fugiu e com outros fugidos viveu no Quilombo dos Palmares. Que ideia, não é? Querer a liberdade e viver numa república de escravos. Ali perto tinha um mangue aonde viviam pescadores pobres cujos filhos iam na escola pública e nos encontrávamos. Os guris nos convidaram, voltamos para casa com cangarejos. Antes da idade oficial de ir para a escola, fiz reivindicações fortes em casa para ser inscrito. Deu certo. A escola se chamava Cuba. Era engraçado que no Brasil meia hora antes do golpe militar davam nomes de países às escolas. Então aprendíamos elementos da história de Cuba. Devíamos cantar o hino nacional cubano e o brasileiro. Gostava de cantar esganiçado os dois hinos nacionais de manhãzinha. O hino de Cuba falava de alguma coisa sobre as delícias da morte patriótica: morrer pela pátria é viver. Esquisito e difícil de compreender para mim criança. Mais tarde me falaram da relação entre eros e tanatos. Quando mudámos da ilha para a cidade, a escola seguinte se chamava Estados Unidos. O hino desse país fala mais sobre o alvorecer, as lutas perigosas, a crença em deus e a causa justa do colonialismo. Então já tinha tres hinos maternos no ano da Baía dos Porcos quando os alunos da escola Estados-Unidos tentavam invadir a escola Cuba enquanto a professora primária que insistia para que eu soubesse ler e escrever se

chamava Gioconda. Não sei se era a filha do Miguel com o Angêlo. Ela se empenhou tanto e bem que ainda sei ler até hoje. Como essas geografias e a Gioconda fora do quadro me faziam confusão, perguntei ao médico como funciona o cérebro para construir o pensamento. Ele me respondeu que era mais fácil de ir até a lua de bicicleta que responder essa pergunta. Cada vez que não sabia responder a perguntas, pegava uma bicicleta e ia para a lua. Voltava. Fiz tantas viagens. Ficou fácil. Até que acho um esbanjo, o desperdício em pessoa, a despesa da nasa para a missão apolo. Depois vivemos a preparação do golpe militar. Revolução, disseram. Os ricos organizaram a penúria. Guri ia para as filas de racionamento. Os adultos passavam na minha frente e quase sempre quando chegava a minha vez não havia mais leite, pão, feijão com arroz. Assim, os ricos, os militares, criaram um estado de espírito da população contra o presidente. Foram quase dois presidentes: o Janio – Vassourinha, e o João Goulard – Jango. Gostava de ouvir chamar os presidentes pelas alcunhas. O Janio era chamado de Vassourinha por querer varrer a miséria, a fome, o analfabetismo e a corrupção. O Janio se demitiu e o Jango deveria tomar posse do cargo pois era vice-presidente do Janio. O Jango não sei a razão dessa alcunha, diziam dele que era rico e de esquerda, que tinha dobrado o salário mínimo e que faria a reforma agrária. Para que ele não pegue a posse de presidente, os militares disseram que o Jango era comunista e socialista ao mesmo tempo, e isso não pode ser. No ginásio recusei de hastear a bandeira nacional e participar ao desfile de comemoração da revolução militar. Não gosto dos rituais. Quaisquer que sejam. Sou parvo. Não consigo ver no hastear panos coloridos um ato de benfeitoria para a humanidade. Nem nos desfiles dos exércitos ou dos crentes, nem naqueles dos dois juntos. Não consigo. Que me expliquem. Me explicaram e fiquei convencido do contrário.

Adolescente, vias com particular interesse tal ou tal profissão ou actividade? Esse interesse de então marcou as tuas escolhas futuras? Havia a preocupação de mudar de classe social, isso para mim era e é ligado a mudar o mundo. A preocupação de mudar de classe social faz parte do meio ambiente, da ecologia de um país pobre, de pais pobres. Éramos da classe média que era dividida em vários níveis. Com exagero e verdade, todo mundo era classe média. A classe média é o no man’s land do país subdesenvolvido. Não era interesse. Era. Então fiz uma escola técnica. Gostei. Na aula de organização do trabalho devíamos pensar o funcionamento das equipas de trabalho futuras segundo o preceito que estipula que o mundo é divido em dois, aqueles que mijam na piscina e aqueles que vão nadar dentro depois. Anos depois, li o mesmo no livro de Charles Bukowski - Eu te amo, Alberto. Engraçado de conhecer essa frase apresentada com desejos opostos, o da escola como ferramenta de opressão e o da biblioteca como estímulo de revolta. Então na escola técnica comprava o jornal O Pasquim – pasquim quer dizer jornal injurioso, difamador como sabes. Os criadores desse jornal escolheram esse nome para não poderem ser xingados. O Pasquim é um pasquim, é

claro pois é o nome dele - para o ler de maneira ostensiva nos intervalos. Era dar os números da semana passada aos colegas mecânicos. Foi a entrevista de Leila Diniz no Pasquim que provocou a Lei de Imprensa, a censura prévia dos jornais conhecida também como Decreto Leila Diniz. Nessa entrevista a Leila Diniz diz – gosto desse som – a Diniz diz, o que me marcou para todas as escolhas, até hoje: A gente é atriz porque cisma que é atriz. Acho que podemos substituir a palavra atriz por qualquer outra. E somos. E consideramos o que nos leva à escolha. A Leila falou ali também de Summerhill do A.S. Neil, essa escola de base libertária. Depois fui ler outros. Penso que Leitura Furiosa leva a marca do Pasquim, da Leila e de tudo e todos que me levaram por aí na vida, até: A gente é porque cisma que é. Depois é só embirrar com a vida. E viver, e fazer ou não. De pirraça. Me lembro que nessa entrevista a Leila Diniz tinha inventado um superlativo. Acho que era mais ou menos parecido com alegrérrimo ou com tristérrimo. Isso me marcou. Essa liberdade e intimidade de fazer cócegas nas regras da língua é marcante.

Quando e como tomas consciência da violência da exclusão social? Não sei responder sobre a exclusão social. Talvez isso seja só um pedacinho de um todo. É que acho o sistema no qual vivemos tão violento. Não só a exclusão. O discurso político, religioso, carrega uma violência porca. E essa frase é violenta. E essa violência que temos dentro de nós. Que nos leva um dia mandar para a puta que pariu aqueles que amamos, que odiamos. Queremos matar, ou que alguém ou uma doença os mate por nós. Ou que não morra, mas que faça falência. Acaricio a minha violência cada dia procurando nos jornais o artigo sobre a falência do sistema mundial. Li um dia que se os países que devem dinheiro ao fundo monetário internacional não pagassem, o sistema cairia. Imagina a violência do desaparecimento do sistema. Talvez essa violência dentro de mim também viesse a falir.

Em que momento decides migrar para França? Foi quando a ditadura ficou ainda mais violenta e restritiva em 1972. Nesse ano queria comemorar com amigos os 50 anos da semana de 22. A semana de 22 foi um momento de declaração de independência artística de escritores, pintores e músicos com vontade de renovação social e artística. É poderoso propor mudar a sociedade pela arte e a cultura, mudando os critérios estéticos. Não conseguimos nem renovar a sociedade, nem fazer a exposição comemorativa. E em setembro de 1973 foi o golpe no Chile com ajuda dos da ditadura brasileira. Não só. O meio ambiente no Brasil também ficou arisco.

Como foi a passagem do Brasil, terra natal, a França, terra de exílio? Foi. Tive sorte de encontrar pessoas que me ajudaram. Portanto as fronteiras estavam fechadas com o choque do aumento do preço do barril de petróleo. Tinha um cheiro esquisito no ar. Paris tinha um perfume de cidade velha comparado ao novo Rio de Janeiro

odorante. A extrema-direita virava partido político. Foi, pois é. Ainda não sabia falar francês. Achava que vivia dentro de um filme. Aqueles filmes do Godard com cheiro de Gauloise sem filtro. No Brasil tinha visto «Weekend» de Godard antes de ser proibido pela censura. Às vezes isso acontecia, um filme, uma música eram difundidos um dia ou dois antes que a censura compreendesse o assunto da obra. Ficava aflito por o filme-realidade onde doravante vivia não ser legendado em português. Olhava sempre para os pés das pessoas procurando a legenda. Até que um dia fiquei sendo um personagem dessa obra sem argumento em versão original francesa. Foi bom.

Estiveste sempre ligado ao trabalho com pessoas ou comunidades socialmente desfavorecidas? Não. Sim. Trabalhando na fábrica estava ligado com a comunidade operária que não era ainda socialmente desfavorecida. Já existia o desprezo social por esse grupo e começava então a organização do desaparecimento dos proletários daqui. Apareceram as deslocalizações, os robots e a exigência de diplomas para ser mãode-obra. Ainda violências. Regina, qual é a razão para colocar um acento circunflexo na violência? Ora o princípio pedagógico operário é aprender pela observação dos pares e pelo mimetismo do gesto produtor. Isso não convém ao mundo moderno. Também não convém que os operários tenham salário mínimo e outros mínimos conseguidos com mortes e danos. Mesmo entre nós havia o desprezo entre os mão-de-obra sem qualificação e os operários qualificados. Esses eram chamados de OQ. Tinha os OQ1, dois, três. A aristocracia operária era os OHQ – operário altamente qualificado - ouvrier hautement qualifié. Quando via esses ali na fábrica com ares de aristocratas pensava na Gioconda. No quadro que o Marcel Duchamp nomeou, colocando por baixo de uma reprodução da Gioconda LHOOQ – elle a chaud au cul. Eu era um mão-de-obra não qualificada com um quadro da arte contemporânea e a vontade de mudar o mundo na cabeça. Uma classe social era identificada pela aprendizagem teórica e outra pela aprendizagem prática, assim era feita a divisão do mundo e era a casa arrumada. Se quisesse mudar de classe social precisava dos diplomas. Pronto. De qualquer maneira, o sistema não produz um mundo favorável para os operários e os grupos abaixo deles. O sistema produz o capital. O sistema da cobiça produz o desejo imoderado de possuir o que geralmente não se merece. Vocês não acham? Ou vocês acham que os ricos merecem ser ricos? Finalmente acho que de uma certa maneira estive sempre ligado a pobres. Acho interessante a cultura popular, cultura pobre. As rimas do pobre são ricas. Seria uma marca que distingue do gosto dos ricos. Talvez nem tanto. E entre o bacalhau quer alho popular e LHOOQ de um pintor intelectual rico qual é a distância?

E o Cardan, em que circunstâncias te tornaste «grande possibilitador de projectos que envolvem humilhados e ofendidos»? Fui trabalhar no Cardan por estar farto

de trabalhar perto de políticos e sabia que o Cardan precisava de uma ajuda para ser administrado. Então abandonei reis, senhores e princesas para trabalhar com e para pobres. Pensava que para administrar uma associação de auxílio é preciso encontrar as preocupações das pessoas pobres. Era preciso encontrar as situações pedagógicas para ensinar a ler e a escrever aos que não souberam ou puderam aprender, como a Gioconda, com empenho e esmero. É preciso ir aonde o povo está. Podia assim nos encontros dos pedidos de apoios falar o que as pessoas viviam, vivem. Contar para os técnicos dos políticos e dos ministérios o barulho dos bairros sociais. Descrever o cheiro do encontro entre uma pobre e uma escritora. Esses encontros têm o cheiro da neve, tem o cheiro da roupa lavada com sabão em pó baratíssimo dos supermercados dos subúrbios. Eles têm o cheiro de olhares carregando o peso da injustiça. Foram os pobres que me ensinaram a ter ideias adaptadas a eles. Fazer propostas de ideias para construir juntos em vez de saber o que é bom para eles. Ainda essa violência dos técnicos sociais que sabem o que é bom para o pobre. Aqueles que inventaram os rendimentos mínimos deviam viver um ano ou dois com esse apoio para comprovar a proposta. Os pobres vivem a miséria e os outros vivem da miséria dos pobres.

Do muito trabalho que desenvolveste no Cardan, quais as iniciativas que te fizeram mais feliz? Não sei responder sobre a felicidade. Me considero feliz de maneira global sem bem saber o que é isso. Não me incomoda não saber. Para mim foi mais importante tomar cuidado para fazer corresponder a minha vida com a minha ideologia. Uma das primeiras frases que consegui ler em francês foi: Pensar o que vivemos com o risco de viver o que pensamos. Era um graffiti num banheiro público qualquer. Sobre a felicidade, gosto do Prévert dizendo: Tente ser feliz quanto mais não seja só para dar o exemplo.

Durante anos, dinamizaste a Leitura Furiosa, com tal mestria que a levaste a terras muito longe de Amiens. Como descobriste o prazer da leitura e como o tens cultivado ao longo da vida? Algumas vezes ouvi técnicos de políticos fazer o lapsus entre dinamizar e dinamitar um momento cultural. Gosto desses momentos, em que uma letra trocada mostra o fundo do pensamento. Enquanto dinamizava havia críticas. Não eram das construtivas. Eram das debochadas. Não era assim que se devia fazer. Deveria ser uma feira do livro onde os pobres viessem. E onde só os ricos teriam dinheiro para comprar livros? Essa Leitura Furiosa era dar pérolas a porcos. Mas quem sabe se porcos não gostam de pérolas? Essa violência de julgamento de classes. Qual é a razão da exclusão? Que grande

perigo representam os pobres a ponto de ainda não termos sabido construir um modo político pacífico e respeitoso? Gosto das críticas quando elas me ensinam uma outra visão. Quando elas são agressivas, violentas, não consigo transformá-las em melhoramento da sociedade, do mundo. Não consigo ser melhor. E tive a sorte de encontrar escritores que dinamizaram Leitura Furiosa. Ela viajou por outras pessoas, como a Eduarda Dionísio levando-a para Lisboa e você Regina Guimarães levando-a para o Porto. A Sofia Ortolá levando-a para os lados de Bordeaux. Acho que a Leitura Furiosa tem um cheirinho da vontade de justiça social do PREC. Parece haver um ar de família. Foi a Gioconda, com empenho e esmero, que me fez descobrir o prazer de ler, de sentir as rugas das sílabas e de ouvir a música do soletrar. Cultivo esse prazer identificando, classificando o cheiro das palavras que acho nos livros que compro, que me dão. Tentando compreender o humano. No Nordeste, dar um cheiro é expressão de afeto. Um bom dia carinhoso.

Um dia ouvi-te dizer: «Gosto de viajar com filhos.» És pai de quatro rapazes e duas moças. Qual o espaço de liberdade que ser pai ocupa na tua vida? Não sei bem responder. Talvez não tenha compreendido a pergunta. O teu olhar na entrevista teria ajudado. Teria visto o brilho dos teus olhos na pronúncia da palavra liberdade. Seguramente. Acho que a liberdade absoluta é vizinha da noção de felicidade, ou de deus. O absoluto me incomoda, me dá coceiras. Acho mais sensato a ideia de liberdadezinhas. Por exemplo, seríamos livres das 8 às 9 da manhã. Estou livre até às 9 e você depois das 9. É essa história da liberdade de um que começa ou acaba onde ou quando essa do outro começa ou acaba. Não gosto bem das fronteiras. E a ideia de propriedade faria a construção de tapumes para as liberdades individuais ser um setor económico em expansão. Perguntei para a minha filha Liliana qual espaço de liberdade ela ocupa na minha vida. Ela disse que os filhos ocupam a liberdade de ser egoísta dos pais. Então, se ela incomoda o meu egoísmo, isso pode desenvolver a liberdade da generosidade. Gosto dessa ideia de liberdade com outra coisa, um adjetivo. Liberdade egoísta, liberdade generosa, liberdade aleijada, liberdade gripada, liberdade escangalhada, liberdade bem humorada, liberdade obrigatória. E a placa pendurada na porta: Consertam-se liberdades.

Como viveste a chamada «crise dos Gilets Jaunes»? Ou melhor: o que é que porventura te aproxima da sua revolta, das suas reivindicações e das suas formas de luta? No início fiquei cheio de comichões. Aquela sensação de viver um momento extraordinário, conhece esses arrepios, não é? Gostei desse momento em que os coletes falavam de vidas profundas de maneira simples. Falavam de sistema económico com palavras de todos os dias

e frases curtas. Por um lado, esse imposto das fortunas é suprimido e, por outro lado, os apoios sociais são reduzidos, o sistema de empregos financiados pelo estado sufocado, o custo de vida aumenta ( sobretudo a gasolina), há uma redução do apoio ao desempregado e por aí fora todas as injustiçazinhas. E as palavras de desprezo do presidente, quando ministro, qualificando as operárias de um matadouro na Bretanha de analfabetas. Tanto desdém das classes sociais pobres ou operárias. Isso é um horror político descolorido. Achei engraçado e de mau gosto a maneira de falar deles nas televisões, nas rádios. E houve a uniformização e identificação vestindo esse colete obrigatório nos carros por medida de segurança. Para chamar a atenção sobre o ser humano num acidente. Acidente social. Discurso político acidentado. E amarelos eram chamados os operários traidores nas greves. Aqueles que recusavam a luta, mas se houvesse vitória de uma exigência eles também eram beneficiários. Personificação da cobiça. Do sistema cobiça. A ministra francesa do trabalho, com a supressão do imposto das fortunas, economiza 60.000 euros por ano. Isso representa 3 salários mínimos anuais e 120 apoios sociais por ano. Não existe uma cor para enfeitar isso em avanço social. A minha vidinha passada de operário me ajudava a compreender os pedidos de referendo cidadão. Tantos peritos politólogos criticando, destruindo essa proposta. Nenhuma análise nem dados para construir uma outra proposta de participação popular na gestão política das cidades, do país.

Nada. Vi um medo. E o governo escolheu a violência como língua. Granadas, mãos arrancadas, olhos furados, porradas, controlo de polícia em vez de encontros e conversas. Houve violências dos dois lados. Houve também os filmes feitos com telefones para oferecer um desconforto aos discursos oficiais. Gostei da ausência de representante oficial dos coletes. Uma proposta social arriscada, fora de hábito. Houve depois as grandes conversas do governo com o povo. Pouco ou nenhum colete amarelo. Sobretudo presidentes de juntas. Logo a seguir, uma reforma da previdência apresentada como universal. A polícia diz que prefere o sistema de aposentadoria atual. O governo aceita, o sistema da aposentadoria será universal com excepções: a polícia, os deputados, os senadores, os balarinos. A palavra igual vira sinónimo de diferente. A palavra justiça é o camaleão da injustiça. Como funciona o pensamento dos reis, senhores, príncipes e princesas? Achei que os coletes amarelos pareciam com os todos do 25 de Abril. Vamos lá pá mudar esse mundo. Não sei bem a paridade. Talvez as cores, os coletes amarelos e os cravos vermelhos. E se os coletes fossem vermelhos? E os cravos amarelos? A população apoiava os coletes amarelos. Então o governo transformou os coletes em bandidos. E não conseguiram enganar os 70 % dos franceses que davam apoio aos coletes amarelos. É muito, não é? Me senti bem próximo dos coletes amarelos. Me sinto incomodado pelo mau trato do protesto popular. Sempre.

Qual a tua visão da situação política no Brasil? E da situação política em França?

O sistema político é semelhante, não é? São duas repúblicas. Os dois presidentes foram eleitos. E depois há diferenças. Acho que os dois homens têm neuroses. Não são as mesmas. Talvez o traço comum das duas situações políticas seja o desprezo pelo povo. Os dois países têm estilos diferentes e são ligados. A bandeira brasileira tem uma frase do francês Auguste Comte: Ordem e progresso. No tempo da ditadura dizia-se: ordem para o povo e progresso para os ricos e os militares. A escolha de alianças dos dois países os coloca em concorrência. O Brasil, sendo de novo aliado dos Estados Unidos como era durante a ditadura, apoia e alimenta os ódios contra a Europa. E o resto do mundo. O presidente do Brasil seria favorável à instalação de uma base americana no território. O país seria assim alvo de conflitos que não lhe pertencem. O Brasil abandona o canal diplomático para cuidar das relações com outros países. A França desenvolve a relação diplomática para aumentar o volume do comércio exterior. A diplomacia é uma maneira comercial de ser dos países no sistema cobiça. Já era. A posição internacional do Brasil é relacionada ao valor dado ao presidente, os jornais do mundo zombam um pouco e frequentemente dele. Ele tenta imitar o presidente do Estados Unidos. Às vezes o faz com sucesso. O presidente do Brasil conseguiu ser censurado numa rede social. E no entanto tem muitas parvoíces e mentiras que circulam nessas redes. A oligarquia é importante no sistema político do Brasil, onde os filhos do presidente fazem declarações políticas sem fundamento. Um dos filhos denunciou a China como culpada da epidemia atual. Imitava ele também o presidente dos Estados Unidos que chama o vírus da epidemia de vírus chinês. O Brasil faz parte do BRICS, o grupo de países emergentes económicos como a China. Um outro filho seria ligado ao assassinato da veredora Marielle Franco. Acho a situação política do Brasil desvinculada. Na França depois de Robert Boulin não houve dúvidas sobre mortes de políticos. A França anda procurando como influenciar as decisões na Europa, no mundo. Tem todas as guerras para financiar, que devem servir também como terreno de demonstração das qualidades dos armamentos antes de serem vendidos. Essas guerras são importantes para ocupar pontos geopolíticos estratégicos. A França está realizando umas reformas de apoio aos desempregados, da previdência, do código do trabalho. O Brasil também faz as mesmas. E contudo os dois presidentes são bem diferentes. A resistência do povo de cada país não consegue obter a anulação dessa política reformista. Talvez essas remodelações da política de cada país sejam globais, mais ligadas a uma lógica mundial do que relativas a uma preocupação local. Então presidentes tão diferentes fazendo a mesma política. Isso me faz confusão. Fico por aqui. E ainda há tanto para escrever.

Imagino que estejas neste momento confinado como metade da humanidade. Como tens vivido estes tempos estranhos? É isso mesmo. Estou fechado em casa. O que acho estranho é que a ciência seja tão frágil. Ela não sabe fabricar o produto que vai salvar o mundo. Também estranho essa decisão de confinamentos. Vivemos com finados. Gosto que o sistema pare um pouco. Me lembro daquele filme de Doillon-Renais «Ano 01». Várias pessoas pensam que nada será como dantes. Que a doença conseguiu o que anos de luta não conseguiram, o que os coletes amarelos não souberam ganhar nem as passeatas contra a reforma da aposentadoria. Assim os sindicatos sabem o que fazer para as reivindicações depois do vírus da coroa. É só fazer criação de vírus e espalhar pelas cidades. Parece que o vírus da peste veio da China. Tudo vem da China de qualquer maneira. O macarrão, a pólvora, o papel, os fogos de artifícios e todos os produtos manufaturados que custam 1 euro.

Quais serão, no teu entender, as consequências, em termos micro e macro, local e global, da crise do Covid-19? Não sei fazer previsões do futuro. Ainda por cima que não dependem de mim. Posso dar uns palpites. Só seria sugestão rasa. Acho assim: para que as consequências sejam interessantes na transformação do mundo, da justiça social, é preciso que o vírus continue a ameaçar de morte os políticos. O medo substitui nesse momento as ideologias que já foram domesticadas pelo sistema mundial do interesse, da prevaricação, da cobiça. O vírus conseguiu que os políticos digam que compreenderam os erros da gestão política. O presidente da França disse que um hospital não pode ser administrado como uma fábrica, um banco ou um comércio. Enquanto um homem do sistema político diz que os delinquentes do confinamento são os contaminados. Sarrafusca. As consequências serão relativas à perda de confiança nos políticos. O vírus não mudou essa avaliação da política pelo povo. Isso acho interessante. Que disse, disse. O que vai fazer, não sei. Os políticos parecem considerar os discursos dos médicos, enfermeiras, lixeiros. Parece que a reforma da aposentodaria vai ser abandonada. Parece. Parece que os hospitais vão ser administrados de outras maneiras. O confinamento agrava a segregação social. Acho que as leis votadas no confinamento de controlo da população vão virar no dia-a-dia, como viraram as leis do terrorismo. Isso é uma consequência quase garantida pela experiência. As leis do confinamento criam a possibilidade de controlo de cada cidadão. Liberdade congelada. Liberdade em lata. Liberdade anoréxica.

Se pudesses tomar uma medida à altura da actual crise, qual seria? Sabemos que não posso. Não quis fazer política. Não quis ser rico. É que não quero ficar triste depois. Quando isso tudo voltar a ser o que era.

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